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A(a) Margem circulação de ideias sobre arquitetura, corpo e cidade


A(a) Margem: circulação de ideias sobre arquitetura, corpo e cidade é uma publicação experimental do Grupo Quiasma: estudos e pesquisas interdisciplinares em arquitetura, corpo e cidade.

www.grupoquiasma.wix.com.br/grupoquiasma

A(a) Margem

Departamento de Arquitetura e Urbanismo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PósARQ) Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis SC Brasil

circulação de ideias sobre arquitetura, corpo e cidade

2016


A(a) Margem

circulação de ideias sobre arquitetura, corpo e cidade

ano 1

número 01

2016

Sumário EDITORIAL

MEMÓRIAS E PERCEPÇÕES: DIFERENTES IDENTIDADES DE MESMO NOME Carolina A. R. Schmitt CORPO, ESPAÇO E FERROVIA Tiago Nazario de Wergenes ./ TEXTO, CASA, COLAGEM. Lucas Oliveira Roux

Rodrigo Gonçalves dos Santos

CIDADE INFORMAL, FENOMENOLOGIA E PERCEPÇÃO: UMA PASSAGEM PELA

SOU O ESPAÇO ONDE ESTOU: UMA REFLEXÃO SOBRE ACOLHIMENTO E LUGAR

Tatiana Pereira de Araújo

Alexssandra da Silva Fidelis ARQUITETURA, PAISAGEM E MODO DE VIDA RURAL NO NORTE DO RIO GRANDE DO SUL: UMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA Matheus José Rigon ENSAIO SOBRE A ARQUITETURA BIOFÍLICA: UMA TENTATIVA DE ENTENDIMENTO Patrícia Grings DESDOBRAMENTOS: SOBRE A PRIVAÇÃO DOS SENTIDOS NA ARQUITETURA Eduardo Westphal MEMÓRIAS, PERCEPÇÕES E SENTIMENTOS DE MINHAS EXPERIÊNCIAS DE ESTAR JUNTO AOS GUARANI

COMUNIDADE DA RUA ARARANGUÁ

PRÉ-TEXTO OBLÍQUO, HÍBRIDO E (COM)PAIXÃO Moema Parode A JANELA DA PERCEPÇÃO Daniela Raquel Fritsch A POÉTICA DAS CASAS DE MADEIRA DA IMIGRAÇÃO Natália Biscaglia Pereira APROPRIAÇÃO OU NÃO DO LUGAR? Anicoli Romanini UMA VISÃO SOBRE A CARTOGRAFIA DO ESPAÇO – SETE PONTOS PARA PENSAR

Nauíra Zanardo Zanin

Luiz Antônio Medeiros da Silva

PONDERAÇÕES FENOMENOLÓGICAS: A RUA COMO LUGAR

PERCPEÇÕES URBANAS: “2h14min, uma caminhada, o centro”

Fábian Grei Machado

Guilherme de Macedo

MACIÇO DO MORRO DA CRUZ, FLORIANÓPOLIS (SC): IMPRESSÕES E INTERPRETAÇÕES

REFLEXÕES, MEMÓRIAS, RELATOS

Míriam Santini de Abreu

Paula Gabbi Polli

IDEÁRIO EM CONSTRUÇÃO: CIDADE NA NATUREZA

ABANDONO, REVITALIZAÇÃO E GENTRIFICAÇÃO NO IV DISTRITO DE PORTO ALEGRE:

VIVÊNCIAS EM NARRAÇÃO Bibiana Beretta URBGRAFIAS OU CARTOGRAFIAS DA PRODUÇÃO DE UM DEVIR: A ARTE COMO FAZER CIDADE Elaine Nascimento

UMA ABORDAGEM PSICOGEOGRÁFICA E FENÔMENO(LÓGICA). Rodrigo Vargas Souza


EDITORIAL

ou em outros territórios que ousam e não encontram interlocução. Por isso a razão da

Nascimento e publicação, as ideias pulam da margem e encorporam

contribuições futuras serão bem vindas. Com isso, as portas estão abertas. Há aqui, o

Prefiro o nascimento à morte. Não encaro a morte como fim, embora tenha medo dela. Mas vejo no nascimento mais poética, mais possibilidades visíveis. Sei que na morte tais poéticas e visibilidades também existem, mas ainda prefiro o nascimento. Também prefiro o processo aos produtos finais. Os processos possuem sutilezas sedutoras, abrem diálogos demiúrgicos que pairam no ar. E é no ar que todas as ideias circulam procurando corpos para encarnarem. Muitas ideias circularam nos últimos meses e precisavam de corpo. E encontraram uma margem que abrigava vários corpos… E a partir dessa margem NASCE um primeiro número de uma publicação para dar visibilidade à própria margem, pois parece ali residir movimentos de expansão, articulações, agenciamentos, dispositivos desconhecidos e pouco explorados. Os textos que se seguem são escritas experimentais desenvolvidas na disciplina Cartografia do espaço habitado: fenomenologia, arquietura, corpo e cidade ministrada no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (PósARQ/UFSC). A disicplina aconteceu no segundo trimestre de 2016 em sua primeira edição e as inquietações e estudos apontavam a necessidade da criação de textos que dessem corpo (ou encorporassem) modos de fazer arquitetura, pensar a cidade, resgatar experiências estéticas e perceptivas no âmbito da pós-graduação e, acima de tudo, na constituição de um campo ampliado de pesquisa e prática projetual em arquitetura e urbanismo. Esta ampliação do campo explode caminhos conhecidos e situam devires, instauram (des)confortos e confrontos, promovem deslocamentos diversos, colocam no centro a alteridade do ser-aquiteto/a na experiência contemporânea da cidade clamando espaços para visibilidade de subjetividades outras. Os textos, então, transitam entre arte, arquitetura, corpo e cidade e exploram autores pouco estudados e discutidos num programa de pós-graduação de arquitetura e urbanismo. Assim, os textos foram desenvolvidos assumindo a possibilidade de um projeto estético de escrita que engloba a própria diagramação do texto como cartografia do corpo do sujeito que pesquisa. Foi um exercício de escrita solto de obrigações, uma escrita assumida no desejo, um texto articulando aquilo que tocou o corpo vibrátil durante a trajetória da disciplina. O convite foi feito para escrever a partir do corpo vibrátil, dando a ele o status de condutor da escrita, o protagonista que obteria nesse exercício o seu lugar na seara da academia. Assinalo ainda que, salvo ortografia e gramática, não houve retoques finais nos texto dessa publicação. Logo, os textos contidos aqui estão como nasceram. Penso que essa publicação nascida e batizada com nome e sobrenome – A(a) Margem: circulação de ideias sobre arquitetura, corpo e cidade – seja um lugar para dar vazão a textos experimentais que abordem a temática estudada em disciplinas como esta do PósARQ/UFSC

diagramação ser livre e abrir possibilidades da exploração estética da escrita. Para isso, exercício de escuta e acolhimento do outro. Há um desejo latente de um segundo, terceiro, quarto, n números num futuro próximo. E por que tudo isso? Porque acredito que na academia podemos encontrar as fissuras para circular outras ideias e, a partir delas, trazermos à tona outras possibilidades. Rodrigo Gonçalves dos Santos


SOU O ESPAÇO ONDE ESTOU: UMA REFLEXÃO SOBRE ACOLHIMENTO E LUGAR Alexssandra da Silva Fidelis


canção “Casa no Campo” (1971) eternizada na voz de Elis Regina (tão linda, sugiro ouvi-la!).

SOU O ESPAÇO ONDE ESTOU1 Uma reflexão sobre acolhimento e lugar.

Eu quero uma casa no campo Onde eu possa compor muitos rocks rurais E tenha somente a certeza Dos amigos do peito e nada mais Eu quero uma casa no campo Onde eu possa ficar no tamanho da paz E tenha somente a certeza Dos limites do corpo e nada mais

Alexssandra da Silva Fidelis I Setembro 2016 Texto Articulação (em construção) FINAL ARQ 410037 – Cartografia do espaço habitado: fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade Prof. Rodrigo Gonçalves Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PósARQ UFSC

Eu quero carneiros e cabras Pastando solenes no meu jardim Eu quero o silêncio das línguas cansadas Eu quero a esperança de óculos E meu filho de cuca legal Eu quero plantar colher com a mão A pimenta e o sal

A casa poética. Inicio este texto citando Bachelard (1989, p.27) “a casa é o nosso canto no mundo”. Em seu texto o autor analisa (e sente) a casa, esse espaço tão particular, de cada um. Identifica o ninho, a concha e os cantos. Interpreta-os e os transforma em percepção e emoção. É lá que repouso, é para lá que quero voltar após uma viagem, mesmo que o destino tenha sido a Índia ou Tailândia. A casa é o abrigo. Não importa se o chão é batido ou se existe uma telha quebrada, é lá que quero estar quando me sentir frágil (física ou emocionalmente). Ela me protege e é a sua proteção que desejo. Tiro minhas máscaras, dispo minhas roupas, me mostro. É lá que me encontro, sou eu mesma. Minhas angústias são permitidas, posso sentir medo, beber uma garrafa de vinho, esbravejar com o programa de tv, andar descalça, dormir o dia todo. Posso. A casa é o meu lar. O compositor Zé Rodrix homenageia a casa rudimentar, simples em formas e pretensões, com a

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Verso do poeta Nöel Arnaud.

“Desta vez é simplesmente um dormitório; só que a cor deve predominar aqui, transmitindo, com a sua simplificação, um estilo maior às coisas, para sugerir o repouso ou o sono. Em resumo, a presença do quadro deve acalmar a cabeça, ou melhor, a imaginação. As paredes são de um violeta pálido. O chão é de quadros vermelhos. A madeira da cama e das cadeiras é de um amarelo de manteiga fresca; o lençol e os travesseiros, limão verde muito claro. A colcha é vermelha escarlate. O lavatório, alaranjado; a cuba, azul. As portas são lilases. E isso é tudo – nada mais neste quarto com as persianas fechadas. O quadrado dos móveis deve insistir na expressão de repouso inquebrantável. Os retratos na parede, um espelho, uma garrafa e algumas roupas. A moldura – como não há branco no quadro – será branca.” Trecho da carta enviada por Van Gogh ao irmão Theo, descrevendo a tela que acabara de pintar. Figura 1: Quarto em arles, Segunda Versão. Setembro de 2016. Disponível em: http://artenarede.com.br/blog/index.php/oquarto-em-arles-de-vincent-van-gogh/

Eu quero uma casa no campo Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé Onde eu possa plantar meus amigos Meus discos e livros e nada mais Onde eu possa plantar meus amigos Meus discos, meus livros e nada mais Onde eu possa plantar meus amigos Meus discos e livros e nada mais (A Casa no Campo, ZÉ RODRIX, 1971)

Para Bachelard (1989, p.25) “quem vive a casa, a experimenta em sua realidade e em sua virtualidade, através dos pensamentos e dos sonhos.” Este abrigo não protege apenas o corpo físico, protege também nossos pensamentos, permite-nos divagar. Ali, podemos sonhar. A casa é o centro de proteção, que assume a função de abrigo, é a imagem corporificada de uma mãe que protege seu filho das adversidades externas, numa luta contra o universo. Sendo assim, o local sagrado, onde somos nós mesmos, onde ninguém nos julga. Abriga


nosso corpo e nossa alma que se materializam nos cômodos da casa, nos móveis e objetos antigos e misturam-se às lembranças.

abrir uma porta é um encontro físico íntimo entre casa e nosso corpo; o corpo encontra a massa, a materialidade e a superfície da porta, e a maçaneta, polida até brilhar, pelo uso frequente, oferece-nos um aperto de mãos receptivo e de familiarização.

A casa já ouviu nosso choro e nossas gargalhadas, mas mantém o silêncio, a discrição. Mantêm-se resignada, guardando nossos segredos, protege nosso corpo, os sonhos da alma humana, nos permite sonhar e também perceber a mais dura realidade: somos nós mesmos em nossa casa, vulneráveis.

Ou, um toque de despedida.

Em comum, uma maçaneta. A maçaneta é simbólica. É o objeto a ser descrito, registrando-se a “essência da percepção” (MerleauPonty, 1999, p. 01), que vai além da visão e considera a totalidade dos sentidos. O corpo está presente, permitindo a transcendência. Holl (2011, p. 09), considera que “el acto cotidiano de agarrar el pomo de una puerta y abrirla hacia una estancia bañada por la luz puede convertirse en un acto profundo si lo experimentamos con una consciência sensibilizada.”

A CASA NOS PROTEGE. É NOSSO REFÚGIO. ESTAMOS SEGUROS.

O corpo protegido A casa e corpo tornam-se metáforas, um do outro. É possível associarmos a casa ao nosso próprio corpo, às emoções e sensações produzidas ou percebidas. Misturam-se. A casa está viva. A casa respira, transpira, alonga-se, mira o exterior com seus olhos frágeis que observam as ruas, os caminhantes, o movimento. “A casa proporciona proteção para o sonhador, mas somente as janelas lhe permitem sonhar com liberdade.” (PALLASMAA, 2013, p.125) Plutão se encantou com a beleza de Proserpina e a raptou. A mãe, enfurecida com o sumiço da filha, destruiu colheitas e terras. Por intermédio dos deuses, Proserpina foi devolvida sob a condição de passar parte do ano nas profundezas da terra com seu marido (inverno/ outono) e a outra metada com a mãe (verã/primavera). Este mito deu origem às estações do ano. No fundo, esta estória é uma alegoria; a filha representa a semente do trigo, que, quando enterrada no chão, ali fica escondida, ou seja, é levada pelo deus do submundo. Depois, reaparece; quando ela é restituída à sua mãe, e a Primavera surge, com os grãos dando frutos e as flores desabrochando (é o período da colheita). Figura 2: Rapto de Proserpina, Bernini, 1622 Setembro de 2016. Disponível em: http://julirossi.blogspot.com.br/2012/12/aescultura-o-rapto-de-proserpina-e-uma.html

Quando Zumpthor (2009) descreve o momento do toque na maçaneta do portão, é possível sentir a temperatura do metal em contato com a mão, ainda consigo sentir na mão a maçaneta do portão, essa peça de metal moldada como as costas de uma colher. Tocava nela quando entrava no jardim da minha tia. Essa maçaneta ainda hoje me parece um sinal especial de entrada num mundo de ambientes e cheiros diversos. (ZUMPTHOR, 2009, p.07)

(...) contemplamos, tocamos, ouvimos e medimos o mundo com toda nossa constituição e existência física, e o mundo das experiências é organizado e articulado em torno do centro do corpo. (...) nosso mundo existencial dinâmico tem dois focos simultâneos: nosso corpo e nossa casa. (...) nosso domicílio é o refúgio e a proteção de nosso corpo, memória e identidade pessoal. (PALLASMAA, 2013, p. 125)

Poderíamos permanecer eternamente neste abrigo, isolados, mas há algo maior ao qual queremos fazer parte, existe a LIBERDADE. Não é uma fuga, é um explorar. É permitir-se. Não queremos somente ninho, concha ou canto. Queremos e temos direito à rua e à cidade. Toco a maçaneta, mas hesito, pois meu corpo encontra uma barreira, a porta. É a casa me protegendo. Pallasmaa (2013, p. 131) considera que

O toque na maçaneta precede o momento em que o corpo transpõe uma barreira e se coloca em outro lugar, impetuoso. Para Bachelard (1989, p. 34), “empurraríamos com o mesmo gesto a porta que range, iríamos sem luz ao sótão distante. O menor dos trincos ficou em nossas mãos.”

Figura 3: Maçaneta antiga. Setembro de 2016. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/82824080622220/

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Marca popular de fechaduras.

Para mim, a maçaneta é a CONEXÃO. Não importando seu formato, tamanho, sua cor ou textura. Pode ser uma maçaneta simples, popular, de acabamento grosseiro, robusta ou frágil, com fechadura PAPAIZ2 e ergonomicamente desconfortável. O que me importa é que a porta se abra e que eu me depare com a LIBERDADE.


E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir

A cidade real

Joga pedra na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni! (...) (Geni e o Zepelim, CHICO BUARQUE, 1978)

Lanço-me para fora da casa poética que protege o meu corpo e me oferece o abrigo, que me conforta. Mas qual a vulnerabilidade do meu corpo exposto no espaço urbano? Quão exposta estou às adversidades e conflitos? “O fora” realmente representa perigo? Por que estamos indefesas? Ainda estamos?

O espaço público tem sido pensado por homens e para homens há muito tempo. As questões de gênero ainda estão presentes na constituição social e a ordem utilizada, ainda define o que é apropriado para cada sexo. Conforme Montaner e Muxí (2014, p. 197) “a cada papel corresponde um espaço: a casa e a cidade. Nesta organização excludente, o sujeito público é o homem, o sujeito do discurso da história que converte o parcial em universal”. Os espaços urbanos, embora hoje já possuam usos diversificados, ainda segregam a mulher.

