A(a)Margem 03

Page 1

A(a)Margem circulação de ideias sobre arquitetura, corpo e cidade



A(a) Margem: circulação de ideias sobre arquitetura, corpo e cidade é uma publicação experimental do Grupo Quiasma: estudos e pesquisas interdisciplinares em arquitetura, corpo e cidade.

www.grupoquiasma.wix.com.br/grupoquiasma

Departamento de Arquitetura e Urbanismo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PósARQ) Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis SC Brasil

2018


EDITORIAL In(ter)venções urbanas: a arte e a arquitetura como construtora de dissensos. Esse foi o nome da disciplina ministrada por mim no PósARQ/UFSC no primeiro trimestre de 2018. Alguns trabalhos desenvolvidos na disciplina compõem a terceira edição d’A(a) Margem. O intuito era uma disciplina que ao fim se desdobrasse em intervenções que articulassem arte e cidade de maneira crítica criando a partir do espaço urbano um laboratório estético-político. Vários acontecimentos surgiram desta movimentação: desde composições corporais até criminalizações das ações artísticas desenvolvidas. Após todas as tensões e (re)flexões, ocorreu-me uma história. Para contá-la decidi omitir nomes e atribuir aos fatos um pouco de ironia. Logo, as próximas linhas contém “ironia” e “coincidências” com fatos reais: Em um belo fim de semana, num belo bairro à beira de uma lagoa mística da Ilha da Magia, um grupo de marginais decidiram experimentar a possibilidade de construir dissensos no espaço urbano, simplesmente com o objetivo de estudar questões acerca da contaminação dos campos expandidos da arte e da arquitetura situando-a na experiência de apreensão da cidade contemporânea e traçando possibilidades interdisciplinares de interlocução. A partir de uma dinâmica laboratorial e performativa com base em estudos críticos de textos tutores, um estudo foi gerado e estruturou uma performatividade investigativa a qual constituía uma experimentação de caráter performativo de uma ação corpórea implicada numa articulação interdisciplinar fomentadora de uma intervenção urbana. O grupo de marginais decidiu, assim, realizar uma ação/intervenção artística objetivando uma conversa sobre a mobilidade urbana da Ilha da Magia. Na intervenção foi proposta uma ação efêmera com marcas de cal junto ao asfalto. A cal é um material suscetível à agua e não possui duração longa à ação do tempo e tampouco causa uma marca permanente na ocasião de sua aplicação como pintura. Logo, a materialidade da intervenção foi de caráter efêmero. Nas discussões que antecediam as intervenções, o grupo de marginais sempre pontuava o caráter de livre manifestação e abertura de diálogos e debates a partir das ações performativas decorrentes das intervenções. A inteligência do grupo de marginais residia aí: abrir um espaço ao debate acadêmico, político e social no âmbito das práticas urbanas tendo como disparador uma ação artística junto ao espaço urbano. Eram marginais, mas seu movimento não poderia ser criminalizado, pois é percebido que dano físico algum foi gerado a quem quer que estivesse envolvido pela ação artística. Eram marginais e sua ação artística fomentando debates possuia potência de articulação social e não prejudicaria fisicamente e/ou materialmente nenhum patrimônio arquitetônico, urbano ou cultural. Os marginais sabiam que debater por meio de práticas artísticas efêmeras, performances ou reunião de pessoas constitui uma esfera relacional nas práticas contemporâneas de arte e educação e não possui um caráter de ameaça ou constitui crime. Os marginais sabiam que se tratava de uma forma de manifestação livre a qual deveria ser respeitada e considerada parte da atuação social de grupos que querem compartilhar seus estudos com os demais atores sócio-culturais da cidade. Mas, espantosamente, a ação do grupo de marginais foi criminalizada. Em poucos instantes instalou-se uma plenária de curadores-policiais avaliando a ação artística, emitindo suas análises balizadas em extraordinários dispositivos de controle do espaço urbano. Era surpreendente a complexidade dos argumentos, os quais dificilmente poderiam ser contra argumentados, uma vez que possuíam uma densidade epistemológica avessa a margens e marginais. Uma sugestão para um possível desfecho desse embate artístico curatorial? Recomendo um cuidado maior ao olhar a referida ação de arte contemporânea realizada no belo bairro à beira de uma lagoa mística da Ilha da Magia pelo grupo de marginais, encarando-a como uma livre manifestação artística e cultural para debater a cidade contemporânea e não como um ato criminoso ao meio ambiente e/ou urbano. A arte e seus desdobramentos devem ser respeitados e entendidos para um debate maior sobre temas que afligem nossa cidade. [Rodrigo Gonçalves dos Santos]




A(a)Margem Circulação de ideias sobre arquitetura, corpo e cidade

SUMÁRIO ano 3 - número 3 - 2018

CORPOS EM MOVIMENTOS, MOVIMENTOS DE CORPOS: A PRESENÇA DA MULHER SUBJETICIDADE Flávia Martini Ramos SUBJETI-CIDADE: INTERVENÇÃO URBANA EM FLORIANÓPOLIS Angélica Camargo LEIA SE FOR MULHER Lorena Gallery LUGARES DO COTIDIANO (CORPO.OLHOS.MÃOS.) Alexssandra da Silva Fidelis CAMINHADA: OU MINHA BUSCA POR UMA ANTIARQUITETURA Juliana de Godoy IN(TER)VENÇÃO URBANA: MULHER E CIDADE Sofia Stancke Pundek

NARRATIVAS PERFORMATIVAS E SUBJETIVIDADES COM(PO)SIÇÕES DE RUA: UM OLHAR ATRAVÉS DA ARTE NA CIDADE Elaine Cristina Maia Nascimento IN(TER)VENÇÃO URBANA: UM EXPERIMENTO SOBRE O CHÃO DE GIZ Angela Marschall INTERVENÇÃO TEMPORÁRIA: A GENTILEZA PELAS FLORES Camila Cesário Pereira de Andrade AQUI JAZ UM PATRIMÔNIO HISTÓRICO: INTERVENÇÃO TEMPORÁRIA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL Jacinta Milanez Gislon ALMA EM MOVIMENTO Juliana Castro

IN(TER)VENÇÃO CRIMINALIZADA IM(PÉ)SSÃO CORPORAL: PEGADAS ENTRE PRAÇAS Lucas Sabino Dias IM(PÉ)SSÃO CORPORAL: CIDADES PARA QUEM? Evandro José de Oliveira de Andrade IM(PÉ)SSÃO CORPORAL: PEGADAS ENTRE PRAÇAS. CIDADE PARA QUEM? Ademir França



corpos em movimentos, movimentos de corpos: a presenรงa da mulher




" >












0$,2 _

3URI 'U 5RGULJR *RQoDOYHV

$QJpOLFD &DPDUJR

LQWHUYHQomR XUEDQD HP )ORULDQySROLV

68%-(7, &,'$'(

'(9$1(,2 1D GHVFREHUWD GD FLGDGH 0HX FRUSR DWUDYHVVRX XP WHPSR 4XH VH UH GHVFREULX 3RU FRQWUDWHPSR (P PHPyULDV RXWUDV 4XH QmR DV PLQKDV 'R WHPSR H GD FLGDGH 2X GD PLVWXUD GHODV &RPR XP WHPSR DQGDQWH (P FRQIXVDV OLQKDV (QWmR SHQVR QR WHPSR 4XH KDELWD D FLGDGH 0DV H TXHP KDELWD R WHPSR" 7DOYH] XP RXWUR FRUSR 1R FRUSR 5HMHLWDGR FRPR XP SDVVDWHPSR 'R WHPSR 2X GD FLGDGH"


(VWD HVFULWD WHP FRPR REMHWLYR WUD]HU UHÀH[}HV VREUH XPD DomR GH UHVLVWrQFLD GHVHQYROYLGD QR FHQWUR GH )ORULDQySROLV QRV GLDV H GH PDLR GH UHDOL]DGD FRPR DWLYLGDGH SUiWLFD GD GLVFLSOLQD GH ³,QWHUYHQo}HV 8UEDQDV´ GR SURJUDPD GH 3yV JUDGXDomR HP $UTXLWHWXUD H 8UEDQLVPR GD 8QLYHUVLGDGH )HGHUDO GH 6DQWD &DWDULQD 5HXQLPR QRV HP DXOD SDUD RUJDQL]DU R FROHWLYR ³PXOKHUHV QD LQWHUYHQomR´ HX )OiYLD $OH[VVDQGUD /RUHQD H 6R¿D 2 JUXSR GLVFXWLX D SRWrQFLD GH VH IDODU GD YLGD XUEDQD FRP R GHVD¿R GH ID]HU XPD DUWH TXH YLHVVH D UHSHUFXWLU FRQÀLWRV VRFLDLV H XUEDQRV TXHVW}HV GH JrQHUR FLGDGDQLD H GHPRFUDFLD 1HVVD DUWLFXODomR IRL FRORFDGR HP [HTXH VXEMHWLYLGDGHV GD FLGDGH D ¿P GH GLDORJDU

9RX UHODWDU QHVWH WH[WR D LQWHUYHQomR LGHDOL]DGD SRU PLP H SHOD )OiYLD QD SDVVDUHOD HP IUHQWH DR 7HUPLQDO 5RGRYLiULR 5LWD 0DULD QD TXDO IRUDP FROHWDGDV H DSOLFDGDV QR FKmR GR REMHWR LPSUHVV}HV GRV VHXV XVXiULRV HP IRUPDWR GH ³ODPEH ODPEHV´ 2 REMHWLYR IRL SURYRFDU D GLVFXVVmR VREUH HVVH HVSDoR GD FLGDGH TXH GLDORJD FRP DV PHWiIRUDV GD YLGD QR FHQWUR $WLQJLU H DJLU QR LPDJLQiULR GRV XVXiULRV GD SDVVDUHOD UHYHUEHUDQGR FRQWUD R VHQVR FRPXP GR REMHWR LGHDOL]DGR QD SRWrQFLD GD VXD SUySULD LPDJHP 1mR YRX PH HVWHQGHU QDV RXWUDV Do}HV UHDOL]DGDV SHOR FROHWLYR SDUD QmR WRUQDU SHQRVD D OHLWXUD GHVWD HVFULWD PDV DV FRQVLGHUR IXQGDPHQWDLV SDUD R GHVHQYROYLPHQWR H DPDGXUHFLPHQWR GD PHVPD 7UDJR MXQWR DR UHODWR LQTXLHWDo}HV H GHYDQHLRV $YHQWXUHL PH RXWUD YH] D HVFUHYHU DOJXQV YHUVRV TXH UHÀHWHP VREUH GLVFXVV}HV H DVVXQWRV DERUGDGRV HP DXOD H TXH GXUDQWH D DomR PDQLIHVWDUDP VH SDUD PLP 7RUQHL PH XPD DUTXLWHWD PDLV FRQVFLHQWH H VHL TXH DLQGD Ki PXLWR D PH UHLQYHQWDU

,1752'8d®2

FRP TXHVW}HV GD FHQD FRQWHPSRUkQHD


35()É&,2

³WDO H[SHULrQFLD DUTXLWHW{QLFD GHFRUUH GR HQFRQWUR HQWUH D PHPyULD GR KDELWDQWH H D PHPyULD LQVFULWD QR SUySULR OXJDU´ 9(//262 SJ

&KDPR GH SUHIiFLR D SULPHLUD SDUWH GHVWH WH[WR SRLV WUDJR DTXL DOJXQV PRWLYRV H LQTXLHWDo}HV TXH OHYDUDP D UHDOL]DU R JHVWR GH LQWHUYHQomR QD SDVVDUHOD HP IUHQWH DR 7HUPLQDO 5RGRYLiULR 5LWD 0DULD &RP SURMHWR LGHDOL]DGR SHOR DUTXLWHWR EUDVLOHLUR -RmR )LOJXHLUDV /LPD 2 /HOp R PRGHOR GH SDVVDUHOD IRL LPSODQWDGR HP 6DOYDGRU QRV DQRV H UHSOLFDGR HP )ORULDQySROLV QR ¿QDO GRV 'HWHQKR PH QHVWD FLGDGH H QR H[HPSODU UHIHULGR 3RU ĐRQVWLWXLU VH KRMH QR ~QLFR PHLR SHDWRQDO GH DWUDYHVVDU D YLD HP IUHQWH DR 7HUPLQDO 5RGRYLiULR D SDVVDUHOD DIDVWD D FLGDGH GD HVFDOD KXPDQD UHYHODQGR VH FRPR XP DPELHQWH XUEDQR KRVWLO TXH ID] GR HVSDoR GD FLGDGH HVSDoR SDUD RV FDUURV 2 REMHWR DEULJD R FRPpUFLR LQIRUPDO H R PRUDGRU GH UXD DOpP GH FRORFDU HP SDXWD TXHVW}HV GH JrQHUR GH GLYHUVLGDGH VRFLDO HFRQ{PLFD H UDFLDO UHSUHVHQWDQGR DVVLP XPD PHWiIRUD GD YLGD QR FHQWUR $OPHMR QHVWH WH[WR TXHVWLRQDU HVVH HVWDGR GH DV¿[LD H VXIRFDPHQWR GH XPD UHDOLGDGH TXH PHQRVSUH]D D GLYHUVLGDGH GRV HVSDoRV S~EOLFRV 2 LQWXLWR GD DomR IRL SHQHWUDU QD GLQkPLFD GD FLGDGH D ¿P GH FRPSUHHQGHU D FRPSOH[LGDGH GR REMHWR OLJDGR jV VXDV VXEMHWLYLGDGHV DWUDYpV GRV YiULRV WHPSRV H FRUSRV DOL LQVFULWRV 'HVWH DVSHFWR UHVXOWRX R QRPH 68%-(7, &,'$'( $ FLGDGH R FHQWUR H D SDVVDUHOD FRPR UHSUHVHQWDomR GD VXD LPDJHP GD H[SHULrQFLD XUEDQD H GD GLYHUVLGDGH GH QDUUDWLYDV H FRUSRV FRQHFWDGRV jV VXDV PHPyULDV


3$57(

D LPDJHP XUEDQD p LPDJHP GLDOpWLFDµ 9(//262 SJ

´H QXP PRPHQWR GH GHVSHUWDU SURYRFDGR SHOD H[SHULrQFLD GR OXJDU

1D TXLQWD IHLUD GH PDUoR GH HX H D )ODYLD RFXSDPRV D SDVVDUHOD D¿P GH FROKHU LPSUHVV}HV GRV VHXV XVXiULRV 2 SULQFtSLR GHVHQFDGHDGRU GR GLVSRVLWLYR IRL GLDORJDU FRP DV VXEMHWLYLGDGHV ODWHQWHV GR REMHWR DR LGHQWL¿FDU TXH R PHVPR p RFXSDGR SRU GLIHUHQWHV VXMHLWRV VRFLDLV GH GLIHUHQWHV FODVVHV JrQHUR H FRU 2 UHFRQKHFLPHQWR GR RXWUR H GD GLIHUHQoD SURYRFRX HP PLP UHÀH[}HV VREUH TXHP WHP H[HUFLGR R GLUHLWR j IXQomR j SDUWLFLSDomR H j SURGXomR GR HVSDoR S~EOLFR $ SURSRVWD HUD UHDOL]DU XPD LQWHUYHQomR TXH ³ DR DQWHSRU VH D QDUUDWLYDV SUp PRQWDGDV SHUFRUUH DV YLDV GD LQWHUURJDomR VREUH D FLGDGH VREUH FRPR HVWD WHP VLGR VRFLDOPHQWH FRQVWUXtGD UHSUHVHQWDGD H H[SHULHQFLDGD e GHVWH SRQWR TXH GHULYD XP GRV DVSHFWRV GH QRWDGR LQWHUHVVH QD UHÀH[mR VREUH R VHX YtQFXOR FRP R HVSDoR S~EOLFR TXDO VHMD VXD SRVVLELOLGDGH GH VHU DR PHVPR WHPSR LQÀH[mR H HVSHOKDPHQWR´ 3$//$0,1 SJ

1D KHWHURJHQHLGDGH VRFLDO DOL LQVFULWD R HVSDoR p KDELWDGR SRU PRUDGRUHV GH UXD (VTXHFLGRV VXD SUHVHQoD p SHUFHELGD QD IUDJLOLGDGH GD H[SRVLomR GRV VHXV FRUSRV RX SRU TXDOTXHU YHVWtJLR GHOHV 5HÀLWR TXH WDOYH] UHVLGD DTXL D PDLRU PHWiIRUD GD SDVVDUHOD HP UHODomR DR FHQWUR 'XUDQWH R GLD RFXSDGD SRU FRUSRV VRFLDOPHQWH DFHLWiYHLV DEULJD D FDPD GH SDSHOmR D JDUUDID GH FDQKD YD]LD H R FREHUWRU VXUUDGR HYLGrQFLDV GRV FRUSRV RXWURV TXH SDVVDP D KDELWi OD GXUDQWH D QRLWH 3URWHJH GD FKXYD PDV GR IULR Mi QmR WHQKR FHUWH]D 1HVVD LOXVmR GH FRH[LVWrQFLDV DV UHODo}HV VRFLDLV VH D¿UPDP FRPR DV PDLRUHV SURGXWRUDV GH VXEMHWLYLGDGHV $R UHFRQKHFHU DOWHULGDGH H QD FRQGLomR GH SURGXWRUDV GD DomR QRV WRUQDPRV LQWHJUDQWHV GDTXHOH FHQiULR &RP XPD FkPHUD H QHQKXP TXHVWLRQiULR SUp HVWDEHOHFLGR DERUGDPRV DOJXQV FRUSRV TXH HVWDYDP GH SDVVDJHP ³FRPR YRFr VH VHQWH QHVVH HVSDoR"´ ³2 TXH HOH UHSUHVHQWD SDUD YRFr"´ &RORFDPR QRV QD SRVLomR GH DJHQWHV PHGLDGRUDV QR LQWXLWR GH SRWHQFLDOL]DU D DomR H GDU YR] jTXHODV SHVVRDV GDU YR] DRV VHXV FRUSRV IHQRPHQROyJLFRV H jV VXDV PHPyULDV


2 TXH p QHJOLJHQFLDGR" 2X RV XVXiULRV"

LQTXLHW$d®2

2 REMHWR HP VL"

/LYUHV GLYHUVRV KXPDQRV 2FXSDGRV >GHV@RFXSDGRV (OD Mi IRL PHOKRU QH" 4XHP HUDP DTXHOHV FRUSRV"

7i SUHFLVDQGR GH XPD ERD UHIRUPD

&RUSRV HVWUDQKRV

(OHV ¿]HUDP XPD UHIRUPD Ki XP WHPSR DWUiV

(VWUDQKDGRV (VWUDQKDQGR VH

2 FRUSR LQIRUPDO TXH DOL WUDEDOKD 1R SRVWR TXH ³GHUDP´ SDUD HOH

2 FRUSR FRWLGLDQR VH VHQWH HVTXHFLGR

e &(*2 685'2 ( 08'2

8P RXWUR DQGD DR SDVVR OHQWR

(OH QmR DFKD QDGD

>VRIULGR@

( DR FDUWHLUR IDUGDGR QmR p SHUPLWLGR IDODU

2 FDGHLUDQWH QmR VREH DTXL e XP OXJDU SDUD RV PHQGLJRV ¿FDUHP 2 FRUSR VHJXUR QmR WHP PHGR

3REUH PHQGLJR

2 LQVHJXUR WHP

(OHV QmR ID]HP QDGD ¿FDP GHLWDGRV DOL

2 TXH SDVVD j QRLWH SDVVD FRUUHQGR

7DOYH] R FRUSR PDLV HVTXHFLGR

( HOD EDODQoD

(X Mi IXL TXDVH DVVDOWDGD HUD TXDVH KV GD QRLWH

0DV FRPR SDVVDUHOD p IDQWiVWLFD

0DV D¿QDO QmR WHP RXWUD RSomR

3RU FDXVD GRV FDUURV


1R LQtFLR KDYLD LQFHUWH]D GH FRPR VHULDPRV DFROKLGDV PDV DTXHOHV FRUSRV GHL[DUDP VH HQYROYHU FRPSDUWLOKDUDP VXDV DQJ~VWLDV RSLQL}HV H VHQVDo}HV 'iYDPRV DWHQomR DLQGD TXH VHP QHQKXP LQWHUHVVH SROtWLFR RX SRGHU GH ID]HU DOJR D UHVSHLWR D XP HVSDoR TXH SRVVXL VLJQL¿FDGR H UHSUHVHQWD XPD SDUWH GDTXHOH LPDJLQiULR VRFLDO 1D DERUGDJHP GH GLIHUHQWHV FRUSRV IRL FRORFDGR HP [HTXH R VXMHLWR GD VRFLHGDGH

FRQWHPSRUkQHD FRPR XP VHU ODWHQWH TXH VH DEUH H VH HVWUDQKD QR RXWUR 1HP WRGDV DV LPSUHVV}HV IRUDP LJXDLV SHOR FRQWUiULR 2XYLPRV VREUH PHGR GHVFDVR QHJOLJrQFLD H LQVHJXUDQoD PDV WDPEpP RXYLPRV TXH D SDVVDUHOD SRVVXL XPD YLVWD OHJDO GD SRQWH p ERQLWD H GHYHULD VHU SUHVHUYDGD

GLYHUJrQFLD GDV RSLQL}HV FROHWDGDV 2 WUDEDOKR VH PDQLIHVWRX SDUD PLP SHOR GR VHX FRQWH~GR VRFLDO DSUR[LPDGR GR FRWLGLDQR H GR FRUULTXHLUR 2 FRUSR TXH SRU DOL SDVVD GLDULDPHQWH R TXH SDVVDYD SHOD SULPHLUD YH] 2 FRUSR TXH VHPSUH VHQWLD PHGR R TXH IRL TXDVH DVVDOWDGR R TXH Mi YLX YHQGHUHP GURJDV 2 FRUSR TXH VH VHQWLD VHJXUR R TXH D DFKDYD IDQWiVWLFD ERQLWD H R TXH VDELD DSUHFLDU R S{U GR

VRO ( WHP WDPEpP R FRUSR D TXHP QmR p SHUPLWLGR QDGD

0DV FRPR SDVVDUHOD p IDQWiVWLFD

3RU FDXVD GRV FDUURV

&(*2 685'2 ( 08'2

$R DJLU DWUDYpV GR LPDJLQiULR GDTXHOHV XVXiULRV D LPDJHP GR HVSDoR UHYHUEHURX QD


R LPSRUWDQWH p WRPD OR FRPR OXJDU GH FRQWHVWDomRµ 9(//262 SJ

´2 PXQGR XUEDQR p FRQGLomR LQFRQWRUQiYHO

3$57(

1D VH[WD IHLUD FLQFR PXOKHUHV VH HQFRQWUDUDP QR FHQWUR QXP GLD DSDUHQWHPHQWH QXEODGR FRP R VRO DJUDGiYHO PDV TXHQWH &RP RV GHSRLPHQWRV LPSUHVVRV SLQFpLV H FROD HUD DJXDUGDGR R PRPHQWR LGHDO SDUD VXELU QD SDVVDUHOD H DSOLFDU RV ³ODPEHV´ 1mR TXH KRXYHVVH PRPHQWR LGHDO PDV R ORFDO HVWDYD UHSOHWR GH SROLFLDLV 6HQWL PH FULPLQRVD DOPHMDQGR H[HUFHU D SRWrQFLD GR GLVVHQVR QDTXHOH HVSDoR FHJR SHOR ERP VHQVR 6H IRVVHPRV DERUGDGDV WHUtDPRV TXH QRV VXMHLWDU D VHU FLGDGmV VXMHLWDV j OHL PDV TXH OHL" SDUD VDEH VH Oi TXHP VDEH VH Oi RQGH FRPR WDQWRV RXWURV D TXH VH WHP QRWtFLDV $ DomR LULD VH HVYDLU ( QD OHJLWLPLGDGH GH XPD DomR LOHJtWLPD DSyV D GLVSHUVmR GRV ³KRPHQV GD OHL´ R GLUHLWR GH RFXSDU D SDVVDUHOD IRL H[HUFLGR SRU QRVVRV FRUSRV 4XHVWLRQR PH VH ³2 PXQGR p UHFRQVWUXtGR D WRGR PRPHQWR´ 3$//$0,1 SJ UHFRQVWUXtPRV DWUDYpV GD DomR XP PXQGR GH GLDOpWLFDV" 'LDOpWLFDV SRWHQFLDOL]DGDV SHODV PHWiIRUDV GDTXHOH HVSDoR SHORV VHXV FRQÀLWRV H UHODo}HV TXH DSUHVHQWDP HP VHX HVFRSR TXHVW}HV GD YLGD H GD DUWH XUEDQD H KXPDQD 6H R JHVWR KXPDQR VLJQL¿FD SDUD DOpP GR VHX PHUR PRYLPHQWR D JHVWXDOLGDGH HVWpWLFD H D HVSDFLDOLGDGH FRP TXH HOD HVWi VHQGR LQDXJXUDGD WUDGX]HP XP ³H[FHVVR GH VHQWLGR´ TXH QmR VHUi HVJRWDGR SRU QHQKXPD GDV GLIHUHQWHV DSUR[LPDo}HV TXH VXVFLWHP $ DomR SHUIRUPiWLFD FDPSR GHVWD JHVWXDOLGDGH DUWtVWLFD p QHVWD OLQKD DGYHQWR GH VHQWLGR 6HQGR XPD DYHQWXUD QR VHQVtYHO D SHUIRUPDQFH UHSRWHQFLDOL]D R PXQGR QHOH DEULQGR QRYDV WHUUHQRV 3$//$0,1 SJ

'XUDQWH D SHUIRUPDQFH DOJXQV FRUSRV QRV DERUGDYDP FRPSDUWLOKDQGR GDV PHVPDV LPSUHVV}HV 2 JHVWR HVWpWLFR HFORGLD HP QRYRV LPDJLQiULRV GH QRYRV FRUSRV 0DV DR LQYLVtYHO ¿FRX RXWUD YH] RV PRUDGRUHV GH UXD 6XEMXJDGRV RV GHSRLPHQWRV FROHWDGRV HUDP RIHQVLYRV 6LOHQFLRVRV KDELWDQWHV QmR Vy GDTXHOH HVSDoR PDV GH WRGR R FHQWUR IRUDP PDQWLGRV QD VXD LQGLIHUHQoD ( DVVLP SHUPDQHFHULDP


0DV QmR VHULD HOH R OHJtWLPR XVXiULR"

VHPRV RXWURV FRUSRV

&RQWXGR XP KRPHP VHQWDGR DR FKmR H j VRPEUD QD SDVVDUHOD YHQGLD ³EDODV´ 4XDQGR SDVVHL

)H] VH VHQWLGR 5HÀLWR DTXL VREUH DV GLIHUHQWHV

SRU DOL RXYL R VXVVXUUDU DOJXPDV SDODYUDV PDV QmR OKH GHL DWHQomR $IDVWHL PH LQWLPLGDGD SRU DTXHOH

RSLQL}HV QR PHVPR HVSDoR RV GLIHUHQWHV OXJDUHV GH IDOD

FRUSR PDVFXOLQR PDOYHVWLGR IDODQGR FRLVDV VHP VHQWLGR 6XEMXJXHL R"

GRV GLIHUHQWHV VXMHLWRV 1HVVH FDPSR HPEOHPiWLFR

$R YHQFHU R SULPHLUR HVWUDQKDPHQWR D )OiYLD LQLFLRX XPD FRQYHUVD (OH GL]LD VHU GR (JLWR H IDODU FLQFR OtQJXDV ,QGDJRX H FRQWHVWRX D LQWHUYHQomR SDUD HOH D SDVVDUHOD QmR HUD SHULJRVD FRPR GL]LD DOL HOH QmR VHQWLD PHGR HOH YLYLD QHOD $OL WLQKD ³ERFD´ WLQKD WUi¿FR PDV WRGR PXQGR VH UHVSHLWDYD (OH WLQKD PHGR p GDV SHVVRDV FRPR QyV TXH SDVVDYDP GLDULDPHQWH FRQGHQDQGR R SHOD VXD VLWXDomR RX VXD ³FDUD GH HVWUDQJHLUR´ 3HULJRVDV HUDP RXWUDV iUHDV GR FHQWUR 1D DomR DTXHOH FRUSR ³HVWUDQJHLUR´ DVVXPLX VHX OXJDU GH IDOD H IDORX SRU WRGRV RV RXWURV TXH HOH UHSUHVHQWDYD &RUSRV DQ{QLPRV TXH DVVLP FRPR R PHX RV QRVVRV SRVVXHP PHPyULD YLGD KLVWyULDV H IDPtOLD 'HVFREULX VH GHSRLV R HVWUDQJHLUR DOPHMDYD UHHQFRQWUDU D VXD 0H SHUGL $ SHUIRUPDQFH JHURX XP GHVFRQIRUWR 0DV GH TXHP SDUD TXHP" $OJXP ROKR DSUHVVDGR IDORX HP DOWR H ERP VRP ³p SHULJRVR PHVPR ´ 2 HVWUDQJHLUR VH VHQWLX FRQGHQDGR H IRL HPERUD 0DV QmR HUD Vy LVVR TXH GL]LD QRV ³ODPEHV´ DTXHOH ROKR FRORFRX XPD OHQWH H YLX DSHQDV R TXH GHVHMDYD 7DOYH] QD SHUIRUPDQFH HVVD OHQWH WHQKD VLGR LQFHQWLYDGD SRU QyV 7DOYH] DR QmR RSLQDU RSLQDPRV 7DOYH] VH IRVVHPRV RXWURV FRUSRV

YLYHQFLHL D VXEMHWLYLGDGH QD SRWrQFLD GRV GLVVHQVRV H VRE HVVH KRUL]RQWH FUtWLFR UHÀH[LYR R GLiORJR GD LQWHUYHQomR HFORGLX GHQWUR GHOD PHVPD ( GH PLP 1mR VH WUDWD WDO TXDO QR SDVVDGR GH GLOXLU R JHVWR DUWtVWLFR QXPD XWRSLD SROtWLFD GLVWDQWH RX GH DFHLWDU R FDPSR HVWpWLFR FRPR SURPHVVD GH IHOLFLGDGH PDV VLP GH ID]HU D WRGR LQVWDQWH VRE R FULYR GD LJXDOGDGH DV FRQGLo}HV FRP TXH RSHUDPRV VHQVtYHO H SROLWLFDPHQWH R HVSDoR GR ³FRPXP´ 3$//$0,1 SJ

$SHVDU GH FULDU XPD DWPRVIHUD GLIHUHQWH QDTXHOH HVSDoR D LQWHUYHQomR QmR SUHWHQGHX UHYROXFLRQDU DV UHODo}HV FRP D SDVVDUHOD SHOR FRQWUiULR D SURSRVWD IRL GHVGH R SULQFtSLR FRORFDU HP [HTXH VXEMHWLYLGDGHV GR FHQWUR H GD FLGDGH 'HVFRQKHFLGRV DQ{QLPRV IRUDP PRELOL]DGRV WRFRX VH QD WDQJHQWH GR REMHWR VLJQR H R HQFRQWUR GHVVDV YLYrQFLDV VH IH] PHWiIRUD QD

$XWRPyYHLV UHOX]HQWHV SDVVDYDP HP DOWD YHORFLGDGH HPEDL[R GRV PHXV H GH RXWURV SpV 8P

FROHWLYLGDGH 2 JHVWR HVWUDQKDGR QR FRWLGLDQR D¿UPRX

GLVFXUVR GRPLQDQWH HVWDYD VHQGR FRPEDWLGR PDV H RV PHQGLJRV" 2 PHQGLJR HVWUDQJHLUR

HP PLP TXH ³R PXQGR p R TXH YHPRV´ DR PHVPR WHPSR

LQFRPRGDYD H HOH DSHQDV YHQGLD EDODV VHQWDGR j VRPEUD LOHJtWLPR 0DV QmR VHULD HOH R OHJtWLPR

HP TXH FRQ¿UPRX D QHFHVVLGDGH GH ³DSUHQGHU D Yr OR´

XVXiULR"

3$//$0,1 SJ


VN DBEFJSBOUF O P TPCF BRVJ

ç Â È ­È Õ Ø¯©ÈÜÈ

WD SUHFLVDQGR GH XPD ERD UHIRUPD Qp"

HX Mi IXL TXDVH DVVDOWDGD

ƉĂƐƐŽ ƐĞŵƉƌĞ ƉŽƌ ĂƋƵŝ

DWp GURJD YHQGHP DTXL '(9,$ 6(5 35(6(59$'$

QmR WHP RXWUD RSomR

HX DFKR yWLPR

'( 12,7( e 0$,6 3(5,*262 $,1'$

7DOYH] VH IR


$d®2

$JRUD QmR EDODQoD PDLV $EULX R VLQDO 0DV DFKR TXH IRL R YHQWR (IrPHUR

$OJXpP DQWHV GHL[RX VXD RSLQLmR

)HFKRX R VLQDO

2XWUR DJRUD FRPSDUWLOKDYD GHOD

%DODQoD PHVPR

>RX QmR@ 0DV H DTXHOH PHQGLJR" )H] VH DUWH

0DLV XPD YH] R PHQGLJR

3RWrQFLD H VLJQL¿FDGR

(VTXHFLGR FRLWDGR

5HDUWLFXODGR

6HQWDGR DOL LQRIHQVLYR

2FXSDGR QR HVSDoR SURLELGR $TXL QmR p SHULJRVR (OH GLVVH 2FXSDPRV R FKmR

7HP WUD¿FR WHP ERFD

1R FKmR

0DV WRGR PXQGR VH UHVSHLWD

'H ODGR D ODGR QD UXD

(X WHQKR PHGR p GDV SHVVRDV

0DV TXH UXD"

FRPR YRFrV

1D UXD HVWDYDP RV FDUURV

( R PHQGLJR

5iSLGRV H D¿QDGRV

&RQGHQDGR SRU XP FHJR DSUHVVDGR

2ULHQWDQGR DTXHOH ULWPR

6LOHQFLRVR VHJXLX RXWUR UXPR

(QWmR QmR HUD FKmR

>LQVXOWDGR@

0DV VH QmR HUD FKmR

9ROWDULD PDLV WDUGH TXHP VDEH"

HUD R TXH HQWmR"

4XDQGR WRGRV RV FHJRV WLYHVVHP SDUWLGR

1RV FRUSRV DQHVWHVLDGRV ,QGLIHUHQWHV FDQVDGRV &RUSRV SDVVLYRV PDV YLYRV $Q{QLPRV ( QR DQRQLPDWR VH IH] FROHWLYR 'HVFREUL D FLGDGH >R FHQWUR@ 6XDV 68%-(7, &,'$'(6 $ FLGDGH IRL PH KDELWDQGR


3$57(

´$ WHPSRUDOLGDGH HIrPHUD YLEUD QD IUHTXrQFLD GD YLGD XUEDQD FRQWHPSRUkQHDµ 3$//$0,1 SJ

1R YLVOXPEUH GDV SRVVLELOLGDGHV GD SHUIRUPDQFH R HQJDMDPHQWR FROHWLYR H FUtWLFR IRL XPD WiWLFD SDUD GHVDWDU XP HVWDGR GH LQpUFLD H UHVLVWLU DR VHQVR H DR FRQVHQVR FRPXP 1R GHVHMR SRU XPD FRLVD RXWUD EXVFRX VH VXSHUDU D SDVVLYLGDGH LPSRVWD FRPR FRQGLomR SDUD FRPEDWHU D DOLHQDomR H D FRPRGLGDGH QD EHOH]D H XWLOLGDGH GR REMHWR 8PD YH] GHVWLWXtGD GH SUHVVXSRVWRV D DomR IRL DEHUWD j VXD SRWrQFLD FULDGRUD JHUDGD QR HQFRQWUR FRP RV VLJQRV GD HVSRQWDQHLGDGH GDTXLOR TXH QmR VH KDYLD SHQVDGR $R WRPDU DTXHOH HVSDoR FRPR OXJDU GH FRQWHVWDomR D FUtWLFD HFRRX QD HIHPHULGDGH H LQGHWHUPLQDomR GD H[SHULrQFLD 9LYL D SHUIRUPDQFH FRQVWUXtGD QD GLDOpWLFD GH HFRV DPELYDOHQWHV GR DXWRPyYHO YHOR] H EDUXOKHQWR DR PHQGLJR YDJDURVR H VLOHQFLRVR H[WUHPRV GD ULTXH]D H GD SREUH]D 3DVVHL D VHU PDLV TXH HVSHFWDGRUD H R DWUDYHVVDPHQWR GD FLGDGH IH] VH HP PLP SHODV VXEMHWLYLGDGHV TXH DTXHOH HVSDoR WUD]LD 3HUJXQWR PH VH SRGHULDP DV Do}HV WRFDU DTXHOHV FRUSRV SDUD TXH UHÀHWLVVHP FULWLFDPHQWH VREUH D YLGD TXH VH OHYD QD FLGDGH QR GRPtQLR GD VXD DSDUHQWH QRUPDOLGDGH QmR Vy GDTXHOH PDV GH RXWURV HVSDoRV" )LFR QD H[SHFWDWLYD H QR GHVHMR WDOYH] XWySLFR GH TXH DV PXGDQoDV SDUWDP VLOHQFLRVDPHQWH GH SHTXHQDV Do}HV H HVWUDQKDPHQWRV QR FRWLGLDQR 6H DVVLP IRU IRL SODQWDGD DOL XPD LQTXLHWDomR



,17(59(1d­2 68%-(7, &,'$'( 3URIHVVRU

5(6,67È1&,$

5RGULJR *RQoDOYHV

3URSRVWD $QJpOLFD &DPDUJR )OiYLD 0DUWLQL 5DPRV

1R PHX PXQGR SDUWLFXODU

$omR

GH DOJXP PRGR

$OH[VVDQGUD GD 6LOYD )LGHOLV $QJpOLFD &DPDUJR )OiYLD 0DUWLQL 5DPRV /RUHQD *DOHU\ 6R¿D 3XQGHN

$V LPSUHVV}HV UHVLVWHP 0DOWUDWDGDV SHOR WHPSR 3HOD FKXYD 3HOR FDPLQKDU GH WDQWRV FRUSRV ( DTXHOHV PHVPRV FRUSRV 3DVVDULDP QRYDPHQWH SRU DOL" 4XLVHUD FRQYHUVDU FRP HOHV

&kPHUDV

$QJpOLFD

)OiYLD

/RUHQD

5HIHUrQFLDV

>RV FRUSRV@ 2XWUD YH]

3$//$0,1 9HUD $UWH XUEDQD FRQWHPSRUkQHD HP 6mR 3DXOR ,Q

'HVFREULU VH IRUDP WRFDGRV SHOD VXDV

3$//$0,1 9HUD $UWH FXOWXUD H FLGDGH DVSHFWRV HVWpWLFRV SROtWLFRV

( SHODV WDQWDV RXWUDV IDODV

FRQWHPSRUkQHRV 6mR 3DXOR $QQDEOXPH S

DOL LPSUHVVDV 9(//262 5LWD 2 WHPSR GR DJRUD GD LQVXUJrQFLD PHPyULD GH

$FUHGLWR TXH VLP

JHVWRV H SROtWLFD GR HVSDoR 6HJXQGR :DOWHU %HQMDPLQ ,Q %5,772

(X IXL

)DELDQD 'XOWUD -$&48(6 3DROD %HUHQVWHLQ &RUSRFLGDGH JHVWRV XUEDQRV 6DOYDGRU ('8)%$ S





UFSC | PosArq | 2018

As intervenções urbanas relatadas neste texto foram realizadas em 04 de maio de 2018, pelo coletivo

Mulheres na Intervenção, formado por Alexssandra da Silva Fidelis, Angélica Camargo, Flávia Martini Ramos, Sofia Pundek e eu. Desenvolvidas a partir das inquietações levantadas na disciplina “In(ter)venções Urbanas: A arte e a arquitetura como construtoras de dissensos”, sob orientação do Professor Rodrigo Gonçalves.

Por Lorena Galery


O convite

O encontro

A expressão popular “faça isso se for homem” trata o masculino como sinônimo de coragem. A palavra homem, aqui, não é metonímea de humanidade, se refere a parcela masculina da população que, sobretudo, exerce sua masculinidade. Também, se pensarmos em homem como extensão de humanidade, o que resta para aquele outro corpo não-homem? Quando usamos essas expressões como norma, nos damos conta de quem esse texto está excluindo? Por outro lado, cabe o exercício de usar a palavra mulher e o texto no feminino, com a intenção de abarcar qualquer leitor-a, sem exclusões gramaticais? “Leia se for mulher” é um convite tanto quanto um confronto. Mas este texto se inicia em um outro convite, não confrontante, repleto de desejo, espectativas e afetos: caminhar em um grupo de mulheres pelo centro da cidade à noite.

Nos reunimos em um grupo de cinco mulheres. Tanto pelos interesses em comum, quanto pela necessidade de não ser um corpo feminino sozinho contra/na cidade. Esse encontro, inicialmente dentro da sala de aula, se formalizou em dez horas de vivência no centro da cidade. De forma quase espontânea o grupo se auto-denominou Mulheres na Intervenção. A ideia era realizar todas as ações em um mesmo dia, de forma que umas ajudassem as outras. Três intervenções aconteceriam ao longo dwo dia e a noite, a caminhada. De fato, o cronograma foi realizado criteriosamente conforme planejado. Mas o grupo acontecia em sua em sua plenitude nos intervalos das ações. As escadarias e lanchonetes do centro nos deram espaço ao diálogo. À espera. Um devir que ao invés de percorrer cidade à fora, permitia que a cidade nos atravessasse, assim como umas as outras.

“Terreno, piso, chão: convite – aparentemente inevitável – ao

“o andar é tão importante quanto o parar” (CARERI, P. 32)

deslocamento do corpo” (HISSA e NOGUEIRA, P. 56)


O desejo

O mapa

Cada uma das ações desenvolvidas pelo coletivo se iniciava com uma pergunta:

“A cidade-corpo não possui horizonte preciso e se oferece como paisagem vista de dentro, impondo dificuldades à cartografia, à interpretação. Suas fronteiras são moventes e nós nos movemos através

Como o espaço te afeta? Como você se sente ao andar na rua? O que você já deixou de fazer por ser mulher? As perguntas vão todas em direção ao outro, ao diverso e imprevisível encontro com a alteridade do espaço urbano. A princípio eu não sabia (nem procurava em saber) o propósito, o argumento que me incitava caminhar a noite em grupo de mulheres. Existia o desejo e se ele encontrasse pares para se realizar, era o suficiente. A pergunta da caminhada se direciona ao outro (as outras) como um convite-espelho: não foi necessário explicar a nenhuma das mulheres que se despuseram a caminhar, o porquê. A aceitação do convite por outras sete mulheres, me respondia: eu te entendo, sei o que você quer dizer. Mesmo que, eu mesma não o entendesse.

delas, por elas”. (HISSA e NOGUEIRA, P. 75)

Há pouco mais de um ano morando na ilha, aos poucos vou completando meu mapa mental da cidade. Avenidas e rodovias principais, minha padaria favorita, o caminho até o posto de saúde. No verão, com o calor, o mapa se dilata e as distâncias se tornam maiores. Em maio, com o frio e o céu absurdamente azul, erro caminhos por distração e o mapa faz zigue-zagues. O mapa do centro de Florianópolis, se recusa a se formar. É mais uma lista de sensações e memórias, com uma figueira no meio. Para a caminhada, o mapa se formou totalmente independente de mim. As discussões de onde e porquê passar em determinado trajeto, aconteciam no grupo de WhatsApp sem que eu conseguisse saber o que estava sendo decidido.