Para Guatarri (2006, p. 157), “a abordagem fenomenológica do espaço e do corpo vivido mostranos seu caráter de inseparabilidade”, sendo impossível desconectar nossa identidade pessoal da imagem de seu contexto espacial e situacional. Ou seja, a percepção de insegurança está associada às condições encontradas no espaço público, extremamente diferentes das existentes na casa “poética”. No espaço público, não me sinto segura e abrigada. “A rua não é lugar de menina!”, dizia minha mãe quando eu era garota. Hoje, percebo que a insegurança que sinto ao passar por um local escuro, ou por uma rua murada está relacionada àquela frase que outrora indicava ORDEM. HOJE LUTO PARA DISSIPAR ESTES PADRÕES, DA SOCIEDADE E DE MIM. (...) De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada

Geni e o Zepelim. A música é cantada na peça pela personagem Genivaldo, um travesti que responde pelo nome de Geni. A letra, entretanto, não nos dá essa informação, podendo, fora do contexto da Ópera do Malandro, referir-se tranqüilamente a uma mulher, até pelas referências femininas (“ela”; “aquela formosa dama”), e pela ausência de qualquer termo específico que nos indique tratar-se de um travesti. Setembro de 2016. Disponível em: http://profaclaudiacem804.webnode.com.br/news/analise-da-musica-genie-o-zepelim/

Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato E também vai amiúde Com os velhinhos sem saúde E as viúvas sem porvir Ela é um poço de bondade

Katrine Switzer desafiou as normas estabelecidas quando, em 1967, se tornou na primeira mulher a correr uma maratona, uma prova que até esse momento era exclusiva para homens e passou à história quando um dos juízes, a meio da prova, se deu conta do que estava a acontecer e correu atrás dela para a deter, mas o resto dos corredores impediram-no e escoltaram Kathrine para que ela pudesse terminar a corrida. Este é um dos momentos inesquecíveis da história das maratonas que ficou para recordar na célebre foto. Figura 4: Primeira mulher maratonista. Setembro de 2016. Disponível em: http://www.desedentarioamaratonista.com/20 12/03/16/a-primeira-mulher-a-correr-umamaratona/

É importante ressaltar que esta abordagem, que relaciona a mulher e o espaço urbano, teve início nas mudanças da vida privada e nos novos modos de viver. Homens e mulheres participaram conjuntamente de projetos “que entendiam a casa como célula básica de tecido urbano e que, se essa casa mudasse, era possível pensar uma estrutura urbana – e social – diferente.” (MONTANER; MUXÍ, 2014, p. 200)


Em seu plano para Brasília em meados dos anos 50, o urbanista Lúcio Costa, definiu que a altura ideal para os prédios residenciais era de seis andares, pois as mães poderiam chamar os filhos que brincavam para que subissem para o almoço, e assim foi feito. Naquele período, a arquitetura e o urbanismo tomavam como regras os conceitos hierárquicos do modernismo e planejar a cidade para a mulher era garantir que o seu papel de dona-de-casa seria mais confortável.

Hospitality in the city? Para Fuão e Solis (2014) a arquitetura contribui para a falta de hospitalidade das cidades a questão da hospitalidade, hoje, nos mostra quanto as cidades estão se tornando cada vez mais inóspitas e o quanto a arquitetura que é praticada – fechando sobre o já fechado – corrobora um isolamento que insulta mais violência. Não é certamente esfacelando as formas, como fez o desconstrutivismo, ou aceitando outros “ismos” – inclusive o modernismo – que nos abriremos à questão da hospitalidade: mas sim, abrindo para seu sentido, abrindo fisicamente o que deve ser realmente aberto: universalizando o mundo sem torna-lo igual, abrindo e colando em simultaneidade as diferenças produzidas. (FUÃO; SOLIS, 2014, p. 43)

Atualmente, tais considerações são inquietantes, pois a mulher ideal de hoje já não é a dona de casa recatada de antigamente, mas aquela que trabalha e, ao mesmo tempo, cuida eficazmente da casa. (...) tornar as diferenças visíveis é a melhor forma de alcançar a igualdade, sendo possível descrever a própria experiência. (MONTANER; MUXÍ, 2014, p. 205)

O espaço público deve atender às mudanças sociais, mas principalmente atender com igualdade à mulher e devemos poder ocupá-lo da mesma forma que ocupamos a casa “poética” que nos protege e abriga no texto de Bachelard (1989). Onde a hospitalidade e o acolhimento estejam presentes a partir da inclusão do outro, pois a

Os problemas de infraestrutura, pobreza e violência que tanto atingem a qualidade de vida das pessoas nas nossas cidades, impactam fortemente as mulheres A segurança é considerada um fator primordial para que a mulher utilize os espaços coletivos e análises sociais consideram este fator, onde o percentual de mulheres que utilizam os espaço público classifica o nível de segurança do local.

hospitalidade é uma questão muito mais de aberturas, vazão, espera, do que de território ou cercamento. (...) é dar lugar ao lugar, abrir o lugar, dar passagem, dar passo ao outro, acolher a diferença. Curiosamente, a hospitalidade coloca o tema do espaço não no espaço, mas no indivíduo, como se este portasse a hospitalidade, o próprio espaço. (FUÃO; SOLIS, 2014, p. 54)

Não porque a presença delas torna o lugar mais seguro, mas porque um local seguro é aquele capaz de atrair também o público feminino. Espaços públicos com iluminação e manutenção adequadas, localizados próximos a espaços com vida urbana vibrante e diversidade de usos, tendem a ser ocupados pela população como um todo e constituem um ambiente mais seguro para todos.

Figura 5: Mafalda em quadrinhos. Setembro de 2016. Disponível em: https://sociologiaklingon.wordpres s.com/tag/feminismo/page/3/

Figura 6: Mãe, filha e Av. Paulista no domingo. Setembro de 2016. Disponível em: http://fotos.estadao.com.br/galerias/fotografia,pau listanos-aproveitam-a-avenida-paulistafechada,21955

Constato, a partir do texto do Fuão e Solis (2014), que a hospitalidade que busco no espaço urbano, existente na casa “poética” é particular, não está no lugar, mas sim no indivíduo e retomo os questionamentos feitos anteriormente. Será possível encontrar no espaço urbano a mesma hospitalidade que encontro na casa poética? Ainda não tenho a resposta e me aproprio das palavras de Holl (2011) para enfatizar esta reflexão: “una conciencia de nuestra existência única y própria en el espacio resulta crucial en el desarrollo de una conciencia de la percepción”. (HOLL, 2011, p. 08)


Encerro este ensaio sem saber se o espaço urbano poderá me acolher da mesma forma que me sinto acolhida na casa poética e me utilizo do trecho do texto “A casa na paisagem”, escrito por Matheus José Rigon para reproduzir a casa hospitaleira Suas aberturas e beirais eram de um marrom escuro que àquela hora confundia-se com a tonalidade dos troncos dos mesmos pinheiros que em outra época serviram para sua construção, assim como com as telhas de barro que conformavam sua cobertura principal, construída no tradicional estilo bangalô, por trás da qual emanava ininterruptamente uma tímida e translúcida camada de fumaça cinza-claro oriunda do fogão a lenha presente na sua cozinha, que fazia pequenas acrobacias no ar, até se dissipar completamente, levada pelo vento gelado que circulava naquelas tardes frias.

Figura 7: Tramela. Setembro de 2016. Disponível em: http://flickrhivemind.net/blackmagic.

Na casa hospitaleira (poética) de Rigon, também identifico o acolhimento e a única forma de senti-lo é estando presente. Toco a maçaneta. Com licença Rigon!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHELARD, G. A poética do Espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. FUÃO, Fernando F.; SOLIS, Dirce E. Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014 GUATARRY, Felix. Caosmose. Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora34, 2006 HOLL, Steven. Cuestiones de percepción: fenomenologia de la arquitetura. Barcelona: GGili, 2011. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: WMFMartins Fontes, 1999. MONTANER, Josep M.; MUXÍ, Zaida. Arquitetura e Política. Barcelona: GG, 2014. PALLASMAA, Juhani. A imagem corporificada: imaginação e imaginário na arquitetura. Porto Alegre: Bookman, 2013. ZUMPTOR, Peter. Pensar a Arquitetura. Barcelona: GGili, 2009.


ARQUITETURA, PAISAGEM E MODO DE VIDA RURAL NO NORTE DO RIO GRANDE DO SUL: UMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA Matheus José Rigon


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Universidade Federal de Santa Catarina Centro Tecnológico Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PósARQ Cartografia do espaço habitado: fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade - 2016/02 Prof. Dr. Rodrigo Gonçalves Seminário de Articulação Final Acad. Matheus José Rigon

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A CASA NA PAISAGEM Em um recanto do extenso vale, entre potreiros, pastagens

e

maciços

arbóreos

onde

se

sobressaíam uma série de pinheiros com suas copas mais ou menos elípticas e grimpas pontiagudas de um verde multicor, já em época de pinhões, erguia-se a velha casa. Adentrando no inverno, com os galhos retorcidos dos umbus

Arquitetura, paisagem e modo de vida rural no norte do Rio Grande do Sul: uma abordagem fenomenológica.

e caquizeiros já nus, os capins e folhas de bananeiras

secos

pelas

densas

geadas

formadas durante o mês anterior e os plátanos desprendendo suas folhas marrons sobre a estreita estrada de pedras defronte ao pequeno açude conformado no acesso à propriedade, a paisagem tingia-se de cores frias, que nos finais

“É evidente que uma arquitetura que „intensifique a vida‟ deva provocar todos os sentidos simultaneamente e fundir nossa imagem de indivíduos com nossa experiência de mundo. A tarefa mental essencial da arquitetura é acomodar e integrar. A arquitetura articula a experiência de se fazer parte do mundo e reforça nossa sensação de realidade e identidade pessoal, ela não nos faz habitar mundos de mera artificialidade e fantasia. [...] O significado final de qualquer edificação ultrapassa a arquitetura: ele redireciona nossa consciência para o mundo e nossa própria sensação de termos uma identidade e estarmos vivos.” (PALLASMAA, 2011, p. 11).

de tarde ganhavam maior dramatismo ao serem INTRODUÇÃO

banhadas pela luz intensa e alaranjada do sol,

Este trabalho busca compor uma coletânea de registros acerca da arquitetura,

dando um aspecto dourado às paredes brancas

paisagem e patrimônio cultural rural na região norte do Rio Grande Sul, a partir de

de madeira da residência. Suas aberturas e

uma perspectiva de abordagem fenomenológica, centrada na vivência do autor em

beirais eram de um marrom escuro que àquela

relação a espaços que compõem esse universo de estudo, tendo o corpo como

hora confundia-se com a tonalidade dos troncos

protagonista - o corpo situado que se desloca e sente. Adentra, assim, na noção de

dos mesmos pinheiros que em outra época

paisagem enquanto experiência fenomenológica que remete ao ser humano a

serviram para sua construção, assim como com

sensação de estar no mundo e ser atravessado por ele, através de suas texturas,

as telhas de barro que conformavam sua

estruturas e especialidades; abordando, mais especificamente, a questão da

cobertura principal, construída no tradicional

paisagem cultural associada à sociedade rural da colonização de origem italiana no

esquema bangalô, por trás da qual emanava

sul do Brasil, ao descrever espaços e paisagens com um rico repertório sensível por

ininterruptamente uma tímida e translúcida

trás de suas formas visíveis, cuja continuidade mostra-se profundamente ameaçada

camada de fumaça cinza-claro oriunda do fogão

ante as transformações no modo de vida contemporâneo, que têm acarretado a

a lenha presente na sua cozinha, que fazia

crescente perda de referenciais e conteúdos simbólicos a eles vinculados, em uma

pequenas acrobacias no ar, até se dissipar

tendência de eliminação da complexidade da sua experiência.

completamente, levada pelo vento gelado que circulava naquelas tardes frias.

Figura 1: A casa na paisagem, 2016. Fonte: Acervo do autor.


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Mais abaixo, para além das construções rústicas que abrigavam as atividades produtivas do sítio, abria-se atrás dos morros a linha do horizonte,

como um manto azulado

que

delicadamente tocava as nuvens em meio ao céu

âmbar.

Uma

atmosfera

de

paz

e

tranquilidade reinava sobre o lugar, suspendida a partir de uma complexa sinfonia entre o murmúrio dos córregos de águas cristalinas que corriam no entorno próximo, o som seco e inconstante do vento sobre as folhas das árvores, entrecortados pelo canto agudo dos pássaros e quero-queros, o gemido dos bois na pastagem distante e o intenso diálogo entre cães e galos de sítios próximos, vez ou outra ofuscados pelo ronco de algum veículo que passasse pelo local.

AS INSTALAÇÕES PRODUTIVAS Sob um agrupamento de construções de tábuas rústicas acinzentadas, aí está o cerne da atividade produtiva da propriedade. Pocilga, estábulo, paiol, armazéns e varandas com implementos

agrícolas

ordenam-se

no

alinhamento da estrada, formando um conjunto regular de edículas que ora se tocam, ora se afastam, ora sobem em altura, explorando variações de tonalidade das tábuas de madeira, por vezes esbranquiçadas pela presença de vestígios de caiação, por vezes escurecidas pela pintura de óleo queimado, com suas pesadas janelas opacas de correr, todos esses

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O contexto sociofísico – a propriedade rural da colonização de origem italiana no norte gaúcho

construídos por familiares e vizinhos, os quais,

A região norte do Rio Grande do Sul insere-se dentre as últimas porções territoriais colonizadas na região sul do Brasil, a partir do início do século XX, pela presença de colonos descendentes de europeus, dentre os quais se situam os descendentes de italianos provenientes de colônias de imigração da região da serra gaúcha.

lentamente perdem sua expressão vital, em

A arquitetura rural de origem italiana nessa região revelou a continuidade de características presentes em outros assentamentos, como a presença de um conjunto edificado constituído pela casa e edifícios complementares, destinados a acomodar a família e a estrutura produtiva da propriedade, caracterizados por sistemas construtivos baseados no uso de materiais do entorno, sobretudo a madeira, através de técnicas que revelam engenhosidade na solução de problemas construtivos, e denotam a aplicação da habilidade artesanal trazida pelos imigrantes e perpetuada através de seus descendentes, destacando-se as casas, que através de suas dimensões avantajadas, admirável escala, qualidade construtiva e expressão plástica, firmaram-se como ícones de um período em que fatores como a ideologia do trabalho, a ausência de perspectivas de lucro e a uniformidade social foram responsáveis por um estado de

seu amedontrador cilindro dentado, a qual de

pouco a pouco, tábua a tábua, cepo a cepo, vão definhando, como velhos senhores que que pesem os esforços de conservação1. Sob as varandas, incólumes à passagem do tempo, encaixam-se em meio ao espaço vazio uma série de equipamentos agrícolas, do empoeirado moedor manual de espigas de milho, com sua roda lateral de raios abaulados, à majestosa automotriz vermelha – a ceifa, com tempos em tempos desperta ecoando seu ronco estrondoso pelo vale e preenchendo a garagem de uma espessa e sufocante fumaça, que se materializa através das faixas de luz formadas a partir das frestas da parede. Num canto vazio sobre o piso úmido de chão batido da cobertura anexa, ecoam lembranças da saltitante carroça com suas rodas vermelhas em madeira e ferro, que tantas vezes adentrou aquele espaço forrada de espigas de milho. Arados e plantadeiras de distintas épocas, com suas lâminas cortantes, dividem espaço e em seu silêncio parecem questionar até quando

bem-estar generalizado entre a sociedade da colonização (POSENATO, 2005). No entanto, fatores como o fim do isolamento das comunidades, a progressiva inserção na lógica de produção industrial, o desenvolvimento da agricultura comercial no pós – 1950 e a consequente estagnação das práticas de agricultura de subsistência nessas localidades foram determinantes ao declínio dessa arquitetura rural e perda do seu papel enquanto elemento de autoafirmação, verificando-se inclusive o repúdio dos descendentes em relação às suas origens, os quais passaram a considerar construções antigas como empecilhos à plena cidadania brasileira. (POSENATO, 2005). A ruptura de vínculos culturais decorrente do dinâmico processo de transformações socioeconômicas e territoriais vivenciado por essa região, no contexto das transformações no âmbito da modernidade tem posto em questão a integridade dos remanescentes construídos que constituem o acervo da arquitetura rural legado pelos seus colonizadores, bem como muitos aspectos culturais associados a esse patrimônio.

seguirão tendo algum uso ou, ao menos, convivendo naquele espaço.

1

Em outros casos, como mostra a realidade dessa região, já teriam sido postos abaixo para em seu lugar serem construídas modernas instalações, com estruturas de concreto pré-fabricado ou aço, em uma completa negação dos materiais, sistemas construtivos e tecnologias locais.


5

Da porta alaranjada, pisando-se sobre pedras

vazado na extremidade, adentra-se a sala.

grandes, adentra-se o pequeno e pouco

Uma atmosfera pesada preenche o espaço,

salubre espaço do estábulo, que cheira a leite e mesmo

nos

dias

mais

frios

6

onde se mesclam o cheiro de fumo e de móveis

permanece

velhos. Com as paredes e o teto em tons entre

aquecido pelo calor das vacas e bezerros que

o bege e o amarelo envelhecido, a sala

aí estão. Alaranjada também é a luz que emana

retangular

segue

imersa

em

uma

leve

do conjunto ao anoitecer, projetada de forma

penumbra, entrecortada por alguns fachos de

dramática

luz oriundos das portas dos quartos vazios, por

pelas

poucas

lâmpadas

incandescentes que iluminam o lugar.

detrás das leves cortinas de renda azul-claro presas em varões de madeira rústica, fazendo refletir as tábuas do assoalho, já não tão

O VELHO CASARÃO

reluzente como em outros tempos.

Na varanda de lajotas vermelhas e rejunte largo, saúda o visitante o teto de tábuas de um

Sobre e entre as mesmas portas, pipocam

azul riscado que já não se fabrica mais.

pelas paredes uma série de quadros antigos, de tamanhos variados e com suas molduras

Encostado na parede branca, repousa um banco ripado de madeira, desgastado pelo uso, mirando para a cadeira de balanço de vime à

Figura 2: A casa e as instalações produtivas, 2016. Fonte: Acervo do autor.

marrom-escuras.

Em

um

desses,

uma

composição de fotos de casais de noivos daquela família tomadas na primeira metade do

beira da floreira, que balança, levemente embalada pelo vento do final da manhã. Entre

século passado; noutros, cenas da vida militar

esses, a grande mesa com bancos de madeira,

do patriarca da casa, da comunidade religiosa...

vazia como os cômodos da casa onde reside

Mais ao alto e em destaque, inclinados em relação à parede, como que reverenciando os

solitário o seu filho mais velho.

entrantes, dois tradicionais quadros de família,

A porta da sala abre-se em duas folhas de

o primeiro com uma composição de pequenas

madeira, estando a porção superior preenchida

fotografias ovais dos seus oito membros,

por caixilhos retangulares de vidro, opacos por internas

de

madeira

que

sisudos e convenientemente caracterizados por

permanecem

roupas e adornos inseridos por manipulação

fechadas. Mesmo a janela disposta ao seu lado

fotográfica, sobre um fundo branco com

e que dá para a frente da mesa segue

motivos

parcialmente opaca por uma grossa toalha florida. Uma volta na fechadura de latão

o

segundo,

casal em sua festa de casamento.

amarelado, já um pouco esverdeado, utilizando a chave longa e espessa com um círculo

florais;

uma

pintura

amarelada e sem muita nitidez, retratando o

Figura 3: A varanda e a sala, 2016. Fonte: Acervo do autor.