Mesmo no começo do dia, quando combinamos de nos encontrarmos na rodoviária, o mapa do terminal de ônibus até o terminal rodoviário não se formava (pouco mais de 100 metros em linha reta os separam). Ao olhar esse mapa previamente desenhado do nosso trajeto, ele ainda me diz bem pouco. Mas agora, aos poucos, sinto que o centro da cidade começa a me habitar.

E por que a necessidade de um mapa? Francesco Careri explica as deriva situacionistas como uma expressão do “perder-se conscientemente, procurando dosar o desejo e o acaso, o racional e o irracional, o projeto e o anti-projeto” (CARERI, P. 31). Porque então, calcular a rota de uma caminhada que se baseia sobretudo no desejo da experiência? Mais de cinquenta anos do início do movimento situacionista, mulheres ainda não alcançaram o direito de andar à deriva, sem calcular riscos e dosar medos. Mesmo que eles não sejam reais, mesmo que não haja nada ameaçando de fato nossos corpos, a racionalidade do trajeto nos é inerente. Para qualquer deslocar-se na cidade, há um projeto de segurança. O medo determina nossos mapas. “as estratégias de controle, praticadas no seio da biopolítica, visam garantir a obediência, a organização da sociedade”. (HISSA e NOGUEIRA, P. 67)


O objeto artístico

A obra Promenade (2007) de Dominique Gonzalez-Foerster nos insere em um cubo branco, extenso e vazio.Ao caminhar pela obra, de uma extensão a outra, o som de uma tempestade preenche o espaço. A obra, uma áudio-instalação, convida ao passeio. O som preenche o espaço do cubo branco, te convida à memória, à diferentes imagens, cheiros e sensações. É necessário caminhar pela obra para chegar na saída, a artista então te convida a experienciar este passeio. Gonzalez-Foerster comenta: “O que importa é o que pode acontecer e não o que estava programado. Para isso, já precisamos partir de uma renúncia”. Já em Ever is over all (1997), da artista Pipilotti Rist, o cubo preto do pós-cinema, exibe duas imagens em vídeo justapostas. De um lado um campo florido, do outro, uma mulher passeia calmamente pela rua, com um bastão-flor, destruindo janelas de carros estacionados. A figura longilínea, primaveril e caminhante da mulher, também me parece um convite. Rist, em uma entrevista, comenta sobre o simbolismo do carro, em sua potência urbana. A sensação de prazer ao se reconhecer naquele corpo feminino que destrói, é de um prazer indescritível. Há, nos corpos femininos, o desejo de confronto. De destruição? De caminhar, ocupar espaço e ter prazer.

Nesta cena do vídeo, uma policial caminha em direção à mulher, a expectativa de tensão, se quebra com um aceno cordial e cúmplice entre as duas. Um convite que foi aceito.

“Se a arte contemporânea é portadora de um projeto político coerente, esse projeto é: levar a precariedade até o próprio âmago do sistema de representações pelo qual o poder gera os comportamentos, fragilizar todo e qualquer sistema, dar aos hábitos mais arraigados ares de um ritual exótico” (BOURRIAUD, P. 99)

O hábito arraigado que pretendemos dar “ares de ritual exótico” é: mulheres não devem sair à noite. Fragilizar este sistema é, então, apenas existir, estar no espaço urbano e viver a cidade.


O caminhar A caminhada, marcada para às 21h daquele dia, se iniciou às 14h. O mapa que desenhamos ao longo do dia, é cheio de idas e vindas, paradas, açais e a compra de um cartão de memória no camelô. Entrei na rodoviária de Florianópolis pela primeira vez. Desde que aterrisei na ilha, um ano atrás, nunca saí dela. Essa frase ecoava na minha cabeça com um sentimento de claustrofobia. A rodoviária me convidava a sair mas eu tinha um longo dia no sentido extremo contrário: adentrar, permanecer, pertencer. Destribuíamos panfletos exclusivamente para mulheres, com a pergunta “como você se sente ao andar na rua?”. Para cada uma das mulheres que recebia o panfleto, eu me perguntava “como é que ela se sente?” e vivia aquele corpo por frações de segundo. Subi a passarela da rodoviária e, como boa turista que ainda sou, me perdi por um tempo na paisagem de Florianópolis. Toda experiência nessa cidade é banhada de azul? Enquanto os lambes eram colados no chão da passarela, com trechos de relatos de pessoas que passavam por ali, eu mesma experienciava a obra-intervenção. Frases totalmente antagônicas diviam espaço e, sob o meu olhar, sem conflito. Acredito que escolhemos o centro da cidade como paisagemlaboratório por ser uma experiência da metrópole, independente de seu marco geográfico. Mas ali de cima da plataforma da rodoviária, a cidade se revelava absurdamente única. A ilha e seus dissensos tão específicos.

Panfletamos em diferentes pontos que mesmo com poucos metros de distância, rapidamente nos mostravam dinâmicas totalmente diferentes. Depois testamos diferentes locais para colar o cartaz, com uma caneta pendurada, que perguntava “O que você já deixou de fazer por seu mulher?”. Depois de muitas horas de deslocamento pelo centro, começava a caminhada com nome de caminhada. (Seria possível termos feito tudo uma coisa só?) “o caminhar é um modo de devolver, à cidade, a explicitação da sua condição de cidade-corpo (…) De forma mais ou menos invisível, elaboram novos textos, outras regências, reescrevem o discurso urbano. Andar é escrever, ler, significar, reescrever a partir de nossos olhos para o mundo.” (HISSA e NOGUEIRA, P. 73)


O corpo “construir o espaço à nossa volta como uma produção externa a nosso corpo” (CARERI, P.123)

Chegamos ao centro às 14h. Quando a caminhada se iniciou, exatamente sete horas depois, o desejo era de não sentir o corpo (cabe aqui dizer que já havia tomado um analgésico?). Pernas e coluna doíam, o corpo tenso de ansiedade e informação. Entre o nosso ponto de partida - em frente ao prédio da Alfândega - até a praça XV de Novembro, meu corpo ainda não tinha adentrado a experiência. Demorou algum tempo pro corpo se entender parte do grupo e se sentir bem. Meu corpo se tornou só mais um pedaço daquele corpo-grupo, formado por oito mulheres. A conformação corpo-grupo, trouxe segurança e acolhimento, o que permitiu experienciar, ver a cidade, seus tempos, paisagens e rotinas. Quando chegamos à Avenida Hercílio Luz, a experiência caminhar por um centro esvaziado, escuro e silencioso, se transformou completamente. Um mar de gente, em mesas de boteco, conversavam, bebiam e viviam o parar na cidade. No corpo-grupo entrou em êxtase, em desejo de participar, de estar em festa. Se comemorava a possibilidade de habitar a cidade, que pra maioria de nós, parecia desértica até então.

À medida que atravessávamos a avenida, a quantidade de mesas, barulhos e luzes, ia diminuindo. O barulho de gente conversando começou a ser substituído por um forró “Nos olhos esperança, mas tenho medo”. Com uma gambiarra de computador e caixa de som, um casal dançava “Timidez”, de Netinho. De todas as coisas que o planejamento do nosso mapa não previu, a dança foi o que nos fez parar, tímidas e cheias de esperança. Não há texto acadêmico que dê conta dessa experiência estética (provavelmente por seu excesso de simbolismo óbvio). “Falta coragem pra dizer....” continua a música.


O outro “em cada pedaço do percurso há alguma iminência de convocação da vivência da alteridade, de abertura ao outro. As fronteiras são permeadas por esse risco: o outro.” (HISSA e NOGUEIRA, P. 57)

Ao chegarmos de volta à praça XV de novembro, nos sentamos na escadaria da Igreja. O assunto imediato foi a constatação: podemos caminhar. Acredito que um homem tenha dificuldade de compreender o espanto e alegria com que todas ali chegaram a essa conclusão: é possível habitar o espaço público. Um misto de conquista e dúvida: por que então acreditávamos diferente? Quem é esse outro que nos impede de sair de casa a hora que quisermos, de irmos onde precisamos, de existir sem calcular rotas de fuga? “É um problema meu e não do centro”, uma de nós disse logo que nos sentamos nas escadas. Eu ainda não sei dizer se o problema é meu ou é do centro, o outro, o externo à mim.



Bibliografia

BOURRIAUD, Nicolas. Precariedade estética e formas errantes. In: BOURRIAUD, Nicolas. Radicante: por uma estética da globalização. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 79-106. CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017. HISSA, Cássio E. Viana. NOGUEIRA, Maria Luísa M. Cidade-Corpo. In: Revista UFMG #20.1. Belo Horizonte. 2013, p. 54-77




LUGARES DO COTIDIANO (CORPO. OLHOS. MÃOS.)

Alexssandra da Silva Fidelis In(ter)venções Urbanas: a arte e a arquitetura como construtoras de dissensos/ Prof. Rodrigo Gonçalves Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PósARQ / UFSC


CORPO. OLHOS. MÃOS.

PROPOSTA COLETIVA VÁRIA[S A]ÇÕES Os coletivos de arte entram em ação, em meio a cidades cujos conflitos sociais estampam-se de modo patente, em que o espetáculo - conforme a concepção de Guy Debord – é devorador da cultura, e em que a arte encontra-se em terreno limite das experimentações modernas. (PALLAMIN, 2015, p. 149)

Aproximar-se. A necessidade de aproximar-se para que a história seja contada de outra forma, para que outros aspectos (também verdadeiros) sejam considerados. Vivenciar e permitir que as trocas sejam estabelecidas. Alteridade. O Coletivo Mulheres na Intervenção foi formado para atender às demandas pessoais e da disciplina. Nos espalhamos: corpos, desejos, ações e pela cidade. Coletar dados, observar, analisar e avaliar: cidade, pessoas e mulher (elas e eu). Cada uma, com uma ação e provocando reações. Alterando a relação entre os corpos. Ocupando.

Flávia e Angélica: “lambes na passarela da rodoviária”. Sofia: “painel na alfândega”. Lorena: “caminhada noturna”. Eu: “panfletagem na calçada”.

Diferentes ações, porém, conectadas. Provocativas e alterando a rotina da cidade.

Cinco mulheres “circulando” pelo centro da cidade numa tarde e noite de sexta-feira. Objetivo: experienciar a cidade. O recorte selecionado: tempo (tarde e noite de sexta-feira); espaço (centro: extremos – Rodoviária e Praça do Bombeiro). Experiências, referências e análises: circular pela cidade em grupo, sentar no meio fio para provar açaí, “é provocativo”. Olhares questionadores masculinos e de PM’s. Sentar na “escadaria do Rosário” para debater sobre a sociedade e o papel da mulher, “que transgressor”! Pelas frestas das janelas do entorno, nos observavam. (Talvez curiosidade, mas


possivelmente, reprovação). O corpo feminino está num lugar que não é seu: na cidade. A caminhada da noite foi tranquila. Estávamos em oito mulheres (sem Flávia, mas com Luciana, Juliana e Isabela). Ruas iluminadas, pessoas circulando. Nenhum inconveniente. Foi prazeroso. “O medo é problema meu, e não do espaço público!”, exclamou Juliana de Godoy. Pergunto: Será mesmo? Embora tenha participado de todas as ações, o foco deste trabalho será a panfletagem e as informações provenientes dela. Sobre as outras ações, outros textos virão... Segue.

MINHA QUASE ERRÂNCIA E, se chamarmos de “espaço” à prática dos lugares que define especificamente a viagem, ainda é preciso acrescentar que existem espaços onde o indivíduo se experimenta como espectador, sem que a natureza do espetáculo lhe importe realmente. Como se a posição de espectador constituísse o essencial do espetáculo, como se, em definitivo, o espectador, em posição de espectador, fosse para si mesmo seu próprio espetáculo. (AUGÉ, 1994, p. 80)

Hesito. Parada, no meio da calçada, estendo a mão com um pedaço de papel. Sorrio. O panfleto é aceito. Num trecho movimentado da calçada, entre o terminal urbano e o camelódromo (e arredores), avalio. No panfleto, o apelo é para que registrem quais as emoções são manifestadas enquanto andam na rua. O retorno deveria ser por WhatsApp. Apenas um foi enviado. Observar as interações: das mulheres, nos espaços e entre eles. Interagir neles e com elas. A experiência de interagir e observar as mulheres na rua foi motivo de estima. Alteridade.


Há tensão, mesmo que seja um sopro dela. Minha? Do outro? Do lugar? Seria um equívoco considerar a mulher parte daquele lugar. Por ali elas passam, mas não são dali. Parada, sou errante. Levas de mulheres passam por mim. OLHOS, MÃOS, PAPEL. Corpos e cotidiano.

Entretanto, para quem navega, o andar é tão importante quanto o parar. Quem levanta a âncora para uma longa viagem, além das velas e dos remos, leva certamente consigo também a âncora: a possibilidade de parar e conhecer de perto outros territórios e outras gentes. Navegar, caminhar, perder-se carregam consigo o tema do encontro com o Outro, levam a ser estrangeiros e a encontrar outros estrangeiros – é esse que talvez me pareça ser hoje – o aspecto mais atual da errância. (CARRERI, 2017, p. 31-32)

Sacolas, pão, alface, leite e fraldas. Um balé no meio da tarde de sexta-feira. Um balé sincronizado que evolui ao ritmo do sinal vermelho. Performance de resistência cotidiana.

Panfletar, me aproximou delas. Um dispositivo. Seus corpos, o peso e sua história. Ritmo mais acelerado entre as mais jovens. Fone de ouvido. Corpos fechados e individuais. É preciso forçar. Pegam o papel. Senhoras e receptivas, passos e corpos lentos. Sorrisos frequentes. Aceitam o papel.

Embora a ritmanálise seja definida como “ciência, um novo domínio do saber: análise dos ritmos” (Lefebvre, 1992, p. 11 apud Frehse, 2010, p. 103), o conceito de ritmo ainda não possui uma definição clara. A dificuldade em defini-lo está relacionada à percepção e a experiência do corpo, assim, o pesquisador, definido como ritmanalista precisa “fazer de seu corpo um metrônomo, parâmetro para a “escuta” dos corpos dos outros em busca da integração recíproca do fora e do dentro desses mesmos corpos observados. (Lefebvre, 1992, p. 32 apud Frehse, 2010, p. 105)


Ignoro os homens. Empregadas domésticas e uniformizadas. Tarde de sexta-feira. Cansaço. Trabalho, mobilidade, cuidado com os filhos e família. Resistem.

Elas também me analisam, observam ou fitam. Quem és tú? O que queres de mim? Por que insiste? Questionam a pergunta que as imponho:

Como você se sente ao andar na rua?


COTIDIANO DE RESISTÊNCIA A noite não adormece nos olhos das mulheres (Conceição Evaristo) A noite não adormece nos olhos das mulheres a lua fêmea, semelhante nossa, em vigília atenta vigia a nossa memória.


A noite não adormece nos olhos das mulheres há mais olhos que sono onde lágrimas suspensas virgulam o lapso de nossas molhadas lembranças http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/93-especial/1596-20-poemas-de-resist%C3%AAncia.html

Andar na cidade é um ato de resistência. O espaço público que não foi planejado para atender às mulheres, porém, é cotidianamente invadido por elas. Adaptam-se, ajustam-se e RESISTEM.

Analisar aspectos históricos e sociais contribui para que compreendamos a cidade. Porém, instituir a alteridade e experienciar as relações que se constituem no espaço público, caracteriza-se como estratégia essencial para avaliar a relação atual, existente entre as mulheres e a cidade, além de estabelecer uma análise aproximada da leitura dos corpos existentes e dos que utilizam o espaço público. Nesse caso, o dispositivo utilizado se mistura ao cotidiano da cidade. A panfletagem possibilita a informação, mas mantém o contato entre os corpos, legitima o elo entre OLHOS E MÃOS. Seguir = Resistência. Enfatizo a importância de vivenciar a cidade citando Jane Jacobs (2017), que realizava sua teoria na prática e escreveu que a melhor maneira de se perceber o que uma cidade precisa é olhando para a forma como as pessoas a usam: “Se você sair e caminhar, você vê todos os tipos de outras pistas” (JACOBS, 2017, p.63). Dessa forma, é necessário afastar-se, reavaliar o que está estabelecido e permitirse outros e novos aspectos.

Mesmo em silêncio, a resistência se dá. Dia após dia, ela acontece. A voz não é validada, mas não desiste. A voz que se transfigura em movimento cotidiano, de quem segue a rotina. Todo dia, o dia todo. Resistência (passiva), mas que não passa mais despercebido. Corpos expostos. Corpos que sentimos. São mulheres, e sua existência importa. Corpos que se apropriam da cidade que “não estava disponível”. (PALLAMAIN, 2015, p. 148) Resistem.


MINHA TEORIA.

(

abre parênteses)

ESSE ESPAÇO QUE NÃO NOS PERTENCE

Em suas obras, Friedrich Engels (2010/ original 1845) e Michelle Perrot (2014) descrevem a sociedade do século XIX: revolução industrial, cidades se tornando populosas, migrações, miséria e doença. A podridão encontrada nas ruas das cidades estendia-se para o interior das fábricas e cortiços. Por elas, segundo Engels, “vagueiam mulheres e crianças esfarrapadas, tão sujas como os porcos que chafurdam na imundície e na lama”. (ENGELS, 2010, p. 102)

Habitualmente, as ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias – onde, ademais, quando faz bom tempo, as ruas servem aos varais que, estendidos de uma casa a outra, são usados para secar a roupa. (ENGELS, 2010, p. 70)

As condições existentes na França do século XIX eram tão degradantes quantos as descritas por Engels na Inglaterra. A autora Michelle Perrot (2014), analisa as relações de gênero existentes em Paris no século XIX e relata que a relação

mulher e cidade é extremamente conotada e transbordava em


estereótipos: “existe uma visão catastrófica da cidade do século XIX, visão amplamente moral da cidade perigosa para todos, ainda mais para as mulheres, cuja virtude é ameaçada”. (PERROT, 2014, p. 24) A demanda por trabalhadoras domésticas, ocorrida a partir do aburguesamento das cidades, permitiu que as mulheres que migravam do campo, pudessem permanecer na cidade. Consequentemente, o número de mulheres que

circulavam, viajavam e moviam-se pela cidade aumentava gradativamente e geravam uma certa confusão de espaços e de sexos. Surgiu então, o desejo progressivo de ordenar a cidade pela circulação de fluxos e especialização

dos espaços. Durante o Sec. XIX intensificou-se o entrave relacionado à utilização do espaço público pelas mulheres, pois eram considerados impróprios e as que insistissem em utilizá-lo, eram taxadas de mulheres de baixa índole e prostitutas. Sob esses argumentos, no uso do espaço público, a mulher pública representava o “horror”, porém, o homem público constituía-se em “honra”. Mesmo assim, por motivos de

sobrevivência (resistência), “as mulheres do povo circulam e utilizam a cidade como uma floresta, um território de livre percurso, onde encontram sua subsistência e ganhavam a vida”, estabelecendo trocas e negociações comerciais. (PERROT, 2014, p. 24) O controle ao acesso do espaço público se intensifica com os relatos de contágio e propagação das doenças infecciosas. A regulamentação ansiosa da prostituição, forma extrema de mistura organizada, “tornou a cidade noturna ainda mais

inospitaleira para as mulheres, suspeitas de serem “clandestinas” desde que deambulem sós, passada uma certa hora”. (BERLIÈRE, 1992 apud PERROT, 2014, p. 40) Para a haussmanização ocorrida em Paris na década de 1860, dispersar e canalizar as multidões era essencial e atingia as classes populares, principalmente as mulheres. Havia a constatação de que as calçadas, após a rua, entre o público e o privado, era o lugar onde se davam as lutas pela apropriação do espaço e

questionava-se qual o limite entre o público e privado. Daí surge o recuo generalista da mistura, ao menos da confusa e duvidosa mistura da multidão e do povo, e a definição de espaços próprios a cada sexo, dos quais a mistura é considerada perigosa, geradora de desordem, imoralidade, e histeria [...] a retirada física

e politica das mulheres do espaço publico é seguida de uma invasão de sua imagem. O corpo


feminino é objeto de um investimento simbólico uniforme, complementa a autora. (PERROT, 2014, p. 28-29)

A PERSISTENTE EXCLUSÃO

Inibir a presença feminina parece ser uma prática velada, constantemente utilizada para o controle do espaço público. Embora, se tente amenizar as imposições a partir do discurso de neutralidade (em que se considera o espaço público um lugar para todos), a realidade indica aspectos contrários. Quanto mais nos aproximamos, mais vibrantes são os impedimentos. Levando em conta a aproximação, é possível constatar que o espaço público atende às demandas da categoria produtiva, ou seja, do homem. Ruas mais largas, zoneamentos, verticalização, produtividade e sucesso econômico são algumas condutas associadas e utilizadas na conceituação das cidades e que aproximadas à proposta de estudo, colocam em xeque a neutralidade.

As necessidades determinadas pelo chamado sujeito de direito, parte de uma falsa neutralidade que mascara as premissas do androcentrismo e da heteronormatividade. O direito à cidade como ele é concebido parte das prioridades dos mesmos, tomando como referência o mundo público, a participação no mercado e os espaços atribuídos aos homens, ao passo que o espaço doméstico-feminino não está

incluído nessa categoria. (MARTINEZ, CASANOVAS et. al., 2011 apud TAVARES, 2011, p. 51)

No texto Uma estratégia fatal: A cultura das novas gestões urbanas, Otília Arantes (2002) critica as práticas de planejamento que tomam como referência o modelo americano de gestão empresarial associado à cultura e que os utiliza na concepção dos planos de desenvolvimento das cidades que devem, sobretudo, serem


atrativas, competitivas e passiveis de abarcar os investimentos econômicos, atendendo às expectativas internacionais do mundo globalizado.

Relacionar a cidade mercadoria/ empreendimento de Arantes às teorias que contestam a cidade neutra, mostrou-se um exercício relevante, pois ambas, utilizam argumentos comuns em sua validação. Para Arantes, o espaço urbano das cidades é gerido pelo marketing e delineia cidades empreendimento/ produto que competem entre si por investimentos econômicos, no intuito de constituir territórios fortalecidos e cada vez mais atrativos.

Essencialmente, neste lugar, a mulher não é aceita, pois naturalmente as associações a ela diferem das que habitualmente são utilizadas para definir as características das cidades mercadorias.

Cidades, a nova mensagem soou em alto e bom som, eram máquinas de produzir riquezas; o primeiro e principal objetivo do planejamento deveria ser o de azeitar a máquina. O planejador foi-se confundindo cada vez mais com o seu tradicional adversário, o empreendedor; guarda-caça transformava-se em caçador furtivo. (ARANTES, 2002, p. 21)

A autora Paola Jacques (2004) também critica a utilização da cultura como diferencial competitivo no planejamento das cidades. Segundo ela, o processo urbano do mundo globalizado vem se valendo do uso da cultura como estratégia principal para a revitalização urbana, a fim de constituir um lugar singular, que ofereça a possibilidade de competir internacionalmente (em que, cidades do mundo todo disputam turistas e investimentos estrangeiros). As cidades, no

intuito de se tornarem atrativas para os financiadores multinacionais dos grandes projetos de revitalização urbana, precisam seguir um modelo internacional, homogeneizador, que visa o turista internacional e exige um padrão mundial, um espaço urbano tipo, padronizado

(NEUTRO).

(JACQUES, 2004)

(fecha parênteses

)


REFERÊNCIAS ARANTES, Otília B. F. Uma estratégia fatal: A cultura das novas gestões urbanas. In: ARANTES, Otília.; MARICATO, Ermínia; VAINER, CartosB. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. AUGÉ, Marc. Não-lugares. Introdução a uma antropologia supermodernidade. São Paulo:Papirus/Travessia do Século, 1994.

da

CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010 (Edição original de 1845). FREHSE, Fraya. 2016. “Quando os ritmos corporais dos pedestres nos espaços públicos urbanos revelam ritmos de urbanização.” Civitas 16(1). JACQUES, Paola Berenstein; JEUDY, Henri Pierre. Espetacularização Urbana Contemporânea. In: Corpos e Cenários Urbanos: Territórios urbanos e políticas culturais. Salvador: EDUFBA: PPG-AU/FAUFBA, 2006.

LEFEBVRE, Henri. Éléments de rythmanalyse. Paris: Syllepse, 1992. JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000, publicado originalmente em 1961 com o título: Life and Death of Great American Cities. PALLAMIN, V. Arte urbana contemporânea em São Paulo. In: PALLAMIN, V. Arte, cultura e cidade: aspectos estéticos-políticos contemporâneos. São Paulo: Annablume, 2015.. PERROT, Michelle. O gênero da cidade. Publicado originalmente em Communications, Paris, n. 65, p.149-163, 1997. Tradução de Hermetes Reis de Araújo. * Tradução publicada na revista Histórias e Perspectivas, Uberlandia (50): 23-44, jan./jun. 2014 TAVARES, Rosana Brandão. Indiferença à diferença: espaços urbanos de resistência na perspectiva da desigualdade de gênero. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.




Caminhada: ou minha busca por uma antiarquitetura Juliana de Godoy1

Resumo Este artigo resulta da disciplina de In(ter)venções Urbanas: a arte e a arquitetura como construtoras de dissensos, oferecida na Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina pelo professor Rodrigo Gonçalves. Um dos objetivos da disciplina foi a realização de uma intervenção urbana. O presente texto buscou refletir sobre a caminhada noturna realizadas por alunas do curso no Centro de Florianópolis, a partir do contexto das aulas e dos autores e também de intervenções discutidas durante o período.

Introdução Grande parte da formação do arquiteto é fundamentada em torno do conceito de projeto. Para além da ideia, do conceito, o projeto é também uma forma de manter um certo controle sobre o que se está planejando. No projeto de arquitetura estão envolvidos, além do arquiteto e dos demais profissionais, os usuários, proprietários e órgãos responsáveis pela aprovação. Portanto, espera-se que as partes envolvidas estejam de acordo, ou o ato do projeto será em vão e não será viabilizado. O que ocorre muitas vezes (e que não deveria) é a divergência com a população local, apesar de existirem instrumentos para que não ocorram. Mas isso nem sempre é motivo de inviabilização dos projetos. Dessa forma, a proposta da construção de dissensos escapa à própria profissão de arquiteto e urbanista, pelo menos até então. Já a arte, diferente da arquitetura, não tem que responder (ou ao menos não deveria) a nenhuma instituição ou proprietário. Mesmo a ideia de propriedade já impede que a arquitetura tenha a mesma liberdade. Ao aproximar arte e arquitetura para discutir as

1

Arquiteta e Urbanista formada em 2004 na Universidade Estadual de Londrina – UEL, concluiu o mestrado em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade (PGAU-Cidade) pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC em 2012. Possui especialização em História e Teorias da Artes: Modernidade e Pós-Modernidade pela UEL, e no curso REABILITA – Reabilitação Sustentável Arquitetônica e Urbanística, pela Universidade de Brasília – UNB. E-mail: judegodoy@gmail.com


possibilidades de intervenção quebra-se toda a lógica de construção no espaço urbano própria dos arquitetos. Por ser inevitável não abordar as artes contemporâneas para tratar de intervenções urbanas, serei cautelosa ao entrar no campo exclusivo das artes. No entanto, como o tema extrapola vários campos de atividades (artes, arquitetura, cidade em sua complexidade) buscarei abordagens mais específicas quanto às artes urbanas. Quando tratamos de espaço urbano, não são todas as formas de expressão que são consideradas oficialmente arte. É o caso das pichações e grafites, que são assuntos polêmicos e que causam desconforto entre arquitetos, talvez por serem formas de expressão que fujam à ordem imposta, apesar dos grafites já serem aceitos e descriminalizados pela lei2, ou mesmo, de já terem “conquistado” seu status de arte a partir principalmente da atuação de artistas como Jean-Michel Basquiat (1960-1988). Alguns grafiteiros ganham destaque, tais como Eduardo Kobra, Os Gêmeos, Edgar Mueller, ou o anônimo Banksy. Os grafites são, assim como as pichações, relativamente temporários, ao menos aqueles que ainda ocupam muros. Já são socialmente aceitos, ao contrário das pichações e, talvez por isso, não têm mais o mesmo efeito potencialmente questionador. Mais ainda, são usados normalmente para valorizar lugares, como no caso do Arts District em Los Angeles. E por consequência da valorização, infelizmente, subentende-se em grande parte dos casos, que haverá gentrificação. Já as pichações, ou “pixos”, encontramos muitas vezes em lugares inesperado, no alto dos prédios, o que nos leva sempre a imaginar: como conseguiram? Mais do que o grafite, é uma expressão da necessidade de ocupar e de marcar o seu lugar num território normalmente hostil, inacessível a uma parte significativa de pessoas. Diferente dos grafites, que não constituem mais crimes caso haja autorização, as pichações ainda são consideradas crimes. (BRASIL, 2011) 2

Art. 6o O art. 65 da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1o Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa. § 2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.” (NR) (BRASIL, 2011)


Recentemente uma intervenção gerou polêmica tanto entre a população em geral, quanto diante dos arquitetos: o Pátio do Colégio em São Paulo amanheceu com uma imensa pichação na fachada que dizia “Olhai por nois”. Como esperado, grande parte da população condenou o ato, considerado como vandalismo: “ele mancha o lugar do nascimento de São Paulo, fere a população e, ao mesmo tempo, usa de forma absurda uma frase religiosa para só agredir um dos espaços mais queridos de São Paulo”, comentou o padre Carlos Contieri que dirige o lugar, à Folha de São Paulo. (MAIA, 2018) No momento do ato, como pode ser visto no vídeo, moradores de rua dormem do lado de fora, encostados na fachada principal do edifício.

Pichação no Pateo do Colégio em São Paulo Foto: Paulo Pinto [FotosPublicas] Fonte: (JAYO, 2018)

Apesar de marcar o suposto núcleo original de São Paulo, o atual conjunto foi erguido recentemente, entre 1954 e 1979, ou seja, é um simulacro do que teria sido o edifício. (JAYO, 2018) Ainda assim a condenação do ato foi imediata, mesmo pelo padre, afinal, “mancha o lugar” e “fere a população”. Certamente não foi a população que dorme junto à fachada, e que vive em uma situação miserável que se sentiu ferida. O próprio uso do termo “a população” já revela a exclusão dessas pessoas que efetivamente estavam usando aquele lugar. Elas simplesmente não são “população”.


Refletindo ainda sobre arte urbana contemporânea, Vera Pallamin (2015) questiona a tendência atual da “cultura de eventos”, cujos produtos seguem uma lógica rentável para o mercado, seguem técnicas de marketing, criando tendências e desejos relacionados a consumo, e que não exigem esforço imaginativo por parte do receptor, sempre passivo e anestesiado. O capital, que tem o poder de reprodução e mediação da cultura, também tem poder sobre a “legitimação de valores que disciplinam”. (PALLAMIN, 2015, p. 143) Esses processos de estetização contemporâneos, perfazendo-se numa complexa trama simbólica, alinham-se à concreção de novos tipos de superficialidade, corroborando a supervalorização da imagem e do efêmero, além de uma espécie de esvaziamento de conteúdos. Em seus desdobramentos produz-se um esteticismo generalizado, que traz em seu bojo os dilemas da dilapidação de ações culturais, concorrendo para sua “funcionalização”. Práticas e projetos culturais, dessa perspectiva, tendem a ser reduzidos ou instigados às consequências de interesses econômicos, numa intensa mercadificação que lhes acarreta uma perda significativa de seu potencial construtivo, uma vez que passam a ser atrelados estreitamente a táticas de busca de lucro. (PALLAMIN, 2015, p. 142)

A arte urbana, sendo parte do espaço urbano, também é parte da vida urbana e de todos os seus problemas. Por estar conectada à vida prática cotidiana, essa arte contemporânea gera significados para os lugares. Arte urbana, portanto, pelo seu caráter questionador, crítico, pode se tornar uma prática de reflexão sobre o espaço urbano, “potencializada pela ideia de tornar a cidade disponível para todos os grupos, essa prática crítica inclui entre seus propósitos estéticos o desafio a certos códigos de representação dominantes (...)”. (PALLAMIN, 2015, p. 145) Ao buscar no contexto da vida urbana novas formas de representação, que reflitam os conflitos e que se decomponham em novos significados para o cotidiano da vida pública, e para os diversos públicos que ali coexistem, a arte urbana se torna essencialmente política. A aproximação entre arte e política feita por Lepecki (2012, p. 44) é entendida a partir do conceito de coreografia. Política é tratada pelo autor em termos de dissenso: “produz a ruptura de hábitos e comportamentos, e provoca assim o debandar de toda a sorte de clichês: sensoriais, de desejo, valor, comportamento, clichês que empobrecem a vida e seus afetos”. Para a reflexão realizada neste artigo, levo em consideração que qualquer intervenção no espaço urbano terá um caráter político pela própria essência do meio em que se insere. Ela se abre para o coletivo e a partir disso questiona e é questionada, podendo ou não construir dissensos.


Contextualização das aulas Por se tratar de um relato pessoal de experiência, resultante da participação de uma disciplina na pós-graduação, penso ser importante realizar uma pequena contextualização do momento da disciplina e também das aulas. Importante ressaltar também, a diversidade na formação dos alunos que frequentaram as aulas, entre eles: arquitetos, artistas, uma museóloga, um jornalista, além da própria diversidade na especialização de cada um. Conforme os textos eram discutidos ao longo das aulas e exemplos de intervenções eram mostrados, era possível observar que muitos alunos se sentiam incomodados, o que ficou claro no final do curso com as declarações finais. Mas foram essas controvérsias que nos permitiram construir a ideia de se buscar no espaço urbano algo além do que já se espera, ou que do que já esperam que façamos com ele. O período em que ocorreram as aulas (26 de fevereiro a 18 de maio de 2018) foi muito impactante para a história do país. Logo no início ocorreu a intervenção militar no Rio de Janeiro, fato muito marcante num país que ainda não resolveu sua história com a Ditadura Militar, que não puniu torturadores. Além disso, a intervenção no Rio é mais um espetáculo de um governo sem aprovação popular, reprimindo moradores de favelas e criminalizando a pobreza. Em março houve a execução da vereadora Marielle Franco do PSOL também no Rio de Janeiro, relatora da comissão que acompanha a intervenção militar e que também era conhecida pelas denúncias sobre a violência da polícia em favelas no Rio. Mais tarde, em abril, ocorreu a prisão transformada em mais um espetáculo midiático do ex-presidente Lula e, como consequência, militantes acampam em vigília nas ruas próximas ao presídio em Curitiba. O fato marcante mais recente foi o incêndio que matou mais de 44 pessoas, no Edifício Wilton Paes de Almeida no Largo Paiçandu no centro de São Paulo. O incêndio ocorreu na madrugada de 1º de maio, véspera do ato unificado em Curitiba, com a presença de centrais sindicais e de pré-candidatos dos partidos de esquerda à Presidência. A tragédia com os moradores do edifício que desabou durante o incêndio em São Paulo é uma imagem muito representativa do que as cidades se tornaram. Escancara a pobreza e as desigualdades no urbano, escancara também, como as classes sociais se apropriam da cidade e tentam impor suas narrativas. Infelizmente, refletindo sobre a profissão do arquiteto e urbanista, percebe-se que há uma sensibilização maior pelo edifício que desabou do que pelas mortes ou pelas condições sociais dos moradores que lutam por


habitação e ocupam prédios desocupados. Novamente fica a questão, principalmente para arquitetos, tão acostumados a valorizar o patrimônio edificado, se não há muitas vezes uma inversão de valores. Os acontecimentos que passamos nesses meses geram manifestações e ocupações dos espaços urbanos, das ruas das cidades. Algumas com grande repressão policial. Mas mostram que a rua ainda é o lugar em que os movimentos recorrem com maior força em momentos de crise. É essencial discutir, portanto, sobre manifestações políticas no espaço urbano, nas suas diversas formas.

Espaço, manifestações e políticas Manifestações políticas não ocorrem apenas no espaço urbano. Como exemplo, temos as ocupações realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), que são constantemente criminalizados, ameaçados e, infelizmente, muitos membros são assassinados na luta pela reforma agrária e pela agricultura familiar. Mas é no espaço urbano, marcado pela diversidade, onde as manifestações políticas ganham maior destaque, maior visibilidade. A história recente do país mostra que, apesar do desencantamento generalizado com a política (muitas vezes por não discutir política de fato), os principais eventos ocorreram na rua. Por exemplo temos os protestos pelo transporte público em 2013 (“não é só por 20 centavos”, diziam os manifestantes). Depois tivemos vários protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, normalmente aprovados e divulgados pela mídia e, ainda, com aparente proteção da polícia, o que é incomum. A partir de 2016, vários protestos contra o golpe foram realizados, mas agora, com menor ênfase pelos meios de comunicação e com maior repressão pela polícia. Em 2017 outro fato importante que demonstra um movimento para desestabilizar a ordem neoliberal que está sendo imposta já há algum tempo: alunos secundaristas de São José dos Pinhais (Região Metropolitana de Curitiba) ocupam a escola em protesto contra a reforma do ensino médio. Este ato é, talvez, ainda mais simbólico do que os grandes protestos que ocorreram. Em primeiro lugar, não são mais “vagabundos” ou “vândalos”, como se costuma julgar manifestantes no país, mas estudantes de ensino médio que ocuparam a própria escola em torno de uma pauta que dificilmente poderia ser questionada: precarização do ensino público. Além disso, mesmo que depois as ocupações de secundaristas tenham


avançado por todo o Paraná e pelo Brasil, ela iniciou numa escola na Região Metropolitana da “República de Curitiba”, como alguns paranaenses gostam de chamar a capital da Operação Lava Jato. Não vou entrar nas questões de divergências sobre a Lava Jato, que são muitas. Mas, certamente, São José dos Pinhais, cidade industrial na região e que cresceu muito com os investimentos do Programa Minha Casa Minha Vida, hoje passa pelas consequências da desindustrialização e da crise na construção civil. A autora Rita Velloso (2007) explora alguns textos de Walter Benjamim que abordam as práticas de resistência que ocuparam Paris: o erguimento de barricadas de 1830, 1848 e 1871. Segundo a autora: “Toda e cada insurgência explode a lógica subjacente do urbano desenhado e planejado”. (VELLOSO, 2007, p. 45) A população constrói barricadas e se apropria das ruas de Paris em meio à destruição e construção da cidade por Haussmann. Apropriação aqui, segundo a autora (que remete à Benjamin), decorre da experimentação urbana e arquitetônica em encontro com a memória do habitante e com a memória do lugar, e que produz algum sentido àquele que frequenta o espaço. (VELLOSO, 2007, p. 46) Benjamim viu nas barricadas uma “apropriação popular da arquitetura urbana por meio de um desvio – numa palavra, num détournement”. (VELLOSO, 2007, p. 49) Foram a expressão da revolta popular que ocupou o espaço urbano, e o reconfigurou, em resposta à opressão imposta pela classe dominante, representada pela reconstrução de Paris. A Comuna de 1871 marcou permanentemente Paris. A ocupação e reorganização do espaço das ruas para manifestar o desejo político popular entram para a memória coletiva da cidade. Sua característica revolucionária rompeu com a tentativa de imposição de uma ordem que buscou neutralizar a força coletiva das classes populares. Quase um século depois, em maio de 1968, estudantes ocupam a universidade de Sorbonne. A motivação do protesto estava relacionada novamente à urbanização, mas agora, foi uma resposta à ideologia do planejamento que marcou a Europa nessa época. A ocupação tinha como proposta pensar a “autogestão como alternativa à autoridade”. (VELLOSO, 2007, p. 58) Todas essas experiências coletivas de cidade envolvem a apropriação do espaço público e marcam a memória desses lugares. Expõem também a realidade sobre uma suposta liberdade dos cidadãos e uma suposta neutralidade do espaço urbano. Lepecki (2012), ao expandir o campo da coreografia para o “chão do urbano contemporâneo”, defende o que ele chamou de “coreopolítica”. Ele percebe algumas


semelhanças entre política e dança: precariedade, atos sempre á beira do desaparecimento, mas também, “sempre criando um por-vir”; identificação entre produto do trabalho e a própria ação (o produto é a própria performance); redistribuição de hábitos e gestos; e aumento de potências. (LEPECKI, 2012, p. 45-46). A ação da dança assim como uma ação política, inicia subitamente e desaparece ao final, se dispersa quando termina. O autor defende uma “política do chão”. Assim como a dança, essa política deve ser: um atentar agudo às particularidades físicas de todos os elementos de uma situação, sabendo que essas particularidades se coformatam num plano de composição entre corpo e chão chamado história. Ou seja, no nosso caso, uma política coreográfica do chão atentaria à maneira como coreografias determinam os modos como danças fincam seus pés nos chãos que as sustentam; e como diferentes chãos sustentam diferentes danças transformando-as, mas também se transformando no processo. Nessa dialética infinita, uma corresonância coconstitutiva se estabelece entre danças e seus lugares; e entre lugares e suas danças. (LEPECKI, 2012, p. 47)

Citando Hannah Arendt, Lepecki atenta para o fato do espaço físico urbano ainda não ser política, mas sim, “o elemento necessário que precede a política e lhe dá o chão”. A arquitetura e a lei, o urbano como espaço construído, “seria o suporte material necessário para conter a efemeridade, a precariedade, o deslimite e a imprevisibilidade ontológica da política, ou seja, do agir que tem como produto apenas o agir”, ou seja, urbano que nada mais é do que “espaço de contenção arquitetônica e legal da dança-política”. (LEPECKI, 2012, p. 48) O sujeito político que surge a partir dessa política que transforma o espaço será capaz de exercitar sua “potência para o dissenso”. A “coreopolítica”, portanto: é a revelação teórica e prática do espaço consensual e liso de circulação como máxima fantasia policial, pois não há chão sem acidentes, rachaduras, cicatrizes de historicidade. É na rachadura e no seu vazio plenamente potente, é no acidente que todo chão sempre já é, que o sujeito político surge porque nele escolhe o tropeço, e, no desejar do tropeço, ele vê o delírio policial da circulação cega e sem fim ser sabotado. (LEPECKI, 2012, p. 56)

A reflexão sobre o espaço urbano que é dado e a necessária apropriação desse espaço para a construção de ações críticas sobre as políticas e práticas da vida urbana é necessária ao pensar em intervir com o objetivo de provocar dissenso. O momento atual mostra que esse espaço ainda é o lugar que representa a demonstração da força das manifestações e ocupações populares. Não é um momento para sutilezas, o momento é de ações mais combativas devido à natureza das políticas impostas. Como arquiteta, que normalmente está do lado do espaço que é erguido como consenso, do urbano construído para conter e mesmo combater o imprevisível, ficam alguns


questionamentos: que espaço urbano é esse que dará o chão à proposta? Que experiência pode produzir algum sentido aos envolvidos?

Intervenção – ou minha antiarquitetura Como exposto anteriormente a construção de dissensos não faz parte da prática do arquiteto e do urbanista. Se há dissensos, normalmente são provocados por imposições que interferem nas relações historicamente já estabelecidas do lugar. Mas, de uma forma geral, a arquitetura luta para a construção de harmonias. Com tudo isso em mente, a intervenção que busco deve, antes de mais nada, se desvincular das questões inerentes à pratica da arquitetura. O ideal, neste ponto, é que não tenha como resultado nenhuma produção de formas, de objetos. Ou seja, restaria apenas o movimento, a ação em si. Recorro aqui à hipótese de Bourriaud (2011) sobre precariedade estética. O autor trata da precariedade como característica marcante na sociedade contemporânea: precariedade nos contratos de trabalho, na breve validade das mercadorias com suas obsolescências programadas, na fragilidade de identidades em movimento. Ao mesmo tempo em que a precariedade impregna a estética contemporânea, a ordem política que a mantem continua sólida. Dessa forma, a arte buscou, até então, por uma cultura que se mantenha durável em oposição à produção voltada ao consumo. Porém, o autor questiona, principalmente a partir das manifestações artísticas do século XXI, se é realmente pertinente essa “oposição entre o duradouro e o funcional”, entre “o que pertence à cultura e o que lhe seria alheio ou hostil”, já que a precariedade está inserida na cultura através da “indústria de salvamento”, que “contribuem para remedia-la ao mesmo tempo que a atestam”, ao armazenar as produções mais precárias e reutilizá-las. (BOURRIAUD, 2011, p. 83-84) O autor defende que a arte contemporânea, ao insistir no momento da ação do evento artístico e ao recusar seu registro, é um desafio para o mundo da arte. Ao encontrar a fragilidade, o transitório, característicos do “regime precário da estética”, a arte parece, para o autor, “ter encontrado os meios para resistir a esse novo ambiente instável como também de extrair dele uma nova força”. (BOURRIAUD, 2011, p. 85)


Ao ouvir a proposta da aluna Lorena Galery, cuja formação é nas artes visuais, sobre uma caminhada noturna no Centro Histórico de Florianópolis apenas para mulheres, percebi ali um potencial de exploração tanto do lugar quanto de preconceitos que possa ter. A simplicidade do ato de caminhar seria banal não fosse pelo horário, pelo local, e pelo grupo que a executaria. Surge também um sentimento de que o centro da cidade à noite não nos pertence, que não devemos estar lá e, de certa forma, gera um medo por ser ainda desconhecido. Caminhar no centro é comum durante o dia, muitas vezes um passeio. Mas, como seria esse lugar durante a noite? Essa curiosidade por investigar esses sentimentos foi o que motivou na ideia da caminhada. Caminhar também, ao mesmo tempo que geraria um sentido nosso com o lugar, não precisa de nenhum objetivo ou resultado material, não precisa nem mesmo de um planejamento das ações. Se houvesse, algo bastante precário já seria suficiente. E, em caso de haver alguma transformação, seria individualmente. O livro Caminhar e Parar de Francesco Careri (2017), em que relata suas experiências de errância em diversas cidades, foi uma grande inspiração para continuar na ideia da exploração através do ato de caminhar, apesar das diferenças nas ações e nas proporções. O que intrigou também, a princípio, foi a sensação de insegurança. Zygmunt Bauman (2008) fala que medo é o nome dado à incerteza pela ignorância e ameaça do que deve ser feito. É um sentimento comum a toda criatura viva, segundo o autor, mas apenas os humanos têm o medo de “segundo grau”, um medo de uma experiência passada, “social e culturalmente reciclado”, mesmo que já não haja a ameaça. Essa sensação de insegurança se deve mais à “falta de confiança nas defesas disponíveis” (BAUMAN, 2008, p. 9) Já foi amplamente observado, por exemplo, que a opinião de que "o mundo lá fora" é perigoso e é melhor evitá-lo é mais comum entre pessoas que raramente saem à noite - se é que chegam a sair -, quando os perigos parecem mais aterrorizantes. E não há como saber se essas pessoas evitam sair de casa devido ao senso de perigo ou se têm medo dos perigos indizíveis à espreita nas ruas escuras porque, na ausência do hábito, perderam a capacidade de lidar com a presença de uma ameaça ou tendem a deixar correr solta a imaginação já aflita pelo medo, ao carecer de experiências pessoais diretas de ameaça. (BAUMAN, 2008, p. 10)

Mesmo tendo o hábito de andar à noite pelas cidades e bairros que já morei, percebi que o centro de Florianópolis ainda é um local que não explorei o suficiente e, portanto, é parcialmente desconhecido.


A caminhada A caminhada ficou marcada para as 21:00 do dia 11 de maio, uma sexta-feira muito agradável. O percurso foi inicialmente planejado pelo grupo, ou seja, não foi um caminho aleatório. A maior parte do grupo já estava lá durante o dia, eu cheguei apenas no horário da caminhada.

Percurso da caminhada Imagem: Lorena Galery

O primeiro sentimento que tive no dia, foi justamente o receio de chegar sozinha no lugar e não encontrar ninguém. Afinal, o centro histórico à noite, no meu imaginário, seria um lugar isolado e escuro, talvez desocupado, a não ser pelo Mercado Público Municipal que tem bares abertos durante parte da noite e que depois da reforma ganhou ares e segurança de shopping center.

Turistas tirando fotos com a cavalaria da PM no Mercado Municipal. Quadros retirados do vídeo realizado no dia da caminhada.

Cheguei junto com uma colega, que marquei com antecedência para pegarmos o ônibus juntas. O Mercado estava bastante iluminado, cheio de turistas e cavalaria da Polícia Militar fazendo a segurança. Marcamos de nos encontrar no Largo da Alfândega, ao lado do Mercado Público. Essa área já se encontrava praticamente vazia, com bastante lixo na rua


devido ao horário de coleta. Encontramos o grupo e iniciamos a caminhada. Tudo sob controle.

Saída do Largo da Alfândega. Quadros retirados do vídeo realizado no dia da caminhada.

Nosso percurso iniciava no Largo da Alfândega, próximo ao terminal de ônibus urbano. Dessa forma, durante grande parte do trecho da caminhada, tive a sensação de andar na contramão. Este talvez tenha sido o maior fator de estranhamento por quem estava vindo no sentido contrário. Enquanto várias pessoas desciam em direção ao terminal, nosso grupo apenas seguia na direção oposta. Ao caminharmos ao longo da Praça XV de Novembro, percebe-se uma grande quantidade de pessoas ocupando o lugar. Alguns catadores de lixo, já que era o horário dos caminhões de coleta, muitos moradores de rua dentro da praça e pessoas nas mesas perto da Igreja jogando jogos de tabuleiro. Devo ressaltar que a maior tensão que passei foi ao atravessar as ruas devido ao trânsito dos carros. Apenas isso.

Caminhada no entorno da Praça XV de Novembro. Quadros retirados do vídeo realizado no dia da caminhada.

Grande parte dos trechos que passamos são muito iluminados, mas nem todas as ruas são muito ocupadas. Algumas ruas tinham pouca iluminação, mas não senti nenhuma ameaça por estar em grupo. Ao contrário, senti sim um prazer enorme em caminhar e fazer parte da paisagem daqueles lugares naquele momento. A Avenida Hercílio Luz também foi um trecho que surpreendeu pela ocupação. Mas, diferente da Praça XV de Novembro, o que gera o movimento tanto de pessoas como de


automóveis são bares e lanchonetes. Provavelmente, a avenida tem outro aspecto assim que esses lugares encerram suas atividades, ao contrário do centro histórico que abriga muitos moradores de rua sob as marquises.

Avenida Hercílio Luz. Quadros retirados do vídeo realizado no dia da caminhada.

A Praça Getúlio Vargas, ou Praça do Bombeiro, recentemente revitalizada, tem boa iluminação e não tivemos receio em andar por ela. As poucas pessoas que ocupavam os bancos da praça pareciam estar ali apenas esperando alguém, de passagem, cada olhando para o seu celular.

Praça Getúlio Vargas. Quadros retirados do vídeo realizado no dia da caminhada.

O retorno por outro percurso, mas ainda no centro, por ser ainda mais tarde, estava um pouco mais isolado. Agora, andávamos em direção ao terminal e estávamos no sentido do fluxo das pessoas que saiam dos seus cursos ou trabalhos. Conforme o centro se esvazia percebe-se que os moradores de rua vão se alojando, em colchões e até mesmo com barracas de acampamento. Ao avançar pelo centro em direção ao Mercado novamente e ao Terminal, a movimentação é de pessoas deixando o local, a maioria sempre apressada. No momento de ir embora, tivemos que esperar por nossas caronas do lado de fora do terminal de ônibus. Observamos uma moça aguardando também, parada. Enquanto estávamos ali percebemos que estava sendo assediada e resolvemos esperar junto com ela. O ato de parar, portanto, depois de toda a caminhada, revelou seu potencial desestabilizando toda sensação de conforto que havia até então. Logo entendemos que aquele lugar de passagem pode ser bastante hostil em determinados momentos e para determinadas pessoas.


Conclusão O ato de caminhar, principalmente depois do “toque de recolher” imaginário que aparentemente ronda em muitas mentes, me fez perceber o espaço de uma outra forma. Além disso, mostrou que nossas relações com os lugares não estão prontas. Um aspecto muito importante foi o preconceito existente pela situação. Havia, de certa forma, uma tensão que pode ser traduzido por um medo inconsciente pelo caminhar noturno no centro. Mas, a caminhada revelou que grande parte desse medo é construído sem uma base real para acontecer. Mesmo assim, o fato de ser um grupo de pessoas caminhando, e não uma ou duas mulheres, faz a diferença nessa situação. No horário que passamos, horário de saída de aulas noturnas e de outros turnos de trabalho, sempre havia pessoas nas ruas. Mas talvez, se fosse mais tarde, não nos sentíssemos tão confortáveis com o passeio. Como pretendia, a importância do ato esteve no seu momento. Apesar de ter registrado o percurso, eles foram bastante precários porque não tinham nenhuma razão de existir, já que a experiência havia passado e só pode ser atualizada numa nova caminhada. Não gerou nenhuma construção, nenhum objeto, invertendo a lógica da arquitetura, cujo produto normalmente é a forma. Foi um desapego. Foi uma experiência que pode significar também uma iniciativa para novas caminhadas. Porém, mais próximas do que Francesco Careri obteve, mais intensas e extensas. Lugares como as regiões de expansão urbana, onde o urbano ainda interage com o rural, e que são pouco explorados por não fazerem parte da cidade que já está historicamente consolidada. Existem bairros também que podem ser explorados pela segregação que representam, como bairros de classe alta e média alta. Sugiro aqui um passeio noturno no Bairro Jardim Anchieta, por exemplo, mas por um grupo muito maior, que marque o lugar pela sua simples presença.

Referências BAUMAN,. Sobre a origem, a dinâmica e os usos do medo. In: BAUMAN, Z. Medo Líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 7-33. BOURRIAUD, N. Precariedade estética e formas errantes. In: BOURRIAUD, N. Radicante: por uma estética da globalização. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 79-106.


BRASIL. Lei nº 12.408, de 25 de maio de 2011. Altera o art. 65 da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, para descriminalizar o ato de grafitar, e dispõe sobre a proibição de comercialização de tintas em embalagens do tipo aerossol a menores de 18 (dezoito) anos., Brasília, DF, mai 2011. BURG, ; BRUSAMOLIN, F. M. A linha tênue entre arte, crime de pichação e grafitagem. Justificando, 02 fev 2017. Disponivel em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/02/02/linha-tenue-entrearte-crime-de-pichacao-e-grafitagem/>. Acesso em: 25 maio 2018. CARERI, F. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017. JAYO,. Olhai por nóis: Uma falsificação arquitetônica se reveste de verdade. Vitruvius, São Paulo, abr 2018. Disponivel em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/18.213/6945>. Acesso em: 2018. LEPECKI, A. Coreopolítica e coreopolícia. Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan/jun 2012. MAIA,. Fachada do Pateo do Collegio em SP é pichada com letras gigantes; veja vídeo. Folha de S.Paulo, 10 abr 2018. Disponivel em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/04/fachadado-pateo-do-collegio-em-sp-e-pichada-com-letras-gigantes-veja.shtml>. Acesso em: 2018. PALLAMIN, V. Arte urbana contemporânea em São Paulo. In: PALLAMIN, V. Arte, cultura e cidade: aspectos estéticos-políticos contemporâneos. São Paulo: Annablume, 2015. p. 137-192. RAUPP, J. Casal detido acusado de pichar Pateo do Collegio presta depoimento e é liberado. G1, 13 abr 2018. Disponivel em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/casal-detido-acusado-depichar-pateo-do-collegio-presta-depoimento-e-e-liberado.ghtml>. VELLOSO, R. O tempo do agora da insurgência: memória de gestos e política do espaço, segundo Walter Benjamin. In: BRITTO, F. D.; JACQUES, P. B. Corpocidade: gestos urbanos. Salvador: EDUFBA, 2007. p. 43-69.



IN(TER)VENÇÃO URBANA: MULHER E CIDADE

Sofia Stancke Pundek1 pundeksofia@gmail.com

1

Arquiteta e Urbanista pela Universidade do Estado de Santa Catarina desde 2016. Trabalho desenvolvido durante a disciplina de Tópicos Especiais da Arquitetura e História da Cidade: In(ter)venções Urbanas: a arte e a arquitetura como construtoras de dissensos. Professor Rodrigo Gonçalves. Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina.


Durante a disciplina de In(ter)venções Urbanas do Mestrado/Doutorado em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina, os alunos foram desafiados a propor uma intervenção artística em algum local, determinado pelo próprio aluno, na cidade de Florianópolis. Para esta intervenção, os alunos tiveram como sustentação nove textos escolhidos pelo professor, que foram estudados e discutidos em classe a cada novo encontro da turma. Antes de tudo, peço licença e tomo a liberdade de escrever este texto ora em terceira, ora em primeira pessoa, tomando como base desta escrita, a tese de doutorado em Artes Cênicas de Carolina Érika Santos da Universidade Federal da Bahia2. Aproveito a deixa e me abstenho de utilizar o padrão corriqueiro de textos acadêmicos, e escrevo sem seguir a risca alguma regra, pela razão de acreditar que desta maneira posso expressar mais verdadeiramente minhas impressões da intervenção proposta. Em oposição a um texto científico, saturado de referências e embasamentos teóricos, utilizo principalmente de questões pessoais e ‘’achismos’’ para – tentar – contextualizar a intervenção. Percebo há um tempo uma tendência das novas gerações em discutir questões de gênero. Há sempre espaço para este assunto entre elas, e tenho a impressão de que as novas gerações vêm tendo uma visão inovadora sobre este tema. Não me cabe aqui pontuar todos, mas por experiências próprias, ouvi de muitas meninas entre 13 e 16 anos, discursos de empoderamento feminino. Fato que me orgulha e cada vez mais me alimenta um sentimento de esperança de um futuro igualitário. A questão de gênero sempre me despertou interesse, uma vez que abre espaço para discussões de feminismo. Esta geração de crianças, adolescentes e jovens adultos utilizam de um forte discurso desconstrutivo, rompendo padrões de gênero enraizados na sociedade. Percebo através de reportagens, publicações, ou mesmo em conversas informais, um forte movimento que insiste em falar deste assunto. Primeiramente, é necessário esclarecer que a intervenção foi executada por um coletivo de mulheres, onde da união de várias ideias, formou-se uma ação com duração de quase um dia inteiro. As quatro intervenções aconteceram durante o período da tarde e da noite de uma sexta-feira, dia 4 de Maio de 2018, no centro antigo da cidade de Florianópolis, região do Largo da Alfândega. A primeira ação programada por Flávia Ramos e Angélica Camargo, consistia em questionar à população sobre suas impressões acerca da passarela de pedestres que passa sob a Avenida Paulo Fontes, que interliga a região central da cidade com a região do Aterro da Baía Sul, onde localizam-se o Terminal Rodoviário e o Terminal Integrado de Ônibus. Para a coleta das opiniões, Flávia e Angélica no dia anterior, permaneceram durante algumas horas na passarela abordando e perguntando às pessoas que passavam ali o que achavam daquele espaço. Algumas falas eram escritas, outras gravadas. As diferentes opiniões foram transcritas para folhas de papel, e por volta das 14h do dia 4, as folhas foram coladas com uma mistura de água e cola no piso da passarela. 2

SANTOS, Carolina Érika. Insurgências na Soteropolicity: performar para realizar outros sentidos. 2013. Tese (Doutorado) Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.


Imagem 1 – Passarela logo após a colagem dos folhetos. Foto de Angélica Camargo.

As impressões pessoais de cada indivíduo foram das mais variadas (Imagem 2). Percebe-se diante de opiniões tão divergentes, a ambiguidade daquele espaço, para alguns um local seguro e de abrigo, para outros um local a ser evitado e apenas de passagem.

Imagem 2 – Opiniões antagônicas. Foto de Angélica Camargo.

Logo após a colagem dos lambes, a segunda ação foi colocada em prática, idealizada por Alexssandra Fidelis. Consistiu em uma panfletagem em dois lugares da região central de


Florianópolis: em frente ao mercado público e na Rua Conselheiro Mafra, ambos locais de alto fluxo de pessoas. Eram dois modelos de panfletos (Imagens 3 e 4), com questionamentos especialmente destinados a mulheres.

Imagem 3 – Tipologia I de panfleto, elaborado por Alexssandra Fidelis. Foto de Alexssandra Fidelis.

Imagem 4 – Tipologia II de panfleto, elaborado por Alexssandra Fidelis. Foto de Alexssandra Fidelis.

O número de celular de Alexssandra foi escrito no panfleto para que as mulheres pudessem enviar suas respostas através de uma mensagem de whatsapp. Essa técnica não teve muita aderência, mas algumas mulheres faziam questão de responder ali mesmo, como em uma conversa informal. ‘’Ainda bem que, atualmente, podemos falar sobre isso.’’ ‘’Mulher não tem paz ao andar na rua, tem sempre um cara se passando.’’

Imagem 5 – O ato da panfletagem. Rua Conselheiro Mafra. Foto de Angélica Camargo.

Imagem 6 – Alexssandra recebendo uma das respostas. Foto de Angélica Camargo.


Algumas percepções pessoais aleatórias que eu gostaria de destacar: I) foi inusitado estar no lugar de quem distribui panfletos e perceber a relação das pessoas com este indivíduo. II) quem mais recebia os panfletos eram em geral pessoas mais velhas, os jovens são em maioria mal educados. III) os homens são curiosos quando algo é inacessível por eles. O centro antigo de Florianópolis é caracterizado pela predominância de usos comerciais e institucionais, assemelhando-se a dinâmica de muitos outros centros históricos brasileiros. Por consequência, o horário de maior atividade dessa região é durante os períodos da manhã e da tarde. Após as 18h, o centro toma outra configuração3. Os pontos escolhidos para a realização das intervenções tratam-se de espaços com alto fluxo de pessoas. Durante os minutos de panfletagem consegui pensar diferente das outras vezes em que estive naquele lugar; perceber as pessoas, os movimentos de rua, as diferentes relações indivíduo/cidade. Além de ser um local de passagem de pedestres, este espaço também é apropriado por pessoas que realizam os mais variados tipos de comércio informal, e a partir destas relações espontâneas, cria-se uma identidade própria do lugar. Por volta das 16h foi o momento de fazer a intervenção elaborada pela pessoa que vos escreve. Na ação utilizei materiais de fácil acesso, montando um mural de dimensões aproximadas (60 cm x 100 cm), feito de papel pardo e colado com fita adesiva em uma das paredes da Casa da Alfândega em Florianópolis. Com um pedaço de barbante, amarrei uma ponta em uma caneta e a outra no próprio cartaz, fixando a caneta no modelo para quem quisesse utilizá-la. De início, tinha planejado fixar este mural em alguma parede da edificação da sede do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina, onde esta disciplina é lecionada. Parecia o lugar perfeito, uma vez que os usuários desse espaço se apropriam de forma constante ao edifício e ao seu entorno. Um cartaz em branco com uma frase tentadora ao público feminino no prédio da Arquitetura seria a receita infalível. Infalível. E talvez previsível. Justamente o que meu pensamento quis evitar em um segundo momento. Dentro de uma universidade pública, abordando quase que somente a um curso, determinado grupo específico de indivíduos, de certa classe social, poderia muito bem filtrar e selecionar as escritas. Após essas constatações, a região central da cidade, em um dos espaços mais antigos e tradicionais de Florianópolis, foi a decisão final. A parede da Casa da Alfandega, da fachada orientada para a Rua Conselheiro Mafra foi a escolhida, uma vez que já estávamos naquele espaço panfletando 4. No alto do mural escrevi a frase: ‘’Mulher, o que você já deixou de fazer por ser mulher?’’. Logo depois da intervenção percebi que talvez a frase pudesse ter sido reformulada, relacionando a questão de gênero com o uso do espaço público. Se fizesse novamente, talvez utilizasse algo semelhante à: ‘’Mulher, que lugares você já deixou de ocupar por ser mulher?’’.

3

Este tópico será melhor abordado mais a frente no parágrafo que disserta sobre a intervenção de Lorena Galery, intitulada ‘’Caminhada de Mulheres’’. 4 Atividade realizada para a intervenção de Alexssandra Fidelis, mencionada anteriormente.


As respostas não atenderam exatamente ao que eu esperava, mas aprendi com a leitura do texto da Érika5 que devemos ter um pensamento livre ao resultado das intervenções. Tomando como princípio esta afirmação, me surpreendi com algumas divergências da ação. Como, por exemplo, diferentemente da intervenção da Alexssandra, quem interagiu com o mural foi exclusivamente o público jovem. Desta maneira, reafirmo o interesse deste público em abordar questões de gênero. No momento em que escrevi ‘’Mulher’’ no cartaz, propositalmente em uma fonte maior e em cor de destaque, questionei-me do sentido da palavra mulher; afinal, há muitas maneiras de ser e se sentir mulher. Deixei os questionamentos de lado e segui com o mural escrito embaixo do braço rumo ao centro da cidade. O segundo grupo que percebeu o cartaz foi um grupo de jovens composto por meninos e meninas com idades aproximadas entre 12 e 15 anos. A pergunta escrita no mural gerou uma discussão entre eles, e de longe, nós mulheres acompanhávamos atentas. Foi então que um dos integrantes, de características físicas masculinas, nos percebeu e perguntou se poderia escrever no mural. E agora, Sofia? Confesso que já tinha pensado na possibilidade de acontecer algo do gênero, mas não sabia exatamente como reagir, uma vez que a ação era voltada ao público feminino. O garoto deve ter percebido a minha expressão de incerteza diante da pergunta inusitada e logo apressou-se em se explicar dizendo que não entendia-se pertencente a gênero específico. Ressalto novamente, um garoto de no máximo 15 anos. A resposta firme e singela que me pegou de surpresa foi, sem espetacularização, o centro da ação. Aceitei sua colocação e ele escreveu algumas frases no cartaz (Imagem 7).

/ Imagem 7 – Parte do mural ao fim da intervenção em uma das paredes da Escadaria do Rosário. A terceira e quarta frase são as colocações do garoto. Foto de Sofia Pundek.

5

SANTOS, Carolina Érika. Insurgências na Soteropolicity: performar para realizar outros sentidos. 2013. Tese (Doutorado) Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.


Devido à tímida interação das pessoas com o mural na parede da Casa da Alfândega, resolvi muda-lo de lugar, fixando-o na parede de umas das edificações que compõem a Escadaria do Rosário, outro espaço enraizado de história e memória de Florianópolis. Localizase a poucos metros da Rua Conselheiro Mafra e também é utilizado como local de passagem de pedestres, porém, caracteriza-se principalmente como um espaço de permanência em meio a cidade. Ali, mais algumas mulheres deixaram sua contribuição e logo já estava na hora de iniciarmos a intervenção da Lorena, marcada para as 21h. Propus-me a voltar à escadaria no sábado a fim de acompanhar o andamento do mural. Sábado, 5 de Maio de 2018, voltei à escadaria por voltas das 14h, com o objetivo de tirar mais uma fotografia do mural e anotar possível frases novas que nele poderiam estar escritas. Assim, quanto maior o número de dizeres que eu pudesse tirar nota, melhor seria o resultado da intervenção para uma posterior análise. Já não existia mais cartaz.

Imagem 8 – Último registro do mural. Escadaria do Rosário, 16h, 4 de maio de 2018. Foto de Sofia Pundek.

Às 21h estávamos em 4 (eu, Alexssandra, Angélica e Lorena), a espera de mais três mulheres que vieram ao nosso encontro para a caminhada, Isabela, Juliana e Luciana; as duas últimas eram nossas colegas de disciplina. O convite era aberto à todas as mulheres de qualquer parte da cidade que gostariam de se juntar a nós. A ação foi divulgada em alguns meios de comunicação informais. Éramos 7 ao todo. O horário e o trecho a ser percorrido foram definidos por Lorena Galery com a ajuda de algumas colegas e do professor da disciplina, que conheciam um pouco mais do centro de Florianópolis. Tinha início do Largo da Alfândega e fazia um percurso, em ordem, pelas localidades: Rua Fernando Machado, Praça XV de Novembro, Rua dos Ilhéus, Rua Fernando Machado, Avenida Hercílio Luz, Rua Emílio Blum, Praça Getúlio Vargas, Rua Visconde de Ouro Preto, Rua Araújo Figueiredo, Rua Arcipreste Paiva, Praça XV de Novembro, Rua Fernando Machado; finalizando o percurso no ponto de início de encontro.


Imagem 9 – Mapa do trajeto percorrido durante a intervenção ‘’Caminhada de Mulheres’’. Fonte: Google Maps, adaptado por Sofia Pundek.

Iniciamos pontualmente às 21h no Largo de Alfândega e já percebemos o quanto aquele espaço tomou outra configuração em função do horário. Havia poucas pessoas na rua, somente de passagem ou entendidos como moradores de rua. Raramente víamos alguma mulher desacompanhada. Seguindo pela Praça XV de Novembro em direção à Catedral Metropolitana era visível os indícios de um fim de sexta-feira. Região quase vazia, acúmulo de lixo, poucas atividades, comércio formal fechado. Nos sentíamos seguras por estar em um grupo. Caminhando, parando e conversando sobre as diferentes impressões da cidade.


Imagem 10 – Acúmulo de lixo em frente à Praça XV de Novembro às 21h do dia 4 de Maio de 2018. Foto de Sofia Pundek.

Desde o Largo da Alfândega até além da Praça XV de Novembro era perceptível que andávamos contra o fluxo natural das pessoas; a maioria andava em direção contrária. Essa relação causava, de certa forma, um estranhamento involuntário de nossos corpos. Éramos mais rígidas e andávamos em um ritmo mais depressa. As ruas estavam quase vazias. Até que chegamos à Avenida Hercílio Luz, uma das principais vias do centro de Florianópolis. Diferentemente da dinâmica das outras regiões do bairro, esta é caracterizada por um entorno de uso misto residencial e comercial. No centro da avenida, há um passeio com calçada e ciclovia, onde alguns comércios apropriam-se do espaço com mesas e cadeiras. A reação das sete foi diferente a partir daquele momento. Eu me senti segura e convidada a participar daquele espaço. Esta avenida dispõe de um bom equipamento de iluminação pública, trazendo segurança aos espaços, e desse modo, a população acaba apropriando-se do lugar. Por ali presenciamos as mais variadas atividades: rodas de conversa, pessoas dançando, fazendo exercícios, etc. Depois de vivenciar a Avenida Hercílio Luz, passamos por um trecho da Rua Visconde de Ouro Preto que merece ser comentado. Localizada em uma porção ainda mais central, esta rua também tem como uso principal o comércio. Seguimos por ela até novamente voltar à Praça XV de Novembro. Ali tivemos uma reação diferente perante ao espaço público: insegurança por estar completamente vazia, sem nenhum local de permanência, com uma escassa iluminação. Os corpos e os passos automaticamente mudaram para um comportamento mais rígido.


Imagem 11 – Trecho da Rua dos Ilhéus, por volta das 22h. Foto de Angélica Camargo.

Terminamos a caminhada um pouco antes do combinado e sentamos nos degraus da escadaria da Catedral. Conversamos por cerca de 30 minutos até cada uma tomar seu rumo. Colocamos em pauta a impressão de cada uma e os diferentes jeitos de ser e sentir mulher na cidade contemporânea. Durante esta caminhada, procurei seguir algumas recomendações de Careri 6, sem voltar atrás, parando e contemplando a paisagem, perdendo tempo para ganhar espaço, entendendo o meu corpo como um objeto de intervenção na cidade. Percebi os diferentes espaços e como eles são apropriados por entre a cidade, de como o meu corpo e meus sentidos se configuram conforme a característica de cada lugar.

‘’Prefiro queimar o mapa Traçar de novo a estrada Ver cores nas cinzas E a vida reinventar.’’ 7

6

‘’Francesco Careri (Roma, 1966) é arquiteto e, desde 2005, professor do departamento de estudos urbanos da Università degli Studi Roma Tre. Foi cofundador, em 1995, do Laboratorio d’Arte Urbana Stalker/Osservatorio Nomade e, desde 2006, é professor do laboratório de projetos e do curso de artes cívicas da faculdade de arquitetura da Università degli Studi Roma Tre, um curso totalmente peripatético em que se caminha interagindo in situ com os fenômenos urbanos emergentes; desde 2011, é diretor do programa de pós-graduação “Artes arquitetura cidades” da mesma universidade.’’ Trecho retirado do endereço eletrônico da Livraria Cultura: https://www.livrariacultura.com.br/. 7

Música de Francisco, el Hombre, 2016. Disponível <https://www.youtube.com/watch?v=lKmYTHgBNoE> Acesso em: 23 de Maio de 2018.

em:


Bibliografia CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017. SANTOS, Carolina Érika. Insurgências na Soteropolicity: performar para realizar outros sentidos. 2013. Tese (Doutorado) Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.





narrativas performativas e subjetividades



com(posiçþes) de rua: um olhar atravÊs da arte na cidade Elaine Cristina Maia Nascimento


O tribunal é um corpo composto de lavadeiras, juízes, oficiais de justiça, meias de seda, sacerdotes. Da mesma forma como “O Castelo” de outro livro de Kafka é um corpo do qual todos já fazem parte. “Essa aldeia é o próprio castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou pernoita no castelo.” Pois “o castelo”, um conjunto de construções pobres e sem brilho, não é outra coisa do que esse corpo construído pelo circuito incessante de aldeões, funcionários, albergues, cerveja, informações desencontradas. “Não há diferença entre o castelo e os camponeses”, diz o professor, pois afinal todos fazem parte do mesmo corpo político. Dessa forma, Kafka nos lembra como compreender o poder é uma questão de compreender seus modos de construção de corpos políticos, seus circuitos de afetos com regimes extensivos de implicação, assim como compreender o modelo de individualização que tais corpos produzem, a forma como ele nos implica. Se quisermos muda-lo, será necessário começar estar disposto a ser individualizado de outra maneira, a forçar a produção de outros circuitos. (SAFATLE, 2016, p. 15)

Ação por: Elaine Nascimento Gabriel Villas B. Camargo Duração da ação - 4 horas 8h30, 16 de Maio de 2018 Centro fundacional de Florianópolis Fotografias por Joice Schenkel


INTRODUÇÃO

dos possíveis.” (SAFATLE, 2016, p. 15), a medida em que a sociedade se abre para outros movimentos de singularização¹, os afetos passam a circular de maneira diferente, reestruturando

O castelo de Kafka citado por Safatle pode ser comparado a própria cidade, seja em

essa malha afetiva e, consequentemente, a malha física. No desenvolvimento racional sobre a

densidade histórica, seja na dinâmica de formação dos circuitos citados. O espaço urbano, além

estruturação do argumento político em torno de proposições lógicas, entender os afetos dentro

do entrelaçamento de dados materiais, de sua arquitetura, assim como de seus poderes esta-

desse sistema, como propõe Safatle, é entender que esse circuito possui uma potência essen-

belecidos (legislação vigente, policiamento, placas de ordenação e demais poderes institucio-

cial dentro da definição de tais argumentos, das formações sociais e formas de existência, e que

nalizados), é composto por uma sobreposição de redes e relações, de pessoas, funcionários,

é necessário analisar a disposição e circulação desses afetos dentro da retórica política, assim

passantes, cerveja e fake news. Aquele que habita a cidade, inclusive o que dorme em suas ruas

como do próprio corpo nesses processos.

e vaga em seus becos, é o castelo, compõe esse corpo político fazendo parte de tais redes. Elas

Essa proposição de reverberação dos circuitos dos afetos, dos movimentos de singulari-

se estabelecem em uma tessitura complexa e não linear, na qual a composição conta com movi-

zação, do desvio, na estruturação da materialidade arquitetônica, é baseada na ideia do deslo-

mentos verticalizados, onde os poderes são instituídos e a história é escrita, e movimentos ho-

camento das práticas arquitetônicas e urbanísticas de um sistema de representação da socieda-

rizontais, onde as relações interpessoais e intersubjetivas são trançadas. E não nos enganemos:

de, para um sistema de composição de mundos possíveis, de expressão, ou produtoras parciais

essas relações últimas, tais como a aldeia que rodeia o castelo, podem parecer mínimas frente

de subjetividades (GUIZZO, 2010, p.1). A questão aqui se coloca em compreender a produção

ao poder simbólico da coroa ou da árvore genealógica real, porém, a potência desse circuito ou

arquitetônica e urbanística como práticas [e não apenas materialidades, e também materia-

dessa rede formada pela aldeia, apresenta relações de poder que definem os ritmos e normas

lidades] que se relacionam em um sistema de coimplicação com a composição dos circuitos

que são instaurados na dinâmica diária do próprio castelo, pois fazem parte da formação de um

dos afetos que definem as estruturações sociais [ao mesmo tempo que são definidos por tais

corpo político urbano. Sendo assim, mudar a composição desses circuitos, já que eles represen-

circuitos, definem esses circuitos]. É a mesma lógica que as autoras Paola Berenstein Jacques e

tam a própria cidade, investigar outras formas de individualização para além daquelas postas

Fabiana Dultra Britto utilizam na constituição do conceito de corpografias: cartografias de cor-

cotidianamente, poderia ser também encontrar outras dinâmicas de cidade.

poralidades que são produzidas em experiências com o espaço urbano, onde não se distinguem

A malha urbana (e entendo que o termo normalmente é utilizado para definição de

objeto cartografado e sua representação, justamente pelo caráter processual e de coimplicação

estruturas físicas da cidade, porém, proponho pensar que essa malha ultrapassa a estruturação

presente nessa composição. (BRITTO; JACQUES, 2012). Retomando o pensamento inicial e com

de vias e circulação, chegando à composição das relações intersubjetivas, estruturando uma

base no que foi exposto até agora, proponho que na medida em que reposicionamos e proble-

malha paralela, que não possui uma cadência lógica, mas que se conecta em diversos pontos

matizamos as formas normais de habitar, de transitar, de planejar e projetar, propomos formas

para outros diversos pontos, espalhando-se unicamente de maneira horizontal pelo solo ur-

diferentes de circulação desses afetos, chegando-se assim a experiências espaciais e projetuais

bano, sem hierarquizações.) é constituída a partir do conjunto de afetos que se desenvolvem

outras.

no solo da cidade, assim como as sociedades se estruturam em torno de tipos específicos de

A ação proposta, no intuito de desestabilizar tais processos de individualização e de

trocas e relações. Safatle (2016) nos traz que essas estruturas precisam de afetos específicos

construção desses circuitos, foi baseada na experiência do desvio como ação perturbadora das

para se estabelecerem enquanto sociedade, e a queda das mesmas significa a circulação de

normas estabelecidas. A noção de desvio, aqui trazida em agenciamento com as Cartografias

outros tipos de afetos, que vão definir como os circuitos serão colocados. Se a malha urbana

Sensíveis² de Santiago Cao (2018), parece remeter ao desamparo de Safatle (2016), que me

aqui proposta é desenvolvida a partir dessa malha entrelaçada, e entendendo que “formas de

retira a possessão como política principal de definição dos afetos, propondo outros atravessa-

vida determinadas se fundamentam em afetos específicos, ou seja, elas precisam de tais afetos

mentos à norma social estabelecida, pois “estar desamparado é deixar-se abrir a um afeto que

para continuar a se repetir, a impor seus modos de ordenamento definido, com isso, o campo

me despossui dos predicados que me identificam. Por isso, afeto que me confronta com uma


impotência que é, na verdade, forma de expressão do desabamento de potências que produ-

DA AÇÃO

zem sempre os mesmos atos, sempre os mesmos agentes.” (SAFATLE, 2016, p. 21). O desvio,

Ação proposta: investigar as possibilidades de relação do corpo com o espaço da cidade,

enquanto potência de conflito, de desacordo com as práticas normais do espaço urbano [de

provocando composições com esse espaço que questionem seu uso normal, ou seja, propondo

dissenso], encontra o desamparo, deixando-me repensar a composição dessas práticas nor-

relações que sugerem outros tipos de experiência com o espaço urbano. São propostas micro

malizadoras, que definem os usos e as espacialidades urbanas. Pensar no desamparo como

ações desviantes, nem tão normal que não seja percebida, nem tão diferente a ponto de se

potência de constituição de um outro corpo político, que redefine os circuitos possíveis, ou seja,

configurar enquanto uma ação violatoria. Com a experiência, queríamos o não saber como

outras composições de afetos, pode nos levar inclusive a repensar a relação entre espacialidade

princípio, não ter certezas de como habitar o espaço, deixando espaço para outras possibilida-

e corpo, entre projeto e cidade. Como seria desamparar a arquitetura³ de suas formas normais

des de interação e habitação.

de pensar e projetar o espaço, em prol da criação de outros mundos possíveis? [pergunta sem resposta que se repete]. Esses são os princípios que guiaram a experimentação, antes em ação e depois em deambulações teóricas. Elas servem de gatilhos dentro da reflexão não apenas do corpo com a cidade, mas do corpo do/a arquitete urbanista com a cidade que ele/a pensa e projeta, a cidade a qual ele/a vislumbra e ante(s)-vê. E é exatamente o que ele não vê que interessa pensar, interessa aqui refletir sobre um devir do desamparo, como tática de composição de modos outros de pensar a arquitetura e o urbanismo.

Observar através de – através de que saberes observamos o espaço da cidade? Qual a rede de afetos que se estabelece nesse espaço? Escolho ressaltar a palavra “através”, escrevendo-a em itálico, pois acho uma relação sugestiva entre as palavras “perspectiva” e “perspicácia” que por sua vez derivam da palavra em latim “perspicere”, a qual está composta pelo prefixo “per” (através) mais “specere” (olhar). Vemos e pensamos desde uma perspectiva, ou seja, através de saberes aprendidos que de maneira perspicaz nos foram ensinados. Cabe nos questionar quais são estes saberes através dos quais estamos vendo e pensando a cidade e as pessoas que a habitam e vivenciam, e como o encontro com os outros e seus outros modos de pensar podem nos ajudar a expandir as nossas possibilidades de viver em sociedade. (CAO, 2018, p.2)


Dentro da proposição trabalhada, é importante destacar três elementos que compõe a ação, fruto do contato com as Cartografias Sensíveis propostas por Santiago Cao (2018): as ações normativas, violatorias e as desviantes. Entendemos que o sistema social que habitamos é composto por normas que definem o que é normal naquela sociedade ou espaço. Tais normas articulam a tessitura social em torno de normas explícitas, de acesso ao entendimento de forma clara, e aquelas implícitas, que necessitam continuar assim para que sejam perpetuadas. Segundo Safatle (2016), esse sistema de normativas são intersubjetivamente partilhas, estando aí seu poder de coesão. Assim, a crítica reside na diferença performativa entre as ações reais e cotidianas, e o que tais normas asseguram ou delimitam. Desse ponto de vista, podemos entender as ações normalizadoras ou normais como aquelas nas quais os corpos atendem ao sistema de normas social partilhado, sendo as ações desviantes e violatorias, críticas performativas desse sistema. A diferença é que, enquanto as ações ditas violatorias extravasam tal crítica ao ponto do conflito direto, que em muitos casos resulta na imposição de visões de mundo, as ações desviantes convidam ao conflito, sendo disparadoras de diálogos entre os corpos normalizados e aqueles em desvio. Ainda no caráter de tecer relações, podemos pensar que as ações normais são asseguradas através de um coreopoliciamento4 que delimita o que deve e o que não deve ser feito naquele espaço, como deve-se circular e não parar. As ações desviantes, por outro lado, podem ser rebatidas em coreopolíticas , ações que questionam as normas impostas e configuram uma coreografia do urbano experienciado pelo corpo político, de uma “distribuição e reinvenção de corpo, de afetos, de sentido. É que toda coreopolítica revela um entrelaçamento profundo entre movimento, corpo e lugar” (LEPECKI, 2012, p.55). Assim, propomos uma experiência em desamparo. Não tínhamos certeza de como fazer, e não queríamos ter. Saímos apenas com a ideia do desvio e de habitar de outra forma os espaços. Isso nos levou a proposições obvias, inusitadas, à diálogos estranhos. Mas o importante era não ter certeza. Não ter a convicção de como usar, como pensar, para assim, talvez em um momento seguinte, pudéssemos não ter certeza de como projetar, e aí, “como eu não sei o que posso, também não sei o que não posso”. (CAO, 2018). Aqueles que presenciaram a ação, por não saberem como classificar-la, teriam a chance de questionar-se sobre o que estaria acontecendo. No nosso pensamento, se tudo desse “certo”, talvez elas descobrissem que estávamos questionando as relações de troca entre o corpo e do espaço da cidade. É claro que não daria “certo”, e se desse certo alguma coisa estaria errada, a ação é apenas um “start” de um pensamento que queremos ativar no outro, e isso não temos controle, como não temos controle do que aquela outra pessoa pode ativar em nós (ou melhor, o que pode não ativar. Para que nada aconteça, tem que ter acontecido muita coisa). GABRIEL VILLAS B. CAMARGO, 2018.