Arquitetura e paisagem enquanto experiência fenomenológica Nos diversos espectros que abrangem a questão da paisagem e sua experiência perceptiva, Besse (2014) situa a noção de paisagem enquanto espaço de experiências sensíveis arredias às diversas formas de objetivação: a paisagem como experiência fenomenológica, que remete ao ser humano certa maneira de estar no mundo e ser atravessado por ele, fenomenologia que, por sua vez, é entendida por Merleau Ponty (1999) como o campo dedicado ao estudo das essências, que busca promover o reencontro do contato ingênuo com o mundo. Resgata-se, então, da dimensão da paisagem como experiência baseada em uma exposição ao real, mediante a presença do corpo e o fato de o mesmo ser tocado fisicamente pelo mundo ao seu redor e seus atributos sensíveis: suas texturas, estruturas e subjetividades, o que é deflagrado através de processos de desobjetivação que expõem o sujeito para além de seus limites: “A paisagem como evento do horizonte, que explora a potência de transbordamento do ser, [...] dobra incessante do mundo que faz do real, definitivamente, um espaço inacabável, um meio aberto e que não pode ser totalmente tematizado.” (BESSE, 2014, p. 50). Brandão (2002), ao abordar a questão da escritura do espaço, estabelece a crítica ao que


7

Em um canto da mesma sala, no caminho entre o quarto do casal e a cozinha uma velha mesa de madeira com pintura alaranjada, tendo sobre si vários pequenos objetos, como a grossa bíblia de capa preta que tem entre suas páginas

amplas

ilustrações

coloridas

de

pinturas e obras sacras, desde a “Anunciação” de Leonardo da Vinci à Pietá de Michelangelo. Ao lado dessa, entre velas brancas de cera e pequenas imagens de Nossa Senhora de Fátima, duas caixinhas de madeira com carretéis de linha, agulhas e botões de diversas cores e tamanhos. Era aí que também se guardavam os pequenos pedaços de pano usados nas benzeduras, com suas bordas espessas pelas repetitivas costuras que a atividade requeria. Logo acima, pendurados em um prego na parede, alguns ramos de oliveiras prontos para serem jogados ao fogo ao sinal das primeiras trovoadas da tempestade.

A MÁQUINA DE COSTURA Esquecida no canto de um dos quartos desocupados, com seu tampo de madeira escura parcialmente coberto por empoeiradas toalhas brancas, lá está a velha máquina de costura, que compunha parte do enxoval da mãe daquela família. Ela que os acompanhou desde

os

longínquos

tempos

em

que

derrubaram as primeiras árvores para instalar a sede da propriedade, e durante muitas décadas, através das mãos habilidosas de sua

chama de “texto higienizado”, ou seja, aquele que supõe a existência de espaço neutro, cuja descrição se baseia sobretudo em percepções relacionadas ao sentido da visão, ignorando uma experiência corporal e sinestésica maior, na medida em que constrói uma escritura sem texto; quando o espaço compreensível é, de fato, aquele que se percebe através de todos os sentidos. Assim, ainda que aborde a questão mais específica da casa subjetiva, a mesma desperta em seu trabalho a possibilidade de “[...] voltar a atenção e experimentar (na medida de suas possibilidades e limitações) uma escritura do espaço tomado na sua emergência, engendrado no acontecimento que produz também o corpo situado que se desloca e sente” (BRANDÃO, 2002, p. 23), aproximando-se do que reconhece como a sua “alma material”, o inumano cambiante que também nos atravessa e performa. Linguagem escrita que, como destaca Holl (2011), assume as intensidades da arquitetura e da paisagem. Ao investigar as características dominantes da percepção e as consequências experienciais arquitetônicas relacionado ao modo de vida moderno, Holl (2011) reconhece que, se por um lado a percepção total do espaço necessariamente advém de uma série de percepções parciais que somam-se para formar uma experiência completa, tal complexidade fenomênica e experiencial tende a se desenvolver de forma parcial, uma vez que o problema da

8

companheira, deu forma às vestimentas da família,

nos

tempos

em

que,

fora

da

propriedade, apenas se adquiriam cortes de tecido, dadas as difíceis condições da época, tendo seus últimos artefatos sido os chapéus dourados de palha de trigo que a mesma costurou e levou sobre seus cabelos brancos até seus últimos dias. Agora, a forte luz da metade da manhã derrama-se sobre o ambiente, projetando sobre o piso as formas sinuosas dos seus pés de ferro fundido apoiados sobre rodas quase imperceptíveis. Sua forma é quase simétrica, tendo duas fileiras de gavetas na vertical, fechadas a chave e com delicados motivos florais que esculpidos em sua caixa formam pequenos puxadores esféricos, unidas através de uma gaveta mais alta, posicionada acima dos joelhos da costureira, atrás da qual repousa, em seu compartimento e virada para baixo,

a

possante

máquina

negra

fragmentação temporal e a saturação midiática da vida moderna inexoravelmente leva a uma crescente atrofiação da dimensão perceptiva na relação entre o ser humano e o espaço construído. Dentre as consequências relacionadas a esses processos, registra-se a tendência ao sintético, como produto das forças industriais e comerciais (HOLL, 2011), que levam à eliminação de parte da experiência perceptiva, no mesmo sentido abordado por Pallasmaa (2011), que reconhece que, ao contrario dos materiais naturais, que expressam sua idade e história, permitindo que sejam contadas suas origens e histórico de uso pelas sociedades humanas, os materiais industrializados e sintéticos tendem a conservar suas superfícies inflexíveis à passagem do tempo, não transmitindo sua essência material ou sua idade.

com

detalhes cromados. Rompida está a correia que movimentava a máquina, silenciando a complexa sinfonia impulsionada a partir dos ritmados movimentos dos pés sobre o pedal formado por uma fina grelha de losangos. Sons que lá estão guardados, pretéritos, mas ao mesmo tempo latentes, ansiosos por serem despertos e reincorporados à vida do lugar. Figura 4: A máquina de costura, 2016. Fonte: Acervo do autor.


9

10

A CASA DO LAGO, RETRATO DE UM

aos primeiros sinais de aproximação humana,

ABANDONO.

e os bandos de garças negras que chegam, e ficam, e seguem em revoada, formando

Entre ameixeiras e bergamoteiras carregadas

constelações por sobre as barras de nuvens

de frutas, assentada sobre um denso tapete

do céu crepuscular.

de grama alta e rodeada por sempre-vivas amarelas, flores do campo, alguns espinheiros urticantes e pés de ariticum que insistem em

CONSIDERAÇÕES FINAIS

crescer apesar dos desbastes frequentes,

Diante do exposto, reafirma-se o caráter das

segue resguardada por enxames de abelhas

propriedades

nervosas que habitam sob sua estrutura de

espaços

madeira.

rurais

que

vivenciadas

potencializam

enquanto

experiências

sensíveis de grande riqueza perceptiva, a

Fora do nível e fora do prumo. Suas portas e janelas de um azul desbotado que já foi vermelho já não abrem com tanta facilidade,

partir da experimentação de suas formas e Figura 5: A casa do lago – croqui. Fonte: Acervo do autor.

estando a última varanda que lhe resta

espacialidades tendo como referência o corpo que vê, sente e se desloca. Nessa conjectura, em uma perspectiva mais

fragilmente suspensa a partir de escoras

ampla, resgata-se a percepção de Brandão

improvisadas. No porão de madeira sem

(2002), a

pintura, palha de feno, uma carroça quebrada

qual

remete

ao

mundo

rural

enquanto lugar prenhe de virtualidades e

e muitas tábuas arquejadas. Carcomidas estão

intensidades

as peças de madeira que compõem o detalhe

que

em

nada

devem

às

velocidades contemporâneas.

curvo das esquinas de sua fachada frontal. Cômodos vazios, pouco resta em seu interior

Enfim,

além da caixa de lenha e da mesa de madeira

socioculturais que têm determinado alterações

com pés curvos e tampo azulado.

Figura 6: A casa do lago, 2016. Fonte: Acervo do autor.

Às suas costas, do outro lado da cerca de principal

reflete

suas

conta

as

dinâmicas

nesses lugares e no modo de vida que lhe é característico, considera-se que espaços como grau enquanto sítios de resistência em relação

paredes

à avassaladora perda de referenciais sociais e

amareladas e a alta cobertura desenhada por

culturais

sobre as massas de pinheiros ao fundo.

vinculado

modernidade.

A vida flui, suspensa entre o caminhar da boiada que lentamente percorre os gramados, os ratões d‟água que ariscos atiram-se à água

em

esses aqui abordados configuram em último

arames farpados, um extenso potreiro, cuja açude

tendo

Figura 7: O lago, 2016. Fonte: Acervo do autor.

aos

paradigmas

da

REFERÊNCIAS BESSE, J. M. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. BRANDÃO, L. Abordagens e problemas epistemológicos. In: _____: A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços domésticos. São Paulo: Perspectiva, 2002. HOLL, S. Questiones de percepción. Fenomenología de la arquitectura. Barcelona: Gustavo Gili, 2011. MERLEAU PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. PALLASMAA, J. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011. POSENATO, J. Arquitetura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST/EDUCS, 1983.


ENSAIO SOBRE A ARQUITETURA BIOFÍLICA: UMA TENTATIVA DE ENTENDIMENTO Patrícia Grings


Cartografia do Espaço Habitado Patrícia Grings Como “tudo aquilo que eu sei do mundo, mesmo por ciência, eu sei a Ensaio Sobre a Arquitetura Biofílica: Uma tentativa de entendimento

partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.3), tentei me aproximar da minha compreensão de saúde. Pois bem, saúde para mim é bem-estar. É ausência de doença no corpo e na mente.

No começo do processo, esta pesquisa deveria ser a respeito de

Foi pesquisando todas as inúmeras formas como a saúde é afetada e

arquitetura e saúde. E foi, por algum tempo. Este tema acaba sendo um pouco

como a arquitetura pode se ligar a isto, tanto como solução, quanto como parte

amplo, pois aborda inúmeros aspectos de nossas vidas e da arquitetura, afinal,

do problema, que entrei em contato com o termo biofilia, que até então era

quantas coisas influenciam na nossa saúde?

completamente desconhecido para mim.

Desde o que está diretamente relacionado e pode ser mais fácil de listar e definir, como a iluminação, incidência e importância da luz solar; ventilação natural e a necessidade de arejar os ambientes; ruídos e silêncio; entre outros, até o que as vezes passa desapercebido, como o stress causado pelo excesso de ruídos, excesso ou falta de luz, falta de vida. Neste ponto do processo, tive contato com a Fenomenologia da Percepção1 e alguns pensamentos começaram a surgir. Em determinado ponto Derrida2 diz que a fenomenologia é “Uma filosofia para qual o mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico.” Talvez tenha surgido a necessidade de buscar esta essência de saúde, ou pelo menos tentar chegar mais perto disto.

Biofilia é definida por alguns autores como “amor a vida e aos processos de vida”. Especificamente a publicação que me introduziu a este conceito diz que “biofilia - ou a ideia de que os humanos têm uma afinidade com o mundo natural - é um campo emergente que pretende direcionar nossa necessidade psicológica de estar em volta de vida e processos de vida”. Pois bem, vida é indissociável de saúde. Existe uma busca por saúde ao longo de nossas vidas, por um corpo saudável e uma mente saudável. Estes dois elementos estão fortemente unidos. Processos de vida podem ser entendidos como seres vivos e sua interação, ou como a natureza, que é a união de tudo. Nas grandes cidades, nos distanciamos cada vez mais da natureza. Temos edificações de concreto cercadas por asfalto e de quando em quando um canteiro de grama que chega a parecer perdido e deslocado. Temos ambientes vedados, com insuflamento de ar, aquecimento e resfriamento mecânicos e aberturas que mostram somente outros paredões, com outras aberturas, sem céu, sem sol, sem luz, sem vida.

1

MERLEAU-PONTY, M. Prefácio. In: MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, Ed. 02, 1999, p. 01-20. 2 DERRIDA, J. Elipse. In: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 427-434.

E apesar de habitarmos lugares assim, o ser humano pertence a natureza, é um ser vivo como todos os outros, que tem necessidades que


derivam da natureza e tem a vida e o organismo regidos e influenciados por

que os elementos da arquitetura podem operar como uma espécie de sujeito,

fenômenos naturais.

agindo sobre o comportamento das pessoas” (BRANDÃO, 2002, p.9), também

Como ignorar o que a natureza representa em nossas vidas? Se o ar que respiramos é natureza e as grandes cidades só fazem contaminá-lo. Os alimentos que ingerimos, e precisamos para viver, são natureza.

os elementos naturais se comportam desta forma, agindo sobre o comportamento das pessoas, sem que as mesmas sequer tenham consciência de seu efeito. Sendo assim, se ambos têm este efeito sobre as pessoas, como excluir ou afastar um ou outro?

As plantas, o solo, os animais. A água também o é, mas nas grandes cidades os rios, lagos e até nascentes estão poluídos. Mar e oceanos são natureza. As marés que influenciam a vida de quem vive perto deles e até nem tão perto, são natureza, são regidas pelo ciclo

Seria mais proveitoso que se pudesse viver em uma cidade onde o acesso é garantido à arquitetura, como o meio construído, à tecnologia, como avanço e progresso e também à natureza, como parte indissociável aos seres vivos.

lunar, que também é natureza. Além da lua que rege marés, o sol que possibilita nossa vida, o crescimento da vegetação e a produção de vitaminas e hormônios em nosso

Mas se tantos destes fatos já são conhecidos, e são ignorados, então como fazer com que sejam levados em consideração por todos? Pelos arquitetos e urbanistas?

organismo, seja por sua presença ou por sua ausência, também é natureza. As árvores que produzem frutos, mas também produzem sombra, umidade no ar, redução da poluição, são natureza.

Talvez não seja só a natureza que está distante em nossos projetos e nossa forma de pensar a arquitetura e a cidade. Talvez falte um olhar fenomenológico para este processo.

As flores que embelezam e perfumam, mas também alimentam aves e insetos, são natureza. Aliás, os insetos que alimentam aves e répteis, que por

Afinal, será que o pensamento em uma arquitetura biofílica está tão distante do pensamento fenomenológico?

sua vez alimentam outros animais em um ciclo perfeito, são natureza. O homem é natureza e pertence e precisa da natureza para poder viver bem, embora tenha passado bastante tempo tentando negá-lo.

Além da vegetação propriamente dita, existem outros elementos da natureza a serem levados em conta. Os materiais e a luz fazem parte do mesmo conjunto.

Alguns estudos mostram que este distanciamento da natureza causa

Um projeto que leve em conta o homem, também estará levando em

angúsita e stress. Outros mostram que o simples contato com elementos naturais

conta a natureza. O projeto que tenha por partido o uso de materiais naturais,

- como plantas ou fontes de água – reduz a pressão sanguínea, os níveis de

que leve em conta a luz e a ventilação, será um projeto mais humano e

cortisol e tem a capacidade de aumentar o nível de concentração e satisfação

aproximado da natureza.

das pessoas. A vegetação reduz as ilhas de calor, reduz a temperatura do ar, reduz a poluição do ar. Da mesma forma que Ludmila de Lima Brandão3 fala da “relativa autonomia atribuída ao espaço arquitetônico. A semiótica topológica considera

3 BRANDÃO, Ludmila de Lima. Abordagens e problemas epistemológicos. In: BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços domésticos. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 7-28.

Mas o pensar os materiais, a luz e o vento, não é somente tentar enquadrar uma edificação às normas e propor as dimensões mínimas de esquadrias e verificar materiais não inflamáveis. É ter um olhar para a vida que vai acontecer naquele lugar. Para a luz que vai passar por um elemento e gerar uma sombra desejada em um determinado momento do dia, provocando um sentimento. Para o vento que vai


entrar por uma abertura no verão, refrescando o local e trazendo conforto para

esquenta demais os quartos e o vizinho da frente pode ver todo o apartamento

o morador. Para a árvore que vai sombrear uma fachada, pela qual alguns raios

da sua janela.

de sol fugidios passarão, produzindo uma renda de luz e sombra em um cômodo.

As áreas comuns passam a maior parte do tempo vazias, salvo uma

Se o olhar para o projeto for mais humano e mais pessoal, se o

ou outra festa familiar no salão, ou um grupo de amiguinhos da escola que utilize

arquiteto se sentir naquele local, vivenciando sua criação e projetando

a quadra de esportes. O espaço fitness, este sim tem alguma movimentação.

sensações, sentimentos e emoções, então também a natureza estará ali. A vida

Pessoas vem e vão com seus fones de ouvido, focadas em seus exercícios e

estará ali.

olhando para a tv enquanto correm para lugar nenhum na esteira. Afinal, o que é a vida sem os sentimentos e as emoções? As cidades

O convívio não é desejado. Estamos vivendo a individualidade da

estão propiciando a vida em pequenos apartamentos, projetados em grande

sobremodernidade. Focados em telas de celulares e com fones de ouvido para

escala, reproduzidos dentro de plantas que não levam em consideração muito

facilitar a falta de interação. Não fazemos questão de conhecer o vizinho de porta

mais do que a necessidade de encaixar um determinado número de unidades

pois aprendemos a viver desta forma solitária e sem uma identidade.

em um bloco.

Mas será que a natureza é a solução para isto?

Seria de certa forma isto, um indício da sobremodernidade produtora de não-lugares, como propõe Marc Augé4, em seu livro Não-lugares: introdução a

uma

antropologia

da

supermodernidade?

Seriam

estes

“pequenos

apartamentos urbanos” uma forma de não-lugar? Não existe ali qualquer forma de identidade ou identificação. Ninguém pensou em como aquele habitante vai sentir ali, até porque aquele habitante não tem nome, não tem gostos, é somente genérico. E para pessoas genéricas, são

Talvez uma arquitetura que tenha em consideração seu usuário e seja sensível a forma como um ser humano vai habitar aquele local e como ele vai se sentir ali, provocando deliberadamente sensações. Talvez uma cidade que leve em conta os lugares e a forma como as pessoas se encontram e interagem entre si e com o espaço, sem forçar encontros e obrigar passagens.

produzidas habitações genéricas, levando em conta a moda do momento, que

Talvez isto seja o começo. Quem perceber isto, perceberá que a

possivelmente veio ditada de qualquer lugar com outro clima e outra cultura, mas

natureza está presente neste olhar sensível e nestes lugares de encontros,

também com habitantes genéricos.

passagens e interações.

Uma vez que este morador adquira o seu “pequeno apartamento urbano”, ele se encarrega de imprimir sua identidade àquele espaço. Pinta as paredes, pendura quadros, coloca um tapete e uma planta no canto da sala: a porção de natureza que lhe cabe. Depois disto começam as correções. Instalação de ar condicionado, pois a ventilação é insuficiente; instalação de cortinas e persianas já que o sol

Talvez a natureza possa estar presente também de outras formas menos perceptíveis, mas ao encontro de sua essência. Buscamos soluções tecnológicas e materiais cada vez mais leves e mais resistentes para darem conta das demandas estruturais, mas deixamos muitas vezes de levar em conta a pesquisa feita pela natureza nos últimos milhões de anos. Quando se leva em conta elementos naturais, frequentemente é com o intuito de produzir uma cópia de seus formatos, mas sem considerar seu real

4 AUGÉ, M. Não-lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa: Graus, 2005. 101p.

funcionamento.


As soluções para muitos problemas já foram “propostas” pela natureza, basta se ater a compreender como as estruturas e os elementos realmente funcionam. A isto chamamos biomimetismo: a capacidade de imitar a vida. Novamente a vida aparece, em um ciclo de conceitos que se cruzam e se completam. Este estudo propõe buscar entender como a natureza “trabalha” e constrói suas estruturas, dos mais variados tipos, mas não para criar uma cópia delas e sim para fazer uso deste conhecimento para a produção de novas

Figura 1 - Brócolis Romanesco (Fonte: http://www.mdig.com.br/index.php?itemid=30380)

Figura 2 - Casca de Caracol (Fonte: http://www.mdig.com.br/index.php?itemid=3038 0)

estruturas. Um aprendizado com o melhor que temos em arquitetura até hoje, mesmo porque, vem funcionando nos últimos milhões de anos.

Taylor diz que são estas formas as responsáveis pelo efeito notado

Reforçando esta teoria, ou somando a ela, existem os estudos de

durante pesquisas com exposição de indivíduos a elementos naturais. Os efeitos

Richard P. Taylor5 a respeito dos fractais, além do que é citado no livro O poder

percebidos, como redução da pressão sanguínea, redução do nível de stress e

dos limites, de György Doczi.

aumento do nível de concentração, são segundo o autor, causados pela

Os fractais são formas geométricas abstratas, com padrões complexos que se repetem infinitamente. Estas formas são obtidas através de

percepção destas formas complexas, que estão presentes nos elementos da natureza.

equações matemáticas não geométricas, uma vez que a geometria pura não é

Da mesma forma que isto reforça o quanto somos parte de um mesmo

capaz de descrevê-las. Os elementos da natureza são compostos por estas

todo, uma vez que a nossa constituição, no que diz respeito a tais formas, é a

formas fractais, quando analisados em detalhe.

mesma que a dos demais elementos, também deixa uma brecha para podermos

Desde as folhas das árvores, as raízes, a correnteza dos rios, a forma

pensar formas arquitetônicas, ou elementos que se apropriem desta

como uma gota d’água penetra no solo, os raios, os vasos sanguíneos, o próprio

complexidade, para tentar provocar as mesmas reações positivas nos usuários

cérebro. Todos são fractais.

desta arquitetura. Pois bem, até agora esbarramos na psicologia, na biologia, na física e na matemática. É por isto que a arquitetura não pode querer se isolar enquanto campo de produção de conhecimento. Brandão diz que uma ciência que não encontrou sua legitimidade não é uma verdadeira ciência, e que a arquitetura não seria uma ciência, já que precisa se apropriar no conhecimento das demais.

5 Taylor, RP (2006) Reduction of physiological stress using fractal art and architecture. Leonardo 39: 245-251.


Acredito que a arquitetura não seja a única a buscar conhecimento

imprimir sua própria identidade ao local. É claro que nossas experiências,

em outras áreas para legitimar seu conhecimento produzido, e não vejo como

vivências e bagagens nunca vão desaparecer, mas até para isto é preciso ter a

um problema esta necessidade.

sensibilidade de limitar a uma porção de si, para permitir o predomínio do outro.

Precisamos do apoio de outras áreas, como a psicologia e a biologia

Esta é a arquitetura biofílica que eu penso e busco propor, e para

para entender o real impacto da natureza sobre nossa mente e corpo, mas

poder materializar isto, vale um ensinamento obtido através de A casa Subjetiva.

precisamos também da biologia para entender como a natureza funciona em seu

Para expressar algo como a arquitetura biofílica e para conseguir transmitir seu

íntimo, em suas estruturas. A história e a antropologia podem mostrar a antiga

real valor, talvez se precise de muito mais que plantas e cortes. Plantas e cortes

conexão que já existiu entre homem e natureza. E tudo isto para gerar um

explicam um prédio, como construir, como edificar, mas não expressam o

conhecimento final que beneficie a todos, em todas as áreas, e também na

sentimento de quem está nele. Serão necessários elementos não espaciais para

arquitetura.

representar com propriedade os resultados desta arquitetura. Serão necessárias

Esta arquitetura integrada, resultante de diversos saberes de diversas

palavras.

áreas, deverá então ser pensada para o ser humano, como um elemento

As palavras que descreverão os percursos pretendidos e os olhares

sensível que busca abranger e estimular os sentidos e a emoção. Deverá ter em

desejados. Que dirão ao usuário de qual forma aquela edificação deverá se

vista o contato com elementos da natureza, incluindo a vegetação, além da luz

comportas, qual o sol, qual o vento, quais as plantas que irão trazer perfume e

e água, mas considerando a vegetação como item de projeto, pertencente da

sombra no verão e permitir a passagem da luz e calor no inverno, quando já

mesma forma que a estrutura, não somente em alguns vasos com arbustos

estiverem sem folhas. Porque não explicar quais são os perfumes que se espera

ornamentais que compõem o paisagismo de alguma área seca.

que sejam sentidos, vindos do jardim?

Acredito que isto seja o essencial que representa uma arquitetura

As explicações de porque aquele material está ali, de como ele deverá

biofílica como vem sendo pensada, mas acredito também que não precisa ser

ser tocado e sentido e como deverá se comportar quando junto de todos os ouros

só isto. Depois de tudo que li, acho que a proposta pode ir além, buscando

materiais.

inspiração para a construção nas estruturas da natureza, em forma de biomimetismo. Além disto, acho que a complexidade das figuras fractais que nos compõem e a tanto mais deve ser levada em conta. Resta saber se algo já está

As ilustrações de como o vento deverá passar, ou não passar, para permitir que o habitante fique confortável.

sendo pensado, ou se esta ideia ainda está nascendo, mas seja como for,

Tantas palavras podem parecer redundância, afinal, o projeto mostra

acredito que a nossa relação e conexão com a natureza que nos rodeia e nos

como construir. Mas ele não diz porque construir. Não mostra a intenção e

gera não é à toa. Creio que compartilharmos energia e geometria nos une de

pensamento nem o sentimento, nem a emoção.

formas que ainda não tenho certeza de como explicar. Mas acho que algumas destas relações podem se traduzir em projeto. Além de tudo isto, deveria ser levada em conta a identidade na hora de criar estas edificações. Identidade do usuário e do local, pensando espaços

Se se espera que a arquitetura tenha um sentido maior e seja respeitada neste sentido e intenção, é preciso que isto fique claro para todos. Não basta o arquiteto saber o que deseja e está propondo. Precisa ficar claro para quem vai ali viver e para quem vai materializar este lugar.

de identificação e não reproduzindo lugares não-lugares. Neste sentido vale

Quando todos estiverem reunidos em torno de um mesmo ideal e

ressaltar que deve haver um distanciamento para que o arquiteto não tente

compartilhando a intenção de criar um lugar que transmita algo e tenha sentido


em existir, talvez esta arquitetura biofílica que estou buscando traduzir venha a ter seu espaço.

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MEMÓRIAS, PERCEPÇÕES E SENTIMENTOS DE MINHAS EXPERIÊNCIAS DE ESTAR JUNTO AOS GUARANI Nauíra Zanardo Zanin


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DISCIPLINA: Cartografia do espaço habitado: fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade Professor: Dr. Rodrigo Gonçalves

Memórias, percepções e sentimentos de minhas experiências de estar junto aos Guarani Nauíra Zanardo Zanin

Sempre tive muito interesse e admiração pelos povos indígenas, mas não imaginava que poderia me dedicar profissionalmente a eles. Foi no final do meu curso de graduação que percebi que a arquitetura ‘não indígena’ se insere em suas vidas, está presente nas aldeias. Isso aconteceu em 2002, em um encontro na Praia do Ouvidor, quando indaguei a um Guarani sobre como eram construídas suas moradias. No transcurso do tempo, acabei sendo levada a aprofundar essas indagações, desenvolvendo sobre isso minha dissertação de mestrado1. Desse período, então, trago aqui minhas memórias, vivenciadas em aldeias Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul, datadas em mais de dez anos, temperadas com a recente aproximação junto aos Guarani do litoral de Santa Catarina. Partindo de onde me encontro, dos caminhos percorridos, vivências e experiências, tentarei expressar aqui algumas tessituras, matizadas pelas leituras de autores que ensinam a sentir os ambientes, os cheiros, as luzes, as texturas, as sensações corporais, impressões e interpretações que percebemos nos lugares que nos tocam, como Bachelard (1989), Pallasmaa (2011), Fuão (2014), entre outros. Minha interlocução é alimentada pelas percepções de ambientes habitados pelos Mbyá-Guarani, pelas paisagens simbólicas que demarcam sua presença, que indicam seus territórios tradicionais. Para tanto, além de minhas próprias observações e de outros pesquisadores, apoio-me também em lendas e mitos, compilados por autores renomados por suas interlocuções junto aos Guarani, como Schaden (1954), Clastres (1978) e Cadogan (1997). Procurarei abordar as ocupações Guarani em diferentes escalas de aproximação, partindo da paisagem para os núcleos de moradias, dali para o pátio reservado da Opy (Casa de Rezas). Descrevo também uma escola, que está na interface entre esse contexto e o exterior da aldeia, mas que traz para dentro de si elementos arquitetônicos simbólicos, demarcando sua relevância para as vivências e aprendizagens. A escola é um espaço de acolhimento do outro, mas também uma delimitação de domínios, uma borda. Percebo, então, que o acolhimento na aldeia se revela nessa relação com o outro.

Contexto dos lugares, sua organização espacial, espaços simbólicos, paisagem cultural BR 101. É por essa rodovia que se chega na Tekoa Itaty, em Morro dos Cavalos, Palhoça, Santa Catarina. Uma via de intenso fluxo de veículos pesados. Trazem consigo muita poluição: sonora, atmosférica, visual. Uma passarela elevada conecta as duas margens da aldeia, permitindo atravessar esse rio caudaloso de trânsito. Quem está de passagem vê as casas, os 1

Intitulada “Abrigo na natureza: construção Mbyá-Guarani, sustentabilidade e intervenções externas”, defendida em 2006, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa em Edificações e Comunidades Sustentáveis, com orientação de Miguel Aloysio Sattler (NORIE) e co-orientação de José Otávio Catafesto de Souza (NIT).

agrupamentos de moradias bem próximos da rodovia. Vê uma área coberta, com exposição de artesanato para venda. Vê também a escola, principal ponto de acesso da aldeia. De um lado, vê a mata nativa, uma taquareira, alguns coqueiros. Do outro lado, atrás de algumas moradias, vê a encosta da montanha recoberta de pinus. O território foi declarado Guarani Mbyá e Nhandeva em 2008. Ainda está em processo de homologação e desintrusão. Os pinus são, provavelmente, remanescentes da ocupação anterior. Mesmo não sendo a madeira ideal, pela pouca durabilidade, os Guarani os utilizam em suas construções. Utilizam também a taquara e a folha de coqueiro jerivá (pindó), bem como cipós retirados da mata nativa. A palmeira é um espécime vegetal especial para os Guarani, sendo encontrada nos mitos com uma equivalência à casa de rezas, que é um veículo para atingir a perfeição (COSTA, 1993). Costa e Ladeira (1997) apresentam as folhas de pindó como o melhor material para a cobertura, também apreciado pela linearidade dos troncos, sendo pouco utilizados, todavia, devido à raridade destes materiais. A palmeira aparece nos mitos reunidos por Leon Cadogan (1997) como elemento da fundação da primeira terra (Yvy Tenondé): Criou uma palmeira eterna no futuro centro da terra; criou outra na morada de Karaí; criou uma palmeira eterna na morada de Tupã, na origem dos bons ventos criou uma palmeira eterna; na origem do tempo-espaço original criou uma palmeira eterna; cinco palmeiras eternas criou: às palmeiras eternas está assegurada a morada terrena (CADOGAN, 1997, p.49, tradução nossa).

O autor esclarece que as direções em que foram criadas as palmeiras eternas correspondem aos pontos cardeais, sendo: a oriente, a morada de Karaí; a poente, a morada de Tupã; norte e nordeste, a origem dos bons ventos; e sul, a origem do tempoespaço original. A relação existente entre a morada dos deuses e o trajeto do sol é representativo para os Mbyá-Guarani, aparecendo como fator importante na orientação de suas habitações e Casas de Rezas.2 A distribuição das moradias nessa aldeia está condicionada à forte declividade do terreno. Os Guarani geralmente constroem suas casas agrupadas segundo os núcleos familiares, fortalecendo relações de parentesco. Esses agrupamentos funcionam como células, conectadas por redes de caminhos, a serem percorridos a pé (PRUDENTE, 2007). São atalhos, trilhas, ou mesmo caminhos mais largos onde podem transitar automóveis. A declividade do terreno é algo desgastante. Ao subir para um dos níveis superiores, em direção ao espaço vazio onde era a antiga Opy (Casa de Rezas) e futuramente construirão uma nova, o ritmo cardíaco se acelera, bem como a respiração torna-se mais difícil. Não tanto para quem me conduz, pelo hábito de subir e descer pelas encostas do Morro, em escadarias calcadas pelo próprio passo, reforçadas com toras delgadas que previnem minha queda. A 2

Fragmento da dissertação de mestrado (ZANIN, 2006)


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localização justifica-se plenamente ao chegar ao platô, tirar os olhos do solo e voltar-me em direção ao horizonte. Esse lugar não é simbólico somente por ser o lugar da Opy, mas pela sua facilitada comunicação com Tupã, uma das divindades Guarani, cuja morada fica na direção em que nosso olhar se dirige, como explica quem me conduz, ao admirarmos a paisagem da Serra do Tabuleiro.

Agrupamentos de casas e núcleos familiares O Morro dos Cavalos tem nascentes de água, que abastecem a comunidade indígena e não indígena do entorno. O ruído ensurdecedor das carretas, que interrompe os diálogos quando estamos na escola ou em frente às casas, começa a ser “mascarado” gradativamente quando se ingressa nos núcleos de moradias, especialmente quando volto minha atenção ao burburinho de um pequeno córrego, onde a água cai por entre as pedras. A mata ciliar também traz frescor e proporciona outra ambiência, se comparada à aridez da rodovia. Nesse núcleo de moradias, onde se agrupa uma família extensa, a “casa do fogo”, onde fazem o fogo de chão, fica aos fundos, protegida do ruído. A fumaça indica o fogo sempre aceso, e isso observo já da rodovia. Uma breve aproximação me faz imergir na fumaça, esse elemento sagrado, portador de tantas lembranças. O fogo é acolhimento, segundo traduzo das palavras de uma Mbyá: “o fogo é como a nossa mãe, se não tem fogo, ficamos tristes”, ou de um Karaí (líder espiritual): “o fogo é para toda a vida” (ZANIN, 2006). O fogo não faz somente o alimento, mas ajuda a digerir as palavras sagradas, transmitidas pelos Karaí. Então, ali, no frescor da mata, com o perfume da madeira queimando e o suave murmúrio da água, outro estar no mundo se coloca. O estar Guarani. Preciso mencionar os pés desnudos? O toque da terra fresca? O sorver doce-amargo da erva-mate? O sabor do fumo no petynguá (cachimbo ritual)? Mais uma fumaça sagrada que se eleva no ar. Com Pallasmaa (2011) me volto sensível à essas percepções, que me chegam por meio de minha pele e de suas especializações. Meu estranhamento certamente sobrevaloriza o momento, pois quem vivencia esses ambientes e é constantemente tocado por essas ou provavelmente outras impressões, talvez já as considere como parte do todo. Os aromas, as texturas, as cores, o balanço do corpo deslocando-se pelos caminhos de terra e mata já são parte de quem ali vive: “Nosso contato como mundo se dá na linha divisória de nossas identidades pessoais, pelas partes especializadas de nossa membrana de revestimento”. (PALLASMAA, 2011, p.10)

Moradia tradicional (autóctone) “Nossa casa (...) é um ninho no mundo”, diz Bachelard (1989, p.115), onde poderemos viver com uma “confiança nativa”, se formos capazes de reencontrar a segurança da primeira morada. No caso do ninho, Michelet (1858, apud BACHELARD, 1989) observa que o pássaro molda-o com seu corpo até alcançar a forma ideal. De modo que a ferramenta usada pelo pássaro é seu próprio corpo e o ajuste ocorre pelo sofrimento de sentir-se preso e procurar, com algum sofrimento, encontrar uma forma confortável.