REVERBERAÇÕES

Proponho que as urbgrafias se configurem enquanto cartografias afetivas do espaço urbano, com o intuito da sensibilização do corpo do/a arquitete urbanista aos afetos que com-

Nesse ponto, proponho uma reflexão sobre o espaço enquanto articulação do tempo e

põe esse espaço. Através das cartografias sensíveis, o/a arquitete urbanista se coloca enquanto

do corpo, rebatido em materialidade | suporte de práticas – práticas que influenciam em sua

cartografo/a que a partir desse primeiro momento de experiência do espaço e de seus afetos,

materialidade. Ao mesmo tempo em que a articulação entre tempo e corpo significa o próprio

irá propor uma cartografia do seu próprio corpo no espaço, através das composições artísticas.

movimento que compõe o espaço, pois, ele pode ser definido pela sua materialidade, mas

A ideia de composições surge como alternativa ao conceito de intervenção: não se propõe

ele se realiza a partir das práticas executadas nele. Nesse sentido, podemos inserir a ideia de

intervir de forma incisiva no espaço, pois as ações aqui propostas são micro ações desviantes.

coimplicação, já que o movimento compõe o espaço e sua materialidade compõe o movimen-

Propõe-se compor com esse espaço a partir da experiência subjetiva do corpo, para então, en-

to. O espaço arquitetônico-urbano acontece a partir do momento em que a ação e os afetos

tender e identificar suas pré-existências, não apenas por saberes pré-estabelecidos ou pré-con-

são construídos, da mesma forma em que, para a construção dessas ações e afetos, o suporte

cebidos de maneira disciplinar, mas também através da experiência sensorial do espaço. Essa

material arquitetônico-urbano é necessário, aparecendo como produtor de subjetividades. Po-

experiência sensorial vem a partir da ideia de que o corpo sente e experiencia como um todo.

rém, ele não aparece estático, ele é moldado a partir do momento em que essa teia de afetos

A proposição é de não separar os sentidos, ao invés de apreender de forma particionada esse

é construída, o que pode ou não questionar os poderes envolvidos na construção dos espaços,

espaço, possamos através do corpo sentir e compreender os movimentos e afetos que compõe

questionar suas coreopolícias a partir da proposição de coreopolíticas.

o espaço urbano. A partir do momento em que a/o arquitete urbanista se propõe a experienciar tais car-

Como no exemplo do banco, espaço e sujeito emergem da relação de forças que a compõem. Seguindo esse pensamento é possível dizer que os espaços construídos – produzidos pela arquitetura e pelo urbanismo - não estão fechados em um sentido ou em uma forma única. Eles emergem nas relações de forças que os compõem ao mesmo tempo em que (por serem um arranjo de força que sustentam uma forma) acabam por produzir - contíguo a outras forças – os modos de viver. Isto é, os espaços arquiteturais são produtores parciais de subjetividade e por isso não são neutros; eles participam, a cada instante, do jogo casual das relações de forças que faz emergir uma forma carregada de algum sentido. (GUIZZO, 2010, p.5)

tografias no intuito de apreender o espaço através de saberes construídos pela própria cartografia, se coloca em questão o eu-político desse ser, onde olhar a cidade através da composição artística nos leva à política dos afetos em construção no espaço urbano, assim como às micropolíticas5 que constituem os conflitos desse espaço. Os saberes construídos projetados na prática do/a arquitete urbanista, a forma “normal” de habitar e compor os espaços, são postos à dúvida na proposição de uma prática desviante da ação de projetar.

como dos afetos que permeiam esse espaço, utilizando as ações desviantes como forma de

Saberes que procurarão d(en)ominar tudo aquilo que possa transbordar do conhecido, pois ao saber, saberemos o que podemos fazer e o que não. Porém, ao não saber, não só não saberemos o que podemos, senão também não saberemos o que não podemos fazer, podendo por isso acionar de uma maneira diferente, quiçá desviante. Nesse sentido, iremos propor que há uma potência em poder-não saber unicamente aquilo que cotidianamente (se) nos (in)forma nos territórios onde nos relacionamos com outras pessoas. E por poder-não torná-lo familiar, poderemos-sim mantê-lo dentro do campo do (ainda) não sabido, do múltiplo, do possível outro, e graças a isso, expandir-nos nos possíveis outros dos outros. Potência por demais arriscada para um con-texto normalizador que, a modo de um espelho, tentará refletir seus saberes sobre os corpos e as práticas aí realizadas. Que procurará d(en)ominar toda situação desconhecida, forçando-a a se encaixar dentro de uma forma conhecida, com a finalidade de poder explicá-la, controlá-la, fechando dessa maneira o círculo que sustenta

intervir e realizar tais cartografias.

a forma de um pensamento aí hegemônico. (CAO, 2018, p.2)

A partir disso, trago o questionamento: porque isolar na materialidade construtiva algo que depende dos afetos que ali são tecidos e gerados para sua materialização? Ao mesmo tempo, trago a proposição: no intuito de pensar em outras formas de circulação desses afetos, proponho pensar e produzir o espaço arquitetônico-urbanístico através da composição artística. E aqui, proponho as urbgrafias. Urbgrafias: cartografias de ações e afetos no espaço urbano realizados através da arte. O/A arquitete-urbanista enquanto cartografo/a do seu próprio corpo no espaço urbano, assim


A proposição de desamparo aqui aparece justamente na possibilidade de não projetar

posições [não desviantes, pois aqui entendo que o corpo é que possuí a potência disruptiva de

nos territórios e nas práticas desenvolvidas nesses territórios, saberes já constituídos, mas per-

propor o desvio] pautadas na expressão e não na representação. A autora Izana Guizzo nos traz

mitir-se poder-não saber para, a partir da experiência, poder-sim entedê-lo como desconheci-

essa pista quando pensa no espaço e no habitar enquanto forma de expressão e não de repre-

do, ampliando assim as possibilidades de abordagem, de construção de possíveis, de formas de

sentação, e na medida em que se caracteriza como expressão do corpo no espaço, se abre para

propor e projetar o espaço, assim como de pensar o próprio campo disciplinar.

possibilidades diversas do ato de expressar, descentralizando de uma forma única de habitar [já

Portanto, entender esse espaço construído pela ação de arquitetes-urbanistas pode ser compreender sua potência na produção parcial de subjetividades (GUIZZO, 2010) assim como

que a expressão do corpo no espaço é diversa, depende do corpo e do chão no qual esse corpo está], propondo formas diversa e mundos possíveis.

sua mutabilidade enquanto objeto inacabado, que vai ser construído a partir dos afetos edifica-

Com base nisso, experiências como a proposta aqui colocam em evidência formas de

dos através da experiência do corpo nele. Assim, se torna necessário compreender não apenas

expressão e questionamentos, estando a arte para arquitetura como potência disruptora e de

sua estruturação física e suas possibilidades estruturais, mas sua potência como coadjuvante

dissenso, como possibilidade de desamparar as certezas racionalizadas da prática arquitetônica

na formação da rede de afetos, estando assim tal sujeito implicado dentro da política [ou mi-

para incluir os afetos como potência de criação de um corpo político, colocando em risco o lu-

cropolíticas] do espaço, além da sua potência em articular tempo e corpo. Seria entender os

gar ético do/a arquitete-urbanista na construção do espaço ao entendê-lo como articulação de

acidentes que compõe o solo urbano, ou seja, atentar tanto para as relações que são estabeleci-

um corpo e um tempo, como composição de territórios e resultante expressivo de circuitos dos

das entre corpo e chão, que compõem essas políticas, seus processos de criação de territórios e

afetos, de práticas normais e desviantes, de micropolíticas. Sair da representação de um status

desterritorializações, quanto entender que esse chão carrega consigo uma formação histórica,

de sociedade para a composição da mesma enquanto prática processual, permite deslocar os

e que, portanto, diferentes chãos terão diferentes danças (LEPECKI, 2012), diferentes relações

saberes com os quais atuamos e observamos esse espaço, possibilitando ver através de saberes

e constituições de afetos. E aqui o território entra como elemento definidor de tais circuitos,

outros, construídos a partir do questionamento do que é normalmente instituído como prática

onde ele se caracteriza como expressão desses afetos, pois “o território é extensão do corpo,

e o que pode ser praticado. É traçar as linhas de fuga necessárias para desterritorializar, assumir

é expressão do corpo, é contorno do corpo, é corpo. É como se fosse um corpo estendido no

o corpo enquanto potência criadora e o espaço urbano como espaço de dissenso, sem perspec-

espaço, criando mais camadas de composição, de proteção, seria um corpo que por sua expres-

tivas higienistas que tentem homogeneizar esse espaço em prol de poderes institucionalizados

são desabrocha no espaço.” (GUIZZO, 2010, p.8).

que, como já é sabido, tendem a priorizar classes específicas em prol de outras, excluindo essas

Porém, no exercício constante de duvidar, questiono se observar e propor o espaço a partir do corpo e de sua expressão no espaço, de suas práticas desviantes, de seu processo de formação de território e expressão, de seus movimentos de singularização, de suas micropolíticas e coreopolíticas, seria suficiente para questionar o poder hegemônico que organiza os espaços da cidade. Se pensarmos que o espaço é um elemento opressor, na medida em que organiza as práticas em torno de uma normalidade, como essa experiência poderia ser rebatida de fato na prática arquitetônica-urbanística fugindo da ideia de opressão? E o que, além de opressor, esse espaço pode ser? Se ele participa de uma construção parcial de subjetividades, se ele possui uma relação de coimplicação com o corpo, como, além de organizador de práticas, ele pode ser proposto? Se existe um movimento não acabado em sua constituição, se ele só se realiza a partir das práticas, existe algo de inacabado que pode servir de gancho para pro-

do direito de habitar e fazer cidade. É pisar na grama e entrar em casa pela caixa d’água.


Notas

falha, que problematizam o corpo enquanto potência política nesse processo de percepção de forças e poderes que compõe tal território, podem ser chamadas de coreopolíticas: “coreopo-

1. Segundo Deleuze e Rolnik (1996), em oposição aos movimentos de subjetivação de massa,

lítica é a revelação teórica e prática do espaço consensual e liso de circulação como máxima

que fazem parte de um discurso hegemônico dentro dessa produção, podemos opor movimen-

fantasia policial, pois não há chão sem acidentes, rachaduras, cicatrizes de historicidade. É na

tos de singularização, ou seja, movimentos que vão de encontro às subjetivações guiadas por

rachadura e no seu vazio plenamente potente, é no acidente que todo chão sempre já é, que o

modelos e políticas homogeneizadoras das experiências. Podemos dizer que o desvio como

sujeito político surge porque nele escolhe o tropeço, e, no desejar do tropeço, ele vê o delírio

aparece na proposição das cartografias sensíveis pode ser entendido como um movimento de

policial da circulação cega e sem fim ser sabotado.” (LEPECKI, 2012, p.56). Em oposição a esses

singularização.

movimentos, como representação daquilo que regula e controla a normalidade no espaço, te-

2. As Cartografias Sensíveis são um método de cartografia coletiva do espaço urbano que se

mos uma coreopolícia, responsável por garantir que as regras sociais de ocupação do espaço

vale de experiências corporais e sensíveis nesse espaço para a construção in process dessa

sejam cumpridas. A teoria de Lepecki está intimamente relacionada com a dança e é aplicada

cartografia: é composta por afirmações móveis que vão se modificando a cada contato/expe-

aqui como possibilidade de aproximar dança e arquitetura, como práticas correlatas na medida

riência com o espaço a ser cartografado. Se vale do entendimento do espaço público enquanto

em que teorizam e trabalham com elementos similares: o corpo, o espaço e o próprio tempo.

espaço de expressão, seja de práticas normalizadoras, ou seja, práticas que seguem as normas

Assim, proponho entender o corpo como um corpo que dança o espaço, sendo essa dança ca-

sociais estabelecidas (que não precisam necessariamente estarem de acordo com leis ou regu-

racterizada pelo próprio movimento, interligando assim a arte como saber através do qual pro-

lamentações), seja de práticas desviantes, práticas que fogem à norma mas não propriamente a

ponho observar o espaço, e a dança como possibilidade de envolver o corpo em movimento, no

violam. Essa violação pode ser caracterizada ainda como práticas violatorias, ações que causam

seu tropeço que revela as rachaduras desse chão, ou seja, suas micropolíticas.

ruídos e embates frente as práticas ditas normais. Ao contrário dessa, as práticas desviantes causam um ruído que não leva à violação das normas, “se parece tanto quanto, mas sem ser”,

5. Aqui, as micropolíticas são entendidas como políticas dos afetos, das relações estabelecidas

causando um conflito que não gera o embate direto, mas um embate reflexivo, ou um conflito

entre os corpos humanos e não humanos, e dessa relação na construção dos territórios, onde

que pode levar à um diálogo.

““Micro” é a política do plano gerado na primeira linha: cartografia. (...) Há apenas intensida-

3. Ao mesmo tempo, podemos pensar que o fazer arquitetônico e urbanístico já se encontra

des, com sua longitude e latitude; lista de afetos não subjetivados, determinados pelos agen-

no desamparo proposto por Safatle desde o pós-modernismo. A constituição de uma crítica ao

ciamentos que o corpo faz, e, portanto, inseparáveis de sua relação com o mundo.” (ROLNIK,

modernismo por muito tempo se configurou (e ainda se configura) como a possibilidade esté-

2014, p.60).

tica de pensar e fazer arquitetura, colocando-se as discussões em estado de superficialidade por não adentrar em outras possibilidades de proposição, de questionar o próprio fazer. Talvez, o desamparo aqui esteja em abandonar a crítica, abandonar a normatividade de uma produção arquitetônica para se abrir à possibilidade de outras formas de criação e relação. Por mais pessimista que estar desamparado pareça, acredito que o momento do desamparo é apenas uma parte no processo de constituição dessas outras formas de se pensar a prática, sendo a insistência nele, talvez, uma forma de não sair do lugar, de recair na crítica da crítica e andar em círculos. 4. Segundo Lepecki (2012) os movimentos que revelam as rachaduras de um território, sua


BIBLIOGRAFIA

Artigos e Livros

BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein . Corpo e Cidade coimplicações em processo. In: Revista UFMG, Belo Horizonte, v.19, n. 1 e 2, 2012. CAO, Santiago. Cartografia Sensíveis em espaços públicos. Disponível em: < http://santiagocao. metzonimia.com/cartografias-sensiveis>, 2018. LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. In: Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, Florianópolis, 2012. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/24920, acesso em: 26 de setembro de 2017. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografia do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. GUIZZO, Iazana. A urgência ética e política de incorporar às práticas urbanísticas a idade expressiva. Disponível em: < http://www.3margem.com.br/conteudo/2017/2/14/a-urgncia-tica-e-poltica-de-incorporar-s-prticas-urbansticas-a-cidade-expressiva>, 2010. SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

Experiências Oficina: Cartografias Sensíveis com Santiago Cao, ocorrida entre os dias 07 e 12 de Maio de 2018, na Universidade Federal de Santa Catarina.

Sites Razão Inadequada: https://razaoinadequada.com/2016/04/18/afetos-biopoliticos-desamparo/

Um texto sobre aquela ação dos manequins Nessa intervenção aconteceu algo que não aparece na foto. Na nossa frente, nesse momento havia um segurança. Ele olhava pra gente com uma cara engraçada, mas ao mesmo tempo ameaçadora, ele estava achando engraçado a gente daquele jeito. Ele veio se aproximando, ele ainda assim era um policial se aproximando. Não aguentando desmanchamos a ação, invitavelmente começamos as nos mover na direção dele, ele olhou pra gente com um sorriso meio disfarçado “Bom dia, senhores”. CABRUM ELE TIROU O MEU CHÃO SOCORROOOO EU NÃO FUI PRESA, ELE FOI DESARMADO E EU TAMBÉM UAAAAAAU GABRIEL VILLAS B. CAMARGO, 2018.




IN(TER)VENÇÃO URBANA: UM EXPERIMENTO SOBRE O CHÃO DE GIZ

Angela Marschall* Arquiteta e Urbanista E-mail: angelamarschall@gmail.com

* Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina em 2015. Trabalho desenvolvido na disciplina de Tópicos Especiais da Arquitetura e História da Cidade: In(ter)venções urbanas: a arte e a arquitetura como construtoras de dissensos. Professor Rodrigo Gonçalves; departamento de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal de Santa Catarina; primeiro trimestre de 2018.


“Eu desço dessa solidão Espalho coisas Sobre um Chão de Giz Há meros devaneios tolos A me torturar [...].” Zé Ramalho, 1978

Imagem 1 – In(ter)venção urbana: Chão de Giz

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2018


Localizo-me na porção mais antiga do centro antigo de Florianópolis, também chamada de bairro da Pedreira, mais especificamente na Rua João Pinto. Apesar de ser um calçadão, existe um fluxo relativamente grande de carros e de caminhões de carga e descarga pela rua, principalmente no período da manhã, onde é feito o abastecimento de mercadorias nos comércios da rua. Ainda assim, ela é uma importante ligação entre a porção oeste da Praça XV de Novembro, onde está concentrada a maior parcela do comércio de rua e escritórios da cidade e o Terminal de Integração do Centro (TICEN), de onde saem praticamente todas as conexões entre os outros bairros da capital e entre outros municípios da Grande Florianópolis, e a porção leste da Avenida Hercílio Luz. Nesta última, concentram-se comércios e serviços bem diversificados e com grande fluxo de pessoas (como o setor de atendimento ao público da prefeitura municipal, padarias, restaurantes, clínicas médicas, lojas de móveis, decoração, vestuário, etc), além de prédios públicos (Palácio Barriga Verde, Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Fórum da Comarca de Florianópolis, Assembleia Legislativa do Estado, Tribunal de Contas de Santa Catarina), unidades de saúde (Imperial Hospital de Caridade, Hospital de Guarnição de Florianópolis, Hospital Baía Sul, Centro de Saúde Prainha) e educação (Instituto Estadual de Educação, SESC Prainha, escolas técnicas e de cursos diversificados), além de moradias das mais variadas classes sociais, desde casas e apartamentos às margens das grandes avenidas ao pé do morro, até as edificações de autoconstrução nas porções mais elevadas do Morro da Cruz. Esse fluxo de pessoas entre uma porção e outra do centro se dá basicamente pela João Pinto, já que nela o conflito entre veículos e pedestres é menor que nas outras

ruas

que atravessam a Pedreira. Analisando

agora a João Pinto

exclusivamente, temos uma variedade de comércios e serviços interessante, e que dá vida a ela durante todo o dia e parte da noite. Edifícios institucionais (parte da Assembleia Legislativa do Estado, Companhia de Gás de Santa Catarina, Secretaria de Estado de Educação), restaurantes de comida caseira e de comida árabe, café, lanchonetes, bares, salões de beleza, barbearia, lojas de roupas, de artigos para casa, de produtos peruanos, brechós, sebos, mercado, farmácia, hortifrúti, curso prévestibular, faculdade, escola de ensino médio, escola de atores, escola de kung-fu, academias, escritórios de arquitetura, estúdio de tatuagem, moradia... Esta diversidade de usos faz com que a rua por si só já seja interessante e tenha


frequentadores dos mais variados tipos. Juntando a ela o fluxo intermitente de pessoas, bicicletas e outros veículos, temos, ao meu ver, um cenário perfeito para uma intervenção. Assim, não poderia escolher outra rua para intervir que não ela. Diariamente eu vivo a João Pinto, já que o ateliê de arquitetura onde trabalho fica nela, e a cada dia eu descubro alguma coisa sobre ela, ou sobre a cidade, ou sobre a vida. Todo dia alguém grita alguma coisa, ou briga com alguém, ou protesta contra ou a favor de algo, ou solta uma gargalhada, ou cantarola alguma música, ou conversa despretensiosa e cotidianamente com alguém. Alguns andam, alguns correm, alguns vão de bicicleta. Crianças, adultos, idosos. Não tem público definido. Engravatados , moradores de rua, sírios, libaneses, peruanos, haitianos, brasileiros... Isso é o que mais me encanta em uma rua, ou em uma cidade: a diversidade, e como os corpos reagem a ela. Na minha concepção, tudo que não é rua, considerando que ela é todo e qualquer espaço público aberto, basicamente é espaço privado. Mesmo os estabelecimentos comerciais, museus, escolas, restaurantes, igrejas, dentre tantos outros exemplos, que se dizem “aberto ao público”, são privados, no sentido que privam certos grupos, ou faixas de grupos de frequentarem esses espaços, mesmo sem colocar barreiras físicas para isso. Essas barreiras podem ser financeiras, ou de idade, ou de gênero, ou de qualquer outra peculiaridade. Sempre há algum públi co alvo nos espaços privados e inevitavelmente um ou mais grupos vão ficar excluídos. Não temos, então, nenhum espaço privado totalmente acessível ou, como alguns autores colocam, democrático. E a rua? Será que podemos dizer que ela é acessível e democrática? Bem, talvez não todas, e nem em todos os momentos em um determinado intervalo de tempo. Mas certamente é na rua que, inevitavelmente, os maiores conflitos e afetos, bons ou ruins, se dão. É natural e instintivo que nos aproximemos de pessoas que mais se parecem com nosso jeito ou com nossos costumes, porém isso gera uma série de desconfortos quando entramos em contato com grupos diferentes dos nossos. É na rua que somos obrigados a enxergar e conviver com os grupos que não fazem parte do nosso círculo mais próximo. É onde surgem as diferenças de raças, crenças, gostos, costumes, tradições, times, origens, valores, gestos, idades,


gêneros, sexualidades, classes sociais, políticas, necessidades especiais, dentre tantas outras infinitas diversidades. Dentro dessas quebras de barreiras, como nosso corpo se comporta? O que ele revela dos nossos medos, incertezas, seguranças ou certezas? Como nossa mente, treinada ou condicionada à determinados costumes, valores e vivências desde nosso nascimento, afeta a reação do nosso corpo diante dos acontecimentos da urbe? Muitas de nossas reações nos espaços públicos, se não todas elas, são resultados de policiamentos que sofremos, e isso se mostra também na nossa reação corporal. Esse policiamento pode vir de diversas pessoas ou instituições, mas, aqui, trataremos especificamente da polícia. Grifo uma parte do texto “Coreopolítica e coreopolícia”, de André Lepecki (2012, p.54): [...] para Rancière, a polícia não precisa sequer chamar o sujeito. Ela é aquele elemento que já está dado na organização da pólis. A polícia é um tangível, uma construção, que podemos equiparar à arquitetura, pois ela é principalmente o agente que garante a reprodução e a permanência de modos predeterminados de circulação individual e coletiva. A polícia, em outras palavras, coreografa. [...] o que importa é

uma

fusão

particular

de

coreografia

e

policiamento

coreopoliciamento.

A coreopolícia é, então, algo que já está marcado em nosso ser, e reflete-se nas reações do nosso corpo principalmente nos espaços públicos, mesmo sem termos avistado qualquer policial por ali. Fazemos o coreopoliciamento irracionalmente, e não nos damos conta de que quebrar algumas barreiras pode ser mais difícil que pensamos e, muitas vezes, não conseguimos sequer identifica-las. O que mais me atrai nas intervenções urbanas é a fuga do óbvio, do convencional, do cotidiano. Passamos pelos mesmos lugares todos os dias e sabemos já o que nos espera pelo caminho. Mas, quando esbarramos em uma intervenção, por mais simples que ela seja, as percepções mudam. Somos surpreendidos com algo novo e inesperado, que vai nos afetar de alguma maneira. A ideia da intervenção na João Pinto, para mim, era ser a mais simples possível, desde a sua intenção de reação das pessoas, e que elas se sentissem à vontade para quebrar barreiras, até a execução e os materiais utilizados. A caixa da rua varia


bastante ao longo de sua extensão, com algumas áreas mais estreitas e outras mais alargadas. A pavimentação de lajotas mantém-se constante em seu eixo, e os passeios à sua margem alternam entre concreto, pedra portuguesa, blocos intertravados, pisos guias e cerâmicos. No ponto em que escolhi para intervir, a área de lajotas é mais larga, e nas laterais da caixa da via correm duas calçadas estreitas. Outro ponto de partida para minha intervenção era que ela fosse desaparecendo conforme as pessoas interagissem com ela, ou com o passar do dia, fazendo com que no final dele a rua voltasse à sua configuração antes da intervenção. Decidi que todo o material que eu utilizaria seria apenas giz escolar, por ser fácil de manusear e apagar, além de ser um material barato e que daria um efeito bonito no contraste com os tons acinzentados do chão. A questão do custo e da estética do material é essencial para mim, porque é preciso impactar esteticamente os indivíduos para criar-lhes afetos, e não precisamos investir altas quantias para conseguirmos efeitos razoáveis. O horário que fixei para iniciar a pintura do chão foi entre 9 e 10 horas da manhã. Este horário é o menos movimentado da rua, e seria mais fácil (e até seguro) agir. Os comércios da João Pinto começam a abrir suas portas neste horário, e aos poucos vão recebendo mercadorias, fornecedores, alguns primeiros clientes do dia, e vão se preparando para o maior fluxo, que se inicia próximo ao meio-dia e se mantem constante e mais intenso até fim do dia e início da noite. Esses foram os únicos pontos determinados antes da intervenção: o local, o material e o horário de início. A intervenção em si seria um produto da ação do meu corpo em concordância com os desejos da minha mente na hora que estivesse com o giz na mão. Assim, com menos de duas caixas deles, comecei a pintar as lajotas da João Pinto, completando uma linha contínua entre uma guia e outra. Depois engrossei essa linha para 3 fileiras de lajotas, criando uma barreira um pouco mais perceptível. Gostei do efeito de barreira (afinal, instiga-me que as quebrem), e decidi que deixaria um dos lados da rua com ela, e continuaria os experimentos de pintura mais livres em direção à Praça XV. Continuei preenchendo algumas lajotas com giz e deixando outras como sempre foram, aleatoriamente, e fui percorrendo linhas entre uma guia e outra, indo e voltando, parando e levantando-me para ver o todo, depois me agachando ao chão novamente


e aproximando a escala da pintura. Neste processo de ir e vir, acabei fazendo um mosaico, como se aquela barreira grossa do início se dissolvesse em direção à Praça XV, até sumir. Durante o processo de pintura, adotei algumas posições diferentes em relação a quem passava, justamente para analisar como se comportariam. Apesar de diferentes reações, o que se manteve quase que unânime foi o desvio para as calçadas laterais. Quando os passantes percebiam a pintura, seguiam para as bordas da rua, e as poucas que passavam por ela esforçavam-se para não pisar no giz. Algumas pessoas param e me perguntam o que era aquilo, ou qual o evento que iria acontecer ali, e eu respondo com o motivo que acho menos interessante: que se trata de um trabalho para uma disciplina que estou cursando. Elas reagem positivamente, como se agora conseguissem justificar e achar normal e interessante uma ação que até então consideravam talvez um tanto absurda. Uma senhora pergunta se pode pisar no giz e eu, enfaticamente feliz, digo que sim, mas ela desvia para a calçada ao lado justificando que não queria estragar a obra de arte (as pessoas têm mesmo noções diferentes do que é arte). Um motorista que vinha dirigindo seu carro sem perceber o que estava acontecendo, diminui a velocidade e para quando chega na pintura. Finjo que não vejo que seu carro está ali parado por alguns instantes e continuo pintando algumas lajotas (mais umas oito ou dez delas), e ele espera calmamente. Quando me viro, ele pergunta se pode passar e eu digo que sim, então ele passa vagarosamente, pedindo desculpas (talvez por atropelar a minha “arte”) e agradecendo (por alguma coisa que não sei o que é). Essa ação se repetiu com mais dois ou três veículos que passaram por ali. Um caminhão de uma distribuidora de bebidas entra na rua de e estaciona exatamente em cima da faixa de lajotas que estou pintando. O motorista sai do caminhão já perguntando se vai me atrapalhar e justificando que não vai demorar, e eu digo a ele que não se preocupe. Continuo a pintura e ele pergunta se é algum trabalho de design ou arquitetura, e, quando confirmo, fica feliz em ter acertado o palpite. Depois de algum tempo, ele decide dar a ré para liberar meu espaço de intervenção, num ar de gentileza. Grande parte do giz já sai do chão e vai junto com os pneus do caminhão, que ficam estampados com pequenos quadrados brancos. Quando ele toma a direção para finalmente deixar a rua, me chama aos gritos, acena feliz de longe e me deseja um bom trabalho.


Enquanto estou abaixado próxima ao chão, alguém passa por trás de mim e diminui o ritmo, observando a pintura, e solta um “bela obra de arte, moça!”. Quando me viro, surpreendo-me ao ver que a voz viera de um homem com a farda do exército. Uma mulher me pergunta se o desenho que estou fazendo vai ter algum significado, e fica desapontada quando digo que não. Assumi que “ter algum significado”, para ela, era algum desenho que representasse uma imagem conhecida, e não uma pi ntura abstrata ou um padrão aleatório. Outras duas mulheres param para fumar em baixo de uma marquise e perguntam, de longe, o que era aquilo. Falei que eu tinha acordado com vontade de pintar a rua, e estava ali apenas matando minha vontade. Essa foi certamente a melhor reação do dia, pois além dos quase 10 segundos que elas ficaram boquiabertas com a resposta, pude ouvir logo depois elas cochichando o fato de existir tanta gente estranha e louca no mundo. Todas essas intervenções à minha intervenção (e muitas outras não descritas aqui) ocorreram em cerca de 90 minutos, que foi o tempo que fiquei colorindo lajotas. Depois disso, saí da rua e me posicionei na sacada do pavimento superior do ateliê que trabalho, onde tenho vista privilegiada da rua e de toda a área da intervenção. Peguei um café e fiquei observando o movimento das pessoas. Normalmente elas utilizam tanto as calçadas laterais quanto a via para atravessar a Pedreira, como um calçadão, efetivamente. Com a intervenção, pude perceber que as pessoas que notavam a pintura tinham cuidado para não pisar nela e desviavam seu caminho para as calçada. Quem continuava passando pela rua não parecia se abalar, continuava seu caminhar normalmente, pelo menos enquanto eu estava observando e filmando seu comportamento. Os veículos passavam também sem nenhuma preocupação, fazendo com que a parte onde se dá o fluxo tivesse sua pintura apagada rapidamente. E assim foi o movimento por todo o dia. O que me chamou atenção foi a diferença entre ter alguém fazendo a intervenção e só existir a intervenção. O respeito das pessoas com o trabalho alheio, mesmo que sem entender ou não achando uma coisa boa ou útil para a rua, a curiosidade sobre o que está sendo feito, sobre o objetivo de se estar intervindo daquela maneira e naquele espaço eram evidentes enquanto eu estava lá presente. Depois que eu saí de cena, os carros não mais diminuíam sua velocidade ao passar pelo giz, as pessoas não mais olhavam para o chão, ou paravam para observá-lo. Isso, para mim, e nesse caso, foi a prova que a intervenção é o processo, e não apenas o resultado final.


Enquanto eu estava pintando e orientando as pessoas, elas procuravam entender o que era aquilo, o que estava acontecendo. A marca que o resultado final deixou nas pessoas não foi tão evidente quanto a marca que o processo deixou. Talvez por vermos tantas marcas todos os dias em nossa cidade, e especialmente no centro, estejamos anestesiados e não nos abalemos mais com pinturas aleatórias pelas ruas. Mas, quando vemos alguém na ação, efetivamente com a mão na massa, ainda nos instigamos em saber o que está sendo feito, porque está sendo feito, quais os objetivos que estamos buscando com aquelas marcas. Talvez uma das maiores reclamações que nós arquitetos e urbanistas fazemos do mundo atual seja a falta de tempo, ou a falta de interesse e de contato pessoal. Acusamos esses fatores de terem esvaziado as ruas, parques e praças. Nosso medo de enfrentar o outro e suas diferenças tornou-se maior com o aumento da população e de problemas generalizados, como a criminalidade por exemplo, e mais fácil de ser contornado com o aumento da tecnologia e das relações virtuais, e com o surgimento, principalmente, de condomínios fechados. Trocamos a vida nas ruas e em comunidade por aldeias muradas onde podemos resolver nossas necessidades através de um computador com acesso à internet.

Tiramos as funções e

características da rua como espaço de convivência e trocas e a transformamos apenas em passagem, intensificando justamente os problemas dos quais fugimos aos nos fechar na falsa segurança dos muros. Como podemos então, como urbanistas e arquitetos, reconstruir essa relação de pertencimento e necessidade do espaço público, atualmente fragilizada, e trazer novamente vida às ruas? Sabemos já que o desenho urbano, isoladamente, não é capaz de o fazer. Talvez a resposta esteja na colocação do nosso corpo no espaço, de suas reações, seu comportamento, os sinais que ele dá. Parece-me que só assim conseguiremos aumentar o contato interpessoal, que, a partir da análise da intervenção que fiz, mostrou-se essencial para retomar a relação de um indivíduo com o outro e dele a rua. Penso que não andamos tão carentes de tempo quanto gostamos de falar. Hoje mesmo, após o almoço, sentei-me na sacada do ateliê para me esquentar ao sol e apreciar o movimento da João Pinto. Enquanto aproveitava minha ociosidade, conversava por mensagem com uma amiga e lhe falava que estava sem tempo de encontrá-la. O que nos falta são os grandes tempos. Mas para vivermos a rua não


precisamos de grandes tempos. Bastam dois ou três minutos para sentarmos no banco da praça e tomarmos um café, ou interrompermos nosso caminho em alguns segundos para perguntarmos o que significa aquela pintura de giz no chão. Assim, logicamente o desenho urbano e as arquiteturas dão aporte e são essenciais para o funcionamento dos espaços públicos, mas é ainda mais importante que se tenha vida neles. E essa “vida” é feita de corpos. Corpos passando, corpos parando, corpos intervindo, corpos interagindo. Gosto de pensar nesses movimentos dos corpos como o fazia André Lepecki: como danças de uma coreografia. Assim, as arquiteturas montam o cenário para os dançarinos ou atores encenarem suas coreografias nesse grande palco que é o chão, a rua, o espaço público ou a urbe. É a diversidade desses elementos que tornam as danças diferentes e, consequentemente, interessantes. É importante lembrar que, como disse Lepecki: “diferentes chãos sustentam diferentes danças transformando-as, mas também se transformando no processo” (Lepecki, 2012, p. 47). Logo, nenhuma dança será igual à outra, mesmo que ensaiada, e o cenário e o palco mudam a cada instante. Quem sabe seja esta a contribuição que os urbanistas e arquitetos possam dar para a retomada das ruas: projetar cenários e palcos condizentes com as danças que já ocorrem nos espaços, e dar suporte para outras tantas que podem vir a acontecer. Ou, voltando à música de Zé Ramalho, deixar descerem da solidão e devanear por nossas ruas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS RAMALHO,

Zé.

Chão

de

giz.

Disponível

em:

<https://www.youtube.com/watch?v=FBMMNBOXins>. Acesso em: 24 de maio de 2018. LEPECKI,

André.

Coreopolítica

e

coreopolícia.

Disponível

<https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2011v13n12p41/23932>. Acesso em: 24 de maio de 2018.

em:




INTERVENÇÃO TEMPORÁRIA – A GENTILEZA PELAS FLORES. Temporary intervention-the kindness by flowers. Camila Cesário Pereira de Andrade1 arqcamilacesario@gmail.com

1

Doutoranda do Curso de Pós-Graduação Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Trabalho desenvolvido na disciplina de Tópicos Especiais da Arquitetura e História da Cidade: Intervenções urbanas arte, arquitetura como construtoras de dissensos, ministrada pelo professor Rodrigo, no primeiro trimestre de 2018. Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.


Resumo Abstract Este artigo relata e fundamenta a intervenção urbana temporária realizada no centro da cidade de Florianópolis (SC) intitulada de “A gentileza pelas flores”com o objetivo de perceber a cidade para compreendê-la, desta maneira trazendo à tona aspectos das cidades que se tornam invisíveis pela vida acelerada nos centros urbanos. O artigo apresenta uma breve fundamentação sobre as intervenções urbanas e na sequência relata-se o processo de construção da intervenção temporária aplicada e seus resultados. Concluique apesar de efêmeras (as intervenções), marcam o espaço e a paisagem urbana de maneira profunda, possibilitando a desconstrução do próprio olhar, com o olhar do outro, a percepção da cidade como organismo vivo.

This article reports and supports the temporary urban intervention carried out in the city center of Florianópolis (SC) entitled "The kindness of flowers" with the purpose of perceiving the city to understand it, of this way bringing to the surface aspects of the cities that become invisible to accelerated life in urban centers. The article presents a brief reasoning about the urban interventions and the following is the process of construction of the temporary intervention applied and its results. It concludes that, although ephemeral (the interventions), they mark the space and the urban landscape in a deep way, enabling the desconstruction of one's own gaze, with the other's eyes, the perception of the city as a living.

Palavras-chave: Intervenções temporárias; Espaço urbano; Subjetividade; Amabilidade.

Key-word: Temporary interventions; Urban space; Subjectivity; Amiability.

Introdução A cidade é constituída pela relação de forças entre os atores sociais que a alimentam. Ela é resultado de dinâmica histórica e social, coletiva e individual, temporal e momentânea, que envolve grande número de agentes, e tem provavelmente como um de seus pontos cruciais a ocupação urbana, a vivência praticada no espaço urbano que estabelece também a relação entre corpo e espaçopor meio de ações que constroem de forma efêmera o cotidiano (crítico ou não) desta cidade. Esta dinâmica vai desenhando a cidade, dando cara às ruas, às praças, à todos os espaços coletivos evidenciando que este “desenhar a cidade” tem como ator principal as pessoas que habitam tais espaços e não somente das pessoas que a constrói (edifica). De forma bastante genérica, pode-se dizer que o processo de reprodução espacial na cidade se realiza na articulação de três níveis: o político (que se revela na gestão política do espaço), o econômico (que produz o espaço como


condição e produto da acumulação, regido na cidade contemporânea pelo Capital) e o social (que nos coloca diante das contradições geradas na prática socioespacial como plano da reprodução da vida). É na esfera do terceiro nível, o social, que iremos basear nossas escritas e nossa intervenção. São as relações criadas entre sujeito versus espaço e sujeitos versus sujeitos, são os atrelamentos, processos múltiplos que significam, em âmbito espacial, a identificação, a identidade e o reconhecimento subjetivo de um lugar. Mas, não podemos esquecer de registrar que o nível político (do processo de representação da cidade) deixa marcas profundas, o espaço urbano materializa a segregação imposta pela lógica do capital, erguendo muros, portões e guaritas e demarcando uma privatização do espaço urbano, até mesmo daqueles espaços construídos para a coletividade. Ferreira Neto (2004) destaca: práticas cotidianas estão também conectadas ao processo de segregação presente no modo de andar nas ruas, de fechar os vidros dos carros, ou no olhar sempre desconfiado para os estranhos. Novos arranjos urbanos associados à segregação, que constituem, ao mesmo tempo, novos modos de subjetivação. Medos, ódios, insensibilidades, indiferença. Novas maneiras de viver, sentir, perceber e interpretar os encontros na cidade.

“(...) É verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a vê-lo” (O Visível e oinvisível – Maurice Merleau-Ponty, 1971)

Revisando alguns conceitos:

Fenomenologia urbana A investigação de um objeto é uma vivência racional-emocional, pois conheço na medida em que eu mesmo (sujeito cognocente) vivo intensamente o meu objeto de pesquisa. Portanto, toda criação tem significações. A intervenção na cidade é criação, é intenção. Nem sempre percebida, discutida, refletida. Para perceber, segundo Ponty (1991) é preciso o ser humano sair de si, ir além de si. Sair de si significa um projetar-se intencional na direção do fenômeno


percebido. Perceber a cidade para compreendê-la. Viver a cidade para percebê-la. Um movimento complexo entre o caos e a ordem, entre o natural e o cultural, entre o uno e o múltiplo, resultante de relações em que os sujeitos envolvidos compartilham vivências. O espaço, consequentemente a cidade, é vivido e percebido de maneira diferente pelos indivíduos De qual fenômeno falamos? Da cidade. Isso exige "olhar a cidade", ancorando esse olhar em um pensar. Pensar a cidade para as pessoas, dialogar com a cidade e com os outros.Adentrar o espaço da cidade não constitui a experiência de um sujeito cartesiano que circula por uma extensão homogênea, exata e precisa. O espaço da cidade é vago.

Subjetividade SegundoFerreira Neto (2004), a avaliação da relação entre subjetividade e cidade se insere no já centenário debate entre o individual e o social. Temos no contemporâneo um modo de subjetivação dominante a que poderíamos chamar de modo individualizado, um conjunto identitário, fechado e interiorizado.

Amabilidade Fontes (2011) conceitua amabilidade como a ação ou a qualidade de amável, o ato ou o estado de comportamento que pressupõe a generosidade, o afeto ou a cortesia com o outro. É um termo que evoca a “proximidade” e a “abertura”, seja em seu uso corrente, seja aplicada aos espaços urbanos. A autora em referência, complementa considerando um atributo do espaço amável, daquele que promove ou facilita o afeto e a proximidade, opondo-se ao individualismo por

muitas

vezes

caraterísticos

das

formas

de

contemporâneo. Fontes (2011), pondera: ela conclui:

convívio

coletivo

Amabilidade é uma

qualidade urbana que surge da articulação entre as características físicas do lugar, as intervenções temporárias que ocorrem sobre este espaço e as pessoas que o utilizam e se conectam, surgindo assim da articulação entre as dimensões física, temporal e social.


Intervenções temporárias As intervenções temporárias como as ações que se movem no âmbito do transitório, do pequeno, das relações sociais, que envolvem a participação, ação, interação e subversão, e que são motivadas por situações existentes e particulares do contexto urbano, em contraposição ao projeto estandardizado, caro, permanente e de grande escala, ogrande evento.Diferentemente dos usos cotidianos na cidade, as intervenções são ações que contém a intenção de transformação do espaço (SANSÃO, 2012). Para Veloso (2017) a intervenção, no caso exemplificado por ela: o festival, tem como princípio a delicada experiência comum - aprender a cuidar, cuidar para lembrar, lembrar para cuidar. A intervenção, quando hábito, permite dar o salto em direção à transformação. Complementa o autor, o mundo urbano é condição incontornável. O importante é toma-lo como lugar da contestação; essa é a estratégia que deve haver por trás da ação de apropriação que ocupa as ruas, caso se queira ultrapassar o imperativo do conforto, da beleza e da mera utilidade para consumo que, nos dias de hoje, orientam mesmo a tão almejada “qualidade de vida” urbana. Fontes (2011) faz a conexão entre Amabilidade e Intervenções temporárias, para a autora enquanto a intervenção temporária representa uma ruptura positiva na linha contínua da vida cotidiana, a amabilidade representa a ruptura de hábitos individuais cristalizados no espaço coletivo, e surge como um importante legado das intervenções temporárias praticadas nos espaços coletivo

Um dispositivo... talvez dois. Intervir no território pode significar: fazer algo, modificar de alguma maneira a realidade do espaço, transformar o cotidiano de seu habitante e direcionar possíveis desejos. Esta intervenção muitas vezes pode ocorrer através do simples movimento dos corpos ou de outro dispositivo das mais diversas complexidades. Dispositivos podem ser, os planos, as leis, os desenhos, mas também ações temporárias de cuidados, acolhimentos, zelo, gentileza. São esses dispositivos temporários que ganham nossa atenção, mas também daremos uma dose de atenção ao corpo.