A casa autóctone Guarani, traz certa semelhança, vai sendo ajustada à medida em que é construída. Então a casa se ajusta ao corpo como uma vestimenta, cujo tamanho é específico, dando abrigo à cultura, aos hábitos e às experiências pessoais. “O ninho é precário (...) e, no entanto, desencadeia em nós um devaneio de segurança” (BACHELARD, 1989, p.115). Mesmo sabendo que o ninho é frágil, é confortador reconhecer e enfatizar seu mimetismo com a natureza envolvente. Então o ninho se converte em um signo da confiança no mundo, no cosmos. Integrando os elementos que compõe o entorno das moradias, estão também os animais. Cachorros, patos, galinhas, gatos... todos pequenos animais que circundam os Guarani em seu cotidiano. Os afazeres diários que envolvem a casa se centram na manutenção da vida, na alimentação, na confecção de artesanato, em alguma construção ou reforma, no cultivo da roça (kokué). A casa autóctone Mbyá corresponde perfeitamente ao “ninho no mundo”, pois parece moldada com perfeição aos símbolos culturais em suas dimensões, na escolha dos materiais, na sua transitoriedade (ZANIN, 2006). Pallasmaa (2011) incentiva a perceber as sutilezas de cada lugar, e com esse ‘olhar’ da pele, que abarca todos os sentidos possíveis, tentarei explicar a relação que faço das construções autóctones com o ethos, a visão de mundo e os símbolos sagrados dessa cultura, seguindo os conceitos trazidos por Geertz (1989). O significado final de qualquer edificação ultrapassa a arquitetura; ele redireciona nossa consciência para o mundo e nossa própria sensação de termos uma identidade e estarmos vivos. A arquitetura significativa faz com que nos sintamos como seres corpóreos e espiritualizados (PALLASMAA, 2011,p.11, grifo meu).

O maior esclarecimento que tive ao analisar as moradias autóctones Mbyá foi sua relação profunda com a espiritualidade do grupo, que permeia todas as suas atividades diárias, conduzindo seus comportamentos (ZANIN, 2006). Isso se expressa, na casa, de diversas formas: na escolha dos materiais simbólicos que representam elementos sagrados e estão presentes em seu mitos de criação do mundo; no tamanho da casa, corporalmente dimensionada às possibilidades construtivas e demandas práticas e subjetivas de seus moradores, que se encaixa no que coloca Pallasmaa (2011,p.57) “a habilidade essencial de se construir uma moradia nas culturas tradicionais se baseia na sabedoria do corpo armazenada na memória tátil”; ao tamanho diminuto da porta de entrada, única abertura para o exterior, provoca uma reverência ao entrar, expressando humildade perante o espaço sagrado (especialmente quando se trata do acesso à Casa de Rezas – Opy), bem como a orientação solar da porta, que possibilita saudar e ser abençoado pelo sol - divindade Nhamandú - ao sair de casa ao amanhecer; o piso de chão batido permite o uso do fogo de chão, elemento simbólico e de presença constante no modo de vida Mbyá; o revestimento das paredes com barro, protege das variações climáticas, mas também carrega em seu acabamento as marcas das mãos que o executaram (como o retrato de uma carícia);


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A mão que produz mascara seu próprio significado, seu sentido. (...) A mão é o sentido, o sentimento do humano, e o trabalho que ela realiza é a própria economia, a própria casa, a própria morada. A morada passa pela mão, pela economia e política da mão. (...) O exercício de aplica-la, calcá-la sobre uma superfície (...) configura a primeira cartografia, mapa. (FUÃO, 2014, p. 96 e 97)

a cobertura, de folhas de pindó (coqueiro jerivá) ou de taquara batida, ambos elementos simbólicos, permitem que saia a fumaça, mas também protege das intempéries. Por tudo isso, em seus elementos construtivos, os Mbyá descrevem a sua casa tradicional como um ‘abrigo dos Deuses’ (ZANIN, 2006). Então, nessa casa, se encontra um universo de fenômenos perceptivos e sensoriais: O cheiro: da palha, da madeira, da fumaça, da lenha queimada, da terra seca ou úmida, dos alimentos... mas predominantemente o cheiro da fumaça. Fumaça que para eles é sagrada, é uma conexão com as divindades. As luzes: do fogo, como parte viva dessa construção; as luzes das estrelas, que se veem por entre as fibras da cobertura; ou durante o dia, a luz do sol que permeia o filtro de palha. As cores, todas relacionadas às tonalidades presentes na natureza: o tom da terra de cada lugar; a madeira seca, a taquara seca, a folha de palmeira seca; e, internamente, a fuligem negra que sobe e impregna esses materiais, protegendo-os. As texturas: da madeira macia, da taquara lisa, do revestimento áspero de terra. O piso, também de terra, que acolhe o fogo e seu calor. Elementos que são parte do sentir proporcionado pela casa. Por isso a casa autóctone também auxilia na manutenção do Nhanderekó, o modo de vida Mbyá-Guarani. O corpo sabe e lembra. O significado da arquitetura deriva das respostas arcaicas e reações lembradas pelo corpo e pelos sentidos. A arquitetura tem de responder às características dos comportamentos primitivos preservados e transferidos pelos genes. (...) Nossas sensações de conforto, proteção e lar estão enraizadas nas experiências primitivas de incontáveis gerações (PALLASMAA, 2011,p. 57). A percepção do corpo e a imagem do mundo se tornam uma experiência existencial contínua; não há corpo separado de seu domicílio no espaço, não há espaço desvinculado da imagem inconsciente de nossa identidade pessoal perceptiva (PALLASMAA, 2011, p. 38) Toda grande imagem simples revela um estado de alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é um estado de alma. Mesmo reproduzida em seu aspecto exterior, ela fala de uma intimidade (BACHELARD, 1989, p.84).

A Opy e seu pátio Desde que comecei meus diálogos com os Guarani, já ouvi muitas formas de explicarem o que a Opy representa: sua escola, sua universidade, seu hospital, sua igreja, seu abrigo onde as divindades os protegem. Um Mbyá afirmou certa vez: “Sustentabilidade é a Opy” (ZANIN, 2006). Ela é o centro da comunidade, onde se vivencia e se transmite o modo de vida MbyáGuarani, o Nhanderekó. O lugar simbólico que a Opy e seu pátio ocupam no contexto de uma comunidade expressa e facilita a compreensão da cosmologia, do comportamento e da visão de mundo Mbyá-Guarani. Essa explicação fica ainda mais clara nas palavras de crianças Guarani: (...) a casa de rezas que se chama Opy’i é muito importante para nós porque é onde Nhanderu, deus, fala para os Karaí, o pajé. Para o guarani tudo se relaciona com a natureza, é sagrado, como a lua, o sol, o céu a terra, a chuva. Jera’i, Eliziane Antunes, 6ª série Escola Itaty (TASSINARI et al, 2011, p.41). De noite, entro na Casa de Rezas que é nossa escola antiga, é lá que a gente pede para ficar bem com a terra. É a Casa de Reza que é mais importante para os povos guarani, é de lá que nós aprendemos muitas coisas. (...) O ensinamento vem da memória antiga. A memória cultural guarani vem através das pessoas mais velhas, ensinam a cantar e dançar e rezar na Opy. Para aprender a respeitar a natureza, fazer arte guarani, para plantar. Werá Mirim, Marcelo Gonçalves, 7ª série, Escola Itaty (TASSINARI et al, 2011, p.25 e 28).

No aspecto físico da Casa de Rezas, a escolha dos materiais utilizados está relacionada às lendas de criação de mundo, na origem de uma “primeira terra” perfeita na qual algumas árvores eram eternas, imperecíveis. Árvores que não representam apenas madeira, mas proteção espiritual, como no caso do pindó (coqueiro jerivá), que possibilitou a salvação durante o dilúvio. A Casa de Rezas também possibilitou a ascensão espiritual, a elevação para a profética “Terra sem Males” (CADOGAN, 1997; CLASTRES, 1978). Por isso a necessidade de terem uma Casa de Rezas em cada comunidade. No contexto das aldeias, um dos locais de menor acesso aos não indígenas é a Casa de Rezas (Opy) e seu pátio. Ainda que seja um elemento central para a comunidade, a Opy não assume geometricamente essa posição (SCHADEN, 1954, p.37): Em geral, não é possível determinar um centro da aldeia, a não ser que considere como tal a habitação do ñanderu, médico-feiticeiro, ou o oýgatsu, a casa de festas religiosas. De fato, a construção em que se realizam as cerimônias é o ponto de convergências das ações sociais e religiosas do grupo.

A Opy fica preferencialmente em local reservado, próximo a um pindó, árvores frutíferas e voltada para um pátio onde realizam danças (COSTA, 1989). Mesmo que a Opy se diferencie das habitações por seu tamanho e acabamento, ela se destaca mais por seu significado, que pela forma construída.


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A centralidade intrínseca a esta edificação está relacionada com o fortalecimento do nhande rekó – modo de ser Guarani, através de rituais sagrados que expressam a concepção de mundo Mbyá. A Opy também é o local onde se realizam as curas e tratamentos, do corpo e do espírito (INVENTÁRIO, 2005): (...) a Opÿ articula um conjunto considerável de símbolos e ações simbólicas, pois ao falarem da importância da Opÿ para o juruá (homem branco), os Mbyá estão se referindo a todo um sistema simbólico e cosmológico próprios deste grupo étnico.

O padrão construtivo da Opy é tradicional, sendo reproduzido em várias comunidades:

mas o sol é quente. No fluir das crianças pelo espaço, partilhando das brincadeiras, estão os animais, em sua maioria cachorros. De todos os tamanhos e cores. Chega um grupo de visitantes, são crianças da educação infantil de uma escola não indígena. Rápida e sutilmente a escola se organiza para recebe-los. São dispostas mesas no caminho principal e na varanda-refeitório, para fazer a exposição e venda de artesanato. Enquanto isso, na parte alta do terreno, do outro lado da pequena estrada e do muro que delimita a escola, um grupo de professores e adolescentes está construindo uma Opy demonstrativa, a Opy Miri. As mulheres serram as taquaras. Os homens buscam, do outro lado da rodovia, a madeira de pinus para a estrutura do telhado. Depois continuam a montagem. A estrutura principal já estava de pé. Começaram a colocar, então, os caibros. A taquara será utilizada para fechar as laterais da Casa de Rezas. É um espaço demonstrativo, mas será utilizado também como sala de aula, um lugar mais adequado para falar e aprender sobre a cultura.

as paredes são de taipa de mão e o teto é de taquara, pindó ou capim santa fé. A forma da planta é retangular e a porta está voltada ao sol poente. A imagem da Opy, para os Mbyá, está relacionada à força e proteção (INVENTÁRIO, 2005).3 Heidegger (2001), relembra que as construções são abrigos, lugares nos quais nos de-moramos e os quais habitamos, mesmo que não sejam residências. Para o autor, o habitar está relacionado à construção de lugares que acolhem, que guardam a quadratura – a integração entre o céu e a terra, os deuses e os mortais. As construções, enquanto expressão, podem se tornar símbolos dessa integração da quadratura. A Casa de Rezas (Opy), pelos aspectos simbólico-culturais presentes, pode ser interpretada como expressão da quadratura, da relação cosmológica Mbyá, traduzida no seu modo de ser e estar no mundo.

Onde a escola entra nisso? A Escola Itaty tem um desenho específico. A construção principal conecta dois níveis, adaptando-se ao terreno em declive. O nível principal, onde encontram-se a secretaria, o refeitório e a cozinha, abre-se para um caminho ao longo do qual podem-se acessar as salas de aula. Todas elas estão em desnível com esse caminho, sendo acessadas por pequenos conjuntos de escadas, com três ou quatro degraus. Esses degraus são muito utilizados por toda a comunidade. São utilizados como bancos, recantos, bem como as muretas que emolduram áreas para vegetação. Acima desses degraus, pequenos patamares junto à entrada de cada sala de aula, mais lugares de apropriação, onde podem ser encontradas cadeiras – no sol, se está frio, na sombra se está calor. Um desses patamares configura uma bela arquibancada, com cadeiras giratórias para apreciarem o espetáculo em curso: um jogo de vôlei. De forma improvisada, o espaço entre as salas recebe uma rede e as crianças e adolescentes, em alguns momentos junto com professores, divertem-se. Tantos recantos, todos ocupados ao mesmo tempo e com crianças fluindo de um para o outro o tempo todo. E rindo, e correndo, indo e vindo pelo caminho principal, vindo de seus esconderijos, vindo de suas casas. A manhã é fria,

3

Fragmento da dissertação de mestrado (ZANIN, 2006)

Figura 1: visão geral da construção da Opy Miri, escola e montanhas ao fundo

Estavam lá alguns homens, de idades variadas. Três deles fumavam o petynguá. A fumaça percorria o ar, no espaço delimitado pela estrutura. Seria aquilo ‘fumar a casa’? O petynguá tem uso sagrado e ritual. Perguntei-me sobre seu uso naquele momento. Em uma segunda visita, observo a repetição de idas e vidas da mata para trazer material para a obra da pequena Opy. Muitas taquaras são necessárias para fazer as telhas que cobrirão a casa. Ofereço ajuda para confeccioná-las, as takua oje kava’ekue (cobertura de taquara batida). É preciso muita força para rachar os nós da taquara, então sigo batendo com um pedaço de madeira, até que as fibras se soltem, rachando longitudinalmente. Meu corpo sente o esforço ao qual não está acostumado. Sinto calor, as mãos doem, assim como as costas e as pernas. Certamente estou me esforçando mais que o necessário, por falta de habilidade. Duas


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ou três vezes os professores vem me orientar. Apesar da intensidade do movimento repetitivo, consigo fazer umas cinco telhas, apenas isso, depois preciso descansar, enquanto as crianças da escola seguem alegremente e com persistência em suas tarefas de bater e dobrar taquaras. Participar, mesmo que brevemente, desse processo de construção, fez com que eu me sentisse integrante temporária da turma de alunos, aprendendo em seus processos próprios de aprendizagem, em um dos tantos aprendizados que os faz Guarani. Além da futura Opy Miri, dos recantos, das apropriações já descritas, existe na escola um lugar especial, construído também por professores Guarani. Fica no nível abaixo das salas de aula, em um espaço delimitado por um muro que configura um lugar para sentar, e pela contenção inferior da sala de aula, feita em blocos de granito. Trata-se de uma cobertura, feita com folhas de pindó. No chão, lenhas dispostas em raios. Alguns bancos de pedra. Pequenos pontos circulares de luz do sol adornam o chão. Olhando acima, para além da trama de folhas, o azul intenso do céu de inverno.

Acolhimento na aldeia As aldeias indígenas sempre recebem visitantes. Podem ser estudantes de escolas não indígenas, voluntários, pesquisadores, políticos, religiosos... em alguns casos o visitante é movido pelo encontro com o diferente, pela troca intercultural, por vivências significativas que permitam refletir sobre o próprio estar no mundo. Talvez essa seja a minha opção...? Mas muitos outros motivos podem levar o visitante à aldeia, um lugar que aparentemente, materialmente, tem pouco a oferecer, mas na verdade tem muito, mesmo para quem não consegue ver. Pois o que se oferece nem sempre é visível. Mas o acolhimento na aldeia também tem um ritual. Como pesquisadora, sei que os tempos vividos na aldeia e os tempos da academia são outros. A confiança demora a se estabelecer, entre o anfitrião e o visitante. Ela é nutrida ao longo do tempo, em visitas periódicas, conversas, e na mão aberta para o outro (jopoi - reciprocidade). A ajuda, a compreensão, a parceira. A confiança se constrói em um estar junto, em um compartilhar, no acolhimento de um de-morar-se. “Enfim, nunca haverá hospitalidade ou acolhimento se não houver entrega mutua, uma “co-fiança”, um “co-espaço”, um pacto silencioso e secreto” (FUÃO, 2014, p.88). Como o jopói, a reciprocidade Guarani, as mãos abertas para o outro. A planta baixa da escola Guarani de M’Biguaçu traz a materialização literal dessa expressão: a mão aberta, voltada para o nascer do sol (Kuaray), a morada da divindade Nhamandú (NÖTZHOLD & ROSA, 2011). Em Fuão (2014) reflito que a hospitalidade também existe onde não há quase nada para oferecer, é ali, então, que hospitalidade, como solidariedade, se torna mais visível e bela: “A hospitalidade é sempre relativa, percebê-la nos lugares é um exercício que exige prudência, cautela, o que é inóspito para muitos pode ser justamente o lugar de hospitalidade para outros” (FUÃO, 2014, p.88).

Figura 2: textura das folhas de pindó da cobertura

Figura 3: ambiente para sentar junto ao fogo

Esse lugar é destinado às conversas junto ao fogo, vivenciando um costume muito presente nas aldeias, que é realizar tarefas em espaços abertos e cobertos (ramadas). Geralmente as famílias os utilizam para cozinhar, fazer artesanato, mas no caso da escola, esse lugar também é onde acontecem apresentações de canto e dança para os juruá (não-indígenas). A escola indígena pode ser entendida como um espaço intercultural que demarca uma fronteira por onde fluem diferentes saberes e modos de vida (Bergamaschi, 2005; Tassinari, 2001). É na indefinição, nas bordas, nas bordas do tempo, nesse cinza onde se localizam as potências dos lugares do acolhimento; é nas bordas que se faz a junção, a costura. Exatamente nos limites dos limites entre uma figura e outra na collage, no limite das diferenças, na disjunção de um lugar e outro, está a possibilidade de conexão e articulação, a criação do novo lugar. (FUÃO, 2014, p.68).

As escolas, nas aldeias, estão nas bordas, nas margens, na interface entre diferentes culturas, diferentes modos de viver e de compreender o mundo. Demarcam, então, esse novo lugar de abertura ao outro, como coloca Fuão.