Tem-se o mesmo entendimento pontuado por Souza e Souza (2017), o corpo está no mundo da mesma forma que as demais coisas, porém, ele percebe o mundo. Aqui está o grande diferencial do corpo, este percebe a realidade e percebe também a si mesmo. Afirma Merleau-Ponty já no prefácio à sua obra magna (1999, p. 3): Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu "psiquismo", eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiamdizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido [...].

Diante deste cenário infere-se que na “intervenção realizada”e descrita a seguir, fez-se uso de dois dispositivos: o Corpo e as Flores. E, por que as flores?

A intervenção ou interferência urbana realizada

“No momento em que a cidade – o corpo urbano – é experimentada, esta também se inscreve como ação perceptiva e, dessa forma, sobrevive no corpo de quem a pratica” (Paola Berenstein Jacques & Fabiana Dultra Britto)

“A gentileza pelas flores” foi uma iniciativa desta autora que vem estudando, e experimentando desenvolver, interferências no espaço urbano. A mesma, ocorreu em maio deste ano na cidade de Florianópolis (SC) e ao longo dos estudos

da

disciplina

In(ter)venções

urbanas

arte,

arquitetura

como

construtoras de dissensos, ofertada como tópico especial no curso de pósgraduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. A intervenção não teve a intenção de requalificar o espaço físico como uma construção de um novo/melhor cenário para o local.Oobjetivo foi intervir provocando reflexões sobre o tipo de uso que se faz do espaço público, ou seja, aprender a ver o mundo e perceber como opróprio público frequentador


destes espaços, percebe o que olha. Um olhar reflexivo, sobre o olhar que olha. Veloso (2017) destaca: Contestar ocupando os espaços, reivindicar por meio da apropriação dos lugares, é estratégia de resistência [...] cada intervenção, individual ou coletiva, é um momento que talvez jamais integre uma série, mas é acontecimento em que se desvela uma possibilidade. E quanto tempo dura ou deve durar uma intervenção? Duram o tempo do deslocamento do ritmo cotidiano para um ritmo poético, questionador. Uma intervenção pode durar o tempo em que a imagem-provocada ficar na memória de quem a viu. Ou o tempo enquanto as histórias de seus desdobramentos forem contadas.

O que desejamos? Perceber a cidade para compreendê-la, razão e emoção Apontar sutilezas; Gerar gentilezas; Criar imagens poéticas; Reivindicar a cidade como espaço para a arte e como espaço para pessoas; Trazer à tona aspectos das cidades que se tornam invisíveis pela vida acelerada nos centros urbanos; Estabelecer

discussões

sobre

problemas

da

cidade

(concreto/vegetação, falta de cor, crescimento ordenado,política e capital)

O local de intervenção No dia 27/04/2018 a autora foi à rua avaliar os possíveis espaços para a intervenção proposta, algumas poucas flores foram “plantadas” nos seguintes lugares: Travessa Ratclif (em 02 pontos), Rua Victor Meirelles e Rua Trajano (ver mapa). Os três possíveis locais de interferência fazer parte do “centro histórico” da cidade, local este que possui um contexto urbano rico em


potências de corpografias2 e tecidos sócio temporais expressivos, mas é também alvo de uma série de transformações urbanas espetacularizadoras da cidade de Florianópolis, contribuindo para uma gentrificação do centro histórico da cidade. Figura 01 – Possíveis locais de Intervenção

Fonte: Google Earth Pro adaptadopela autora, 2018.

2

A cidade não só deixa de ser cenário, mas, mais do que isso, ela ganha corpo a partir do momento em que ela é praticada, se torna “outro” corpo. Dessa relação entre o corpo do cidadão e esse “outro corpo urbano” pode surgir uma outra forma de apreensão urbana e, consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade contemporânea. A experiência urbana corporal também poderia ser estimulada por uma prática de errâncias pela cidade que, por sua vez, resultaria em corpografias urbanas. [...]A cidade é lida pelo corpo e o corpo descreve o que podemos passar a chamar de corpografia urbana. A corpografia seria um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, no corpo de quem a experimenta. Esta experiência da cidade que se instaura no corpo seria uma forma molecular5 (ou micro) de resistência ao processo molar (ou macro) de espetacularização, uma vez que a cidade vivida (não espetacularizada) sobreviveria a este processo no corpo daqueles que a experimentam (Jacque 2017).


Figura 02: Possíveis locais Meirelles(Florianópolis/SC)

da

Intervenção

Travessa

Ratcliff

e

Rua

Victor

Fonte: acervo pessoal, 2018.

Figura 03: Possível local de Intervenção: Rua Trajano – Escadaria do Rosário.

Fonte: acervo pessoal, 2018.

Esperamos cerca de uma hora para ver a reação das pessoas nos locais, para perceber como elas são“tocadas” com essa “intervenção teste”. O local que mais causou reações diferentese conexões entre os sujeitos e o espaço foi na Rua Trajano. Nessa, localiza-se a “Escadaria do Rosário” que dá acesso ao prédio da Igreja do Rosário - edificação construída entre 1887 e 1830 pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, espaço símbolo e palco das mais diversas manifestações.


Figura 04: Escadaria do Rosário – Palco Urbano

Fonte: acervo pessoal, 2018. Figura 05: Escadaria ocupada, sendo palco vivo de manifestações. Fonte: @portacatarina Facebook 2018

Figura 06: Escadaria do Rosário – Palco Urbano visto de outro ângulo. Fonte: acervo pessoal, 2018.

As Flores No início, sementes germinaram na cabeça e no coração. Depois, plantamos, cultivamos e entregamos flores. Diferentes razões, diferentes momentos. Mesmo objetivo:dizer aquilo que não pode ser simplesmente dito, e fazê-lo com beleza, graça, amorosidade e arte.Desde os tempos mais remotos, as flores representam a linguagem das divindades, bem como, a linguagem humana do amor entreeu e tu, entre tu e nós, entre outros diferentes, apenas diferentes. As


flores eram e são em muitas ocasiões, mensageiras do que nãopode ser dito, ou do que se quer transmitir. Uma mensagem aos olhos de todos ou aos olhos de poucos, de um. Para esta intervenção foram confeccionadas 300 (trezentas) flores de papel, tecidas com carinho e,em cada uma delas, uma mensagem para reflexão.

Figura 07: A flor, as trezentas flores confeccionadas manualmente.

Fonte: acervo pessoal, 2018.

Apresentamos algumas das frases presentes na intervenção, para que seja possível compreender o cunho da manifestação: 1. É hora de adaptar ambiente urbano ao tipo de gente que queremos ser. - David Harvey; 2. Atormentadas pelo capital, metrópoles são também o criadouro das relações que o deixarão para trás - David Harvey; 3. As relações entre os corpos humanos no espaço é que determinam suas relações mútuas, como se vêem e se ouvem, como se tocam ou se distanciam. –Sennett 4. De nada valem as ideias sem homens que possam pô-las em prática. – Karl Marx 5. A maior recompensa pelo nosso trabalho não é o que nos pagam por ele, mas aquilo em que ele nos transforma. – John Ruskin 6. A Vida é tão efêmera como uma flor. – Autor desconhecido 7. Deixe de viver o presente em função do futuro, viva o hoje! – Autor desconhecido. 8. O homem é um fazedor de paisagem – Autor desconhecido 9. Gentileza sim. – Autor desconhecido 10. A nossa vida é exatamente o reflexo daquilo que disseminamos durante o dia. – Autor desconhecido


11. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. - Paulo Freire 12. Cultive o pensamento positivo – Autor desconhecido 13. Perca Tempo – Autor desconhecido 14. Eu acredito em você, acredite em você também! – Autor desconhecido 15. Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples. - Manoel de Barros; 16. O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e Semeando no fim terás o que colher. - Cora Coralina

O Plantio Chegou o momento de intervir no espaço, foi preciso pensar na “coreografia”, não bastava pegar uma cesta e distribuir as flores de qualquer maneira (até poderia ser assim, mas este não era o objetivo). Era preciso realizar o “plantio”, a “colheita” e as vezes a “distribuição” estes três atos regidos pela dança, pela emoção, pela voz do coração. Neste momento então o espaço urbano da pólis se apresenta como um palco para a representação. Lepecki (2012) em Coreopolítica e Coreopolícia, questiona: Podem a dança e a cidade refazer o espaço de circulação numa corepolítica que afirme um movimento para uma outra vida, mais alegre, potente, humanizada e menos reprodutora de uma cinética insuportavelmente cansativa, se bem que agitada e com certeza espetacular? Continua o autor: Responder positivamente a essas perguntas significa imaginar a possibilidade de construir tangíveis e de agir intangíveis. Segue o pensamento de Lepecki (2012): Só assim pode uma cidade, o palco de vida para a maioria da humanidade neste momento em que o ser humano (grifo do autor) é, pela primeira vez na sua história e majoritariamente, um ser urbano (grifo do autor), só assim pode uma cidade deixar de ser essa amálgama de construções e leis criadas com o objetivo de se controlarem cada vez mais totalmente os espaços de circulação (de corpos, desejos, ideais, afetos).


Figura 08, 09, 10 e 11 – O Plantio

Fonte: acervo pessoal, 2018.


Figura 12, 13, e 14: A oferta, a doação, a gentileza.

Fonte: acervo pessoal, 2018.

Considerações finais Na formação do arquiteto e urbanista, refere-se aqui na fase da graduação inicial e especialização, poucas são as oportunidades de compreender a experiência corporal como possibilidade de entendimento do lugar, esta inquietação permeou toda a trajetória (acadêmica e profissional) da autora, buscando neste momento parar, pesquisar e refletir sobre a experiencia corporal de uma intervenção temporária.

Almejou-se desde o início uma intervenção individual, onde fosse possível apontar sutilezas, gerar gentilezas ou até mesmo causar estranhamento, trazendo à tona aspectos das cidades que se tornam invisíveis pela vida acelerada nos centros urbanos. A intervenção possibilitou a desconstrução do próprio olhar, com o olhar do outro. Desconstrução e reconstrução. Percepção da cidade como organismo vivo. É ser no mundo, que significa "[...] transformar e re-transformar o mundo, e não adaptar-se a ele. Como ser humano, não resta dúvida de que nossas principais responsabilidades consistem em intervir na realidade e manter nossa esperança (FREIRE, 2001, p. 37).


A amabilidade urbana entrou como uma premissa àqualidade do espaço da intervenção. Verificou-se então a conexão entre pessoa-pessoa promovendo a redução do espaço pessoal cotidiano entre elas, e trazendo uma diferente atmosfera de intimidadepara o lugar e entre as pessoas. Talvez essa intervenção foi possível porque mesmo a espetacularização estando presente em boa parte das cidades brasileiras, talvez pela informalidade que essas cidades se desenvolvem (ou graças a essa informalidade) ainda conseguimos manter algum tipo de diversidade e multiplicidades de usos destes espaços urbanos. Conclui-se que a tão sonhada Vitalidade3(presença de público e atividades diversificadas) em detrimento à espetacularização só poderá ser alcançada se tivermos a participação e apropriação popular nos espaços públicos, deixando a cidade então de ser um Cenário e se transformar em um Palco Urbano. Apesar de efêmeras (as intervenções), marcam o espaço e a paisagem urbana de maneira profunda, a partir do momento que proporcionam ao autor e aos atores experiências variadas com o espaço urbano. Nossa tão almejada qualidade de vida não pode depender de guetos protegidos por muralhas, alarmes e exércitos privados. Devemos voltar a olhar o espaço urbano público como o coração da vida contemporânea; seu projeto, seu uso, sua gestão, sua reinvenção... é preciso humanizar o espaço, experimentar o encontro, o intercâmbio, o acaso e a diferença.

Bibliografia BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. Cenografias e corpografias urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade. In: Cadernos PPGAU/UFBA. Ano 6, número especial, 2008, p. 79-86. Salvador: PPGAU/UFBA, 2008 FERREIRA NETO, J. L. Processos de subjetivação e novos arranjos urbanos. Revista do Departamento de Psicologia -UFF, Niterói, v. 16, n. 1, p. 111-120, jan./jun. 2004. Disponível em: http://www2.pucminas.br/documentos/processos_subjetivacao.pdf 3

Jacobs, já em 1960 tratava da vitalidade, para ela: Antes de mudar uma cidade ou intervir nela é preciso conhecê-la a fundo, e isso implica entender onde está sua vitalidade, como os vizinhos a utilizam, o que apreciam nela, que atividades são realizadas nas ruas, como brincam as crianças, que parques são bons e por que são mais cheios que outros, quais são as boas dimensões e os porquês; em definitivo entendê-las e aprender a vivenciá-las. Para isso é preciso ir às ruas, falar com as pessoas, deduzir a maravilhosa teia de relações, vínculos e contatos que uma cidade cria entre seus habitantes. Seus textos são extraordinárias e minuciosas observações dessas relações e vivências.


FONTES, Adriana Sansão.
 Intervenções temporárias, marcas permanentes: a amabilidade nos espaços coletivos de nossas cidades. 2011. Tese (Doutorado) Programa de Pós-graduação em Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios/Paulo Freire. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2001. (Coleção Questões de Nossa Época; v.23). JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias urbanas: o corpo enquanto resistência. In: Cadernos PPGAU/UFBA. Ano 5, número especial, 2007, p. 93-101. Salvador: PPGAU/UFBA, 2007. Disponível em: https://docs.wixstatic.com/ugd/886796_546efee4440a40dfa48f1293086325bf.pdf LEPECKI, André. Corepolítica e coreopolícia. Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan/jun. (2011) 2012. MERLEAU-PONTY, Maurice O Visível e o Invisível. Trad. José Arthur Gianotti e Armando Mora d’Oliveira. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971. ______.Maurice. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. ______. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999. SANSÃO, Adriana (2012). Amabilidade urbana: marcas das intervenções temporárias na cidade contemporânea. URBS. Revista de Estudios Urbanos y CienciasSociales, 1(2), 69-93. http://www2.ual.es/urbs/index.php/urbs/article/view/fontes SOUZA, Klédson Tiago Alves de, SOUZA, José Francisco das Chagas. Corpo-próprio: de corpo-objeto à corpo-sujeito em Merleau-Ponty. In: Problemata: R. Intern. Fil. v. 8. n. 2 (2017), p. 48-56 Disponível em: http://www.periodicos.ufpb.br/index.php/problemata/article/view/32509 VELLOSO, Rita. O tempo do agora da insurgência: memória de gestos e política do espaço, Segundo Walter Benjamin. In: BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. Corpocidade: gestos urbanos. Salvador: EDUFBA,2017, p. 43-69.



AQUI JAZ UM PATRIMÔNIO HISTÓRICO: INTERVENÇÃO TEMPORÁRIA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

Jacinta Milanez Gislon1

RESUMO Este artigo é fruto de uma pequena experiência de intervenção urbana temporária. Seu objetivo foi atrelar a potência da intervenção a um tema bastante relevante para a contemporaneidade, que é o patrimônio histórico e a educação patrimonial como ferramentas detentoras e promotoras de identidade e de memória coletiva, de pertencimento e de cidadania. Foram escolhidos alguns edifícios que não existem mais, que foram “mortos” no entorno da Praça XV de Novembro, no centro histórico de Florianópolis e, a partir destes apagamentos, foram elaborados lápides e panfletos para abordagem de pessoas que caminhavam pelo centro, em uma intervenção cujo nome foi “Aqui Jaz Um Patrimônio”. Os resultados colhidos evidenciaram que há interesse no conhecimento da nossa história, da arquitetura que compõe nossas paisagens e espaços públicos, mas que na prática pouco se sabe sobre elas, sobre as transformações. O que se concluiu, é que independente do resultado individual, todos foram influenciados de alguma forma durante a intervenção.

PALAVRAS-CHAVE: Intervenções temporárias; Educação patrimonial; Espaço urbano.

1

Doutoranda do Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Trabalho desenvolvido na disciplina de Tópicos Especiais da Arquitetura e História da Cidade: Intervenções urbanas arte, arquitetura como construtoras de dissensos, solicitado pelo professor Rodrigo Gonçalves do departamento de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal de Santa Catarina, no primeiro trimestre de 2018.


INTRODUÇÃO “Aprender uma cidade é, na verdade, uma coisa lenta. É preciso, entretanto, saber algumas coisas, e, precisamos andar distraídos, bem distraídos, para reparar nessa alguma coisa”. Rubem Braga

As intervenções temporárias não precisam ser somente aquelas grandiosas. Elas podem focar no pequeno, dentro de uma pequena atuação no espaço público, como bem salienta Fontes, 2011. Para a autora, estas intervenções, mesmo que pequenas, são capazes de despertar amabilidade, ou seja, proximidade entre os indivíduos, encontros, conexões e intercâmbios. Considerando esta ideia de amabilidade podemos pensar então na força que algumas intervenções temporárias possam ter, mesmo que pequenas, como motivadoras de reflexão sobre a urbanidade, sobre o corpo, sobre o espaço. Pensando nisso, nasce a ideia de atrelar a potência da intervenção temporária com outro tema bastante relevante e importante na contemporaneidade urbana, que é a educação patrimonial. Ambas falam de ação e cidadania e podem ainda abordar os conceitos de memória, identidade e outras tantas coisas que fazem parte da nossa vida. “O melhor guardião do patrimônio cultural é sempre seu dono, as pessoas que o fabricam, o praticam, as pessoas para as quais esse patrimônio tem importância direta, por estar intimamente associado às suas vidas” (IPHAN, s/ano, p.10). A educação patrimonial consiste, portanto, em envolver as pessoas no reconhecimento desta importância, na valorização dos bens históricos que formam o patrimônio cultural das nossas cidades. Uma intervenção neste sentido, poderia contribuir para fazer com que as pessoas tenham um novo olhar sobre a cidade, sobre determinado lugar ou edifício; que possam reconhecer as diferentes camadas temporais presentes nos espaços, os esquecimentos, apagamentos, as permanências e sua relação com a identidade e a memória coletiva. Lembramo-nos sempre que “a cidade mostra ter muitas facetas. Quanto mais trabalhamos, mais maneiras encontramos de perceber a cidade. E isso acontece mais ainda quando compartilhamos nossa percepção com os outros” (LADDAGA, 2012, p.80). E que é necessário “saber ver as coisas, saber receber o


olhar que os objetos devolvem quando lidamos com eles no cotidiano” (VELLOSO, 2017, p.48) Portanto, a relação das intervenções temporárias com o patrimônio histórico e a educação patrimonial apresenta um potencial vasto de trabalho. Para Laddaga (2012) é possível que, a partir dos edifícios, haja uma ressignificação da cidade como um todo. Consequentemente o patrimônio e sua valorização seriam valorizados com esta ressignificação. Na cidade, o aprendizado que refere à história dos lugares se revela na experiência, na vivência. “Na arquitetura urbana, envolver-se com os lugares, mergulhar nos elementos espaciais e objetos que o conformam revela o microcosmo da memória desse lugar” (VELLOSO, 2017, p. 49). OBJETIVOS “A

História

está

inscrita

em

muitas

fontes

documentais. A paisagem construída é uma delas. Numa cidade, aquilo que dela subsiste forma um fio condutor para o futuro. Por isso, a salvaguarda da memória construída é atribuição de toda a sociedade”. Le Corbusier

A intervenção urbana foi realizada no dia 05 de maio de 2018, em um sábado, na área central de Florianópolis, em dois locais: na Praça Fernando Machado (entre as ruas Conselheiro Mafra e João Pinto) e no largo da Matriz, na Praça XV de Novembro. A ideia principal estava voltada à educação patrimonial como um movimento de percepção das mudanças da paisagem urbana e dos apagamentos de alguns dos edifícios históricos que compuseram a área central de Florianópolis, dentro do recorte histórico mais importante da cidade. O objetivo então foi despertar nas pessoas que por ali passavam naquele momento algum tipo de sensibilidade em relação ao patrimônio e a memória, elementos tão importantes como constituintes da nossa identidade. A intenção construiu-se a partir da vivência pessoal na docência, cuja dedicação encontra-se na área do patrimônio histórico, do restauro e da reabilitação dos centros históricos, bem como na trajetória de pesquisa acadêmica no mestrado e agora no doutorado.


Apesar de ter sido um experimento muito simples, os resultados alcançados abriram um leque de reflexões sobre o tema que valeriam uma exploração maior em trabalhos futuros. METODOLOGIA Para desenvolver o objetivo e colocá-lo em prática foi necessário primeiro definir o tema da intervenção urbana temporária que, como explicado anteriormente, voltou-se ao patrimônio histórico, a memória e a educação patrimonial, buscando despertar nas pessoas que vivem ou que passam pela cidade um olhar, mesmo que breve, sobre as transformações da paisagem urbana, a partir dos esquecimentos e dos apagamentos de algumas edificações. Para isto então o primeiro passo foi definir os lugares de intervenção, que foram a Praça XV de Novembro, a Praça Fernando Machado e seus arredores imediatos. Optou-se por estes lugares pelo fato destes terem sido o berço da colonização de Florianópolis e também por terem sofridos grandes mudanças ao longo do tempo. O traçado urbano desta área segue as normas portuguesas do século XVIII, abrigando junto à praça os importantes edifícios de cunho religioso e oficial, como a igreja, a Casa de Câmara e Cadeia, o Palácio do Governo e o Mercado Público, que compartilhavam o espaço com alguns edifícios civis e comerciais. A partir do recorte definido, foram selecionados quatro edifícios que não existem mais. A imagem abaixo mostra a localização de cada um deles:


1 – Antigo Casarão Lojas Moellmann 2- Casarões coloniais a leste da Praça XV 3- Hotel La Porta 4- Casarões coloniais na Rua Arciprestes Paiva

Imagem 01: Recorte da Intervenção Fonte: Google Maps, modificado pela autora, 2018.

O primeiro ponto selecionado foi o antigo casarão das Lojas Moellmann (ver imagem 02). O casarão construído na primeira metade do século XIX na esquina da atual João Pinto com a Praça Fernando Machado funcionou como Lojas Moellmann e possuía linguagem arquitetônica colonial, com telhado de quatro águas, beiral e remate clássico em forma de “peito de pomba”, portas-janelas com sacada balcão, cimalhas e bandeiras em forma de losango, compondo fachadas modestas, porém dando um ar majestoso para uma importante esquina da cidade.


Imagem 02: Casarão na década de 40. Fonte: Casa da Memória, 2017.

Em imagens da década de 50 o casarão já não aparece mais, e já aparece nas adjacências da praça o processo de verticalização da qual Florianópolis passaria a ter a partir daí, mais intensamente (ver imagem 03). Hoje no local onde ficava o casarão Moellmann há um edifício contemporâneo, espelhado, com quatro pavimentos, cuja função ainda é comercial, mas que já não faz mais contato com o mar, privilégio este que o casarão Moellmann teve, e que o aterro da década de 70 acabou (ver imagem 04).

Imagem 03: Foto de 1958. Fonte: http://floripendio.blogspot.com.br/ Imagem 04: Foto atual do local onde estava o Casarão Moellmann Fonte: Autora, 2018.


O segundo ponto selecionado foram os casarões coloniais a leste da Praça XV de Novembro (ver imagem 05). Estes casarões, construídos entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX, funcionavam como comércio e possuíam linguagem arquitetônica colonial, com telhado de quatro águas, beiral e remate clássico em forma de “peito de pomba”, portas-janelas com balcão, cimalhas e bandeiras ornamentadas. Ficavam ao lado da Casa de Câmara e Cadeia (1771-1780) configurando umas das mais importantes ruas de Florianópolis.

Imagem 05: Foto de 1900. Fonte: IHGSC, 2017.

A partir de 1900 sofreram reformas e adaptações ao estilo eclético vigente (ver imagem 06) e a partir da década de 50 deram lugar definitivamente a prédios modernos, no processo de verticalização da cidade (ver imagem 07).

Imagem 06: Foto início da década de 40. Fonte: Acervo velho bruxo. Imagem 07: Foto atual do local ondem estavam os casarões coloniais. Fonte: Autora, 2018.


O terceiro ponto escolhido foi o antigo hotel La Porta (ver imagem 08). Esse hotel de quatro andares com elevador, foi construído em 1932 em cimento armado, inaugurou uma nova era da construção em Florianópolis. Tinha capacidade de 180 quartos e possuía três importantes fachadas: uma para a Praça XV, outra para o mar e outra para a rua Conselheiro Mafra. Posteriormente foi vendido e reformado e abrigou a Caixa Econômica Federal até 1990, quando foi implodido (ver imagem 09) Recentemente foi construído um novo prédio no local, ainda para abrir a Caixa Econômica Federal (ver imagem 10).

Imagem 08: Foto de 1940. Fonte: Acervo Velho Bruxo.

Imagem 09: Implosão do Hotel La Porta, 1990 Fonte: Casa da Memória, 2017. Imagem 10: Foto atual do local onde localizava-se o Hotel La Porta. Fonte: Autora, 2018.

O quarto e último ponto escolhido foram os casarões coloniais na rua Arciprestes Paiva, ao lado da matriz (ver imagens 11 e 12). Os casarões compartilharam com a Casa de Câmara e Cadeia, a Casa do Governo, a Matriz e a Praça XV uma das áreas mais destacadas e concorridas do centro urbano. Estes bens sumiram por volta da década de 50 que, durante o processo de verticalização da cidade, cedeu espaço para edifícios corporativos de vários andares com linguagem


arquitetônica mais moderna, dentre eles hoje o prédio da Secretaria de Estado da Fazenda de Santa Catarina e um edifício de garagem todo em metal e vidro (ver imagem 13).

Imagem 11: Procissão - 1890. Fonte: IHGSC, 2017. Imagem 12: Foto de 1929. Fonte: Acervo Velho Bruxo.

Imagem 13: Foto atual do local onde estavam os casarões coloniais. Fonte: Autora.

Após ter escolhido tema, recorte e os edifícios, era necessário elaborar suportes capazes de ativar a intervenção urbana. A ideia era fazer um trabalho de panfletagem e ter também um material físico maior para colocar no chão, semelhante ao comércio e a propaganda de rua. Como o tema da intervenção eram os “apagamentos”, portanto, as “mortes” patrimoniais, a intervenção foi intitulada “Aqui Jaz Um Patrimônio”, e a partir daí foram elaborados os materiais: lápides com imagens do bem e com os anos de “nascimento” e “morte” dos edifícios e panfletos informativos para serem distribuídos (ver imagens 14 e 15).


Imagem 14: Lápides confeccionadas Fonte: Autora, 2018. Imagem 15: Panfletos distribuídos Fonte: Autora, 2018.

Os panfletos procuraram explicar um pouco o valor arquitetônico e histórico de cada bem, sua linguagem arquitetônica, relação com a rua e com a cidade, o momento que foram “apagados” e o que há no lugar atualmente. Em cima dos panfletos uma frase provocativa (“este já perdemos, mas temos outros ainda para reconhecer e cuidar”) e outra educativa (“só se protege o que se ama e só se ama o que se conhece”). No verso procurou-se esclarecer que se tratava de uma experimentação simples feita para um trabalho acadêmico bem como seus objetivos. Sabia-se que ninguém iria ler todas as informações no ato do recebimento, mas aqueles que por ventura levassem para casa para ler posteriormente teriam maiores detalhes e entendimento do propósito da intervenção, bem como dos patrimônios apresentados, cumprindo com o objetivo.


RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS A intervenção foi realizada durante a manhã do sábado. Procurou-se colocar as lápides perto dos bens abordados, em pontos que haviam maior fluxo de pessoas. O primeiro lugar foi na esquina da rua João Pinto com a Praça Fernando Machado, sob o antigo casarão das Lojas Moellmann. Neste lugar estava acontecendo outra manifestação urbana – a feira de antiguidades que acontece todos os sábados nesta rua. No primeiro momento imaginou-se colocar apenas a lápide e aguardar de forma espontânea a reação das pessoas, porém o resultado não foi muito satisfatório. A partir do momento em que me coloquei ao lado com os panfletos, o efeito foi outro (ver imagem 16). Acredito que a presença do indivíduo e sua participação na intervenção desperta muito mais amabilidade e interesse de interação, do que os suportes físicos. Laddaga reforça esse pensamento ao afirmar que as intervenções temporárias ganham força com “a apresentação do artista em pessoa na cena da sua obra, realizando algum tipo de trabalho sobre si mesmo no momento de sua autoexposição” (LADDAGA, 2013, p. 18). Trata-se da interpessoalidade, “da potência do gesto” como uma das características das intervenções temporárias, da presença do corpo que ocupa o espaço, que promove os encontros, que ajudam a compor a paisagem e da performance como um modo de promover tensão no espaço (PALLAMIN, 2015).

Imagem 16: Intervenção na Rua João Pinto Fonte: Autora, 2018.


Posteriormente, o mesmo processo ocorreu com os casarões do leste da Praça XV. Entreguei alguns panfletos, entretanto aquela área nos sábados é bastante vazia, poucos pedestres passam ali. O único atrativo do leste da Praça XV aos sábados é a feira da rua João Pinto, as demais são praticamente desertas. Na sequência, me desloquei para o ponto onde ficava o antigo hotel La Porta, na esquina com a rua Conselheiro Mafra. Neste ponto haviam muito mais transeuntes e a intervenção pode ser melhor testada, onde os resultados foram bastante satisfatórios (ver imagem 17).

Imagem 17: Intervenção na Rua Conselheiro Mafra Fonte: Autora, 2018.

Por último, desloquei o material para frente da catedral, posicionando as lápides para os antigos casarões da rua Arciprestes Paiva. Neste lugar foi interessante observar toda a dinâmica da cidade acontecendo juntamente com a intervenção. Estavam ocorrendo naquele momento uma procissão do Divino Espírito Santo e uma roda de música e capoeira, ambos no entorno da Praça (ver imagens 18 e 19). No final das contas, as três intervenções, contando com a minha, tratavam da mesma coisa: da memória. Seja ela materializada na arquitetura ou nas práticas imateriais do engajamento humano.


Imagem 18: Intervenção em frente a catedral. Fonte: Autora, 2018.

Imagem 19: Intervenção em frente a catedral. Fonte: Autora, 2018.

Algumas pessoas paravam para conversar, especialmente as mais velhas. Outras pegavam o panfleto e continuaram caminhando (ver imagem 20), mas olhando para o material. Algumas, curiosamente, se voltaram para trás muitas vezes na tentativa de reconhecer a foto e a paisagem atual, já tão alterada.

Imagem 20: Transeunte lendo o panfleto. Fonte: Autora, 2018.


O mais interessante, foi que em todos os lugares, não vimos ninguém colocar o panfleto no lixo, mesmo que muitas vezes o lixo estivesse logo ao lado. Muitos saíram lendo e outros guardaram com suas coisas. Poucos recusaram o panfleto, talvez por pensarem se tratar de mais uma propaganda – no entanto, tinham curiosidade a respeito da lápide, mesmo não parando, olhavam de “rabo de olho”. Ouvi neste momento frases do tipo: “Nossa, o casarão era muito mais bonito. Agora está esta coisa horrorosa”. “Nossa, como a Praça XV se modificou”. “Qual é o objetivo do teu trabalho?”. “O que estás querendo com isso mesmo?”. “O La Porta eu conheci, era muito bonito. Depois, ficou um bom tempo escorado, até cair, uma pena”. “Os nossos políticos não fazem nada pelo que nos interessa de verdade. Olha a ponte Hercílio Luz!”. “Eu sou daqui, mas nunca tinha visto estas fotos.” “Não conhecia estes edifícios”. “Estes prédios já não estão mais aí, o que podemos fazer? Já foi”. Na entrega dos panfletos na rua Conselheiro Mafra, ocorreu um fato interessante. Um homem que passava pela rua parou para olhar a lápide, pegou o panfleto e fez algumas perguntas sobre o edifício La Porta. Na sequência, disse que era morador de rua e que sonhava em ser professor de História. Começou a nos fazer perguntas sobre “Quem foi Fernando Machado?”, “Quem foi um importante poeta negro de Florianópolis?” entre outras. Ele tinha a resposta na ponta da língua para todas elas. O que se observou é que nas ruas de maior fluxo, especialmente naquelas ligadas ao comércio, as pessoas se aproximaram mais das lápides, pararam mais. No Hotel La Porta, talvez por ser um patrimônio mais recente que os outros escolhidos, algumas pessoas se lembravam, ou demostraram maior interesse pela explicação. As pessoas de mais idade pararam muito mais, o que leva a pensar sobre o processo de identificação e a relação com a vivência da cidade, das memórias. A panfletagem deu mais resultados do que somente a lápide. O fator humano na exposição da informação faz a diferença. Houveram até aqueles que pararam para perguntar coisas pessoais, do tipo “Você trabalha com quê? ”, e até mesmo: “O bebê é para quando? ”. O que se conclui é que todos foram influenciados de algum modo, e cuja repercussão poderia ser avaliada em um trabalho futuro repetindo-se o exercício, buscando indagar os transeuntes sobre o que mais despertou o seu interesse, a fim de complementar o método empregado no processo de intervenção e ampliar o alcance da educação patrimonial.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS IPHAN. Educação Patrimonial. Programa Mais educação. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/EduPat_EducPatrimonialProgramaMai sEducacao_fas1_m.pdf> Acesso em 19 de maio de 2018. FONTES, Adriana Sansão. Intervenções temporárias, marcas permanentes: a amabilidade nos espaços coletivos de nossas cidades / Adriana Sansão Fontes. Rio de Janeiro: UFRJ/ FAU, 2011. LADDAGA, Reinaldo. Estética de laboratório: estratégias da arte do presente. São Paulo: Martins Fontes, 2013. LADDAGA, Reinaldo. Parques, passeatas, festivais. In: LADDAGA, Reinaldo. Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 75-104. PALLAMIN, Vera. Arte urbana contemporânea, em São Paulo. In: PALLAMIN, Vera. Arte, cultura e cidade: aspectos estéticos-políticos contemporâneos. São Paulo: Annablume, 2015, p. 137-192. VELLOSO, Rita. O tempo do agora da insurgência: memória de gestos e política do espaço, Segundo Walter Benjamin. In: BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. Corpocidade: gestos urbanos. Salvador: EDUFBA,2017, p. 43-69.



ALMA EM MOVIMENTO Juliana Castro

UFSC | CTC | POSARQ | In(ter)venções Urbanas | Prof. Rodrigo Gonçalves dos Santos


“É impossível balançar sem se sentir leve e com vontade de rir. Balanço é terapia contra depressão. Lembrei-me do que disse Nietzsche: o Diabo nos faz graves, solenes, pesados; faz-nos afundar. Deus ao contrário, dá leveza e nos faz flutuar. Concluo, então, que o balanço é um brinquedo divino, por aquilo que ele faz com a gente. Balançar num balanço é uma forma de rezar, de estar em comunhão com Deus.” Rubem Alves


Parte I – Homo ludens

Jasmim e balanço branco Fui uma criança levada. Fiz tudo que o que se fala sobre a infância livre: subi em árvores, andei de bicicleta pela rua, comi flores e pedaços de plantas desconhecidas... Meus cotovelos e joelhos estavam sempre machucados. Minha infância aconteceu na rua. Morava em uma rua íngreme, mas justamente em frente da minha casa havia uma parte mais plana. E por isso as crianças da rua acabavam se reunindo ali. Andávamos por cima dos muros e pelas árvores, passando de casa em casa para apanhar frutas dos quintais, sem ligar para o que era espaço público e o que era lugar de alguém. Não fazia diferença. A casa tinha um lindo quintal, com árvores, muitas plantas com flores e frutas. Lembro dos meus pais cuidando do jardim, eles gostavam de passar o sábado arrumando, limpando, plantando e regando. Tudo era cuidado e organizado. Impecável. Eu amava as árvores daquela casa, lembro de cada uma delas em detalhes: das duas goiabeiras, da pitangueira, do pé de romã, das bananeiras, do caquizeiro, das quaresmeiras, do araçá, dos hibiscos e azaleias enormes, da aroeira do lado do portão e muito especialmente lembro do enorme jasmim. Um jasmim cata-vento, uma árvore nativa, que era maior do que a casa, vestia o chão de flores brancas e inebriava o ambiente com seu perfume na primavera. Embaixo dele ficava o nosso balanço. O balanço branco era de metal, com duas cadeiras, do tipo vai e vem, seu movimento era contido. Mas era legal. De manhã, enquanto estávamos no balanço, minha mãe entregava para mim e minha irmã as xícaras de café com leite, que tomávamos balançando devagar. O tempo passou. O balanço já não estava mais lá e quando eu tinha uns quatorzes anos minha mãe cansou das flores brancas do jasmim cata-vento “sujando” o chão. Um dia cheguei da escola e a árvore estava derrubada aos pedaços. Doeu, doeu muito e ainda dói. Essa árvore estava conectada com meu corpo, com minha infância feliz. Foi um desastre. Eu amava aquele ser que preenchia um espaço enorme, em todos os planos. ... Passávamos três meses por ano em uma casa na praia. Era uma casa de madeira pequena e o jardim também era bem menor que o da cidade. Embora tivesse menos árvores e plantas havia também flores, frutas e um balanço branco. Também tinha um jasmim, mas bem diferente do da outra casa, outra espécie de planta. Era um jasmim manga, uma árvore bem menor que a outra. Essa árvore ainda está lá na praia, e na casa onde moro atualmente com meu marido e filhos há um jasmim filho dela. O balanço da casa na praia era simples, uma tábua que meu pai pintou de branco, com uma corda de nylon vermelha. Ficava pendurado na varanda e balançava muito alto, a gente tocava o pé no teto da varanda e girava muito até ficar tonta. Eu sentia o vento fresco do movimento na minha pele. Como se fosse mágica refrescava os dias quentes.


Lá na praia a gente também brincava na rua. Como era um lugar calmo e plano, brincávamos em várias ruas e andávamos de bicicleta por tudo. Também passávamos de muro em muro, de árvore em árvore, procurando pitangas, ameixas, araçás e muitas goiabas nas casas da vizinhança. Lá não tinha problema nem perigo, não havia limite para os movimentos em nossos corpos de criança. Uma coisa bem curiosa é que na infância nunca tive uma praça no meu cotidiano. Não havia uma praça por perto da casa onde eu morava na cidade e nem da casa de verão. A rua era o lugar de brincar e era bom.

Parte II – Homo ludens - Homo faber

Balanço na Praça Quando casei fui morar em uma pequena casa com um quintal também pequeno, onde havia várias árvores já adultas bem juntinhas. E tal como meus pais faziam, plantei muitas coisas neste pequeno jardim, principalmente flores. Era muito gostoso. Quando minha filha tinha uns dois ou três anos colocamos um balanço de madeira na varanda. Ela brincava enquanto eu fazia outras tarefas, como cuidar do jardim, cozinhar, desenhar meus projetos de arquitetura... Na nossa rua não havia outras crianças e minha filha nunca brincou na rua, brincou muito numa praça perto de casa, onde as crianças da vizinhança se encontravam. Todo sábado pela manhã eu ia à feira comprar verduras nessa praça. Minha filha ia junto e depois de fazer a feira eu ficava com ela enquanto brincava. Assistia ela balançar e a embalava. O balanço simples da praça balançava alto. Eu tinha uma vontade enorme de me balançar também, de sentir o vento fresco do movimento na minha pele, mas estava escrito: pessoas acima de doze anos não podem balançar. Que pena! Nos dias de semana, com menos movimento, quando ia à praça com ela eu balançava e podia viver aquela sensação outra vez.

Balanço na árvore Eu amo plantar e como nossa casa tinha um quintal pequeno, fomos à procura de um sítio em uma cidade próxima, onde fosse possível cultivar um enorme jardim. Encontramos um lugar com uma árvore gigante, antiga, cheia de tempo impregnado nela. Parecia um portal para outra dimensão, emanava muita luz. Decidimos comprar o terreno que ainda não estava bem demarcado. Depois de concluído o processo de marcação das divisas, o limite de nosso terreno ficou a dez metros da grande árvore. Ela ficou fora da nossa linha de propriedade mas mesmo assim fiquei feliz, porque ela estava lá, próxima de nós.


A primeira coisa que fizemos foi achar uma árvore dentro do nosso terreno para pendurar um balanço. Dentro daquele território inexplorado achamos um lugar com sete árvores, lindíssimas e cheias de vida. Ali organizamos nosso lugar para piqueniques. Levamos um banco e uma mesa de madeira e penduramos um balanço feito com um pedaço de tábua e uma corda de nylon. Mesmo tendo árvores lindas no nosso terreno, nenhuma era tão grande como aquela na entrada que ficou na propriedade do vizinho. Um dia chegamos no sítio e aquela árvore enorme, aquele ser antigo, cheio de tempo impregnado no corpo, não estava mais lá. O vizinho a derrubou para construir um galpão. Doeu muito. Fiquei com raiva. Explorando este lugar, desisti de plantar um jardim, porque não quis interferir naquela natureza antiga, não quis ser como nosso vizinho. Passamos a ir ao sítio para admirar o existente, sentir o ar puro, o cheiro do campo. Plantamos hortas somente nas áreas que já eram plantadas com regularidade antes de chegarmos. Deslumbramo-nos a olhar cada uma das árvores com troncos repletos de jardins de epífitas. Bosques de xaxins nas bordas do rio que cruza a mata. Brincamos no balanço que vai sendo absorvido por aquele lugar, sentimos na pele o vento fresco do movimento.

Parte III – Homo faber

Acredito que somos resultado dos caminhos que percorremos. Por algum motivo, ainda não tão claro para mim, eu decidi ser arquiteta. Sempre gostei de desenhar, talvez isso tenha me levado a escolher uma profissão que tem o desenho como ferramenta. A construção do espaço, a casa, o lugar de viver, esteve presente no meu caminho, mas não intencionalmente nos meus pensamentos até eu estudar arquitetura. As plantas, as flores e as árvores, estas sim, estavam comigo. Sou da terra, vem dos meus ancestrais, mãe, avós, bisavós e por isso, mesmo estudando arquitetura, também fui estudar botânica. Estudar me permitiu entender a natureza como todo, entender que eu não sou. A natureza é e eu apenas estou. Estudando, eu amei cada vez mais as árvores. São as casas da natureza, abrigam outras plantas e animais, trazem aquela sombra refrescante e rendada que os prédios não têm. O desenho que a sombra das árvores faz no chão recria sua superfície. A presença de uma árvore transforma os lugares. Percorrendo meu caminho tive a sorte de projetar praças e jardins. Por muito tempo eu projetei para que fossem respiros de natureza no ecossistema da cidade. E assim eu plantei milhares de árvores. O resultado disso me satisfaz, transformamos muitos lugares. Voltando aos balanços, sempre foram inseridos nas praças que projetei, mas até certo tempo todos estiveram em playgrounds exclusivos para as crianças.