Em minha memória permanece marcante, apesar do passar dos anos, o acolhimento recebido em meu pernoite na Tekoá Koenju, em São Miguel das Missões. Minha anfitriã era uma jovem professora Guarani, que morava com sua família: pai, mãe e irmãos. Enquanto ela trabalhava na escola, eu permaneci na aldeia, conversando com seus familiares e realizando o levantamento das muitas casas tradicionais que estavam sendo construídas naquele período. Eu estava maravilhada com a possibilidade de ver obras em diferentes etapas, pois não seria possível permanecer na aldeia durante todo o tempo que leva uma construção, que é muito variável. Lembro claramente de estar aguardando-a retornar da escola com as crianças, na borda da mata que ficava entre o acesso principal da aldeia e o caminho até a sua casa. O sol estava descendo no horizonte e o frescor da mata me envolvia naquele fim de tarde de maio. Ainda não havia luz elétrica na aldeia, e a escuridão se aproximava. Buscava ansiosamente identificar, na penumbra, os vultos de quem retornava para a aldeia. Observei que os irmãos de minha anfitriã estavam na mata, logo atrás de mim, como guarda-costas, o que de certa forma me tranquilizou, pois percebi que não estava sozinha. Mas o maior acolhimento se deu quando um amigo Guarani se aproximou e convidou-me a comer em sua casa, junto de sua família, sua esposa e suas crianças. Fui subitamente retirada daquele ambiente gelado e envolvida no calor e na luminosidade do fogo, preenchida pelo aroma da comida, aquecida e acolhida de forma plena, em olhares e sorrisos. A comida era simples, mas inesquecivelmente saborosa. Me coração se aqueceu, assim como meus olhos úmidos.


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

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CENTRO TECNOLÓGICO

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

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Enfim, tive companhia até a chegada de minha anfitriã. Eu levara uma barraca, mas sua família me acolheu dentro de casa, e ali dormi, junto dela e seus irmãos. Antes de dormir, admiramos o céu noturno, ouvi histórias sobre as estrelas, e conheci outras formas de denomina-las. Já aquerenciada, sentindo-me acolhida, agradeci por ver mais na escuridão. Juntas entrevistamos, pela manhã, o Karaí (liderança espiritual), ela interessada na cerâmica, pois estava pesquisando para seu curso de formação, enquanto eu me interessava pelas construções e seus significados. À tarde ela dirigiu-se novamente à escola, fora da aldeia, com as crianças.

Vivo hoje o estranhamento de conhecer novas aldeias, outros sujeitos Guarani, e encontrar, de súbito, velhos conhecidos, que assim como eu, percorreram muitos caminhos antes desse reencontro: muitas acolhidas, alguns lugares inóspitos, a dificuldade de familiarizar-se e permanecer. Minhas experiências confirmam: o acolhimento depende mais da relação entre as pessoas, do que das características do lugar onde o encontro acontece (FUÃO, 2014). O mundo fenomenológico não é o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas e minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha (MERLEAU-PONTY, 1999, p.18)

Naquele dia, seu pai e seu avô se aproximaram, perguntando que dúvidas eu teria sobre a casa, oferecendo-se para contribuir com a pesquisa. Entre outras coisas, eles então me disseram todas as denominações atribuídas por eles para cada parte da edificação: Referências

BACHELARD, G. A Poética do Espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins fontes, 1989. BERGAMASCHI, M. A. Nhembo’e: enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. 2005. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre. CADOGAN, L. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. Asunción: Biblioteca Paraguaya de Antropología/ Fundación León Cadogan / CEADUC-CEPAG, 1997. CLASTRES, H. Terra Sem Mal: o profetismo tupi-guarani. São Paulo: Brasiliense, 1978. COSTA, C. R. Z. Habitação Guarani - Tradição Construtiva e Mitologia. 1989. Tese (doutorado) Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo. Figura 4: Croqui em diário de campo e desenho técnico da Oó (casa Mbyá-Guarani)

Foi um dia realmente produtivo para minha pesquisa. Acredito que, em grande parte, possibilitado pela abertura para o convívio que aquele pernoite propiciou. Em minha memória, esse foi um dos momentos de maior acolhimento que já vivenciei. Acolhimento já é em si a abertura ao outro (...) Essa abertura é que dá passagem à vida (FUÃO, 2014, p.56) Hospitalidade é a capacidade de receber o outro, os outros, para além da própria capacidade, o estrangeiro, o estranho, o que vem do outro lado, e para isso não é necessário dar nada. A hospitalidade não se funde na dívida, mas na dúvida, na incerteza, na indecidibilidade e, principalmente, na impossibilidade de uma retribuição. O que funda a hospitalidade é o lugar, como disse Derrida, e o lugar não pede nada em troca, a não ser a presença de quem chega e de quem espera (FUÃO, 2014, p.62)

Muitas aldeias foram visitadas, e muitos foram os acolhimentos vivenciados naquele período. Mas o acolhimento recebido acabou sendo retribuído, não diretamente, mas por meio da rede de reciprocidade que se estabelece no modo de ser Guarani, nessa sua forma de economia da dádiva (jopói), das mãos abertas para o outro. Então de hóspede na aldeia, passei a anfitriã na cidade. Inicialmente em São Miguel das Missões, mas estendendo-se depois à Porto Alegre, nessa e em outras redes.

FUÃO, Fernando Freitas. As formas do acolhimento na arquitetura. In: FUÃO, Fernando Freitas; SOLIS, Dirce Eleonora (orgs.) Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014, p. 41-113. GEERTZ, Clifford. “Ethos”, Visão de Mundo e a Análise de Símbolos Sagrados. In: GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora, 1989.

INVENTÁRIO Nacional de Referências Culturais. Comunidade Mbyá-Guarani da Reserva Indígena Inhacapetum. Relatório Fase Preliminar. NIT/UFRGS e 12ª SR IPHAN. 2005. NÖTZHOLD, A.L.V.; ROSA, H.A. (orgs). História e Cultura Indígena de Santa Catarina através das escolas. Florianópolis: Pandiom, 2011. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da Pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011. MERLEAU-PONTY, Maurice. Prefácio. In: MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 1-20. PRUDENTE, Letícia Thurmann. Arquitetura Mbyá-Guarani na Mata Atlântica do Rio Grande do Sul: estudo de caso do "tekoá nhûu porã". 2007. Dissertação (Mestrado). PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENGENHARIA CIVIL - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. Escola Indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras da educação. In: SILVA, Aracy Lopes da ; FERREIRA, Mariana K. Leal (orgs.). Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001. TASSINARI, A.M.I.; VICENZI, M.; VASCONCELOS, V.C.; ANTUNES, A.K.T.A.; GONÇALVES, J.B.K.M. (orgs). Kyringue Arandua Rupiguare – As Ideias das Crianças. NEPI- Núcleo de Estudos de Povos Indígenas.


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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

Florianópolis, SC: UFSC/NUPPE, 2011. SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1954. ZANIN, N.Z. Abrigo na natureza: construção Mbyá-Guarani, sustentabilidade e intervenções externas. 2006a. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Engenharia. Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil, Porto Alegre.


PONDERAÇÕES FENOMENOLÓGICAS: A RUA COMO LUGAR Fábian Grei Machado


Universidade Federal de Santa Catarina

INTRODUÇÃO.

Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PósARQ Cartografia do Espaço Habitado

Os lugares onde vivemos influenciam invariavelmente a nossa relação com o mundo e

Prof. Dr. Arq. Rodrigo Gonçalves

com os outros. Várias são as possibilidades de amoldamento de lugares nas cidades, provenientes da relação entre as pessoas e o meio urbano.

Aluno: Esp. Arq. Fábian Grei Machado O conceito de forma urbana pode ser definido como a maneira como os elementos morfológicos articulam-se constituindo o espaço urbano, em conexão com o desenho que os compõem.

ESCRITA EXPERIMENTAL

As ruas são elementos morfológicos importantes na definição da forma urbana, cuja essência principal, a de ligação, realiza-se: Pela concretização da função prática do deslocamento; Pela conexão ao traçado urbano; Pela possibilidade de conformar lugares; Pela manifestação de fenômenos atrelados à sua essência.

PONDERAÇÕES FENOMENOLÓGICAS: A RUA COMO LUGAR.

A fenomenologia se dá pelo deslocamento no espaço, então podemos perguntar, e qual seria o lugar extenso e repleto de variações sensoriais para se fazer um deslocamento no espaço? Usando esse questionamento na percepção da rua, principalmente de uma

Via Appia romana, uma das primeiras estradas construídas e ainda existente. Por volta do século III A.C. foi

via publica, que mostre muito das características daquele povo que a construiu e que

pavimentada pelo império Romano, e desenvolvida para conectar a península itálica. Em diversos trechos da via

nela transita e vive. A “fenomenologia” linha de pensamento filosófico que busca fazer reflexão sobre a experiência por si só (Husserl, Merleau-Ponty). Trata de um olhar que almeja recuperar a ingenuidade de uma criança na forma em que ela se relaciona com o mundo sensorial, despida da imposição de preconceitos e significados prévios. “Um contato ingênuo e primário com o mundo”.

quando esta encontrava as vilas e cidades, tornava-se então uma de suas ruas urbanas.

As ruas são fenômenos que revelam e escondem eventos e fenômenos do cotidiano, da história, da memória, dos problemas e das alternativas possíveis quanto a os modos de viver a cidade. 2


As ruas são fundamentais no entendimento das dinâmicas dos locais onde se inserem,

O sujeito do conhecimento (ANDRADE, 2012): Pessoa que está no mundo, e por isso o

pois, possibilitam o encontro, perpetuam o movimento, incorporando aspectos objetivos

seu conhecimento relaciona-se à sua vida, ao seu aprendizado, às suas experiências,

e subjetivos da experiência humana, revelando fenômenos informativos sobre a

assim como à leitura e interpretação que ele dá ao mundo, captada e compreendida a

realização do habitar.

partir dos filtros dos sistemas cognitivos e perceptivos próprios.

As ruas nas cidades podem absorver a condição de lugares, contribuindo para a

O mundo vivido (STEIN, 2004): O mundo do cotidiano e da percepção do sujeito do

qualificação das áreas urbanas onde se encontram, quando a manifestação de sua

conhecimento, em todas as suas variantes concretas e subjetivas.

essência é favorecida. Isso acontece quando as características físicas adicionadas às condições de inserção no

O corpo em movimento inserido no mundo vivido constitui o lugar, ou seja, o próprio

desenho urbano proporcionam continuidade entre as áreas que conecta, em nível

sujeito do conhecimento cria o lugar, um espaço sem limites claramente definidos, pela

variado de escalas e num contexto rico em estímulos ao uso e à apropriação cotidiana

espacialização realizada na atividade do corpo.

por uma multiplicidade de usuários. É claro que a fenomenologia pode ser aplicada em todas as ruas e vias existentes,

Esse sujeito do conhecimento, sujeito do mundo vivido, é o sujeito fenomenológico que

inclusive nas de condomínios fechados, mas é na riqueza de estímulos das ruas mais

vivencia a rua e o cotidiano da cidade.

importantes, integradas e conectadas a malha urbana, que ela assume enfoques de caráter diverso e é mais facilmente assimilada.

A rua é fenômeno ao ser uma realidade tal como aparece ao sujeito do conhecimento, e não como uma realidade em si mesma. Ao revelar e ocultar, ela se multiplica em

Na articulação da compreensão dos fenômenos vinculados à essência das ruas,

fenômenos presentes na vida dos sujeitos do conhecimento, e é lida e interpretada por

observou-se o potencial da fenomenologia como ferramenta, pois a rua e os fenômenos

cada um deles de forma particular.

nela e por ela manifestados podem ser verificados sob vários enfoques, incluindo aspectos objetivos e subjetivos.

A abordagem fenomenológica é justificada pela singularidade da rua como elemento morfológico e pela diversidade de fenômenos e significados que normalmente incorpora em virtude de sua importância prática, imagética, simbólica, econômica e social. Sendo assim pretendemos evidenciar neste texto as características das ruas na cidade, sobre

O CONCEITO DE LUGAR.

os fenômenos relacionados à sua essência, assim como a correspondência entre as Merleau-Ponty considera que corpo e o mundo estão ligados por um tipo de

ruas, enquanto elementos construídos e o conceito de lugar, principalmente em

engrenagem, e o mundo não é possível sem o corpo. A forma de o corpo ter o mundo é

considerá-las de uso geral para coletividade.

através do movimento, pois o movimento do corpo cria o lugar. O lugar é o movimento do corpo espacializando e espacializado.

Com isso objetivou-se refletir sobre o papel desempenhado pela rua a partir das relações existentes entre os sujeitos e o lugar utilizando a fenomenologia. Além disso,

3 conceitos abordados dentro do enfoque fenomenológico:

procurou-se a essência das ruas como elementos conectores, observando os aspectos da sua inserção e integração com o tecido urbano, da sua escala, e das suas

O sujeito do conhecimento;

imediações interferindo na experimentação plena do ambiente onde se encontram, e

O mundo vivido;

também como esses aspectos repercutem em potencialidades e limitações para a

O lugar.

construção de lugares capazes de favorecer a realização do habitar; 3

4


As ruas são os atores principais e, ao mesmo tempo, os cenários dos acontecimentos do

A RUA.

dia-a-dia, participantes da diversidade de situações vinculadas aos estabelecimentos Capazes de sinalizar características de ocupações, apontar direções, intenções, sinais

humanos. Podem eternizar o traçado de culturas e sociedades, conformando paisagens

da experiência humana no mundo, as ruas revelam a presença de assentamentos

culturais, e tornando visível a história dos povos que as construíram.

humanos atuais ou passados, a amplidão da história, porque preservam a amplidão do tempo. Fenômeno que entrega aspectos profundamente relacionados ao modo do

A rua é a criação do lugar pelo movimento. Merleau-Ponty afirma que “não existe objeto

homem ser no mundo.

ligado sem ligação e sem sujeito” ou “unidade sem unificação”, porque “toda síntese é simultaneamente distendida e refeita pelo tempo que, em um único movimento, a põe

As ruas desempenham papel fundamental na evolução da ocupação físico territorial e da

em questão e a confirma porque ele produz um novo presente que retém o passado”. A

espacialização das cidades. Nelas é possível à visualização do espaço público e

rua reafirma sua essência realizando e renovando essa dinâmica.

privado, existe a possibilidade de interação entre pessoas e entre as pessoas e o lugar. A rua proporciona tanto conexão física entre os destinos, entre pessoas, entre as pessoas e o lugar, entre as pessoas e a cidade, e entre a história dessas pessoas e do

RUA COMO LUGAR.

seu cotidiano com a da própria cidade. As ruas constituem-se em lugares, com suas características relacionam-se com a A essência da rua além de promover a ligação é realizar a união. A união também

natureza e com o tempo do homem. As ruas têm potencial de formar lugares quando

possível de surgir nas praças, configura uma atmosfera própria ao juntar atividades

dão condições do corpo ocupá-las e de realizar o movimento.

diversas no cotidiano. Muitas atividades não planejadas, mas que o próprio elemento rua convida a existir. A rua reúne visualmente os acontecimentos de todo o seu entorno,

A escala da rua transforma a do lugar, e consecutivamente a experiência humana do

desde atividades nela propriamente até outras de seus vizinhos constantes janelas,

mundo vivido. Ela aproxima ou afasta o corpo dos estímulos do ambiente, transforma, dá

portas, quintais e muros, e algumas vezes conforme sua topografia, possibilita a

mais ênfase a alguns e menos a outros. Essa experiência de aproximação ou de

interação

distanciamento em relação ao lugar em que se encontra confirma a rua como uma obra

de

paisagens

distantes,

que

podem

ser

observadas

e

sentidas

simultaneamente.

com potencial de proporcionar alienação ou ligação com o meio, dependendo da escala de inserção e do ambiente onde se insere.

A rua apresenta possibilidades particulares de vivencia no espaço, permitindo aos usuários as sensações distintas das possíveis em espaço privado, principalmente o

Lugar é um conceito que define as relações entre o sujeito do conhecimento e o mundo

fechado.

vivido. É a essência da experiência humana no mundo.

Os usos que ocorrem na rua revelam costumes, processos sociais e econômicos,

O meio onde se passam os fenômenos relacionados à construção da percepção dos

prioridades de um povo, denunciam situações de crise ou pobreza, como a das pessoas

sujeitos em sua facticidade é o Mundo Vivido, conceituado como o meio de fluxo

que se abrigam debaixo das marquises em imóveis lindeiros a ela.

abrangente e constante de informações objetivas e subjetivas, com característica de reveladora de indícios sobre a qualidade da relação entre o sujeito e o lugar. A

Claro, não podemos deixar de mencionar as festividades, dia dos padroeiros, o carnaval,

importância da relação entre o sujeito e o mundo vivido deve-se ao seu potencial em

pois sua visibilidade isoladamente ou em conjunto com as praças urbanas a tornam o

fornecer informações valiosas acerca da constituição do lugar, permitindo a apreensão

palco ideal de celebrações, eventos e datas comemorativas.

também de indicativos que demonstrem os aspectos subjetivos relacionados à sua 5

6


experimentação. O processo de construção da percepção por meio da análise do lugar

demarcações territoriais divergentes e, na qualidade de um lugar por direito próprio,

reside na capacidade inerente deste em revelar, a partir dos cenários e paisagens que

constitui, essencialmente, a condição espacial para o encontro e o diálogo entre áreas

conformam fenômenos relacionados à maneira como são, foram, ou poderiam ser

de ordens diferentes” (HERTZBERGER, 2002).

habitados. O lugar é, portanto, à medida que se manifesta como fenômeno da percepção do sujeito.

A importância dos espaços de intervalo, exemplificados pela soleira, pela porta, por alpendres em edificações, consiste no fato de esses fornecerem “[...] uma oportunidade

A rua não é apenas um meio de atravessar, ou percorrer, ela é um lugar, pois revela

para a “acomodação” entre mundos contíguos.” (HERTZBERGER, 2002). A rua deve

como o tempo do cotidiano é vivido. Aponta ações e acontecimentos inusitados,

refletir o direito à cidade, à mobilidade, à contiguidade, à integração, à realização da

apropriações criativas, atos de resistência e de oposição ao ambiente construído ou a

vivência livre e desimpedida da cidade. Deve realizar essa união.

acontecimentos sociais e políticos. As ruas configuram-se em papeis tanto simbólicos como concretos, desempenhado para As ruas em áreas urbanas são, ou ao menos deveriam ser espaços de acesso e de uso

o progresso político, econômico, e social de um povo. Podem ser facilmente associadas

coletivo, podendo assim revelar sua essência como lugares. Porém, quando não

a planos e projetos estratégicos. Sua importância social pode gerar benefícios para

espontâneas resultam de processos de planejamento físico-territorial e de desenho

público variado, comporta a conciliação de interesses dos diferentes atores sociais, o

urbanos, estando sua forma e inserção definidas por condicionantes relacionados a

que potencializa a assimilação, pelos próprios habitantes, da imagem da cidade como

fatores diversos. As ruas precisam ser pensadas e edificadas de forma a multiplicar

produto a ser veiculado e consumido, tanto localmente quanto globalmente.

opções de uso e de apropriação pelos seus usuários, pois sua importância como elemento morfológico reside na propriedade que possuem de influenciar a qualidade dos espaços que a elas dão acesso e visibilidade. Em uma cidade, ao se abrir uma rua, é

RUA COMO FENÔMENO.

indispensável gerar condições para que a sua essência se revele em uma multiplicidade de fenômenos possíveis, visto que a tentativa de captar a essência revelada pela rua no

A rua é um fenômeno que revela um lugar, criando-o, permitindo a partir de sua

cotidiano da cidade ocorre a partir da observação e da experimentação dos

incorporação ao mundo realizar a constituição de um conhecimento.

acontecimentos que ela reúne.

A rua configura-se numa coisa passível de interrogações, gera indícios da relação do homem no mundo incluindo sua forma de habitar. É uma construção capaz de revelar

As ruas urbanas estão atreladas a uma questão primordial do desenvolvimento urbano,

propriedades mais abrangentes do ambiente ao redor, ao elucidar a natureza e a vida

que é a mobilidade. Viabilizam de tráfego de automóveis, pedestres e bicicletas, muito

humana a partir do que reúne.

embora estes dois últimos perderam, a algum tempo, a quase totalidade de seus espaços nelas. As cidades sufocadas vem amargurando com seus sistemas viários

A fenomenologia vai além de uma investigação sobre aspectos objetivos, vislumbra o

tentando viabilizar a mobilidade tão desejada. O automóvel tem tido a prioridade no

que é dado às subjetividades apresentadas pela obra. Para Heidegger (1954) as

deslocamento, e o espaço para os pedestres e ciclistas reduzido e até totalmente

construções do homem são inseparáveis do mundo o qual elas revelam e no qual são

suprimido em algumas vias.

reveladas, e denomina “[...] construções as coisas que, como lugares, propiciam estâncias”, ou seja, morada, recinto, “e circunstâncias”, as condições de um fato, sendo

Mas dentro do dialogo do uso das ruas pelos pedestres, Hertzberger utiliza o conceito de

requisitos e ao mesmo tempo motivos. A rua realiza essa ligação e reunião da qual trata

“intervalo”, ao tratar do papel da soleira entre as construções e a rua. De acordo com o

o autor, ao revelar o modo do homem conhecer e vivenciar o mundo, de habitá-lo por

autor, “a soleira fornece a chave para a transição e a conexão entre áreas com 7

8


meio da fundação de um lugar, lugar este que reúne as manifestações naturais de seu

hermenêutica, intencional e intuitiva. A intuição pode ser descrita como a sensação que

entorno, e que existe porque o homem o ocupou deixando sua marca.

leva o homem a querer entender processos mais específicos voltados à obtenção do conhecimento científico.

A rua é também o lugar que conecta ao criar espaços e limites e sua construção assume valores políticos, econômicos e sociais, aponta técnicas e na presença de seu traçado

FENOMENOLOGIA DO LUGAR.

mostra sua inserção territorial. O corpo é o meio apreensão do espaço, dando vida ao lugar de acordo com suas Contudo as ruas não apenas atendem finalidades praticas, pois se constituem em

possibilidade de ação. O movimento do corpo é a matriz de ações habituais. Para

instrumentos vivos capazes de alavancar a construção do imaginário.

Merleau-Ponty o corpo cria o lugar, o corpo é em si um lugar, e o seu movimento constitui o lugar. Permitir que o corpo ocupe os espaços é o que dá nascimento ao lugar.

A partir das circunstâncias propiciadas pelas ruas, os caminhos e lugares são

É a engrenagem do corpo com o mundo a origem do lugar. Essa origem é encontrada

determinados, gerando-se o surgimento de novos espaços. A rua define um lugar, e a

no movimento do corpo do sujeito individual, na intencionalidade do corpo, que difere da

partir daí propiciam-se espaços. Na concepção de Heidegger a palavra espaço pode ser

intencionalidade da mente.

designada como lugar arrumado, liberado por um limite, limite esse que não se trata de

Para Merleau-Ponty a orientabilidade e a expressividade do espaço são características

onde a coisa termina, e sim de onde a essência da coisa dá início, se revela

essenciais, pois o espaço no qual o corpo se move nunca é inexpressivo.

(HEIDEGGER, 1954). Merleau-Ponty considera que o movimento expressivo e a orientação corporal pelo As próprias coisas são os lugares, e não apenas pertencem ao lugar. Os lugares tomam

espaço resultam em habitação, e interpreta o corpo vivido como o sujeito do espaço.

forma por meio de formas esculturais. O lugar não existe até que o homem o conceba,

Tanto o lugar quanto o corpo vivido são fenômenos ambíguos.

permanecendo enquanto perdurar a construção. O lugar é o cenário das coisas a serem feitas, e o corpo vivido conhece o lugar A paisagem depende sempre da disposição do sujeito para sua apreensão. A sua

entendendo-o e assimilando-o a partir da identificação e familiarização. Estar é sinônimo

apropriação num processo de reconhecimento de um lugar tem a ver com continuidade,

de situar-se, e a orientação do corpo no espaço está comprometida com a sua afinidade

presença, pois a paisagem existe porque o homem a percebe. As ruas e caminhos

com este espaço. O corpo se projeta e coexiste com o mundo, e, para o autor a junção

propiciam facilidade de circulação para apreensão de novas paisagens.

entre o corpo e o lugar é tão densamente intrínseca que não pode ser ordenadamente

A rua é fenômeno e forma ambiente para outros fenômenos, daí sua relativa

cortada em nenhum ponto. Podemos disso concluir que o corpo humano nunca é sem

significância no contexto da relação do sujeito com o mundo, com o lugar que habita. Ela

um lugar e o lugar nunca é sem o corpo humano.

propicia a revelação de aspectos da paisagem e do entorno, reunindo os elementos do ambiente e conformando-se onde o observador apreende o lugar.

A relação entre a rua e a qualidade do lugar é clarificada pelo corpo em movimento. Se o corpo é lugar, o lugar da rua na proporção que é lugar do corpo, deve permitir ao corpo

Os fenômenos revelados pela rua têm seu momento de repercutir, de surpreender se

exercer o lugar. Se a rua é lugar, e é movimento pelo movimento que permanece, sua

revelar pelos detalhes que ela entrega e esconde.

concepção não deve desconsiderar a escala do corpo. Podemos nisso entender que a deterioração do lugar concretiza-se pela deterioração da existência “corpo x lugar”.

Na fenomenologia de Husserl, o conhecimento provém da interface entre o que o mundo oferece ao sujeito e o que o sujeito entrega ao mundo, numa relação dialética, 9

10


Desde os elementos concretos visados pelo sujeito, ou seja existentes para ele, até a

FENOMENOLOGIA EM ARQUITETURA E URBANISMO.

sua imaginação, funcionando na construção da sua percepção. Correm atividades diversas: de entrega e de retorno de conhecimento, lembranças, vivencias, memórias,

Ao utilizar a fenomenologia do lugar nas ruas, cria-se a possibilidade de uma análise

que nessa originam a surpresa, o valor poético e a humanização do lugar. Com as ruas,

crítica sobre o papel desempenhado pelos cenários que estas constituem. Os lugares

as paisagens se tornam lugares, e como imagens poéticas refletem os sujeitos que as

influenciam diretamente o comportamento dos sujeitos, evidenciando certas atitudes em

vivenciam.

detrimento de outras, isso de acordo com o estereótipo ao qual possam estar mais relacionados.

A paisagem depende do ponto de observação, portanto solicita uma verdade. É lugar de surpresa ou de monotonia, e a possibilidade de uma paisagem desconhecida propaga-

A Fenomenologia pode gerar argumentos para as pesquisas no campo da arquitetura e

se de formas diferentes em sujeitos diferentes. Milton Santos (1996), a partir da ideia de

do urbanismo, pois a abordagem fenomenológica é abrangente, considerando aspectos

“forma-conteúdo”, propõe fazer perguntas ao tempo e às coisas, buscando uma

subjetivos das experiências dos lugares vividos cotidianamente, e também aspectos

totalidade na análise do espaço, que pode ser relacionada a um caráter dialético,

objetivos dessa relação. Compõe conjuntamente todas as informações capazes de

pertinente a uma atitude fenomenológica. Não se deve investigar a relação entre sujeito

auxiliar no entendimento, como a interação entre o sujeito e o lugar, e suas

e lugar a partir de uma postura de busca de causas e efeitos.

manifestações de ordem espacial.

A paisagem pode ser abstração, mas deve ser questionada buscando as informações

Escrever é fundamental para a compreensão das ideias, e potencializa a experiência

que ela pode fornecer enquanto produto da existência do ser no mundo. A

fenomenológica ao a praticarmos a escrita de forma ativa e reflexiva no significado.

fenomenologia põe o tempo em suspenso, a paisagem também. A fenomenologia valoriza toda forma de evidência para a reflexão sobre a essência que A postura fenomenológica abre espaço para a retórica da paisagem: esta é interpretada

se busca identificar, e os significados também podem variar, conforme o repertório do

como um texto; escrita e reescrita por inúmeros escritores. A descrição detalhada está

autor, sendo constituídos de fontes culturais, históricas, a própria experiência, estéticas,

relacionada a uma atitude de ir ao encontro do mundo, de olhar, interessar-se, de

fenomenológicas, sócio-científicas, entre outras.

desmantelar estereótipos. Se a informação difere da comunicação então não acontece à compreensão, a paisagem é uma construção nossa. A visão do conjunto dessa relação

Novas formas de utilização não planejadas das ruas sempre ocorrerão, e são parte do

entre o sujeito e o lugar.

cotidiano da cidade. O sujeito do conhecimento vive seu cotidiano, e é através da observação e da experiência das ações cotidianas que os fenômenos relacionados ao

A atitude crítica de um enfoque fenomenológico pode ser evidenciada através da

lugar e à espacialização do corpo em movimento se revelarão.

desconstrução de estereótipos, a partir da análise das informações dadas pela paisagem na busca pela verdade, na interrupção no tempo que, não retira o sujeito de sua

A contribuição do arquiteto urbanista ao projetar e planejar esses espaços torna-se

facticidade, e sim permite que este perceba os sinais do tempo fornecido pelas coisas do

eficaz quando se assume o compromisso de “[...] criar um ambiente que ofereça muito

mundo. É preciso a insistente reconstrução da relação entre o sujeito e o mundo, para

mais oportunidades para que as pessoas deixem suas marcas e identificações pessoais,

possibilitar ao sujeito a compreensão da variação das suas pré-disposições em absorver

que possa ser apropriado e anexado por todos como um lugar que realmente lhes

o que a paisagem oferece, não enquanto objeto ou característica externa, mas

“pertença”” (HERTZBERGER, 2002).

precisamente numa relação incessante que depende desse dialogo com o ser, onde tudo se estrutura na interação com o mundo. 11

12


As áreas públicas enquanto ambientes construídos devem resultar em lugares

Breve cartografia sentimental, descrição de experiência vivida, passada na

moldáveis, elásticos, que efetivamente possam acomodar as transformações que

construção do conhecimento do lugar da rua.

comumente ocorrem com a apropriação pelo uso, e de abrigar maior diversidade de práticas, previstas e inesperadas, resultantes de intenções distintas ou coletivas de seus Uma rua que compõe trajeto de nítida perspectiva, a princípio parece não tão

usuários.

convidativa, pois ao longe já se enxerga aonde se pode chegar. Mas às sensações que Normalmente num projeto urbano o arquiteto urbanista não possui total liberdade de

vão se acumulando ao longo do percurso, provam que a experiência é muito mais que

concepção, é preciso adequar-se a legislação, às estratégias políticas adotadas pelos

um belo visual ampliado ao final. A fenomenologia pode acontecer e potencializa-se

governantes, a aspectos econômicos, aos cronogramas de projeto e execução que no

quando o corpo se desloca pelo espaço.

contexto de grande parte das cidades brasileiras beira o impraticável, e também às diversas formas de contratação, entre outras condicionantes.

Posicionado no centro da rua, no início dela, junto ao pé da colina, começo a caminhada em direção ao horizonte. Ali já observo ao fundo as árvores junto à praia emoldurando o mar.

Por isso a reflexão através da fenomenologia, uma temática que considera também a visão do outro. O tratamento físico dirigido a esses espaços, especialmente quando se

À direita o maciço conjunto de árvores, que além do ar mais gelado, proporcionam o

tratam de conexões importantes socialmente e economicamente para a região, como é o

canto diverso de pássaros. As calçadas não são muito convidativas, algumas até

caso das ruas, que acomodam mundos contíguos e proporcionam oportunidades de

rachadas e outras com bastante limo, mas trazem a lembrança de uma natureza ainda

comunicação e integração, de acessibilidade para os sujeitos que vivenciam a cidade, é

viva, resistentemente escondida nos revestimentos pouco pisados.

primordial e deve apresentar-se com grandes possibilidades de utilização, para que se

Andar pelo meio da rua sobre os paralelepípedos arredondados exige calçado

tornem lugares de incorporação, e não de fragmentação do tecido urbano.

apropriado, artigo básico, mas a rua, agora silenciosa, não oferece grande perigo. Com pouco movimento de veículos, é fácil avista-los a distancia, e quando vem da onde não

Os lugares surgem porque alguém se moveu por eles. Os lugares não existem sem o

estamos olhando, aproximam-se como o ruído de trovões anunciando a chuva, rolando

corpo, sem os estímulos sensoriais, sem a memória e a subjetividade da percepção de

pelo calçamento.

cada indivíduo. A brisa vinda do mar começa a se intensificar e a variação das paisagens laterais, no É importante despertar o interesse da observação natural para entender os lugares nas

ritmo constante dos volumes das edificações vai sendo influenciado e modificado pelo

cidades, e com essa experiência demonstrar como determinados ambientes são

posicionamento das árvores e da vegetação, que hora escondem, hora desvendam as

prejudiciais aos seus usuários, sendo possível dessa forma identificar novos programas

casas.

e alternativas de abordagem e de projeto adequados aos contextos locais, ou o

Alguns moradores observam pela janela quem passa, outros conseguimos observar no

aperfeiçoamento de praticas que já ocorrem.

aconchego do lar a aparente despreocupação com a rua.

Portanto, o sujeito do conhecimento, caracterizado por quem habita as áreas públicas urbanas, ou por aqueles que tem o potencial para tal, e os sinais da sua relação com o lugar, auxiliarão na reflexão sobre alternativas para a configuração de ruas, lugares e

Próximo ao fim do trajeto, uma brisa forte e uma praça linear acompanhando a praia. As árvores agora ali posicionadas perderam o efeito de moldura, não delimitam mais o mar. O espaço se abre, a linha do horizonte encontra o mar e os pés das montanhas.

ambientes que sejam inclusivos, integradores, e justos e que proporcionem meios de

Na praça linear, uma quadra esportiva, ali é organizada anualmente a festa junina da

exercer o direito à utilização plena da cidade.

comunidade. O calor da fogueira montada na praia pode ser sentido por todos. 13

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Vamos sendo tomados de outros sentimentos outras sensações ficaram para trás, pena que a enseada outrora límpida não permita o banho de mar, às vezes repleto dos odores desagradáveis, frutos do progresso insustentável. Mas a força desse ambiente, ainda permite a imersão nos sons da água, das ondas chegando nas areias rugosas e batendo nas pedras arredondadas, o ruído das gaivotas e o riso saudável das crianças.

BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Érico. O sujeito do conhecimento. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. (Coleção Filosofias: o prazer do pensar). HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. Pfullingen, 1954. Traduzido por Marcia Sá Cavalcante Schuback. HERTZBERGER, Herman. Lições de arquitetura. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. HOLL, Steven; PALLASMAA, Juhani; PÉRÉZ-GÓMEZ, Alberto. Questions of perception. Japan: AU Publishing Co., Ltd., 2008. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. SANTOS, M. A natureza do espaço – Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. STEIN, Ernildo. Mundo vivido: das vicissitudes e dos usos de um conceito da fenomenologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

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MACIÇO DO MORRO DA CRUZ, FLORIANÓPOLIS (SC): IMPRESSÕES E INTERPRETAÇÕES Míriam Santini de Abreu


MACIÇO DO MORRO DA CRUZ, FLORIANÓPOLIS (SC) 1

2

IMPRESSÕES E INTERPRETAÇÕES

Mír iam Santini de A br eu Míriam Abr breu

Servidão típica da Ilha

E

ste estudo fenomenológico é o resultado de uma caminhada de 2,6 quilômetros, ao longo de três horas com paradas, de uma ponta a outra (Oeste-Leste) do Maciço do Morro da Cruz, integrando um grupo de estudantes de Geografia da UFSC, sob orientação do professor André Souza Martinello, tendo como orientador da caminhada o professor de Arquitetura e Urbanismo Lino Fernando Bragança Peres. A subida iniciou na rua Douglas Seabra Levier (na esquina da rua Desembargador Vitor Lima, ao lado do Hotel Slaviero, no entorno do Campus da UFSC) e terminou com a descida da Escadaria da rua José Boiteaux, que encontra a avenida Mauro Ramos, acompanhando, no Maciço, a mesma via utilizada pelo transporte coletivo, com exceção do trecho final, a partir da entrada do Parque do Maciço do Morro da Cruz, onde o grupo seguiu o caminho pela citada Escadaria, e não pela rua General Vieira da Rosa (trajeto do ônibus).