Meu percurso continuou. Praças e jardins são espaços para pessoas viverem e observando o resultado do meu trabalho eu entendi o efeito nas pessoas. Projetando e executando eu passei a colocar as pessoas no mesmo plano em que coloco a natureza, passei cada vez mais a olhar e sentir o “humano”. Minha vontade tornou-se provocar, a partir de experiências no espaço, o que de mais natural existe na essência humana, a sua conexão com o todo, que não mede, não distingue e não julga. E de tudo isso o que mais me realiza é ver a alegria.

Parte IV – Homo faber – Homo ludens

As árvores e o balanço vermelho Em 2015 fui convidada a fazer parte de um grupo, com a intenção de produzir intervenções urbanas a partir de objetos que provocassem algum tipo de reação em espaços públicos, para a Bienal Brasileira de Design. O grande grupo produziu quatro “objetos” e uma bela exposição. Um dos dispositivos foi o balanço Ninho Ovo, que partiu de dois aspectos presentes no meu pensamento há muito tempo: primeiro, a vontade de permitir aos adultos brincar nos espaços públicos, sozinhos ou junto com seus filhos e não apenas assistir. E outro ponto seria conectar as pessoas com as árvores, fazê-las sentir a natureza no meio urbano. O nome dado ao balanço revela a intenção: o “ninho” simboliza a essência e o acolhimento que as árvores, as casas da natureza, podem trazer ao cotidiano urbano. Ovo remete à origem, a voltar no tempo e se permitir ser criança. Foram produzidos cinco balanços e pendurados em árvores belas e robustas, em lugares ainda não apropriados por pessoas. O Ninho Ovo é um objeto com design potente, pouco comum. Seu tamanho permite que até oito pessoas balancem juntas, portanto são grandes. Foram feitos na cor vermelha, de modo que contrastam com lugares predominantemente verdes e com as árvores em que foram pendurados. Assim que pendurados, os balanços passaram a atrair pessoas para os lugares onde estavam instalados. Em muitos momentos houve fila para usar os balanços. Afirmo que as características de design destas peças têm grande impacto na apropriação nesta situação, pois chamam atenção visualmente, provocando a curiosidade das pessoas, elas querem experimentar o balanço. O resultado proporcionado pelo movimento livre, pesado e pendular dessas peças provoca reações de alegria e liberdade, completando a experiência. Em cada lugar e em cada árvore os balanços tiveram distintos usos. Foi interessante observar como um objeto pode ser dispositivo para diferentes formas de apropriação de espaços. Durante a exposição os balanços instalados na imensa árvore em frente ao museu foram visitados por aqueles que vieram à exposição. Adultos e crianças puderam experimentar o balançar em grupo, em pé, sentado, com amigos ou com estranhos. A descontração provocada pela brincadeira gerou interação entre estranhos por diversas vezes.


O balanço também foi instalado em uma área verde de lazer onde havia um belo Garapuvu. Um espaço ainda sem uso, porque realmente não era frequentada por pessoas, em um bairro da cidade. Neste caso, a presença do balanço foi um catalizador de relações antagônicas. Pessoas passaram a usar o terreno como praça, muitos fizeram piqueniques ali e a partir desta mudança na dinâmica local iniciou-se um conflito. Os moradores do edifício logo em frente não gostaram desse movimento. Ficou clara a existência de uma necessidade de controle do território por aqueles que residiam imediatamente próximos do local. Ver gente estranha chegando incomodou. Outra situação em particular me chamou atenção. Aconteceu logo nos primeiros dias, uma adolescente acompanhada do pai chorou compulsivamente enquanto experimentava o balanço que estava na árvore no museu. Perguntei ao pai o que houve e ele me respondeu baixinho: Ela está em depressão. Apesar de ele tentar evitar, ela ouviu e respondeu: Estou chorando de alívio, me sinto bem. Acredito que neste caso, o movimento despertou nela uma sensação reconfortante e libertadora. Ela sentiu o vento fresco do movimento em sua pele. Ao fim dos quase dois meses de exposição, os balanços estavam desgastados e com partes danificadas pelo intenso uso que aconteceu. Foram recolhidos e instalados em uma praça pública, adotada por uma empresa, que se responsabilizou formalmente por mantê-los na praça em perfeitas condições de uso. São até agora intensamente utilizados. Observo o lugar com frequência e quase sempre há alguém balançando, geralmente adultos. Nesta praça, depois da instalação dos Ninho Ovo, os adultos podem brincar. Nesta praça eu posso levar meus filhos para brincar junto comigo, nós podemos todos nos balançar.

Árvore, balanço e viaduto. Eu gosto da beleza. E entendo que o belo é relativo. Para mim há beleza em coisas plasticamente planejadas e também no acaso e no desgaste. Eu gosto da calçada bem-feita, que permite que as pessoas caminhem com facilidade e segurança, mas prefiro as ervas daninhas na sarjeta à um meio fio pintado de branco. Porque eu não gosto de bordas e nem de limites. A encomenda do projeto de uma nova praça trouxe a mistura do natural, do humano e do artificial. No mesmo lugar e ao mesmo tempo a visão do belo, do feio e do duro. Haverá uma praça em um terreno baldio, entre um viaduto, uma rodovia, grandes edifícios comerciais e uma vila. Quando projetamos e executamos ambientes com uma infraestrutura completa, prevemos ou impomos materialidade aos espaços. Podemos manter, catalisar ou anular relações. Em espaços públicos isso é muito delicado. Pois se trata do espaço coletivo, aquele que tem como potencial a possibilidade de abraçar todos. É necessário criar uma conexão com os lugares para sentir o caminho a seguir em cada projeto.


Naquele lugar eu imediatamente me conectei com a árvore, com sua resiliência, com sua força em crescer e ser plena em um ambiente tão estranho a sua natureza. Trata-se de um lugar onde os carros passam, param e estacionam. As pessoas passam aos montes dentro dos automóveis e dos ônibus ou a pé, mas não param. Às vezes o percurso nos leva a caminhos de convergência. Observando as pessoas e a dureza do lugar, a árvore robusta entre tudo aquilo, lembrei-me do movimento do balanço. Decidi pendurar balanços naquela árvore, para incentivar as pessoas que passam rapidamente por ali a parar. Será possível iniciar a transformação de um lugar de passagem e estacionamento em praça a partir de uma intervenção temporária e experimental? Lembro das palavras de Rubem Alves: “Vida e alegria precisam existir juntas”. Acredito que o balanço é um objeto poético, ele é o fogo capaz de transformar, mesmo que por estantes, o lugar a partir da presença das pessoas que balançam.1 Preparar a intervenção foi simples. A referência para os balanços, veio das memórias de infância, da imagem coletiva que temos de peças simples, compostas por um pedaço de tábua e cordas. Ao invés de produzir um objeto com design provocante, desta vez experimentei a simplicidade e o mimetismo com o lugar. A cor bege-cinza claro das peças estava muito próxima da cor do chão, sem pessoas sobre os balanços, estes estavam praticamente invisíveis. Deixei os materiais crus, sem nenhum tratamento, porque neste caso a intervenção é temporária e está pautada no ato de parar para balançar. Eu tinha cinco tábuas furadas nas quatro pontas e oitenta metros de corda a disposição. Não sabia quantas usaria. No momento da montagem, enquanto pendurávamos o balanço na árvore, tive o ímpeto de completar o espaço com mais um balanço pendurado no viaduto. O balanço instalado ali criou um cenário questionador que contrapôs a imensa, sólida e até bela, estrutura preparada para atender o fluxo, com a fragilidade e rusticidade do balanço, a estrutura que estava sendo colocada a disposição para as pessoas pararem. Apesar de ser uma imagem conflitante, e do ato não ser legalmente permitido, em meu julgamento estético, inebriado pela mente arquitetônica, ali estava uma cena interessante. O balanço pendurado na árvore compunha uma ambientação mais acolhedora. Que além de estar envolto pela proteção provida pelo corpo da grande árvore, remete a memória das pessoas. Balanços pendurados em árvores estiveram na infância de muitos adultos, penso que talvez mais até dos adultos do que das crianças de hoje em dia. Observei que as pessoas preferiam sentar no balanço pendurado na árvore. Não perguntei os motivos, apenas observei. Enquanto estávamos pendurando o balanço no viaduto, uma mulher já estava sentada no outro que já estava instalado na árvore. Foi muito espontâneo. Ela sorriu, balançou e vibrou. O movimento da ação, entre cordas, tábuas e estiletes no momento de montagem despertou sua curiosidade. 1

“O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa e voltar a ser crianças.” Rubem Alves, em A Pipoca o autor fala do poder transformador usando como metáfora a pipoca que pelo poder do fogo explode e torna-se completamente diferente de sua forma original. Texto extraído do jornal "Correio Popular", de Campinas (SP), onde o escritor mantém coluna bissemanal.


Depois de balançar, ela perguntou: Porque vocês estão fazendo isso? Vocês são do Tecnópolis? 2 Respondemos: Estamos só fazendo uma experiência por nós mesmos. Ela disse: A gente mora aqui no bairro e não tem uma pracinha, um mercado por perto e a gente gostaria de ter, a gente merecia também. Porque aqui é um bairro grande, seria muito bom para nós.

Este diálogo relaciona de certa forma o ato de transformação do espaço, que a mulher presenciou, com sua percepção da carência de espaços públicos naquele bairro. De algum modo ela viu que aquele lugar poderia ser diferente. Depois que ela se foi terminamos de pendurar o outro balanço e nos pusemos a balançar. Estávamos em três pessoas e nos alternávamos entre dois balançando e um filmando, de forma espontânea. Notei o estranhamento das pessoas que passavam, a pé ou nos carros, ao ver adultos balançando alto embaixo do viaduto, em uma sexta feira às dez horas da manhã. Comecei a perguntar para as pessoas que andavam ao nosso lado se gostariam de se embalar também. E várias aceitaram o convite. Depois de um tempo balançando nos dois balanços, nosso pequeno grupo mudou a estratégia para ocupar apenas um balanço, deixando outro livre. E deu certo. O balanço vazio, enquanto o outro era ocupado também foi atrativo. Em apenas duas horas cerca de 20 pessoas experimentaram os balanços. No final da tarde do mesmo dia, voltei ao lugar em um horário de bastante movimento e observei de longe, sem balançar. Notei que poucas pessoas pararam em comparação com o que vivemos durante a manhã. Nos dias seguintes continuei observando à distância e não vi mais ninguém balançando. Penso que o que mudou aquele lugar, naquela manhã, foram nossos corpos em ação. Concordo com Gehl 3: o ser humano é o maior divertimento do ser humano. Os balanços foram dispositivos potentes para fazer de nosso movimento corporal um ato simbólico. Ao conversar com as pessoas que se balançaram confirmei que essa experiência trouxe à tona suas memórias de infância, como já era esperado. No registro abaixo encontro não só a lembrança de balançar, mas a lembrança dos balanços nas árvores do quintal. As árvores como estrutura do espaço vivido na infância.

2

Tecnópolis é o nome de um complexo de edifícios, vizinho ao lugar da intervenção, onde estão instaladas empresas ligadas ao desenvolvimento de tecnologia e inovação. 3 GEHL, Jan. Cidades para Pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013


“Foi muito bom reviver a infância. Porque no meu quintal tinha árvores e em cada árvore agente colocava balanços. E os meus irmãos balançavam a gente lá em cima e voltava. Então foi muito bom reviver. A infância da gente está sempre viva e ter uma experiência ótima desta valeu, muito obrigada!”

Alguns estavam há tanto tempo sem balançar ou mover o corpo livre no espaço que titubeavam, transpareciam certo receio ou medo. E nem só os mais velhos agiam assim, alguns jovens também. A reação das pessoas que balançaram durante as duas horas que permanecemos ali foi sempre permeada pela alegria, manifestada com extroversão, entusiasmo e por vezes com timidez. Alguns responderam somente com largos sorrisos e até gargalhadas. Recebi a gratidão por abraços. A alegria provocou empatia entre estranhos e nos relacionamos de forma muito próxima, houve abraços e desabafos. Os balanços provocaram intensa relação social. Balançar, brincar, permitir-se uma janela de tempo para a diversão, foi um grande desafio apresentado àqueles que passavam. A maioria não parou mesmo quando estávamos lá convidando as pessoas. Apenas um homem sentou-se no balanço, um senhor idoso. Neste lugar as pessoas transitam velozmente para todos os lados. Mesmo quem caminha, caminha rápido. Estão todos com pressa. Lembrei do texto de Careri 4 que relaciona a estória de Caim e Abel com os conceitos de Huizinga 5 sobre os termos Homo faber, aquele que fabrica ou produz, e Homo ludens, aquele que joga ou brinca. Careri diz que Caim é identificável como Homo faber pois é um agricultor, produz alimentos e está ligado a um determinado lugar. Já Abel, que é pastor, permite-se experiências novas a cada dia, é livre para andar, representa o Homo ludens. “Caim estava nos campos para arar, semear e colher os produtos da terra. A maior parte do tempo de Caim é dedicada ao trabalho, e por isso é inteiramente tempo útilprodutivo. Abel tem uma grande quantidade de tempo livre para dedicar à especulação intelectual, à exploração, à aventura e ao jogo; é o tempo não utilitarista por excelência. O tempo livre, ou seja, lúdico, levará Abel a experimentar e a construir um primeiro universo simbólico em torno de si”. Há semelhanças e diferenças entre este texto e a experiência com os balanços. No vai e vem da vida urbana somente o Homo ludens para durante o horário “produtivo”, o Homo faber corre contra o tempo e se desloca sem explorar seus caminhos. Há pessoas que mesmo sem a necessidade material do trabalho não se permitem o tempo livre. Há uma obrigação imposta pelo grande sistema em ser produtivo, gerar renda e consumir. Anda-se de um lado para o 4 5

Careri, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: editora G.Gili, 2013. Huizinga, Johan. Homo Ludens. O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1971.


outro para cumprir compromissos e pode-se parar somente em uma data marcada, acordada e permitida. “Não posso, eu tenho que trabalhar.” “Estou com pressa.” “Estou atrasado.”

Durante o tempo que oferecemos a oportunidade de parar e balançar para as pessoas que passavam, identifiquei aquelas que mesmo vivendo como Homo faber, tem dentro de si o Homo ludens. Elas parecem precisar deste tempo.

“tá uma delícia ficar aqui, mas eu tenho que trabalhar” “Olha só, de manhã e eu no balanço! Peraí, vou postar no face, ninguém vai acreditar.” “Tô atrasada, mas na volta eu vou no balanço, vai ficar aí?” “Eu achei ótimo, porque é um tempinho que a gente tem livre. Dois minutinhos que tira do seu dia e você desestressa. É muito bom. Deveria ter mais disso em todos os lugares”.

A situação colocada por esta pequena intervenção apontou aspectos que relacionam o ser humano com o tempo e com o espaço. O tempo por lembrar o passado e questionar a situação presente. O espaço porque naquele pequeno lugar estava exposta uma amostra da configuração que temos, quase que como regra aplicada nas cidades brasileiras. A escala humana está esquecida, o espaço reflete a velocidade de apreensão das informações, as pessoas passam e não enxergam. O som ensurdecedor dos automóveis completa a experiência neste ambiente. Transponho o pensamento de Gehl 6: uma preocupação com a dimensão humana no planejamento urbano reflete uma exigência distinta e forte por melhor qualidade de vida urbana. Existem conexões diretas entre as melhorias para as pessoas no espaço da cidade e as visões para obter cidades vivas, seguras, sustentáveis e saudáveis. A vida naquele espaço é em função do fluxo, do ir e vir por necessidade.

6

GEHL, Jan. Cidades para Pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013


A materialidade é determinada pelas estruturas que atendem aos automóveis, que cortaram o território em dois sentidos. São traços provenientes da organização do território em macro escala, sem necessariamente avaliar o rebatimento na escala pontual, plano onde acontece a vida cotidiana. E como comumente se repete neste caso, as pessoas ficaram com os espaços residuais: um mínimo passeio ao longo do viaduto, acessado por uma escada longa e íngreme, o passeio sofrível sob o viaduto e uma passagem informal, criada pelos próprios pedestres, conectando a antiga vila ao ponto de ônibus, único abrigo e assento ali existente. Como seria inverter a ordem das prioridades e desenhar a partir da escala humana? Priorizar as pessoas, provendo acessibilidade a pé, fazendo com que os automóveis fiquem em segundo plano e aí tenham que fazer caminhos alternativos, como hoje fazem os pedestres. Como seria este cenário? Um texto que li a quase vinte anos e ainda me afeta é “O jardim de Granito” de Anne Spirn7. Trata da integração entre a vida humana e a natureza, sob a ótica de qualidade de vida humana integral, que prevê o bem-estar humano conciliado à manutenção dos recursos naturais. Ela descreve a “cidade infernal”, onde a vida estaria em risco pela superposição excessiva da artificialidade e a “cidade celestial”, um lugar onde a natureza estaria presente e seria cultivada por toda parte, a cultura e a diversidade local seriam preservadas. “Na cidade atual existem muitas cidades potenciais: a cidade infernal, a cidade celestial e entre elas muitas cidades. As tendências existentes mostram um futuro obscuro. Ainda assim, quase todos os elementos da cidade celestial existem em algum lugar de alguma forma, ainda que embrionária. Não estamos e nunca estivemos no caminho inexorável para a destruição.” “É tempo de empregar um dos maiores talentos humanos, a capacidade de manipular o ambiente, para transformar o que se tornou hostil à própria vida num habitat humano que sustente a vida e favoreça o crescimento, tanto pessoal quanto coletivo.”

7

SPIRN, Anne Wiston. O jardim de granito. São Paulo: Edusp, 1995.


Naquele dia registrei traços da cidade infernal e da cidade celestial. Houve de fato a transformação efêmera de um lugar de passagem, preparado para receber automóveis, em um pequeno oásis que criou conexões internas e externas entre as pessoas e delas com o ambiente. Houve aqueles que lembraram dos amigos e familiares, aqueles que lembraram de si próprios. Estranhos compartilharam sorrisos, palavras e abraços. A árvore foi percebida como ninho. Havia alegria. Durante aquele tempo ali eu me conectei com minha própria estória. Estive ligada à árvore e às pessoas. Senti o vento fresco do movimento no meu próprio rosto.


Jasmim e balanรงo branco


Balanรงo na รกrvore


As รกrvores e o balanรงo vermelho


à rvore, balanço e viaduto


Referências Bibliográficas Alves, Rubem. A Pipoca. Disponível em: http://www.releituras.com/rubemalvez_pipoca_imp.asp Acesso em 19 de maio de 2018. Careri, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: editora G.Gili, 2013. GEHL, Jan. Cidades para Pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013 Huizinga, Johan. Homo Ludens. O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1971. SPIRN, Anne Wiston. O jardim de granito. São Paulo: Edusp, 1995.




in(ter)venção criminalizada


Programa de pós-graduação do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Disciplina de Tópicos Especiais da Arquitetura e História da Cidade: In[ter]venções urbanas: a arte e a arquitetura como construtora de dissensos

Professor Dr. Rodrigo Gonçalves

IM[PÉ]SSÃO CORPORAL: pegadas entre praças.

Msc. Lucas Sabino Dias Arquiteto, urbanista e professor lucassdias@yahoo.com

Data: 24 / 05 / 2018

1


Apresentação: O texto que segue é a finalização da disciplina “In(ter)venções urbanas: a arte e arquitetura como construtoras de dissensos”, cursada no primeiro trimestre de 2018, no programa de pós-graduação do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC). Procuro, no decorrer dos próximos parágrafos, descrever parte (a visível no momento), da minha experiência no decorrer da disciplina, pontuando as reflexões despertadas acerca da arte, da arquitetura, da cidade e da ação política possível, na relação entre estes três temas. Não tenho as pretensões, contudo, de finalizar conceitos, ditar o que é ou não arte, ou qual deve ser a relação de cada um com a arquitetura, a cidade, ou a ação política. Pelo contrário, abrir um diálogo no entorno destes temas, problematizando questões e me colocando enquanto arquiteto e urbanista, professor, pesquisador e cidadão, no sentido de debater as experiências vividas no navegar pelos temas abordados. A intervenção de arte pública “Im[pé]ssão Corporal: pegadas entre praças”, que aconteceu no dia 12 de maio de 2018, na Lagoa da Conceição, Florianópolis, é o resultado, não o final, de parte destes debates. Entendido como dispositivo catalizador, potencializador e efêmero das conversas e debates travados em aula com o professor, colegas e posteriormente pelo grupo. Procurou romper os muros da universidade, de forma a construir uma ponte com a comunidade, não no sentido de impor ou se conformar com consensos pré-estabelecidos, mas de questioná-los de forma dissensual. Afinal, para quem é construída a cidade? O que é o espaço público hoje? Como ele é ocupado? A ação que contextualiza a intervenção será descrita desde o planejamento até sua execução, finalizando com os impactos sensoriais e tectônicos vividos durante a rica discussão, que aconteceu após a performance. Por fim, os reflexos que ainda reverberam sobre a criminalização deste tipo de atividade, bem como alguns direcionamentos e ponderações latentes, despertadas por conta dos fatos ocorridos durante e posteriormente a intervenção de arte pública.

In(ter)venções urbanas: a arte e arquitetura como construtoras de dissensos O doutoramento, depois de finalizar o mestrado, me parecia um processo distante, demasiadamente cansativo, solitário e que poderia me afastar da prática, do fazer arquitetura. Não do fazer no sentido do projeto, mas do fazer construído, de canteiro. Ainda não vislumbrava a docência como uma possibilidade possível de prática arquitetônica, fugindo talvez da realidade familiar, de pai e mãe professores. Não havia interiorizado, ou não queria, o fato de que o mestrado me preparava justamente para a docência e para a pesquisa.

3


Por um destes “acasos”, a possibilidade real de dar aulas me foi oferecida e eu aceitei. Aceitei também a condição de aluno/professor ou professor/aluno, de seguir os passos dos meus pais de outra forma, uma forma que carrega minha condição de ser absolutamente diferente e igual aos que me antecederam. Me descobrindo, fui descobrindo também a profissão que começava a trilhar e amadurecendo a ideia de doutoramento, por mais que o tema ainda estivesse incerto. O ano de 2018 pareceu um momento profícuo para começar a cursar, ao menos uma disciplina da pós-graduação, iniciando assim as investigações sobre o meu tema de doutorado, que pretendo iniciar em 2019. O nome da disciplina: “In(ter)venções urbanas: a arte e arquitetura como construtoras de dissensos” me chamou a atenção e conversando com o professor, fui aceito e cursei como disciplina isolada. Venho de uma área técnica, de um mestrado, que apesar de ligado a prática da construção em meu estudo de caso, foi extremamente técnico. Não queria me entrincheirar novamente na técnica e sim alçar voos desconhecidos, instigantes, me arriscando por outros caminhos e práticas, ampliar horizontes. Encontrei o que procurava. Durante a disciplina a relação entre arte, cidade e política foi ficando mais clara, bem como o potencial de mudança imbricado nesta tríade. A cidade como cenário, ou palco dos acontecimentos, a política como fruto do agir consciente e a arte como ferramenta de costura entre o espaço e o ator, participando na construção simbólica do espaço urbano. No chã do urbano contemporâneo. A fantasia que determina a espacialização da pólis é dupla: primeiro a pólis se representa como espaço de circulação de sujeitos supostamente livres, principalmente livres na capacidade de circular livremente. (...) Em segundo lugar, a pólis se representa fisicamente, topologicamente, enquanto um lugar supostamente neutro e, consequentemente, sempre aberto para construção infindável de toda sorte de edificações que justamente determinam e orientam o urbano como nada mais do que o palco para a circulação dos emblemas do autônomo. (LEPECKI, 2012)

A arte tem um papel importante dentro deste entendimento, por vezes, de desestabilizar certos conceitos cristalizados no imaginário comum, não de forma imagética, mas do ponto de vista das relações sociais: Sendo partícipe da produção simbólica do espaço urbano, a arte urbana – compreendida no plano das relações sociais, e não reduzida a uma dimensão estetizada – repercute as contradições, conflitos e relações de poder que constituem esse espaço. Nesse registro específico de sua tematização, associase direta e internamente à natureza constituinte do espaço público, a questões de identidade social e urbana, de gênero, e a expressões culturais que possam ou não nele vir a correr, enfim, às condições de cidadania e democracia. (PALLAMIN, 2015)

A relação entre política e arte pode ser resumida em um “elemento”, segundo autores como Rancière, o “dissenso”: “Se existe uma conexão entre arte e política, ela deve ser colocada em termos de dissenso – o âmago do regime 4


estético” (RANCIÈRE, 2010, apud LEPECKI, 2012). Em outras palavras, a relação entre arte-política tem como função “perturbar a formatação cega de gestos, hábitos e percepções” (LEPECKI, 2012). Este entendimento tem processado alterações na relação arte-espaço urbano: Esta perspectiva compreensiva tem aberto uma vertente profícua para pensarse muito do que tem sido feito na arte urbana contemporânea. Alerta-nos, contudo, o filósofo, é preciso alertar para o fato de que o dissenso é incessantemente ameaçado pela ordem consensual e diz respeito, acima de tudo, “ao comum”. Talvez resida aí um dos aspectos instigantes aportados à ação artística na cidade, hoje: antepondo-se, em termos estéticos, ao risco e ao incomum, em nome do comum. (LEPECKI, 2012)

Fica mais claro então entender porque o espaço urbano é tão caro a arte contemporânea, visto que boa parte da construção das cidades são baseadas em dissensos. Mas a quem interessa essa homogeneização no discurso? A concordância, a aceitação? Quem tem voz? Afinal, são cidades pra quem? A arte pode ajudar a potencializar essas questões: Nessa sua acepção procura enfatizar a via pela qual os valores da arte contemporânea não são vistos separadamente de problemas da vida urbana e cotidiana. Sua concreção estética, as significações e os valores com os quais trabalha incitam ao questionamento sobre como e por que os espaços da cidade são determinados, que imagens, representações e discursos são aí dominantes, quais ações culturais contam ou quem tem exercido o direito a fruição, à participação e à produção cultural. (PALLAMIN, 2015)

Essas são perguntas e questionamentos muito presentes dentro do campo do urbanismo e da reflexão sobre cidade. O arquiteto e urbanista custa a entender o papel que a arte pode ter em desnudar certas dinâmicas. Que a conexão entre a política e a arte está no corpo que age no espaço, que escolhe o espaço da discussão, do dissenso e não o da aceitação. A arte como ferramenta para desestabilizar o senso comum, tem grande potencial como prática crítica mesmo tendo caráter efêmero: Como prática crítica, a arte urbana associa-se à ideia de intervenção negativa na microescala e acentua tal validade antepondo-se a essa cultura puramente afirmativa que tem sido promulgada e divulgada pela mídia e pelos processos de globalização. Seus moldes de intervenção no espaço público podem estabelecer descontinuidades significativas do ponto de vista cultural, mesmo que perfazendo-se de modo muito discreto, como tem sido a característica de várias intervenções artísticas de caráter efêmero. Um dos pontos de maior interesse de suas realizações é a possibilidade que oferece de contribuir com a desregulação de certos valores ai cristalizados, gerando novas formas de esclarecimento e abrindo novas extensões do espaço vivido. (PALLAMIN, 2015)

Essa nova forma de esclarecimento pode ajudar a consolidar um planejamento de baixo pra cima e mais participativo. Contribuindo para gerar discussões a respeito de temas fundamentais na construção de cidades mais justas e inclusivas, no que diz respeito ao tema da moradia ou da mobilidade, por exemplo.

5


Im[pé]ssão corporal: Pegadas entre praças A ideia do local e tema para intervenção surgiu durante uma das discussões no Ateliê de In(ter)venções Urbanas, a partir de um descontentamento, de uma das colegas, em relação a recente reforma da Praça Bento Silvério, na Lagoa da Conceição, Florianópolis. Cogitou-se inclusive que mais de um dos grupos formados, poderiam fazer intervenções neste espaço. Durante a conversa, pontuou-se também a desconexão entre a Praça B. Silvério e a Praça Pio XV do outro lado da Rua Henrique Veras do Nascimento, entre a ponte da Lagoa e o Restaurante Oliveira, que não corta somente a ligação entre as praças, mas com a própria orla da lagoa (Figura 1). Conversou-se a respeito deste entroncamento viário, talvez um dos mais complexos da ilha. É um nó realmente complicado do ponto de vista modal, como pode ser visto na Figura 1. A rua Henrique Veras do Nascimento leva, por meio da ponte da lagoa, a Av. das Rendeiras, ou seja, conecta o centro as praias. A Rua Senador Ivo D Aquino é uma rua sem saída, que leva a marina e a uma série de comércios, além de vários estacionamentos. É daí também que saem os barcos para costa da lagoa, por exemplo. A Rua Rita Lourenço da Silveira leva ao bairro e a costa da lagoa. Sua chegada na Rua Henrique Veras Nascimento se divide em outras 3 pistas, uma que chega da ponte, uma que dá acesso a ponte e outra que vai na direção do centro da lagoa. Além disto existem 2 pontos de ônibus, um de taxi, diversos estacionamentos, tanto para os restaurantes, quanto para os supermercados, um Centro cultural e uma agência dos correios (Figura 1).

Figura 1 - Foto aérea Praça Bento Silvério e arredores. Fonte Imagem: GoogleEarth

6


Este entroncamento, bem como o histórico de relações sociais criado no entorno da praça, faz dela um espaço rico e diverso. Na Praça Bento Silvério acontecem feiras, ensaios de escola de samba, rodas de capoeira, jogos de futebol, dominó, eventos culturais diversos, entre outros, que fazem dela um lugar com urbanidade. Há ainda uma grande diversidade de usos: turismo, lazer, trabalho, moradia, passagem, entre outros. Contudo, principalmente no triângulo destacado na Figura 1, o pedestre perde espaço e as praças perdem sua conexão. Nem todas as calçadas e faixas de pedestre seguem as normas de acessibilidade. As faixas são insuficientes para dar preferência a quem anda a pé. Por exemplo, não há faixa de pedestres entre a Praça Bento Silvério até o Supermercado Harmonia e deste ao ponto de parada de barcos. Também não há faixas de pedestres entre a Praça Pio XV até o Supermercado Harmonia e deste ao ponto de parada de barcos. Tem-se aí um total desrespeito a Lei Nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012 (BRASIL, 2012), conhecida como Lei da Mobilidade, onde o pedestre tem prioridade perante os demais modais. O tema da mobilidade é muito atual na discussão sobre as cidades contemporâneas. Entender a necessária preferência ao pedestre é talvez um paradigma, nas cidades brasileiras de maneira geral, mais particularmente em Florianópolis, onde via de regra as calçadas são estreitas, fora de norma ou inexistentes. Este pareceu um tema interessante a ser abordado, que transcende a Lagoa, mas perpassa toda Grande Florianópolis. Afinal, para quem são construídas as cidades, para os carros ou para os pedestres? De quem são as cidades, cidades pra quem?

Figura 2 - Croqui executado pelo autor durante observação do local. Em amarelo a possibilidade de conexão entre a Pç B. Silvério e a Pç Pio Xv, onde o croqui foi feito.

Mas o que seria feito? Qual o propósito da intervenção? A questão central foi: Como conectar as duas praças visualmente e destacar a importância do 7


pedestre dentro do tecido viário? Algumas ideias começaram a aparecer, inspiradas em intervenções como a do Movimento Baixo Centro em 2012, na cidade de São Paulo (MOBILIZE, 2018). Durante visitas ao local, fotos e croquis foram feitos (Figura 2), no sentido de entender quais as condicionantes e onde a intervenção poderia ser executada. No retorno ao ateliê, começamos a imaginar como isto poderia ser executado. De noite, escondidos, jogando tinta de bicicleta, ou de moto, e fugindo? Colocar a tinta em sacolas com furos, despejando-a assim aos poucos? No amadurecimento da proposta, algumas coisas foram ficando claras: primeiro, a intensão de não fazer escondidos, como bandidos, não era necessário. Afinal, é um trabalho acadêmico do curso de arquitetura da UFSC. Segundo, o interessante seria deixar as marcas com o próprio corpo, não com rodas de carro ou rastros de tinta, até para não correr o risco de macular a propriedade privada (carros). A metáfora das pegadas, neste sentido, serviu bem. As pegadas são nossos rastros, quase como as escrituras rupestres. São uma das fachadas de nosso corpo e dizem muito sobre nós. Não somente características próprias do transeunte, como altura e peso, mas marcam sua transitoriedade, seu ritmo, se caminhou ou se parou, se deu meia volta ou não, qual seu destino? O que ocorreu neste percurso? São como impressões digitais de nossa espécie. Desenhando então, com nossos corpos, o percurso, o desejo de chegar, de dominar o espaço, em uma im[pé]ssão corporal. Cada passo é como a holografia de um ser humano falando “eu passei por aqui” e que pode ser seguida, como quem vai à praia e trilha os passos de outros, carimbados na areia. Marcar a pegada somente mergulhando o pé, ou calçado na tinta, não teria o efeito desejado, visto que estes solados não absorvem bem a tinta. Fizemos então um protótipo de sandália, colando um pedaço de esponja em um compensado, na forma de sola de calçado (Figura 3). O primeiro teste foi feito junto ao edifício Arq/Urb – UFSC e com a sandália em apenas um pé. Pode-se ter um primeiro entendimento visual do impacto da proposta. Nele foi utilizado tinta acrílica, a sugestão do professor foi fazer com tinta a base de cal e água, pois é menos tóxica, é barata e pode ser removida com maior facilidade, marcando assim o caráter efêmero da proposta. Posteriormente, outras sandálias com esponja, apelidadas de “dispositivos de im[pé]ssão” foram feitas, ou de madeira (Figura 3), ou colando a esponja em uma sandália com tiras de borracha, ou outro calçado.

Figura 3 - Dispositivo de im[pé]ssão pronto. Sandália feita de madeira, tiras de corda e solado de esponja.

8


A divulgação aconteceu por meio de site de relacionamentos, com a postagem do convite (Figura 4). Na fotomontagem para divulgação do evento, procurou-se expressar de forma visual uma das questões importantes da ação artística, a discussão entre os espaços destinados ao pedestre e aos carros. A decisão de não esconder a ação foi efetivada e ela foi marcada no dia 12 de maio (sábado) de 2018, com horário de concentração às 9:00am e de intervenção às 10:00am (Figura 4). Os sábados são dias tradicionalmente cheios no local. É montada na praça uma feira, já conhecida e tradicional, que mistura e se mistura aos turistas e ilhéus, que passam e param, e ao fluxo intenso de carros, que correm para aproveitar o final de semana. O entendimento foi de que a força da ação artística, não estava somente no resultado visual, mas na performance. No ato de grafar com os pés, seu corpo na cidade, buscando o espaço em meio aos carros. Neste sentido, a conexão visual direta e efêmera com o espectador foi compreendida como importante.

Figura 4 - Fotomontagem de divulgação do evento. Explica graficamente a diferença entre o espaço destinado para os carros e para os pedestres.

Ainda pensando sobre a relação com o espectador no local e como poderíamos comunicar de maneira mais clara o que estava sendo reivindicado, foram elaboradas camisetas (Figura 5a, b), com a pergunta “cidades pra quem?” e impressos cartazes e folders com o nome da ação e a mesma pergunta (Figura 5c).

(a)

(b)

(c)

Figura 5 - Camisetas e cartazes da ação. (a) máscara sobre a camiseta preta, para pintura com tinta spray branca. (b) Camiseta finalizada. (c) Cartaz que foi impresso e distribuído durante a ação.

O teste realizado em uma rua no sul da ilha de Santa Catarina, no dia anterior ao da intervenção na Lagoa, foi feito por dois integrantes da equipe (Figura 6). Teve o intuito de entender o impacto da proposta na escala urbana, bem como a logística que envolveria a montagem da ação. O teste foi feito de dia, 9


possibilitando também experimentar o diálogo corporal com o público, a relação entre a ação, o espaço e o indivíduo, narrada pelos executores como intensa e nervosa.

Figura 6 - Resultado do teste realizado no sul da ilha. Tinta a base de cal e água sobre asfalto.(acervo do Autor)

O sábado, data da ação, foi um dia de sol e temperatura agradável, logo sabíamos que o espaço estaria cheio. As tintas chegaram prontas no local de concentração e antes do início da ação, foi discutido entre os presentes, onde ficariam as bandejas e os latões de tinta, que foram colocados na beira do meio fio (Figura 7). Aproximadamente as 11 horas teve início a im[pé]ssão e não levou, segundo o tempo registrado na máquina fotográfica, mais do que 15 minutos. Por conta do trânsito intenso e relativamente lento de carros no local, assim que a performance iniciou, não foi difícil cruzar a Rua Henrique Veras Nascimento em direção a praça Pio Xv e vice-versa. Mais de 10 pessoas participaram, entre membros da equipe, pessoas que vieram pelo convite e que espontaneamente resolveram participar.

10


Figura 7 - Fotografia tirada da Rua Henrique Veras Nascimento durante a ação artística na Lagoa. Pode-se observar as marcas das pegadas, bem como os latões de tinta e as bandejas junto a calçada. (Autora da foto: Angelita Maria Corrêa)

Os paços iniciaram majoritariamente na travessia da Rua Henrique Veras Nascimento em direção à Praça Pio XV (Figura 7). Porém, com o tempo, começaram a se espalhar no sentido do Centro Cultural e do Supermercado Harmonia (Figura 8), procurando compreender uma área maior e demarcar de forma mais efetiva, o espaço que deveria ser destinado ao pedestre. Durante a performance minha sensação foi de empoderamento do pedestre, até pelo fato de mais gente estar participando. Dos carros, poucos motoristas olharam ou tiveram alguma atitude grosseira, ao menos comigo. Olhavam e pareciam não entender o que estava acontecendo, também escutei que diziam: estão chamando atenção para o pedestre na travessia. Via alguns pedestres reclamando, mas que logo chegavam curiosos para ver mais de perto o que estava acontecendo. Talvez pelo envolvimento com todo o processo, não consegui me colocar de fora da situação, parece que minha visão periférica foi restrita pelo objetivo que estava colocado. Contudo, no final, lembro de não sentir

11


nenhum tipo de retaliação, ou estranhamento raivoso. Tanto é que os integrantes da ação saíram conversando calmamente, debatendo sobre a performance.

Figura 8 – Cruzamento da Rua Henrique Veras Nascimento com Rita Lourenço da Silveira logo depois do término da ação artística. Pode-se notar o acúmulo de passos em uma das "ilhas", utilizadas para direcionar o tráfego de veículos, onde foram colocadas algumas bandejas de tinta, bem como os passos não só em direção à praça Pio XV, mas demarcando outras rotas possíveis para o pedestre. (Autora da foto: Angelita Maria Corrêa)

Ao final, a percepção que tivemos foi de que o planejado se concretizou e demarcou pelas im[pé]ssão as travessias e as conexões. Mais que isso, chamou atenção para a necessidade de se estudar o local, priorizar o pedestre, conectar as praças e agir com vista a atropelamento zero neste local. Nota-se na Figura 8, que a concentração das pessoas se dá no diminuto triângulo demarcado pelas “pequenas tartarugas” (ilha) onde o pedestre fica enclausurado pelos carros que entram e saem da Rua Rita Lourenço da Silveira e pelos que passam pela Rua Henrique Veras Nascimento (Figura 1). Hora, como comentado anteriormente, em menos de 15 minutos se fez um estudo, por meio de uma intervenção artística, que dá ao órgão público a exata percepção do que acontece ou está acontecendo nesta via e nestes cruzamentos. Isso foi muito bom. Isso foi um destaque. Isso foi o resultado desta intervenção. Isso possibilitou marcar e demarcar por onde as pessoas passam, onde se concentram para a travessia, na injusta disputa com os carros. Contudo, apesar dos resultados positivos, houve que não pensou, não viu, não se importou e não se importa com a priorização do pedestre. E da discussão e do dissenso, apelou para a denúncia.

O pós-performance: sobre discussões e dissensos (...) no caminho da política em ação, no meio do movimento que ousa a coragem de agir e ironicamente partilhando a mesma raiz etimológica, no meio da pólis e da política está aquele ser oscilante entre a lei e a ação, entre a violência que

12


preserva e a violência que violenta, entre o imóvel que bloqueia e o altamente móvel que guerreia. Ou seja, a polícia. (LEPECKI, 2012)

Após a performance, já quando estavam todos se despedindo, chegou uma viatura da polícia militar. Quando percebemos procuramos dispersar, mas fui interpelado pelo policial. Quando me perguntou se havia planejado a ação, disse que tinha participado. Ele falou que teria que ir para a delegacia e dai uma longa discussão se seguiu. Na verdade, as rodas de discussão se multiplicaram. Os mais nervosos eram envolvidos ou com a associação de moradores, ao menos foi assim que se apresentaram, ou com o ponto de taxi. Mas havia de tudo, curiosos, aposentados que jogavam dominó, pessoas que voltavam de uma corrida ou caminhada, alguns que vinham da feirinha, além de alguns dos participantes da performance. Nesta hora os que falavam mais alto eram os contrários, indignados com o asfalto pintado. Mas haviam também, mais calados é verdade, os que não achavam nada de mais, diziam: “aqui é perigoso mesmo, já vi alguns acidentes” ou “com tanto esgoto sendo jogado na lagoa, vocês vão se preocupar com isso?” O principal argumento parecia ser que a gente não era dali. Quando me apresentei como nascido em Florianópolis, residente do Ribeirão da Ilha, falaram: “mas não é da lagoa, porque não falou com a associação de moradores antes?” Falaram também que “depredamos o patrimônio”. Expliquei que aquela área não era de posse da associação de moradores, que não precisava pedir permissão para eles, pois a cidade era para todos. Que a performance não tinha o intuito de irritá-los, muito pelo contrário, a pauta de reivindicações provavelmente ia de encontro a desejada pelos moradores. Sobre a depredação, disse que não era o caso pois a tinta era a base de cal e água e não deveria durar muito, além de que tinha sido aplicada prioritariamente no espaço do carro, o asfalto. Refletindo posteriormente, lembrei que a pouco tempo em Florianópolis, um prefeito havia sido eleito e reeleito com o slogan: “tapete preto”. Creio que o asfalto está enraizado no pensamento, no imaginário comum como desenvolvimento, um avanço. Mesmo que, como espaço público, seja bastante excludente, se imaginarmos o quanto dos espaços de circulação são destinados ao carro, uma “bolha privada” dentro de um percurso público. São tantos anos de prioridade para os carros, há uma primazia tão grande para ele pela cultura de nosso tempo, que o pedestre não se sente com prioridade, ou no direito de requisitar os espaços perdidos. Em certo momento um cidadão indagou: “e se eu quiser plantar uma palmeira, pode?” Achei a colocação brilhante. Fiz uma relação direta com os espaços no encontro das ruas Rita Lourenço da Silveira com Henrique Veras Nascimento, demarcados com tartarugas. Esses espaços são como ilhas perdidas em meio ao oceano de carros, assim como aquele estereótipo de ilha isolada no mar, um pequeno pedaço de terra e algumas palmeiras, onde os náufragos esperam um momento de calmaria para se salvar em direção a civilização (Figura 9). O imaginário coletivo também prega peças e a relação que o sujeito fez, mesmo 13


sem a intenção, foi em reforçar a crítica a absoluta prioridade do carro em nossas cidades.

Figura 9 - Foto colagem em meio digital elaborada pelo autor. Os espaços no encontro das ruas Henrique Veras Nascimento com Rita Lourenço da Silveira, demarcados com tartarugas. Esses espaços são como ilhas perdidas em meio ao oceano de carros o pedestre é como um náufrago.

Os dissensos criados também suscitaram outros pensamentos, do tipo: será que houveram exageros? Afinal, como diz Francesco Careri “como aportar-se para não vir a ser morto, para não ser percebido como hostil, mas sim como hospede bem-vindo” (CARERI, 2017). A reflexão existe e tem de ser aprofundada, quem sabe com mais tempo para o planejamento seja possível manter um diálogo, sem a necessidade de para na delegacia. De qualquer forma, penso que as reflexões suscitadas em mim, devem ter reverberado em outros que participaram do dissenso, afinal “a arte de ir ao encontro de alguém produz conhecimento recíproco entre as pessoas que se movem em nosso novo mundo e nos ajudam a imaginar, com elas, uma outra maneira de habitá-lo” (CARERI, 2017). O trabalho artístico e criativo é uma via de mão dupla, mexe com quem observa, mas certamente altera também quem utiliza desta ferramenta para refletir, na relação sempre presente entre eu comigo mesmo e entre eu, o mundo que me rodeia e seus usuários. O trabalho criativo exige uma perspectiva dupla: é preciso focar simultaneamente no mundo e em si próprio, no espaço externo e no espaço mental interno do indivíduo. Toda obra de arte articula os limites entre a individualidade e o mundo, tanto na experiência do artista como na do observador, ouvinte ou usuário. (PALLASMA, 2013)

Conclusão: Impressões da Im[pé]ssão No decorrer do trabalho fui construindo uma cautela no uso da palavra intervenção. Ainda mais no período político que vivemos, ela me soa demasiadamente autoritária, por mais que os colchetes no “ter” deem uma indicação de mudança de significado. Sem muitos pudores com relação as discussões que já devem acontecer, mais intensamente no campo da arte, a respeito desta palavra, me pergunto se “performance” ou simplesmente “ação” não seria melhor? 14


A efemeridade necessária da ação, é um ponto que merece ser considerado. É importante deixar claro que nenhum patrimônio foi depredado. A tinta é a base de água e cal e, como pode ser observado na Figura 10(a) tirada no dia da performance e Figura 10(b) uma semana depois, não deve durar muito. Na verdade, para quem passa de carro ela já fica bem difícil de ser percebida. Sobraram apenas alguns resquícios, fragmentos de um pedestre que pintou com o corpo seu lugar na cidade.

(a)

(b)

Figura 10 - (a) foto tirada no dia da performance (12/05/2018) (autor foto Marcelo Palinkas) / (b) foto tirada uma semana depois (20/05/2018) (autora foto Maria de Fátima Sabino Dias). Nas fotos é possível observar que em uma semana muito da tinta já se apagou e não tem a mesma intensidade.

A ação artística/política não pode ser criminalizada. Apesar de entender o papel dos policiais, que na medida do possível tiveram um tratamento cordial, este tipo de ação não pode ser criminalizada. A política não se faz somente de 4 em 4 anos e este tipo de ferramenta pode ser um aliado importante na construção de cidades mais justas e de uma maior participação popular nas tomadas de decisão sobre a cidade. A potência e potenciais deste tipo de atividade na discussão da cidade contemporânea, do espaço público e da atuação política do arquiteto foi o que mais me impressionou com a corporificação da performance. Como este tipo de atividade é potente. Tanto nas reflexões que acarretam, quanto nas mudanças que proporcionam. Durante o planejamento da ação, sempre conversávamos sobre a tomada de consciência do pedestre na relação com o espaço público, do dono do espaço toma-lo para si, ocupa-lo (Figura 11). Existem muitos exemplos e formas para fazer isto, mais recentemente autores como Jan Gehl, discorrem sobre o tema e nos dão algumas pistas de como isto poderia ser feito, construindo (modificando) as cidades para pessoas (GEHL, 2013).

15


Figura 11 - Fotomontagem do pedestre ocupando o espaço que antes era de uso quase exclusivo dos veículos motorizados.

Hoje durante a finalização deste texto um alento, uma notícia que potencializa ainda mais este tipo de ação. Praticamente duas semanas depois da ação artística na Lagoa da Conceição, a prefeitura reforçou uma série de faixas de pedestre na lagoa e no local que a performance aconteceu foram pintadas novas faixas onde não haviam. Gesto aparentemente pequeno, diante do caos que temos que enfrentar, nestas nossas cidades ainda tão rodoviaristas. Contudo, dá-nos esperança diante do nosso papel imponderado de cidadãos conscientes e políticos. É uma dimensão possível de ação!

Figura 12 - Uma semana depois da ação (26/05/2018) foram pintadas faixas de pedestres onde não haviam, justamente no local sugerido pelas pegadas gravadas no asfalto. (foto: Marcelo Cabral Vaz)

E agora, quais os próximos passos?

16


Bibliografia: BRASIL, República federativa do. Casa Civil, subchefia para assuntos jurídicos. LEI Nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm. Acesso em 25 de maio de 2018. CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017. GEHL, J. Cidades para Pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013, p 3 - 116 LADDAGA, Reinaldo. Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. São Paulo: Martins Fontes, 2012. LEPECKI, André. Corepolítica e coreopolícia. Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan/jun. (2011) 2012.

MOBILIZE: mobilidade urbana sustentável. Disponível em: http://www.mobilize.org.br/noticias/2776/pneus-deixam-rastros-de-tinta-emostram-como-o-carro-impacta-as-ruas-de-sp.html. Acesso em 25 de maio de 2018. PALLAMIN, Vera. Arte, cultura e cidade: aspectos estéticos-políticos contemporâneos. São Paulo: Annablume, 2015. PALLASMAA, Juhani. As mãos inteligentes: a sabedoria existencial e corporalizada na Arquitetura. Porto Alegre: Bookman, 2013.

ANEXOS: As manifestações e comentários sobre a intervenção A ação artística na Lagoa, despertou outros saberes e pontos de vista que gostaria de dividir aqui: ANEXO I A “instalação de faixa de pés”

Estava na Lagoa da Conceição, Florianópolis, SC, no dia 12 de maio de 2018, um sábado, próximo das 11:00h da manhã e vi uma “intervenção”, que por meio da arte desenhou um caminho na via, conectando uma praça segregada das águas da lagoa com uma praça que costeia a lagoa e, dessas ao mercado. Chamada de im[pé]ssão, a manifestação artística ou intervenção, me fez olhar no asfalto impregnado de areia, borracha e óleo, as marcas dos pés dos caminhantes. A tinta dos pés dos caminhantes desenhou, no olhar de uma criança que observava a instalação, a “faixa de pés”. Essa simples “faixa de pés”, representou naquele instante, as marcas dos pés de quem caminhou, com direção e sentido, permitindo distinguir quem foi e quem voltou. Na mesma via, próximo da “faixa de pés” tem uma “faixa de pedestre” que conecta o casarão ao restaurante. Saltou-me aos olhos, a mente, a inteligência perceptiva, a capacidade de análise o conflito de comunicação entre as faixas. Me chamou atenção o fato de que as listas 17


brancas da “faixa de pedestre” indicam a direção dos carros nas vias. Aos pedestres resta cruzar as listas brancas, como se estivessem saltando sobre as mesmas, já que estas são perpendiculares ao caminhar do pedestre. Um cadeirante literalmente salta sobre a saliência da tinta. Um cego, fica sem orientação. O sentido dos pés dos caminhantes na “faixa de pés” é perpendicular a direção da via, a direção dos carros, as listas brancas da “faixa de pedestres”. A minha percepção foi de que a “faixa de pés” é um paradigma que empodera a pessoa que caminha numa travessia de via. A arte em si é paradigmática. As instalações e manifestações que trazem inovação são mais ainda. Parece que a intensão dos arquitetos e urbanistas, estudantes de disciplina de doutorado da Arquitetura da UFSC, que protagonizaram o evento, queriam dar destaque para o atual tema da cidade para as pessoas. Contudo, ao pintar o asfalto com os pés dos caminhantes, escreveram uma mensagem que me fez refletir sobre a comunicação para o pedestre, a partir da imagem da “faixa de pés” e da “faixa de pedestres”. O sentido natural dos pés na im[pé]ssão evidenciou um “conflito” em relação as “faixas de pedestres” nas vias. Me fez perguntar: Onde está a origem disso? Por que o sentido das “faixas de pedestres” está na direção dos automóveis? Por que é tão difícil o automóvel parar nas faixas? Por que não é natural o pedestre usar a faixa? Será que os acidentes nas faixas também têm relação com isso? Se é “faixa de pedestre”, porque as listas são contrárias a direção do caminhar da pessoa? Por que a “faixa de pedestre” se tornou um “padrão”? Para responder as questões, por certo haveria que estudar um pouco mais. Contudo, a minha experiência de pesquisador e projetista me leva a sugerir que houve e há uma “fixação funcional” sobre a aceitação deste “padrão. Assumiu ser “patente” que a direção da via e dos veículos definisse as linhas da faixa. O pedestre se adapta! Os arquitetos e urbanistas atuais tem foco nas pessoas. O tema da cidade e das pessoas na cidade ganha espaço e está presente nos debates nas escolas, universidades, meios profissionais. Está presente na cidade de Florianópolis, onde o dirigente do IPUF tem dado centralidade ao tema da mobilidade para as pessoas nos meios de comunicação. Está presente na lei da mobilidade lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, que chama atenção para a prioridade do pedestre, como também o fazem autores como Bonifaz, et al. (2016), Vallejo (2007), Lerner (2011), entre outros. A minha percepção é de que a instalação potencializou pensar, refletir, questionar e sugerir a mudança, o novo, o atual. Não se submeteu ao estabelecido, do que é “patente”, do “sempre foi assim”. Fez o que deve fazer uma atividade artística. Uma atividade de pesquisa. Cumpriu com a função de uma disciplina de doutorado. Cumpriu com a função de uma universidade. Cumpriu com a função de quem olha para o futuro. Mexeu com o cotidiano. A força da manifestação também mexeu com as pessoas, suas opiniões, seu senso de estética, de arte, com o localismo, com o que está estabelecido e com o senso de propriedade do espaço público de um ou outro habitante da Lagoa da Conceição. As reações ao final da manifestação, em relação ao resultado, a mudança no espaço, as marcas dos pés no asfalto, as direções dos andares, o caminho redirecionado para estabelecer melhor conectividade entre as praças e o mercado se evidenciaram. Os que não quiseram debater, pensar, refletir, conjecturar apelaram para reprimir, condenar e criminalizar a instalação. Foi triste perceber a xenofobia, o preconceito, o descaso com o processo criativo. Foi triste ver o Estado, por meio da força policial, atuar num caso tão simples, tão efêmero, tão bonito, tão aderente a todos 18


que estavam na via. Foi mais triste ainda ver o aparato policial prender os participantes de uma “instalação” que apenas foi criativa, imaginativa, perceptiva, cognitiva para as pessoas, para o espaço, para a paisagem. Me perguntei mais uma vez: que Estado é esse? Por que reprimir a arte? Por que prender o artista? Por condenar a criatividade? Tal fato evidencia a força da arte, da instalação, da manifestação livre, do pensamento, do estudo, da pesquisa e do comprometimento institucional com as consequências advindas destas manifestações, para o futuro da vida local, da construção social, do espaço da cidade, do exercício da política e da cultura como um bem humano. Caminhar é preciso! É preciso reagir a quem se interpõe ao caminhar! Eu, tu, nós, vocês!

Acires Dias, Dr. Eng. Professor Titular do Departamento de Engenharia Mecânica da UFSC (aposentado) Professor Voluntário da UFSC Professor Visitante da FURB

Referências Bonifaz, José L; Castro William; Dias, Acires; Gonçalves, Jorge; Labraña, Carles; Silva, Fernando Nunes; Ventura, Francesc X. Retos para uma movilidad urbana de furuto. Ed: Grupo de Trabalho “Ciudad Y Movilidad”, RUITEM e IFHP. UFSC. 2016. Lei da Mobilidade urbana, lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012. Brasil. Lerner, Jaime. Acupuntura Urbana. Editora Record. 5ª Edição. 2011. Vallejo, Manuel Herce; Magrinyà, Francesc; Miró, Joan. El Espacio Urbano de la Movilidad. Ed. UPC, Barcelona, 2007.

ANEXO II: Parecer sobre a ocorrência da manhã do sábado 12/05/2018, na Praça da Lagoa da Conceição, que resultou na condução de dois cidadãos à Delegacia de Polícia da Trindade: Sra. Fátima e Sr. Lucas Dias. A ocorrência me foi relatada no domingo 20/05/2018, quando estive no local e pude ver ainda alguns vestígios dos pés marcados sobre o asfalto da via pública que separa a praça principal da área na borda da Lagoa da Conceição.

O relato: Um grupo de alunos de doutorado em Arquitetura e Urbanismo da UFSC estavam fazendo uma “intervenção urbana” no local como exercício prático de uma disciplina acadêmica do referido curso. O exercício foi marcar na via pública, com os pés pintados de cal + corante (tinta de pouca duração sobre o asfalto), os passos referentes as travessias usuais dos pedestres usuários da área. 19


Quando estavam quase concluindo o exercício, chegou uma viatura policial, que chamou reforço de uma segunda viatura, para levar o grupo para a delegacia. Ao final, foram levadas apenas duas pessoas que assumiram a responsabilidade pelo grupo, sob a acusação de crime ambiental. O caso está tramitando na justiça. A análise: A técnica da “intervenção urbana” é usada em práticas de ensino de temas relacionados com urbanismo, sociologia, arte etc. Essa técnica permite trabalhar em um ambiente real para testar teorias e interagir com os usuários/beneficiários aos quais se destinam as melhorias buscadas através desses estudos. (ver exemplo anexo) A polícia deve ter sido chamada para aparecer no local. Alguém deve ter se incomodado com a atividade do grupo. O papel da polícia em um caso desses deveria ter sido conversar com as partes para dirimir o conflito e encerrar a questão ali mesmo. Tanto aquele (ou aqueles) que chamou a polícia tem o direito de manifestar seu incômodo quanto os alunos tem o direito de usar a rua para suas práticas acadêmicas. Os locais públicos existem para os cidadãos usarem para diversos fins, se encontrarem, se manifestarem, da forma mais livre possível. Esse caso leva a muitas perguntas: Qual foi o crime ambiental cometido pelo grupo de alunos? Se os locais públicos são de uso de todos, porque algumas pessoas/grupos se comportam como se fossem donos desses locais? Se a escola é importante para o País, porque alunos e professores são frequentemente hostilizados? Se a justiça não consegue dar conta de demandas urgentes, porque não se resolvem “in loco” os casos menores como esse relatado aqui? Quem define as orientações para as ações policiais em casos de conflitos entre cidadãos em espaços públicos?

Enquanto indivíduos – alunos, policiais, moradores – podemos cometer muitos erros por desconhecimento de regras, principalmente se essas não são claras. Cabe aos órgãos públicos – legislativo, executivo e judiciário – definir e divulgar amplamente essas regras. Analisando esse caso, pode-se afirmar com certeza que as regras não são claras, nem para mim que tenho trabalhado por longos anos com questões ambientais e de mobilidade em áreas urbanas, nem para aquele(s) que acionou a polícia, nem para os agentes policiais e nem para os alunos e professores envolvidos. Meu parecer: Mesmo não conhecendo os detalhes do processo, esse caso não tem a consistência necessária para um processo judicial: qual foi o crime? qual foi o dano? há vítimas? Por essa razão, acho recomendável arquivar esse processo. No entanto, esse caso pode servir como um “case” para discussão na UFSC de temas sobre os papéis de cidadãos e agentes públicos no Brasil atual.

20


Florianópolis, 25/maio/2018 Profa. Dora Maria Orth – aposentada da UFSC Arquiteta e Urbanista, Doutora em Planejamento Territorial (48) 99962.5821 - doraorth@terra.com.br (dora.orth@ufsc.br)

ANEXO III: Exemplo de uma “intervenção urbana” como prática de ensino...

Oficina de Projeto e Desenho Urbano Desenvolvida com uma das atividades do PLAMUS, e organizada pela Logit em parceria com o ITDP, com aproximadamente 48 horas de atividades técnicas envolvendo especialistas e estudantes locais, sob a orientação do Arquiteto Michael King. Local e data: Espaço Floripa Interativa, Sapiens Parque, Canasvieiras, Fpolis, nos dias 23 e 24/07, 28 e 29/07, 31/07 e 01/08/2014. Sobre o ITDP (http://www.itdpbrasil.org.br/) - O Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP, segundo a sigla em inglês), é uma organização social sem fins lucrativos que promove transporte sustentável e equitativo com o objetivo de melhorar a qualidade de vida e do transporte nas cidades. No Brasil, atua em articulação com órgãos governamentais e organizações da sociedade civil, utilizando conhecimento técnico acumulado através da experiência em outros países, de modo a inspirar a excelência na implementação das soluções adotadas e seu potencial de replicação. Sobre Michael King (http://nelsonnygaard.com/staff/michael-king ) Michael King projeta ruas e redes viárias completas, resilientes e sustentáveis. Em mais de 20 anos de carreira, liderou projetos de mobilidade, acessibilidade e sustentabilidade, trabalhando globalmente de Nova Iorque a Nova Orleans, de Buenos Aires a Bangkoc. Ele se destaca na integração entre o transporte e o design. Foi o primeiro Diretor de "traffic calming" de Nova Iorque, projetou as primeiras ruas compartilhadas dos Estados Unidos, ajudou a originar as primeiras rotas seguras para escolas, e projetou as instalações para bicicleta do maior sistema de BRT da Ásia (Ghuangzou, China). Ajudou a criar a estratégia de ruas completas e sustentáveis de Chicago, e supervisionou a criação do guia NACTO de desenho de ruas urbanas. Em 2013, Michael foi eleito o profissional do ano pela "Association of Pedestrians and Bycicle Professionals".

21


Michel King explicando teorias urbanas aos professionais e acadêmicos participantes da oficina

Exercícios de “desenho viário” para melhoria da mobilidade

22


Dora Orth, como participante da oficina, apresentando resultados de exercĂ­cios prĂĄticos feitos ...

23




[Digite aqui] UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO TÉCNOLÓGICO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO – Pós ARQ

Evandro José de Oliveira de Andrade

Florianópolis 2018 1


[Digite aqui]

Evandro José de Oliveira de Andrade

Textos da Disciplina de Tópicos Especiais em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade:

IN(TER)VENÇÕES URBANAS A ART E E A ARQ UIT ET URA CO MO CO NST RUT O RAS DE DI SSENSO S

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO – Pós ARQ

Prof. Rodrigo Gonçalves

Florianópolis 2018 2


[Digite aqui]

INTRODUÇÃO

PEDESTRES PEGADAS PÉS IMPRESSÃO

IM (PÉ) SSÃO CHÃO PÉS NO CHÃO PEGADAS DOS PÉS DOS PEDESTRES NO CHÃO COMO IMPRESSÃO PEGADAS DE PEDESTRES COMO IMPRESSÃO DOS PÉS NO CHÃO PEGADAS COMO IMPRESSÃO DOS PÉS NO CHÃO DOS PEDESTRES

DA CIDADE

CIDADE PRA QUEM? Conforme a proposta da disciplina, IN(TER)VENÇÕES URBANAS, A ARTE E A ARQUITETURA COMO CONSTRUTORA DE DISSENSOS, proporcionou ao corpo, encampar a arte pública de forma performática com intervenções urbanas, dando condição de vivência e investigação-crítica dos espaços da cidade, de forma a contribuir de maneira efetiva no estudo e pesquisa da disciplina de urbanismo, com ação intervencionista. Então, diante da percepção da paisagem da cidade contemporânea, que se apresenta cada vez mais, com os espaços divididos e consequentemente, com menores possibilidades de convívios sociais em espaços públicos e com o corpo na cidade. Assim a cidade contemporânea torna-se progressivamente uma “arena de disputas e conflitos”, por interesses individuais ou de pequenos

3


[Digite aqui]

grupos que se fecham para agir somente em benefício próprio. Com isto, e em consequência disto, há sempre pergunta incessante que não cala: CIDADE PARA QUEM? Diante das investigações da cidade, a atuação do pensamento torna-se incessante, em visões múltiplas - disciplinares, pessoais, coletivas e ideológicos que atuam de maneira comprometida ou descomprometida do sentido do coletivo na construção e no viver das cidades. Com isto, o exercício da Arquitetura e Urbanismo ao promover ações de intervenções urbanas de forma performática, aproximam o compromisso do corpo com a atuação na cidade, assim, na possibilidade de vivência do espaço, o observador torna-se parte dele, de maneira mais comprometida com o lugar. O trabalho de In(ter)venção Urbana foi desenvolvido, à partir das reflexões teóricas, permitidas tanto pelos textos disponíveis da disciplina, que forneceram parte das bases conceituais-críticas, como pelos debates em mesa redonda de sala de aula, que foram muito produtivos, entre dissensos, consensos, mas com objetivo comum, acerca da discussão do espaço da cidade em suas qualificações espaciais no campo do uso da cidade, considerando os valores e as qualidades da importância do corpo na cidade, como dispositivo potencial de ação de arte urbana performática.. “A experiência urbana e arquitetônica trata-se, em essência, da experiência de uma insurreição, de corpos trafegando pelos lugares e experimentando espaços desviados de suas funções primeiras. O corpo, assim, extrapola uma atribuição programática de um luga r e traz à tona uma experiência da arquitetura urbana. É uma ação que se desenrola no cotidiano graças à recepção tátil dos espaços, uma experiência da apropriação que educa corpos e mostra-nos a compreensão dos vários tempos passados num lugar e que penetram na dinâmica da cidade. Podemos aprofundar a noção de experiência urbana adentrando na possibilidade de interrogar práticas urbanas e arquitetônicas lançando olhares sobre os arranjos que são sucessivamente desfeitos fazendo outros afetos circularem na cidade contemporânea. Presenciamos essa 4


[Digite aqui]

nova circulação atualmente em nosso país nos movimentos de decomposição de modelos políticos os quais promovem o derrubamento de certas condições políticas. São sinais de novos fluxos e intensidades num plano coletivo, tanto midiático quanto social.” SANTOS, RODRIGO GONÇALVES, contextualização da disciplina.

As possibilidades de ações propostas na elaboração da in(ter)venção urbana interagiram de forma teórica e prática, numa experiência estética do viver a cidade, com reflexões e interações performáticas que promoveram uma coreografia do gesto urbano, a qual é provocadora de reação, por romper com os padrões de comportamento padrão e usar como ferramenta a potência, o corpo.

Assim, no processo de transformação da paisagem das cidades ao longo dos tempos, o corpo e a arte urbana são elementos intrínsecos em sua construção, evolução ou destruição dos lugares. Á partir deste ponto de vista, é necessário intervir no espaço de maneira criativa, na busca das soluções desejadas e que podem ser conquistadas para configurar os espaços. Com isto, a arte criativa de in(ter)venção tem como consequência a estética do espaço, vivenciado e observado no cenário de seus eventos históricos e cotidianos.

.......indagar o que vemos. Para se aprofundar nesta indagação, é inevitável um olhar mais aguçado para as coisas, vê-las realmente como elas são. Neste movimento, uma atitude fenomenológica estrutura o universo da pesquisa, e, a partir desta opção teórica, ensaiam-se possibilidades de compreender um ver e um não-ver. Se vemos, o que estamos vendo? Se não vemos, o que não vemos? SANTOS, RODRIGO GONÇALVES, 2011.

5


[Digite aqui]

Para quem é a cidade? Pode parecer incrivelmente estranho se falar que as cidades são feitas para os automóveis, porém esta é a realidade da paisagem urbana, é predominantemente automobilística. Esta foi a opção colocada para modelo de ocupação, mobilidade e modo de vida cosmopolita. E as pessoas? Os cidadãos? A vivência do espaço no tecido social, onde está?

Nesta realidade, as cidades vão ficando cada vez mais longe da utopia colocada por Carlos Nelson F. dos Santos, em sua obra, “Quando a rua vira casa”, quando estuda o bairro Catumbi. Nesta é salientado aspectos de qualidade da vida urbana, proporcionados pelas relações de vizinhança e nas apropriações dos espaços públicos pela comunidade. Assim, distante desta realidade, a paisagem das cidades está cada vez mais reduzida a um cenário de medo das ruas e dos espaços públicos, ficando cada vez mais distantes das convivências sociais relacionadas aos lugares e suas naturezas. Porém, de certa forma, existem privilégios nas paisagens de bairro de baixa renda, onde o tecido social é mais presente na vida de seus habitantes, em comparação com as realidades dos condomínios fechados, em que há maior distância física nas relações sociais, as quais foram substituídas pelas relações virtuais. Com isto, parece que o rumo da cidade está sendo levado para um estado doentio de viver de seus habitantes.

EU, COMIGO A partir da ideia pessoal, eu, comigo, no anseio da atuação profissional como arquiteto-urbanista, sempre existiu em minha conduta de formação, tanto acadêmica, como na atuação profissional, a busca pela experimentação na vivência dos lugares. Seja na procura de viagens que trazem experiências em descobrir outras culturas e vivenciar territórios urbanos diferenciados. Assim como para execução de um projeto arquitetônico, em reconhecer a importância

6


[Digite aqui]

de “sentir” o terreno estudado para o projeto e intervenção nele, em seus múltiplos aspectos perceptivos, sensoriais, físicos, naturais, sociais, entre outros.

Na posição de projetista do espaço, arquiteto – urbanista, estou intimamente ligado com suas experiências vivenciais. Pois, considero que a percepção pessoal está ligada diretamente ligada na atuação do corpo físico e espiritual nos lugares. Como corpo intervindo nos lugares, desta forma, a experiência de in(ter)venção urbana, IM(PÉ)SSÃO, colocou o meu corpo como lapiseira de projeto urbano na calçada, saindo da sala de atelier para desenhar o espaço público das ruas com o corpo.

“O tocar da arte na poesia do corpo e da música que tocam o sentimento” (Rita Veloso)

QUEM DESENHA A CIDADE? OU O QUE DESENHA A CIDADE? e QUAL A SENHA DA CIDADE?

Conforme no texto de André Lepecki, “sabido como Jaques Rancière, identificando o que chamou de “regime estético” das artes (que se instaura mais ou menos no que, a história da arte chamaria de “modernismo”), afirma que tal regime opera para além das velhas questões do belo e do sublime, Em vez disto, nele, a arte seria responsável pela ativação de verdadeiras “partições do sensível, do dizível, do visível e do invisível, que, por seu lado, ativaram “novos modos coletivos de enunciação” e de percepção que, por sua vez e

7


[Digite aqui]

consequentemente, criariam insuspeitados vetores de subjetivação e de modos de vida”. (Ranciére, p.173).

O que conduz o traço que desenha a cidade é a política do espaço, em que a lapiseira que faz o desenho urbano é conduzida pelo gesto de interesses, sendo assim, guiada não somente pela geometria das condicionantes naturais geográficas, mas principalmente pelo direcionamento das intenções econômicas de pequenos grupos dominantes.

O desenho das cidades, em sua forma de corpo físico- estético, é definido principalmente por suas artérias de circulação. Da maneira como estas se dispõe no território, formam um desenho, chamado de “malha urbana”, que varia de acordo com suas, direções, sentidos e dimensões das viárias, de forma a definir as hierarquias de maior volume e interesse em acessos e deslocamentos.

As formas de deslocamentos urbanos, isto é, o modo utilizado para o seu transporte, como, automóvel, embarcações, bicicletas, pedestres., entre outros, também definem estética do desenho das cidades. Este cenário é composto em conjunto com a qualidade de ambiência entre ambientes coletivos e individuais. Desta forma, a cidade se mostra como forma estética em consequência de seus direcionamentos de intenções.

Assim, também como consequência das vias de deslocamento das cidades, é proporcionado a distribuição das ocupações, suas massas edificadas e vazios urbanos, os quais são consideráveis elementos de composição da paisagem, em seus usos e significados.

As cidades de uma maneira geral, quando não planejadas e desenhadas de forma a levar em consideração aspectos da paisagem no Plano Diretor, 8


[Digite aqui]

acontecem como simples consequência de aberturas de caminhos, de conexões comerciais e ligações de áreas de interesse. É claro que, historicamente na história das cidades, além dos fatores de proteção coletiva, as ocupações são consolidadas porque ligam caminhos e rotas comerciais. Contudo, no caso da história das cidades brasileiras, como na cidade de Florianópolis, percebe-se que a cidade se desenvolve como consequência dos asfaltos, ou de, até onde conseguem chegar os caminhos para a ocupação.

Como o deslocamento pela cidade é linear ao longo do seu território, ou do seu “tapete preto” para os automóveis, o asfalto, apresenta-se em condições urbanas precárias de infra-estrutura, sendo mal feito e com reduzidos transportes coletivos. Assim a cidade se desenrola num amontoado de automóveis enfileirados à espera do seu destino.

O automóvel sendo o principal elemento de mobilidade urbana, utilizado sem infra-estruturas básicas, atravessam a cidade e nos bairros os passeios são o próprio acostamento. Assim nestas condições, a borda do asfalto é compartilhada entre pedestres, ciclistas, carrinhos de bebês, automóveis e caminhões, todos juntos. Desta forma, as vias se configuram somente como lugar de passagem, de maneira conflituosa e perigosa

Então, quando não raro, o espaço da cidade é um trânsito de deslocamento incessante, aumentando e diminuindo conforme o horário comercial, dificultar assim, as locais onde podem acontecer as possibilidades relações de relações socias. Desta maneira, o automóvel domina o cenário da paisagem urbana construída, inclusive no cenário de importância cultural dos próprios habitantes da cidade, que apresentam dificuldade de deslocamento urbano, e em consequência deste padrão social, o automóvel ainda tem a prioridade dentro dos valores pessoais e coletivos no atual cenário de congestionamentos urbanos de mobilidade.

9


[Digite aqui]

Ainda, no atual quadro da paisagem urbana, existe a ação do mercado imobiliário que edifica a cidade de maneira perversa dentro da lógica de mercado, constrói o espaço conforme a prioridade do lucro e negligenciando muitas vezes por motivos de economia, as qualidades técnicas dos arquitetos e urbanistas que são atribuídos a competência profissional como especialistas do espaço.

“El paisage es um constructo, uma elaboración mental que los hombres realizamos a través de los fenõmenos de la cultura. El paisage, entendido como fenómeno cultural” (MADERUELO, 2006).

O interesse que domina a lógica econômica da construção do espaço, age na política, no poder legislativo, nas decisões dos Planos Diretores e nos meios de mobilidade urbana, agindo também de forma ampliada nos negócios que vão além do mercado imobiliário, como no comércio de revendedoras de automóveis, dos postos de gasolina, entre outros meios que envolvem o lucro nas atividades básicas da população, como, moradia, alimentação, transporte e comunicação.. Desta maneira, um pequeno grupo da sociedade atua em conjunto nas atividades que pertencem ao ir e vir dos cidadãos, nas comunicações e suas subsistências, dominando assim, a paisagem econômica e social.

A estética da cidade e da cultura de um povo é como a consequência de seus atos criativos e moram no anseio da busca de soluções para a melhor vivência em seus espaços. A estética da cidade é caso de política e Arte Pública!!

“A percepção do tempo, do espaço e da natureza muda com a evolução cultural, o que exige a procura de novas formas de organização do território que melhor expressem o universo contemporâneo, formas que capturem o conhecimento, as crenças, os propósitos e os valores da sociedade” (LAURIE, 1983).

10


[Digite aqui]

O DIREITO À CIDADE OS PÉS PODEM DESENHAR A CIDADE ! O GRITO DE UTOPIA:

“A vida pode mudar a arquitetura. No dia em que o mundo for mais justo, ela será mais simples”. (Oscar Niemeyer) 11


[Digite aqui]

De maneira convicta, do pensamento de inclusão do corpo na cidade e procurando abrir mais caminhos para o processo de reconquista do espaço dos pedestres na malha urbana da cidade, o projeto de In(ter)venção Urbana, Im(pé)ssão corporal, formado pelo grupo CIDADES PRA QUEM? Desenvolveu a intervenção de Arte Pública, PEGADAS ENTRE PRAÇAS. A qual consiste, nada mais que, a impressão de uma faixa de pés no asfalto, com o propósito de evidenciar a significativa presença dos pedestres na rua e sua vulnerabilidade nas atuais configurações da cidade.

Diante da carência de projetos urbanos qualificados para as áreas públicas da cidade e a falta de conexões caminháveis entre elas, assim como, os pontos de interesse comuns para o pedestre, que são, pontos de ônibus, feiras, mercados, escolas, entre outros. São locais que devem existir maior atenção e reconhecimento para os setores do planejamento e projeto urbano, assim como para a população em geral.

São nestas áreas que podem ser mais transitáveis por pedestres e bicicletas que possibilitarão a transformação da atual realidade da paisagem urbana, hoje dominada por automóveis nos deslocamentos da cidade. Também há de se considerar num olhar fenomenológico, que, além do potencial do corpo na cidade, a natureza existente nos lugares que devem ser incorporadas na qualificação dos deslocamentos, como paisagem.

“O espaço da cidade, os espaços públicos podem ser espaços de poesia.” Debourd Sociedade do Espetáculo.

O direito à cidade, parte do princípio de valorizar natureza existente no meio urbano, aproveitá-la em conjunto com os espaços públicos e meios de locomoção. Pois da maneira precária que se encontram atualmente, impõem 12


[Digite aqui]

muitos limites para o corpo físico. Então poder desenhar com os pés parte da cidade pode ser um grito de utopia. Schulz, teórico norueguês com interesse crescente pela fenomenologia desde a década de 60 até seu livro, Architecture: Meaning and Place (1988), vem desenvolvendo uma interpretação textual e pictórica das idéias de Martin Heidegger (1889-1976), baseando-se no ensaio do filósofo alemão “Construir, Habitar, Pensar”. Em Intentions in Architecture (1963), Schulz usou a lingüística, a pisicologia da percepção e a fenomenologia para construir uma teoria abrangente da arquitetura. Entre elas aparece o conceito de lugar, termo concreto para se falar de ambiente, algo a mais que uma localização abstrata, além da substância material, forma, textura e cor, a “qualidade ambiental”, essência do lugar, a “atmosfera” que o envolve. Alguns fenômenos formam ambiente para outros. A “paisagem” é um fenômeno muito abrangente. A floresta é feita de árvores e a cidade é feita de casas. O fenômeno do lugar – Cristian Norberg-Schulz.

O PROJETO DE INTERVENÇÃO PARTIDO A ideia para a performance de in(ter)venção urbana, partiu de reflexões conceituais sobre o uso da cidade, CIDADE PARA QUEM? Então o grupo de trabalho optando em in(ter)vir no espaço da rua, do asfalto, o espaço mais conflituoso e perigoso da cidade. E como linguagem desta ação, foram inspirados em alguns elementos observados pelos autores, que criam relações estéticas na atuação do corpo com o espaço, como:

Pegadas

13


[Digite aqui]

Acompanham o homem como registro de existência, até os dias atuais, como suas pegadas deixadas pelo chão, que representa a presença de um corpo que passou ali, deixando suas marcas e podendo voltar a qualquer momento.

Arte Rupestre

Arte do corpo, espaço e tempo: As inscrições rupestres representam uma forma de registro de comunicação do homem com a natureza em seu cotidiano, crenças e funcionalidades com o meio. Também é com forte valor simbólico na relação da paisagem da ilha de Santa Catarina.

Desenho corporal

O desenho corporal é algo bastante significativo como registro estético do gesto com o próprio corpo para imprimir a arte corporal. Inspiradora para a intervenção pública.

14


[Digite aqui]

Paisagem de automóveis

A paisagem de automóveis predominante nos meios de locomoção das cidades, foi o princípio de toda a inspiração para o desenvolvimento da in(ter)venção.

Referenciais de Intervenções

NY, A Broadway Overhaul + pedestres

15


[Digite aqui]

BERLIN, Rosenthaler Platz. Painting Reality, grupo Anonymous Crew , artista holandês IEPE.

SÃO PAULO, rua Amaral Gurgel, minhocão

“dispositivos de im[pé]ssão” O processo de criação

16


[Digite aqui]

O principal equipamento de Im(pé)ssão, o calçado, começou a ser desenvolvido na universidade, onde foi realizado um teste de impressão de pegadas com sucesso. Logo após foram desenvolvidos modelos mais elaborados, em compensado e com a reutilização de calçados e chinelos velhos. Foi colado nas solas, espuma absorvente de tinta para garantir as impressões das pegadas por maior número de passos durante a travessia no asfalto.

Camisetas CIDADES PRA QUEM?

17


[Digite aqui]

ESTUDO DE AÇÃO PRELIMINAR MORRO DAS PEDRAS

18


[Digite aqui]

Rua Manuel Pedro Vieira, Morro das Pedras

Antes de intervir no local mais desejado pela equipe de in(ter)venção, foi feito inicialmente uma ação preliminar de teste para saber dos resultados das pegadas na escala da rua. Foi então que a equipe constatou que para melhor efeito das Im(pé)ssões, inclusive para dar efeito na escala dos automóveis, as pagadas deveriam ser em grande número e coloridas.

Esta ação preliminar de bairro, foi aparentemente bem vista pelo olhar dos transeuntes no momento, entre pedestres e ciclistas, porém a sensação que tivemos em relação aos automóveis que passavam no momento não foi a mesma. Contudo, depois de conversar com o presidente da associação de moradores do bairro, este incentivou a ação por outras áreas que seriam interessantes e necessárias para chamar a atenção pela segurança dos pedestres.

19


[Digite aqui]

A INTERVENÇÃO

LAGOA DA CONCEIÇÃO O Grupo de Intervenção Urbana CIDADE PRA QUEM, elegeu o local para fazer o ato da intervenção, no cruzamento que é possivelmente, o mais conflituoso da cidade, entre as ruas, Henrique Veras do Nascimento, Rita Lourenço da Silveira, Sen. Ivo DÁquino, praça Bento Silvério e praça abandonada, às margens da lagoa da Conceição, Patrimônio Cultural e Paisagístico de Florianópolis.

É neste cruzamento viário que se concentram uma grande diversidade de atividades de uso do local, como feiras, artesanatos, eventos culturais, restaurantes, mercados, comércio em geral, pontos de ônibus, táxis, terminal de transporte marítmo, entre outros, além de local de lazer, também é um ponto de intensa passagem para outros locais e bairros. Sendo assim, os conflitos entre pedestres e automóveis são notórios a todo o momento. Apresentando muitos eventos de acidentes, porém não registrados, devido aos impactos não serem muito danosos e como consequência disto, não são registrados no órgão de segurança pública.

Florianópolis – natureza x cidade

Lagoa da Conceição Situação da In(ter)venção

20


[Digite aqui]

Localização da In(ter)venção A principal via que atravessa o bairro da Lagoa da Conceição é considerada pela lei da Paisagem, como via panorâmica no Plano Diretor da cidade. Esta vem descortinando a paisagem ao longo do seu percurso, desde o Morro da Lagoa, porém neste trecho apontado, a paisagem visual da natureza é interrompida pelas edificações que dão fundos para a lagoa e pelo asfalto que separa as praças da borda d´agua, ficando esta isolada, acabam sendo apropriados com usos indevidos para aquela área nobre de espaço público.

Placa existente na praça abandonada, na beira da Lagoa da Conceição.

21


[Digite aqui] “...é preciso mudar este olhar (das panorâmicas) e movê-lo da distância segura na qual se encontra, na condição de observador, para uma aproximação ao cenário que é visto de longe, para uma condição de participante. Pois é no nível do olhar do pedestre, nos percursos feitos a pé, que o andar nos permite reconhecer as múltiplas realidades que não aparecem na paisagem da visão panorâmica: uma cidade inacabada em relação às paisagens construídas pelo homem.” (GRAD – 2008).

Croqui conceitual de Lucas Sabino, a travessia entre praças e à paisagem da lagoa.

“Cego é quem vê só até onde a vista alcança” (Antônio Candeia Filho)

A projeto de In(ter)venção Urbana é sinalizar o asfalto através de evento de Arte Pública performática e efêmera, usando tintas à base de cal de para sinalizar, além da travessia dos pedestres pela via, sua evidente conexão entre praças separadas pela via de automóveis, como também, a necessidade de integração do tecido da cidade entre a paisagem natural e a construída.

22


[Digite aqui]

Desenvolvimento do conceito de In(ter)venção na Praça Bento Silvério, Lagoa da Conceição. Por Lucas Sabino.

23


[Digite aqui]

Ato de Im(pé)ssão Corporal

In(ter)venção, In(pé)ssão Corporal, Pegadas entre Praças

Ficaram só os pés e os automóveis continuam dominando a paisagem. 24


[Digite aqui]

O olhar de outro sobre as coisas é uma segunda abertura. (…), é a possibilidade de uma distância entre o nada que sou e o ser. (…), o outro, enquanto não me fala, permanece um habitante de meu mundo, mas me lembra (…) que este anônimo não monta o espetáculo para si mesmo, que o monta para um X, para todos aqueles que presuntivamente quisessem tomar parte nele (MERLEAU-PONTY, 2007, p. 65) SANTOS, Rodrigo Gonçalves, 2011.

CONCLUSÃO Da IM(PÉ) SSÃO, A IMPRESSÃO É A QUE FICA! Este mecanismo mental de uma impressão é a sobra dos processos neurológicos antigos que ajudaram nossos ancestrais na sobrevivência social e herdamos até hoje. A linguagem corporal transmite emoções, intenções, complexos, orientações, favorabilidade, vulnerabilidade e confiança Maia, Júlio César, 2017.

25


[Digite aqui]

A experiência estética de viver a cidade com de atividade de In(ter)venção Urbana de forma performática, despertou a postura política – crítica envolvendo o corpo no espaço-público e com os cidadãos presentes no ato para as possibilidades de qualificações urbanas, podendo assim, serem ampliadas os exercícios da crítica para espaços que vão além dos locais de intervenção.

O ato de intervenção foi aparentemente sentido pelos intervencionistas como positivo na reação de alguns pedestres, sendo percebida principalmente com a adesão dos motoristas dos automóveis. Inclusiva no apoio recebido do motorista de ônibus, que acenou no momento do ato e parabenizou a manifestação Im(pé)ssão. Dentro deste quadro uns poucos motoristas de automóveis se mostraram intolerantes ao evento.

Porém como no exercício político da arte e da arquitetura pode criar dissenso, aquele que sai do censo comum, a intervenção criou dissenso para alguns expectadores que interpretaram a obra como uma intervenção criminosa à ordem do espaço, de forma à incomodar seus padrões estéticos pessoais e de postura de comportamento. Então existe uma insurgência imposta pela padronização de postura comportamental. Logo na Lagoa, os donos do bom gosto e da verdade absoluta, chamaram a polícia.

“A polícia, unidade repressora oficial” Plebe Rude

RESISTÊNCIA / SUBJETIVIDADES / CONTRACONDUTAS A arte é política porque é provocativa de questionamentos, de expansão da percepção, no campo físico, mental e espiritual. A intervenção na Lagoa marcou a ação porque rompeu com a padronização da sensibilidade do espectador, sendo percebida com fatores 26


[Digite aqui]

predominantemente subjetivos. Com isto traz a evidência que a arte corporal rompe com o comportamento padrão, ela pode provocar o modelo de estético imposto, quando então surge o dissenso, onde num só momento da ação artística, transforma-se em política e caso de polícia.

O corpo fenomenológico ao caminhar sem objetividade, então com subjetividade, torna-se perigoso, pois assim não delimita as coisas. CARERI, Francesco, 2017.

A ação da arte corporal performática provocou em alguns espectadores o dissenso, pois estes não perceberam no momento, a utilidade do ato de intervenção, que tem como propósito o de viver, cuidar, e amar a cidade. Estas são maniestações de contra condutas que trazem a visibilidade pública, não de arte, mas simplesmente de protesto.

“A idéia de que é importante não apenas pensar o espaço público como produto, mas também como processo, no qual outros atores sociais entram em cena, participando com suas percepções, valores, necessidades e desejos.” (FELIPPE, 2002).

O direito à cidade, é poder andar de um lado para o outro da cidade. Em que no corpo e na arquitetura, a cidade é o palco dos manifestos da arte pública.

POSTURA ÉTICA. A paisagem que predomina no tecido urbano na vivência das cidades é predominantemente dos automóveis, são eles que ditam as regras, ocupam o maior espaço, configuram as maiores barreiras, são os mais poluentes da atmosfera e os que mais causam acidentes e mortes. Porém a arte que cria dissenso, pode ser crime ambiental!? 27


[Digite aqui]

Fotos: Angelita Maria CorrĂŞa

28


[Digite aqui]

Delegacia

A PINTURA COM OS PÉS, AINDA QUER CONTINUAR FAZENDO ARTE NAS RUAS

29


[Digite aqui]

Bibliografia:

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017.

FELIPPE, Ana Paula. Paisagem e ambiente: ensaios FAU,USP - 2002. LADDAGA, Reinaldo. Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. São Paulo: Martins Fontes, 2012. LEPECKI, André. Corepolítica e coreopolícia. Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan/jun. (2011) 2012. PALLAMIN, Vera. Arte, cultura e cidade: aspectos estéticos-políticos contemporâneos. São Paulo: Annablume, 2015. SANTOS, Rodrigo Gonçalves dos. Perceber o (in)visível: o corpo desenhando uma trajetória existencial no espaço e no objeto. 2011. Tese (Doutorado) Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011.

Sites: http://www.mobilize.org.br/noticias/2776/pneus-deixam-rastros-de-tinta-emostram-como-o-carro-impacta-as-ruas-de-sp.html Lei da Mobilidade: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2012/lei/l12587.htm https://www.linguagemcorporalemfoco.com/linguagem-corporal-primeiraimpressao/

30



Programa de pós-graduação do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Disciplina de Tópicos Especiais da Arquitetura e História da Cidade: In[ter]venções urbanas: a arte e a arquitetura como construtora de dissensos

Professor Dr. Rodrigo Gonçalves

IM[PÉ]SSÃO CORPORAL: pegadas entre praças. Cidades Pra Quem?” In[Ter]venção de arte pública

Msc. Ademir França Arquiteto, urbanista e professor urb.ademir@gmail.com

Data: 30 / 05 / 2018


Apresentação Este texto nasce como trabalho final da disciplina “In(ter)venções urbanas: a arte e arquitetura como construtoras de dissensos” no programa de pós-graduação do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC). Ele nasce também em conjunto com indagações e reflexões sobre cidade/arte/política que surgiram, não apenas com as discussões com o professor e colegas da disciplina, mas também com as minhas experiências pregressas como arquiteto e urbanista, professor e cidadão. É um texto que ainda encontra-se em elaboração, mas que marca uma etapa de um processo de construção de um pensamento. Utilizando uma intervenção de arte pública denominada “Im[pé]ssão Corporal: pegadas entre praças Cidades Pra Quem?” In[Ter]venção de arte pública”, que aconteceu no dia 12 de maio de 2018 na Lagoa da Conceição, Florianópolis, elaborada por um grupo de colegas de qual participei, procurarei levantar visões, pensamentos, indagações e sensações que surgem desta experiência pessoal comigo, com o outro e com os outros.

Introdução A partir de algumas leituras durante o curso de mestrado e tendo como referência Edward Soja (1985), percebo que uma parte da população vê a cidade apenas como um espaço físico formado por ruas, prédios e seus respectivos usos e formas todos distribuídos desigualmente no espaço. A organização espacial adquire, dessa forma, uma aparência natural, mecânica ou orgânica, independente do processo de transformação social e onde a prática social é tida como a simples agregação de preferências individuais, disciplinadas por uma funcionalidade espacial definida por localização. Uma outra parte da população, e principalmente alguns planejadores urbanos, olham a cidade como um projeto mental, onde as imagens tomam prioridade sobre a substância tangível ou o processo generativo. A organização espacial da sociedade é vista como a projeção de modos de pensar hipoteticamente independentes das condições sóciomateriais de sua produção, ou seja, tomam-se as ideias como independentes da realidade histórica e social (SOJA, 1985). Ao não verem a cidade como uma obra coletiva, como um conjunto de símbolos, como um produto de uma sociedade desigual, contraditória e complexa, e também inserida num contexto do modo de produção capitalista, onde os espaços assumem o papel de mercadoria, as duas formas de ver reduzem a construção da cidade e seu planejamento como algo meramente técnico, esvaziando assim a sua dimensão e o uso político,


induzindo os cidadãos a transformarem-se em mero expectadores, consumistas e passivos delegando aos técnicos e planejadores, não apenas sobre a tomada de decisões, mas a discussão necessária para a tomada de decisões sobre a construção da cidade. Contudo, esta cidade moldada por interesses mercadológicos e funcionais, que valoriza a tecnocracia, onde o planejamento se faz de cima para baixo em detrimento da participação popular, nunca me satisfez. Também acredito que parte da população inverte a mediocridade da experiência superficial de vida proposto por esta cidade e percebem o que Lefebvre (1968, 1970) escreveu na década de 60, que o direito à cidade não se reduz somente a resolver os problemas de necessidades básicas como habitação, saneamento, transporte entre outros, mas além disso é a busca da cidade como espaço a ser usado coletivamente, como lugar da pluralidade, da simultaneidade, do encontro e do confronto de ideias, do intercâmbio, da mistura social e funcional; é o direito a não ser excluído da obra, da centralidade e seu movimento, é o direito de fazer parte da cidade, de viver e fazer a história da cidade. De algum modo no cotidiano (LEFEBVRE,1991 apud VELLOSO 2016), através de micro ações que não deixam de ser políticas, todo mundo faz a sua própria crítica à cidade, seja para protestar procurando criar um outro cotidiano contra esta ideologia imposta do conformismo e do descartável, ou para preservar o status quo e reproduzir mais do mesmo. Entretanto, vejo que a constituição de nossa sociedade, que constrói as nossas cidades, encontra na essência a arte e a política, além da técnica. Muito além da políticagem, a política - enquanto participação de diferentes camadas da sociedade para a construção e a resolução de conflitos de interesses de alcance coletivo também - deve ser definida literalmente de acordo com Rancière (2010 apud LEPECKI, 2011) em termos estéticos indo ao encontro da arte. Para ele, a arte operando para além das velhas questões do belo ou do sublime, seria: “responsável pela ativação de verdadeiras „partições do sensível, do dizível, do visível e do invisível‟, que, por seu lado, ativariam „novos modos coletivos de enunciação‟ e de percepção, que, por sua vez e, consequentemente, criariam insuspeitados vetores de subjetivação e de novos modos de vida. Tais partilhas e distribuições do sensível não são apenas pela arte mas também pela política, pois ela também é „uma intervenção no visível e no dizível‟.” (RANCIÈRE, 2010 apud LEPECKI, 2011)


Agamben coloca que “a arte é inerentemente política, porque é uma atividade que torna ativos, e contempla, os hábitos sensoriais e os hábitos gestuais dos seres humanos, e, ao fazê-lo, os abre para um novo uso potencial” (AGAMBEN, 2008 apud LEPECKI, 2011). Para Rancière (2010 apud LEPECKI, 2011) o “elemento” que funde arte e política num só ser seria aquilo que ele chama de “dissenso”. “Se existe uma conexão entre arte e política, ela deve ser colocada em termos de dissenso – o âmago do regime estético” (Rancière, 2010 apud Lepecki, 2011). Esse âmago tem uma dinâmica; é em si mesmo dinâmico, cinético, no sentido de que dissenso produz a ruptura de hábitos e comportamentos, e provoca assim o debandar de toda sorte de clichês: sensoriais, de desejo, valor, comportamento, clichês que empobrecem a vida e seus afetos.” (LEPECKI, 2011) Cabe ressaltar que Rancieré e Agamben colocam o corpo e suas capacidades e potências que, através da fusão da arte-política, podem ter a função de perturbar a formatação cega de gestos, hábitos e percepções (LEPECKI, 2011). As consequências de tais afirmações podem mostrar novas formas de viver, perceber, pensar e planejar a cidade e a política.

Intervenções artísticas Na década de 1960, ao escrever o livro “Sociedade do Espetáculo”, Guy Debord (1997) mostra a nova fase da sociedade capitalista, quando há uma interdependência entre o processo de acúmulo de capital e o processo de acúmulo de imagens. É uma sociedade passiva, alienada, expectadora, onde não há a participação, onde o poder espetacular vai se disseminado por toda a vida social, através da produção e consumo de mercadorias e de imagens, valorizando a imagem e o efêmero, colocando a cultura como mercadoria e geradora de processos de estetização da cidade; há um esvaziamento de conteúdos, uma naturalização das desigualdades sociais. Como pensar e agir, nesse âmbito de uma sociedade espetacularizada e imersa numa cultura de consumo que já estamos vivendo? O movimento situacionista da qual Debord fazia parte colocava que o antídoto contra o espetáculo seria o seu oposto: a participação ativa dos indivíduos em todos os campos da vida social, principalmente na cultura, tendo o espaços urbano como terreno de


ação. Através da construção de situações, de ambiências momentâneas da vida, se chegaria a uma transformação da vida cotidiana1 despertando o espectador a agir, instigando suas capacidades para mudar a própria vida. (BERENSTEIN, 2003 ). Ou de acordo com a proposta de Jacques Ranciere (LEPECKI,2011), colocando na relação arte-espaço urbano o dissenso como o real motor do politico. Diante de tal perspectiva, vejo que a arte-política feita no espaço urbano, longe do museu, que pode ser em diversas escalas, como prática crítica associa-se à ideia situacionista e potencializa - devido ao seu poder subjetivo e objetivo - o papel das intervenções negativas ao contrapor-se à cultura puramente afirmativa que é divulgada pela mídia sem a reflexão e o conflito de ideias. Pallamin (2015) reforça que a arte urbana; “procura enfatizar a via pela qual os valores da arte contemporânea não são vistos separadamente de problemas da vida urbana e cotidiana. Sua concreção estética, as significações e valores com os quais trabalha incitam ao questionamento sobre como e porque os espaços da cidade são determinados, que imagens, representações e discursos são aí dominantes, quais ações culturais contam ou quem tem exercido o direito à fruição, à participação e à produção cultural‟ . Potencializada pela ideia de tornar a cidade disponível para todos os grupos, essa prática crítica inclui, entre seus propósitos estéticos, o desafio a certos códigos de representação dominantes, a introdução de novas falas e a redefinição de valores como abertura de outras possiblidades de apropriação e usufruto dos espaços urbanos e simbólicos. Ao adentrar na camada das construções simbólicas dos espaços públicos urbanos, mexe com o percepção e a representação dos imaginários sociais (PALLAMIN, 2015). Ao enxergar a cidade como um lugar de experimentação e de responsabilidade de cada um, várias pessoas em diversos lugares começaram a se grupar em coletivos pra discutir, questões de cidadania, apropriação do espaço urbano e atuando principalmente através de intervenções artísticas trouxeram novos modos de pensar a soluções para os problemas urbanos.

1

Muito semelhante a teoria de HenriLefvbre que partipou do movimento situacionista no início.


Essa nova forma de organização social, quase sempre através de atividades de curta duração, de baixo custo, de micro escala e temporária, mostra outra possiblidade de aproximar atividades cotidianas, ação política e apropriação da cidade, e tem sido chamada, em alguns lugares, de urbanismo tático. Segundo Lydon (2015 apud SOBRAL), o urbanismo tático através de intervenções feitas de baixo para cima, em que a população tem o poder de escolha e de tomada de decisão no espaço público, facilitam na catalisação de mudanças a longo prazo, realizadas não só por urbanistas, mas por locais através do engajamento social. É um urbanismo gerado pelo usuário e para o usuário. Muitas das intervenções de arte urbana, como prática crítica, são como provocações, uma rebeldia criativa para o modo de produzir e planejar as cidades, servindo como forma de desmascarar o processo de planejamento que esconde o conflito da construção da cidade, que privilegia ações para determinados grupos com interesses específicos. Os coletivos de arte, bastante influenciados por outras experiências como os situacionistas, os dadaístas e outros artistas, têm crescido não só em relação aos seus participantes, mas como os lugares de sua abrangência e seus formatos e meios. Os formatos vem se caracterizando com uma temporalidade singular, criando usos temporários e interinos, valorizando uma poética do instante e do gesto, do precário e do efêmero. Algo para ser produzido, experimentado e vivenciado coletivamente Muitas vezes a obra fica inacabada e aberta; ela depende da participação e da criatividade do outro. Não existe com plano de utilização, nem indicações precisas, nem modelos pré-estabelecidos - o participante é deixado livre em sua ação. Em vez de criar um espaço para determinado programa de usos e funções, propõe-se o espaço para, em seguida, deixar que sejam descobertos os usos e funções possíveis (BERENSTEIN, 2012). Mesmo de modo muito discreto e de caráter efêmero, a intervenção - sendo uma aventura no sensível - contribuiu com a desregulação de certos valores cristalizados, gerando novas formas de esclarecimento e abrindo novas extensões do espaço vivido, promovendo uma reviravolta na imediaticidade do espaço habitual ou familiar segundo Pallamin(2015) .


E aí, como se faz uma intervenção? Como fazer uma intervenção que muda lugares e pessoas, mas que ao mesmo tempo sabe que um lugar é uma singularidade histórica, reverberando passados, presentes e futuros (políticos)? Qualquer obra tem uma carga grande de subjetividade e não existe uma receita, mas tentando ser objetivo, a partir das experiências, dos processos que participei ou quando peço aos meus alunos a realização de uma intervenção artística, ou a criação de uma situação, buscando criar um dissenso, as primeiras perguntas que surgem são: qual o problema, ou sobre o que queremos falar, e pra quem e aonde vamos fazer. Depois surgem perguntas secundárias, ainda que estejam todas entrelaçadas, para ajudar na criação: como vamos fazer, qual o tempo para a realização e de exposição, quando vamos fazer, quantos vão participar, quanto vai custar... A fim de responder as primeiras perguntas procuramos entender qual é o contexto politico, sócio-espacial/temporal que queremos abordar e em que estamos - isto envolve diversas escalas (familiar, de bairro, da cidade, território, global), diversos públicos (aspectos sociais, culturais) haja vista que existem questões e problemas que são bastante singulares ou universais. Considero importante fazer uma leitura do contexto temporal, do que está acontecendo agora em diversos aspectos e onde e porque estão acontecendo; e principalmente, para perceber qual o ritmo, frequência e incidências de determinados acontecimentos, para criar consciência e entender o movimento da realidade, de forma que a intervenção com sua carga semântica, por mais simples e efêmera que seja, possa se instalar no “momento certo”, provocando uma mudança significativa desse movimento no tempo e extrair conforme Baudelaire o “eterno do transitório”. A obra de arte, conforme Bourriaud (2011), “deve contribuir para a produção do seu próprio contexto” e “não é um objeto terminal”, e sim “um mero instante em uma cadeia, o ponto de acolchoamento que amarra, com maior ou menor firmeza, os diferentes episódios de uma trajetória”. Quanto ao contexto espacial - que está diretamente ligado ao contexto temporal acredito que possamos criar em qualquer lugar uma intervenção; no entanto, por outro lado, dependendo do que queremos abordar em termos de contexto temporal, político e social, assim como o público que pretendemos atingir, a escolha do lugar é determinante. Neste sentido, a forma da cidade, feita coletivamente ao longo da história, com suas ruas, praças e edifícios com seus respectivos usos, todos distribuídos e localizados


desigualmente no espaço, tem a capacidade devido a sua configuração morfológica de condicionar o movimento das pessoas e pensamentos, atraindo maiores fluxos em determinados locais. Haverá locais mais centrais, mais movimentados ou menos centrais. (KRAFTA 1994, FRANÇA, 2004) Além do configuracional, quanto ao aspecto tipológico, a morfologia da cidade com seus diferentes elementos, principalmente os edifícios, ruas e praças, cristaliza em seus diferentes tipos, de uma certa maneira, a memória e a história da cidade. Ao compreender os vários tempos cristalizados nos edifícios e ruas e o uso cotidiano dos espaços, pode-se ter, segundo Velloso (2017), a “experiência arquitetônica ou apropriação que decorre do encontro entre a memória do habitante, e a memória inscrita no próprio lugar” e que só vêm à tona se a ação de uso do espaço significar penetrar na dinâmica da cidade, mergulhando nos elementos espaciais e objetos que o conformam. Ou seja, a história dos lugares se revela na experiência. Quando se mexe no fluxo do movimento consensual dos acontecimentos, para escapar da aparente “normalidade”; quando se toca no uso e na memória das pessoas e dos lugares criticamente e nas suas representações através de uma situação criada, abre-se uma nova experiência, um novo entendimento, nem que seja no infinito do instante, auxiliando em uma tomada de ação, possibilitando o surgimento do sujeito político, não alienado, capaz de exercitar sua potência para o dissenso, de criticar a realidade, possibilitando a transformação. Conforme Rita Velloso (2017), usando o vocabulário da arquitetura racionalista “tudo o que se trata numa insurreição é, sem qualquer dúvida, dos corpos trafegando pelos lugares, corpos experimentando espaços desviados de suas funções primárias, em usos corpóreos dos lugares que não raro serão extrapolações de atribuição programática (ou funcional)”. As intervenções no espaço público podem ser feitas através dos objetos cotidianos, buscando vazios e brechas nas formas mais triviais no tecido sócio espacial, como instalar centenas de flores de papel em um espaços público, colocar um balanço em um viaduto, criar coreografias inusitadas usando o mobiliário urbano, colocar uma lápide em frente a lugares onde tinham edifícios com valor arquitetônico, ou mesmo, caminhar à deriva com um grupo2. 2

Exemplos feitos no semestre 1/2018 por diversos grupos na disciplina “In(ter)venções urbanas: a arte e arquitetura como construtoras de dissensos” no programa de pós-graduação do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC).


Chama a atenção que, mesmo pequenas situações no espaço público - através da arte - têm o poder de nos levar além do óbvio; a ultrapassar o senso comum e vislumbrar novos caminhos para a criação do mundo e da gente e apontar ao mesmo tempo a inflexão e o espelhamento como tem sido socialmente construída a cidade. (PALLAMIN, 2015). Daí a relação estreita entre arte e política, cidade e corpo.

A intervenção na Lagoa Nossa intenção era tocar numa questão política importante que incomodasse todas as pessoas no seu dia a dia, não sendo direcionada à um grupo especifico. Não sabíamos o que fazer; surgiam várias ideias sem importância, mas que iam fazendo parte do nosso processo de criação. A escolha da Lagoa da Conceição, e mais especificamente, um trecho da Rua Henrique Veras do Nascimento, entre a Praça B. Silvério e a Praça Pio XV (Figura 1) como local da intervenção deu-se antes do problema. O local, por ser uma centralidade de Florianópolis, com uma grande movimentação de diferentes pessoas, sempre presente no imaginário dos moradores e turistas, e sendo um importante nó de ligação da parte leste e oeste da cidade - “pedia” uma intervenção que fosse à altura da importância de sua localização.

Figura 1 - Foto aérea da Praça Bento Silvério e arredores. Fonte da imagem: GoogleEarth.


Entre os diversos problemas urbanos, o escolhido nessa escala de abrangência foi a mobilidade da cidade e como isto afeta a acessibilidade e o direito à cidade. Inicialmente, a proposta buscava enfrentar o transporte individual motorizado usando o próprio meio a ser atacado. Depois de avaliar o processo de execução de algumas ideias e de visitas ao local, percebemos que a lógica poderia ser outra. Através da valorização do pedestre, e usando o nosso próprio corpo, inverteríamos a lógica do privilégio do espaço público para o automóvel, levantando assim, interrogações de como a cidade está sendo socialmente construída, representada e experienciada. O título do trabalho ““Im[pé]ssão Corporal: Pegadas entre Praças. Cidades Pra Quem?” In[Ter]venção de arte pública” mostra esta preocupação abrangente, enquanto que ao mesmo tempo focada na mobilidade.

Figura 2 - Fotomontagem da divulgação do evento - explica graficamente a diferença entre o espaço destinado para os carros e para os pedestres.

Quando pensamos na proposta em grupo, confesso que não estava totalmente consciente a respeito da dimensão da questão que estávamos abordando, apesar de saber através de minhas experienciais pessoais - o papel poderoso que uma intervenção possui. Hoje, ao elaborar este texto, percebo que a escolha do tema e a abordagem que fizemos está relacionada a praticamente todos os excelentes textos que lemos e discutimos na disciplina, mas também com os quais eu mais me sensibilizei, que foram os que levantavam a importância do “caminhar e parar”. E agora, percebo ainda mais como isto interfere decisivamente na sociedade, na percepção, na subjetividade e imaginário das pessoas. Vejo principalmente que o “parar” hoje na sociedade incomoda muito as pessoas, pois abre uma brecha para “viajar” e pensar em um outro mundo possível, contrapondo-se ao mundo que tem que estar “na correria do dinheiro”, automaticamente induzidos por uma escolha do meio de transporte.


A proposta da intervenção entre as duas praças retorna à prática usual de ligar dois espaços públicos através de uma faixa de pedestres, porém, esteticamente de uma forma inesperada e inusitada, não realizada através de faixas no sentido tradicional que conhecemos, mas através de uma faixa de pés com tinta coloridas. A ideia foi marcar o asfalto - através de pegadas com tinta coloridas - os caminhos que os pedestres comumente fazem ao ir de um lugar para outro, e que não estavam contemplados com faixas de pedestres, além de reforçar uma possível continuidade das praças seccionadas pela via de carros, como forma de, sobretudo, valorizar a orla da lagoa. Para realização da intervenção fizemos incialmente um teste no curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC com tinta e com um protótipo de sandália, colando um pedaço de esponja em um compensado, na forma de sola de calçado (Figura 3) e um dia antes da intervenção na Lagoa fizemos uma pequena intervenção em uma rua no Morro das Pedras, próximo a uma passagem de acesso à praia e de um ponto de ônibus, para perceber, especialmente, o tamanho de espaço que teríamos que preencher para efetivamente que a intervenção aparecesse.

Figura 2 - Dispositivo de im[pé]ssão pronto. Sandália feita de madeira, tiras de corda e solado de esponja.

Na intervenção no Morro das Pedras, no período matutino, senti-me pouco à vontade em andar na rua deixando minhas pegadas, sobretudo por estar em uma rua de importante ligação, embora pouco movimentada, e pela quantidade de participantes apenas eu e mais meu colega de grupo. Cada pessoa ou carro que passava eu tinha que encarar, disfarçar ou explicar a proposta, ou seja, não tinha o anonimato e o empoderamento causado na intervenção posterior na Lagoa. Duas ou três pessoas que passaram pelo local e com que conversamos aprovavam a ideia quando ouviam nossa explicação. Fiquei com a sensação maior de subversão, de estar fazendo a coisa “errada" principalmente quando o carro da polícia passou por nós, e embora não tendo parado, foi o suficiente para acabarmos rapidamente com a intervenção e “circular”, pois a “a polícia nem precisa sequer chamar o sujeito” (RANCIERE, 2005). Saí receoso quanto a


efetividade da intervenção em função da dimensão que teríamos que preencher na Lagoa , sendo a rua maior assim como a quantidade necessárias de pessoas. A intervenção “Im[pé]ssão Corporal: Pegadas entre Praças Cidades Pra Quem?” In[Ter]venção de arte pública” foi marcada para ocorrer na Lagoa da Conceição em um sábado de manhã, às 10 horas, pois procurava ir ao encontro do intenso movimento de carros e pedestres para potencializar o seu significado. Houve grafitação de camisetas e chamadas através de vídeos e cartazes via espaço virtual somente para alguns amigos.

(a)

(b)

Figura 4 - (a) Camiseta finalizada (b) Cartaz que foi impresso e distribuído durante a ação. Após preparar as tintas em uma residência e escolher os locais em que as bandejas com tintas coloridas ficariam, na Rua Henrique Veras Nascimento, combinamos de dividir o grupo - que contava com cerca de 15 pessoas - nos dois lados da rua (Figura 5). Houve um único integrante, morador de rua, que não era conhecido do grupo que participou da proposta em um determinado momento.

Figura 5 - Foto tirada da Rua Henrique Veras Nascimento durante a ação artística na Lagoa. Pode-se observar as marcas das pegadas, bem como os latões de tinta e as bandejas junto à calçada. (Autora da foto: Angelita Maria Corrêa)


A travessia da rua iniciou-se, efetivamente, por volta das 11 horas, já com grande movimento de veículos e pedestres e durou, aproximadamente, entre 10 a 15 minutos. Os integrantes do grupo atravessaram várias vezes e em várias direções, em especial na Rua Henrique Veras Nascimento entre as duas praças, e em menor intensidade, entre o entroncamento de acesso à Rua Rita Lourenço da Silveira, fazendo parar inúmeras vezes o trânsito de veículos e a movimentação de pedestres curiosos (Figura 6). A intervenção estava aberta para quem quisesse participar, embora de uma forma limitada, pois havia a necessidade de pintar o calçado com tinta, sendo que o material usado para caminhar com esponja ficou restrito aos integrantes do grupo.

Figura 6 Apresentação da faixa de pés no entroncamento de acesso à Rua Rita Lourenço da Silveira, pintada com menor intensidade, mas com várias direções de acordo com a movimentação diária dos pedestres. (autor foto: Marcelo Vaz Cabral) A quantidade de integrantes do grupo, o movimento de veículos e pedestres me deixou mais anônimo e tranquilo por estar fazendo a “coisa certa no lugar certo”. Percebi que houve um grande respeito por parte dos motoristas quando entrei na rua para atravessar com os pés pintados de tinta. Houve apenas um certo questionamento de um taxista quando invadi com minhas pegadas a área pintada para os táxis no asfalto. Senti, por parte dele, a preocupação de estar “invadindo e sujando o seu território” e disse apenas para ele que tinha este direito e continuei minha caminhada. A sensação de empoderamento, de parar o trânsito, de circular em um local exclusivo para carros, de deixar minha marca, de realização, de inverter um pensamento


dominante se confundiu com uma sensação de normalidade como se estivesse andando livremente no espaço que é público, como quando era criança e brincava na rua como se fosse dono dela. Quem sabe esta sensação não é o papel da arte de “sermos um pouco livres em nós mesmos” como alguém falou (mas não me recordo quem). Tudo isto fez com que eu me sentisse bem à vontade e perdesse a dimensão do tempo, e empolgado sugeri aos colegas que poderíamos fazer também próximo à ponte da Lagoa, na Rua Senador Ivo D´Aquino, a rua que permite o acesso à orla e ao terminal marítimo; “nos tocamos” que já tínhamos ido além e era hora de pararmos. Rapidamente começamos a tirar as bandejas de tinta da rua colocando nas lixeiras. Combinamos com o grupo onde íamos comemorar e me retirei com a minha filha como se todos estivessem fazendo isto, pois o risco de chegar a polícia já era previsto, sendo que eu estava ainda mais atento em função da minha experiência anterior no Morro das Pedras. A notícia, logo após eu sair do local, sobre a ida de dois integrantes da intervenção à delegacia só confirmou o que Ranciere (2005) disse, que “no meio da polis e da política está aquele ser oscilando entre a lei e a ação, entre a violência que preserva e a violência que violenta, entre o imóvel que bloqueia e o altamente móvel que guerreia. Ou seja, a polícia.” Com a intervenção, o plano consensual da sociedade sobre como se movimentar individual e coletivamente foi quebrado por alguns instantes fazendo com que os transeuntes ou moradores locais, provavelmente pedestres naquele momento, chamassem a polícia para colocar novamente a velha ordem, revelando desta forma a própria ideia de política urbana pra mobilidade e que não vê a capacidade da arte/política de criar possiblidades e experimentos para trabalhar a virtuosidade cívica. Em paralelo à intervenção, fotografias e vídeos foram feitos por vários integrantes, sendo selecionados e editados inicialmente por mim e finalizados com mais dois colegas. Na elaboração do vídeo tentamos, de forma lúdica, com humor e através da repetição de cenas e diálogos ressaltar a importância do local e do problema, as ideias e as possiblidades, os papeis e as posições, enfim, o dissenso causado. A chance de poder ver, agora do ponto de vista do expectador, o efeito causado pelas pegadas, o olhar curioso do público, as discussões inicias e posteriores à intervenção, e a abordagem policial mostra uma parte visível do que mexeu comigo, com meus colegas, com os outros e com o espaço.


Uma semana após a intervenção na Lagoa da Conceição, abro uma página da internet com a notícia de 2013 da proposta do então prefeito Dario Berger para a Lagoa da Conceição3. Confesso que não conhecia e fiquei bastante curioso para abrir o vídeo. Ao abrir percebo ser uma daquelas propostas rodoviaristas que “resolve” em vídeo principalmente o problema de trânsito no principal nó da Lagoa, através, evidentemente de um “lindo” viaduto. Sem analisar em demasia a proposta, percebo a força da mensagem das imagens, em especial ao focar no viaduto e nas grandes faixas de rolamento para o carro, que era uma política que continuava a priorizar o trânsito individual motorizado em detrimento ao meio ambiente, a paisagem, a memória, a identidade, o pedestre, a relação da cidade com o mar. Não é à toa que quase toda a animação do vídeo são imagens aéreas, poucas imagens mostram o espaços gerados a nível do observador pois revelariam o descaso com pedestre e a realidade local. É uma imagem fácil, atraente e sensual de uma possível intervenção que é resultado de uma política passada, mas que tem a capacidade desde 2013 de impregnar e se impor no imaginário das pessoas até hoje. Não é uma intervenção efêmera como foi a que fizemos na Lagoa e que desaparecerá em poucos dias. Comparando as duas propostas e imaginando, como urbanista, os cenários possíveis no desencadear de cada uma, na qualidade urbana para a Lagoa, no futuro, considerando a peculiaridade da realidade local, percebo a desproporcionalidade e a injustiça da aparente criminalização a que podem ser submetidos os dois integrantes da intervenção que foram conduzidos à delegacia. Alguns questionamentos surgiram para mim a partir da intervenção e do projeto proposto de 2013. Quem vai contar e fazer a história? São aqueles que participam ativamente da política no cotidiano ou aqueles que conseguem impor uma imagem por mais tempo? O debate pelo poder de representar em diversas situações se configura como o debate político hoje: “a lógica do mundo social é a da permanente disputa para a definição da realidade, que se manifesta através de tentativas de manipulação simbólica que visam determinar as representações de outros sobre a realidade. Essa disputa do real por diferentes representações indica que o espaço também está na disputa, inclusive ao nível das representações, através da produção material tendo capacidade efetiva de influenciar as práticas espaciais e um modo de ver o mundo.” (NOVAIS, 2000) 3

Acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=BCjWpN9JDDU


Percebo que a nossa intervenção toca na dimensão política do espaço. De forma efêmera (Figura 7), lúdica, inusitada e simples tocou em padrões e valores dominantes em vários aspectos que ultrapassam simplesmente a questão de mobilidade e dos espaços de circulação. Pois a cidade não é só formas, espaços construídos e a circulação de veículos e pessoa; é um espaço de conflito, com diversos interesses, que às vezes não aparecem, e é controlado por forças do estado, sobretudo através da polícia, de leis e também de pessoas que reproduzem a ideia do controle, do vigiar e punir para manter uma aparente ordem e normalidade. Ao inverter a lógica de prioridade para o veículo, criou-se um incômodo nesta ordem, pois cada meio de locomoção tem o seu devido lugar numa sociedade funcionalista e também por lembrar, lá no íntimo de cada um, que o espaço de circulação não está apenas relacionado com o transporte de veículos, mas com a circulação de ideias, de desejos, de afetos, de corpos, trazendo desta forma tensões que estavam latentes relacionadas à identidade, memória, singularidades locais, direitos, desejos, enfim, de que cidade queremos.

(a)

(b)

Figura 7 (a) foto tirada no dia da performance (12/05/2018) (autor da foto: Marcelo Palinkas) e (b) foto tirada uma semana depois (20/05/2018) (autora da foto: Maria de Fátima Sabino Dias). Nas fotos é possível observar o caráter efêmero da proposta pois em uma semana muito da tinta já havia se apagado e não tinha a mesma intensidade.


Conclusão A impressão digital de uma parte do corpo sobre a asfalto através de pegadas traz à tona, inicialmente, algo que tudo mundo sabe e sente no corpo, o problema visível de um conflito crescente entre veículos e pedestres e onde há a priorização e a privatização do espaço público para o carro. Ao romper com a naturalização do problema, com o senso comum, com o usual, com a aparente cegueira, surgiram várias discussões no local após a intervenção, mostrando a necessidade de aprender a ver a cidade e o problema com outros olhos e colocando, através do dissenso, a possiblidade do cidadão agir políticaticamente e artisticamente. A escolha do local e conteúdo escolhido colocaram à prova no espaço público, tanto no nível estético como politico, como se dá a “partilha do sensível”. Por um lado, percebo pelos relatos que o que mais incomodou as pessoas foi “a sujeira sobre o tapete preto”, a forma como foi feita a intervenção e também por ter saído do padrão corriqueiro de pedir aos administradores municipais uma solução para o local, ou de pedir a autorização e participação da associação do bairro na intervenção. Algumas ideias que surgiram a partir do dissenso, por mais questionável que seja, por um lado vem ao encontro da mesma preocupação de buscar uma solução, como quando um morador local sugere no auge da discussão em tom irônico “que se tudo mundo pode fazer o que acha que é certo, então ele poderia plantar um coqueiro ali, posso ir lá e plantar?” e aponta para as “ilhas” do entroncamento viário de acesso à Rua Rita Lourenço da Silveira. Ou seja, a intervenção criou um pequeno espaço de conflitos de ideias mas como diria Moufle (apud SOBRAL, 2011), necessário para entender quais as demandas que cada um, com sua própria perspectiva sobre o espaço público possui e exige para fazer parte desta sociedade plural. O que fizemos não foi só algo pontual ou de uma “irresponsabilidade proposital” do grupo, mas foi sim de levantar o assunto do urbanismo, sobretudo no aspecto da mobilidade na cidade através da arte assim como pensar a política e a arte em outros termos. Por ter participado ativamente daquela intervenção, percebo que aquele espaço nunca mais será o mesmo, pois está agora incorporado no meio corpo com uma nova percepção, um novo imaginário e um novo significado. Vejo que abrimos uma possiblidade de realização de uma utopia possível. O trabalho da arte, os outros e a espacialidade em que estão situados reexamina os modos de constituição dessas relações, provocando-lhes uma ressignificação em todos os sentidos. Por exemplo, um participante me explicou como ele viu a faixa de pedestres em relação a faixa de pés após a


intervenção, fazendo com que eu visse o significado do desenho de outra forma e despertando em mim novas indagações da relação do desenho com o conteúdo. Enquanto a faixa de pedestres significa que o carro deve parar, o desenho das listas brancas indica a direção dos carros nas vias e sua prioridade no movimento, resta assim ao pedestre “saltar” sobre as mesmas perpendicularmente. Enquanto que através da faixa de pés percebe-se que quem fica perpendicular em relação à preferência do movimento são os carros. A arte veio na frente, de baixo pra cima, apontando caminhos, levantando questionamentos, desmanchando consensos, procurando mostrar novas maneiras de participar e fazer a cidade. No vídeo, talvez pelo fato de sermos arquitetos na grande maioria do grupo, fomos além do que realizamos, mostrando através de uma imagem projetual um outro espaço possível, um outro caminho, onde há priorização do espaço público para o pedestre e a união entre as praças, valorizando a orla da Lagoa (Figura 8).

Figura 8 Imagem projetual feito pelo grupo, apresentando a priorização do espaço público para o pedestre e a união entre as praças valorizando a orla da Lagoa. Isto sempre me faz refletir, como arquiteto e urbanista e cidadão, sobre o nosso papel social na construção das cidades e sobre o caráter participativo da população no planejamento, para evitar as ideias prontas de cima pra baixo e do papel das intervenções. Pois o planejamento, além de ser técnico, é sempre um processo politico passando necessariamente pela democratização das decisões e pela criação de espaços públicos para o debate onde os diferentes projetos políticos poderiam ser confrontados. “O observador deve exercer um papel ativo na organização do seu mundo, exercer um papel criador na construção de sua imagem. Um meio ambiente organizado até em seus mínimos detalhes pode inibir qualquer possibilidade de novas estruturações. A nossa procura não é absolutamente uma ordem definitiva, mas uma ordem aberta, suscetível de desenvolvimento indefinido”. (LYNCH, 1997)


Através das intervenções de situações criadas percebo que o desafio então é planejar de modo democrático, flexível, aberto, incorporando o imprevisível; entendo que a história é uma mistura complexa de determinação e indeterminação, de regras de condicionamento estrutural e de graus de liberdade. Ou como disse Arendt (1998) que “se possa esperar que o inesperado performe [...] o infinitamente improvável” O impacto foi considerável e a força daquele lugar é enorme. Duas semanas após a intervenção percebi que a Prefeitura Municipal realizou o óbvio necessário: pintou as faixas de pedestres no entroncamento viário de acesso a Rua Rita Lourenço da Silveira mostrado pela faixa de pés. O mais importante pra mim, porém, foi perceber o que a Prefeitura deixou de realizar: a junção das praças e a faixa de pedestre da Rua Senador Ivo D´Aquino que permite o acesso ao terminal de transporte marítimo (Figura 9). O primeiro mostra aparentemente a força política e técnica necessária juntamente com o tempo de elaboração para encarar uma intervenção desta envergadura. O segundo, mais simples, pois era só fazer a mesma faixa de pedestres, revela a falta de leitura técnica do lugar, a desvalorização do acesso ao transporte marítimo coletivo e mostra, mais ainda, o poder e a necessidade das pegadas apontarem os caminhos corriqueiros do pedestre, pois foi esse o lugar que não conseguimos pisar no dia, apesar de termos tido a intenção.

Figura 9 - Faixas de pedestres no entroncamento viário de acesso à Rua Rita Lourenço; ao fundo entre o supermercado e o terminal marítimo próximo à ponte, a Rua Senador Ivo D´Aquino, que não recebeu a faixa de pés e a faixa de pedestre.


Pra finalizar, a nossa intervenção - de uma forma poética - lembra que o percorrer um caminho sempre esteve presente na literatura, em citações religiosas ou ordens místicas, como uma metáfora da vida, como um processo de autoconhecimento e aperfeiçoamento para esta existência passageira, que se dará cada vez mais nas cidades. A busca de que cidade queremos é constante, o que me faz lembrar de uma poesia do poeta espanhol Antonio Machado4 “Caminante son tus huellas el camino y nada más; Caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino, Y al volver la vista atrás Se ve la senda que nunca Se ha de volver a pisar. Caminante no hay camino sino estelas en la mar.” Bibliografia BOURRIAUD, Nicolas. Precariedade estética e formas errantes. In: BOURRIAUD, Nicolas. Radicante: por uma estética da globalização. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 79-106. CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, par. 29 FRANÇA, Ademir. Indicadores de desempenho espacial. Estudo de caso: a cidade de Curitibanos – SC Dissertação de mestrado – UFRGS, Porto Alegre, 2004. JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012. JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. LADDAGA, Reinaldo. Parques, passeatas, festivais. In: LADDAGA, Reinaldo. Estética da emergência: a formação de outra cultura das artes. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 75-104. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de T.C. Netto. São Paulo: Documentos, 1968. LEFEBVRE, Henri. La revolucion urbana. Tradução Mario Nolla. Alainza Editorial, Madrid – Spain, 1970. LEPECKI, André. Corepolítica e coreopolícia. Revista Ilha, v. 13, n. 1, p. 41-60, jan/jun. (2011) 2012. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Traduzido por Jefferson Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes, 1997.

4

Poesia apresentada à mim pela primeira vez através da canção de Juan Manoel Serrat por um amigo argentino, Diego Herman Boggiano, que infelizmente morreu atropelado em 2016 ao andar de bicicleta na – e pela - cidade.


KRAFTA, Rômulo. Modelling intra-urban configurational development. Environment and Planning B,vol 21, p. 67-82, 1994. NOVAIS, P. . Ideologia e representação no planejamento estratégico de cidades. Cadernos PUR/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, v. XIV, n. 2, p. 143-166, 2000. PALLAMIN, Vera. Arte, cultura e cidade: aspectos estéticos-políticos contemporâneos. São Paulo: Annablume, 2015. SOBRAL, Laura. Participar e compartilhar. Em busca de formas alternativas de organização coletiva. Revista Constraste, n 4 pg 46-53 USP 2016 SOJA, Edward W. The spatiality of social life: towards a transformative retheorisation – In GREGORY, D.& URRY, J. (Ed) Social relations and spatial structures. London, MacMillan, 1985. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005 Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein (Org.). Corpocidade: gestos urbanos. Salvador: EDUFBA, 2017. VELLOSO, Rita. Apropriação, ou o urbano-experiência. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 189.05, Vitruvius, fev. 2016 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.189/5949>.




Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.