M

orro acima, início da caminhada, e entre uma habitação e outra aparece uma servidão típica da Capital catarinense, arremedo de rua que pode ser encontrado em praticamente todos os bairros. Estreita, errática, muitas vezes de terra batida ou com calçamento precário, indicando a repartição de terras em lotes sem planejamento para instalação ou acesso a serviços públicos. Próximo a ela, um conjunto residual de casas de madeira em esquina, "rugosidade" de permissões/proibições de planos diretores anteriores, tendo ao lado um bloco de apartamentos. Ao fundo, o chamado Morro da Cruz, ponto mais elevado do Maciço, atingindo 283 metros de altitude, e em cujo topo estão as principais emissoras de televisão e o mirante turístico. A paisagem ainda é preservada e se constitui em uma das demandas dos moradores, cristalizada nas reuniões para a construção do Plano Diretor de Florianópolis, em andamento ao longo de 2016.

Imagem do Google Maps - 29 ago 2016 Conjunto residual de casas de madeira

Originais do samba, canta pra gente ... Na subida do morro é diferente O movimento é geral... no sobe desce, sobe gente O movimento é diferente, o cumprimento é diferente Na Subida do Morro - Os Originais do Samba

C

omo na letra do samba, o Morro da Cruz e o Maciço do qual faz parte, na porção central da Ilha de Santa Catarina, são lugar de sobe-

desce, desce-sobe, exibindo as contradições da "Ilha da Magia", conhecido título de Florianópolis, a capital catarinense. Ali estão 18 comunidades onde vivem cerca de 30 mil pessoas, configurando uma rica dimensão socioespacial que pode ser apreendida pela observação fenomenológica. Para isso são múltiplos os caminhos possíveis. A escrita irá se organizar a partir de duas narrativas: 1) a textual-fotográfica, que afetou o corpo vibrátil, no dizer de Rolnik, no movimento da caminhada em si; 2) a reflexivo-teórica, que se ancora em diferentes leituras para compreender este duplo movimento e está inserida nas páginas nos quadros de cor azul. Todas as fotos do trabalho são da autora.

Ao fundo, Morro da Cruz. Ao lado, comunidades do Maciço se organizam para levar demandas ao Plano Diretor

T

omás diz que, caracterizado inicialmente como um Não Território, o Maciço será, ao longo da crescente urbanização de Florianópolis, modificado sucessivas vezes, até o momento em que se caracteriza, em 2012, como Território do PAC-Florianópolis (Programa de Aceleração do Crescimento, que ali iniciou obras com recursos do governo federal, estadual e municipal). O PAC apa-

rece como gerador de uma nova territorialização, deixando em segundo plano aquela que se configurava como campo da luta do movimento social unificado no Fórum das Comunidades do Maciço do Morro da Cruz (FMMC, processo iniciado a partir de 1999, quando os moradores apresentaram ao poder público demandas como esgoto sanitário, coleta de resíduos, regularização fundiária,

implementação de infraestrutura e garantia dos direitos sociais). O Território do PAC se constitui então como força política dominante atual exercendo sua hegemonia. “Estamos falando de uma reterritorialização deste espaço, que não se pode prever, ainda, se realmente promoverá a inclusão desta população à cidade, ou se terminará por expulsá-la” (TOMÁS, 2012, p. 282).


S

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ítio urbano é o que parece o lugar onde mora Valmor Francelino Vieira, servidor aposentado da UFSC, mas ele o chama simplesmente de "terreno", e já na entrada acolhe o visitante com assentos e jardim. Ele diz que servem para as crianças que vão ou vêm da escola, como se fosse um pai recebendo os seus filhos do bairro. O morador dá exemplo de preservação da mata nativa e de uso sustentável do lote, que comprou em 1973 e onde, por soluções intuitivas, sem orientação técnica, planta alimentos, cria animais e, respeitando a curva de nível, cuida da trilha na mata onde leva os visitantes frequentes e que geralmente aparecem sem aviso. O jardim parece projetado por algum paisagista, mas não. Valmor conta que ele e filho é que o desenharam aos poucos, experimentando a terra e seus contornos no terreno.

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F

Terreno com casa e paisagismo feitos pelo próprio morador

enômeno comum nas periferias do Rio de Janeiro, como na Favela da Rocinha, por exemplo, a verticalização das moradias por auto-construção também é visível no Maciço do Morro da Cruz. Precariedade e criatividade se mesclam na configuração da moradia e de seu entorno, onde os postes exibem um emaranhado de fios. Na casa abaixo, com três andares, são visíveis 19 janelas, e nela funciona também a Casa da Capoeira Ilha da Angola. São casas que parecem se erguer espontaneamente de acordo com as circunstâncias e necessidades do morador, tantas vezes premido pela carência e falta de recursos. Construções que vão se sobrepondo com o crescimento da família ou para alugar, progressivamente, sem cessar. Os anexos vão agregando-se lentamente para cima, para os lados e para o fundo em camadas sucessivas. Moradia onde também funciona a Casa da Capoeira Ilha da Angola

E

m seu estudo sobre as problemáticas paisagísticas, Besse diz que, entre outras possibilidades, a noção de paisagem pode ser vista como representação cultural, coletiva e/ou individual (BESSE, 2014, p. 17), e destaca o surgimento de novos objetos paisagísticos e a definição de novos valores e normas paisagísticas (p. 22, com itálico no original). A organização espacial da paisagem, segundo o autor, traduz uma forma de organização social e tem uma espessura simbólica e material (p. 33), constituindo-se também em objeto de experiência. As melhorias no terreno citado podem ser avaliadas nesta perspectiva, ao refletirem a experiência do morador com as técnicas de construção, plantio e ajardinamento, compondo um conjunto singular de soluções ambientais. Fuão também destaca que, do ponto de vista da hospitalidade, as cidades estão se tornando cada vez mais fechadas e inóspitas, e acentua a importância do acolhimento na arquitetura: “Enfim, o acolhimento se coloca como um desvelamento, um (de)voile, que nos permite ver a hospitalidade na arquitetura, na cidade, numa porta, num banco de praça, ou até mesmo nos materiais que empregamos numa obra. Há um sentido de acolhimento em todas as coisas no mundo” (2014, p.43). O longo banco na entrada aberta do terreno, a casinha de madeira para as crianças e a trilha na mata são belos exemplos, no Maciço/Cidade, destes gestos de hospitalidade e acolhimento do estranho, do outro.


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Á

reas de lazer são raras no Maciço do Morro da Cruz, e as crianças brincam em espaços residuais, como no campinho, lugar do futebol, na rua e nas raras calçadas - cuja precariedade é uma das principais reclamações contra as obras do PAC. "Cuidado. Crianças brincando", avisa uma placa nas bordas do Parque do Maciço do Morro da Cruz. As pandorgas, feitas em casa ou compradas a 2 reais no comércio local, são comuns no céu em dias de sol. Junto à mata atlântica do terreno que margeia a comunidade da Serrinha, aguarda-se a construção comunitária em parceria com a UFSC, um Galpão Cultural, onde os moradores poderão se reunir e fazer atividades. O terreno, por enquanto, está aparentemente abandonado, servindo de estacionamento para moradores e visitantes, e no pouco espaço livre as crianças soltam as pipas.

A

partir de Ábalos compreendese que uma casa é produto das decisões de quem a projeta e objeto da experiência de quem a vive. Em muitas casas do Maciço do Morro da Cruz o projetista se confunde com o experenciador, que vai morar e viver onde também irá colocar sua energia para construir, na maioria das vezes com poucos recursos e acesso limitados a materiais. Ainda assim, a casa vai se alimen-

tando do desejo do morador, e aparecem os inúmeros detalhes decorativos. A paisagem que se vislumbra de muitos pontos do Maciço, pensada a partir desta realidade, evoca a citação de ÁBALOS, da possibilidade de se habitar "um minúsculo espaço e a cidade inteira" (2003, p. 108). A cor, o acréscimo de andares com o uso de diferentes materiais, comprados ou reciclados, vão compondo uma estética própria e tomando, na medida

do possível, formas peculiares e individualizadas. Como diz BACHELARD, "(...) a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela" (1993, p. 200). E seu mais precioso benefício, completa o autor, é abrigar o devaneio, proteger o sonhador (p. 201).


P

equeno comércio popular, espontâneo, é característico do Maciço do Morro da Cruz, surgido da necessidade, porque o comércio legal só morro abaixo, nas ruas do entorno, como a Mauro Ramos. O boteco da esquina, o mercadinho - com produtos de primeira necessidade, como arroz e óleo, e ainda salgadinhos e bebidas o salão de beleza, vão surgindo pela necessidade, espontaneamente, colados às habitações. No centro da Serrinha há uma bifurcação para o Alto da Caieira ou para o interior da própria Serrinha onde se instalaram uma filial de igreja em uma esquina e um mercadinho em outra. Anúncios de compra e venda de casas - agora valorizadas pela rua principal asfaltada -, de material de construção e brechós aparecem ao longo do trajeto, estimulando a pequena economia e as relações entre os moradores.

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A

té 1993 a ligação entre as comunidades do Maciço era feita por um caminho que ligava o Morro do Antão à Santíssima Trindade de Trás dos Montes, nome antigo da Trindade. Percorrê-lo, só a pé. Com o tempo chegaram o transporte coletivo e o asfalto, permitindo que agora se vá do Centro até a Trindade sem precisar dar a volta no Maciço. São duas linhas, a Transcaieira (linha 191) e a Monte Serrat (linha 764). Os ônibus circulam devagar, porque são muitas as curvas e estreita a rua, além de disputa de espaço com automóveis particulares e táxis que querem fugir dos engarrafamentos do Centro. Com as obras do PAC, as lajotas foram o primeiro recurso utilizado para cobrir a terra batida do antigo caminho, mas a instalação precária e o excesso de tráfego arruinaram parte da obra, que foi recuperada com asfalto.

T

omás adota a expressão "zona periurbana central" para o Maciço do Morro da Cruz, entendida "como aquela que, fisicamente, se encontra na área central da cidade, mas ao mesmo tempo não pertence à dinâmica desse centro ou dessa centralidade. É como se fosse uma porção invisível da região central" (2012, p. 129). A autora usa diferentes autores para mostrar que já no século 19, os morros a Leste do antigo perímetro da então Desterro, antigo nome de Florianópolis, recebiam libertos e escravos fugidos. No início do século 20 muitas famílias foram retiradas das proximidades do então córrego da Bulha, hoje Avenida Hercílio Luz, para projetos de renovação urbana sanitarista e também buscaram alternativa de moradia nos morros. Depois vieram os ex-trabalhadores da ponte Hercílio Luz, os migrantes e os ex-agricultores, que começaram a chegar na Capital a partir dos anos 40 do século passado. O Maciço passou a ser um dos poucos lugares onde uma família pobre, diz a autora, poderia encontrar uma área, ocupar um terreno, comprar uma "posse". Nos anos 2000 esta realidade não é diferente, visto que Florianópolis ainda não implantou política habitacional adequada para impedir que a Ilha seja ocupada, com infraestrutura adequada, apenas por famílias de média e alta renda. Dado citado pela autora revela que, segundo a Prefeitura de Florianópolis, há 71 setores de Risco Alto e Risco Muito Alto na região do Maciço do Morro da Cruz nos quais moram 6.314 moradores em 1.622 casas. Com a organização dos moradores, uma conquista importante foi a Lei Complementar Municipal 207/2005, que classifica muitas dessas comunidades como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), prevendo benfeitorias e a possibilidade da regularização fundiária das áreas ocupadas, mas esse processo ainda não se concretizou de forma adequada. Duas linhas de ônibus atendem o Maciço, onde a via principal foi melhorada com recursos do PAC. Na foto acima, lajotas e asfalto no mesmo trecho


A

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s ocupações, que se tem caracterizado como "desordenadas" ou irregulares, são um problema grave no Maciço do Morro da Cruz por dois motivos. O primeiro é a insegurança a que os moradores ficam submetidos em períodos de chuvas mais fortes, quando acontecem escorregamentos ligados à conformação geológico-geográfica da área. O segundo é a pressão sobre os poucos remanescentes de Mata Atlântica ainda existentes ali, hoje parcialmente protegidos com a criação do Parque do Maciço do Morro da Cruz, também feito com recursos do PAC. Do alto é possível perceber as ocupações nas bordas do parque. Ao longo da subida pela face Leste do Maciço também são visíveis processos como a acelerada verticalização da Ilha, no entorno da UFSC, por exemplo, onde um dos ecossistemas mais ameaçados é o Manguezal do Itacorubi. No Alto Pantanal, é possível observar habitações que exibem os diferentes níveis de renda dos moradores, mesclando-se casas mais simples, barracos e outras com melhor padrão de construção. Na caminhada Maciço acima, em conversa com moradores, muitos falaram sobre as dificuldades para morar em outros locais por dificuldades financeiras, em função dos altos preços dos terrenos na Capital.

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A

o longo da caminhada no Maciço é interessante observar a variedade de casas e as soluções encontradas para dar a elas o toque do morador. Nas proximidades da entrada do Parque duas chamam a atenção, uma pintada em diferentes tons de azul e outra de cor lilás, ambas com a parte frontal cercada de folhagens e pequenos detalhes na entrada, como uma coruja de pedra e um enferrujado lampião. Também destacam-se os conjuntos populares, igualmente pintados de diferente cores. Um dos trechos com paisagens mais atrativas é o da Escadaria da rua José Boiteaux, que tem cerca de 390 degraus e foi pavimentada com recursos do PAC. Do alto se avista toda a parte central de Florianópolis, as Baías Norte e Sul e as três pontes. Ao longo da descida vão aparecendo pequenas casas de madeira de duas águas com alpendre, aproveitando a área externa. Já no final da escadaria, em direção à avenida Mauro Ramos, as casas são de alvenaria, e, enfileiradas uma depois da outra, indicam diferentes períodos de construção, provavelmente a partir dos anos 60/70 em diante até construções recentes, e revelam ainda a diferença de classe social dos moradores. Quase na esquina da Mauro Ramos há, lado a lado, um palacete de dois andares com imitação de arabescos sob o alpendre e elaborada sacada,

Detalhe da Escadaria da José Boiteaux, com folhagens na frente das casas; abaixo, as artes da improvisação

além do átrio com escadaria, e uma casa de dois andares e garagem, com brise para filtrar luz e assimetrias planejadas.

T

Acima, vista da Serrinha e do Alto Pantanal; embaixo, entorno da UFSC com Manguezal do Itacorubi à esq. e entrada do Parque

omás mostra como a avenida Mauro Ramos se tornou, a partir do final da década de 1940 - como foi a avenida Hercílio Luz antes - o divisor entre a cidade legal, urbanizada de acordo com o Plano Diretor e as regras de uso do solo e de gabaritos, e a cidade informal, a das habitações precárias das encostas do Morro da Cruz. Este recorte fica visível assim que a Escadaria da rua José Boiteaux termina, uma quadra antes da Mauro Ramos. Mas um aspecto notável do conjunto formado por esta escadaria e seu entorno é a paisagem e a vida que a anima. As casas simples de madeira cercadas de folhagens, o cheiro de mato, o contraste entre sombra e luz quando o céu está claro, o sobe-desce de moradores nos horários de ida e volta do trabalho, inspiram todos os sentidos e evocam a afirmação de GUATTARI, de que

"(...) o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo... Os edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras" (1992, p. 157-8). Conhecer a rica história do Maciço e de sua ocupação dinamiza ainda mais a impressão que o citado conjunto provoca. Pallasma mostra como nos experimentamos na cidade, como ela existe por meio da nossa experiência corporal, fazendo também do espaço arquitetônico um espaço vivenciado (2011, p. 60). A riqueza desta reflexão se aprofunda quando os caminhantes, errantes na cidade, em especial nesta experiência nas veredas do Maciço do Morro da Cruz, percebem ali também o cuidado com a moradia, o detalhe de decoração, o abrigo de todos os sonhadores.


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Casas no Maciço; acima, palacete e casa projetada lado a lado na rua José Boiteaux, quase esquina com a Mauro Ramos; ao lado, detalhes da fachada de duas casas nas proximidades da Escadaria da José Boiteaux

Tomada da Escadaria da rua José Boiteaux, subida e descida que os moradores fazem no dia a dia


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÁBALOS, Iñaki. Picasso em férias: a casa fenomenológica. In: ÁBALOS, Iñaki. A boa-vida: visita guiada às casas da modernidade. Barcelona: Gustavo Gilli, 2003, p.85-108. BACHELARD, Gaston. A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana. In: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 23-53. BESSE, Jean-Marc. As cinco portas da paisagem - ensaio de uma cartografia das problemáticas paisagísticas contemporâneas. In: BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014, p. 11-66. FUÃO, Fernando Freitas. As formas do acolhimento na arquitetura. In: FUÃO, Fernando Freitas; SOLIS, Dirce Eleonora (orgs.) Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014, p. 41-113. GUATTARI, Félix. Espaço e Corporeidade & Restauração da cidade subjetiva. In: GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 151-179. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011. ROLNIK, Suely. Livro Um - Desejo: perfil de um cartógrafo da atualidade. In: ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 27-77. TOMÁS, Elaine Dorighello. Antigos e novos olhares sobre o Maciço do Morro da Cruz: de não território a território do PAC-Florianópolis. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Geografia, Florianópolis, 2012.


IDEÁRIO EM CONSTRUÇÃO: CIDADE NA NATUREZA VIVÊNCIAS EM NARRAÇÃO Bibiana Beretta


IDEÁRIO EM CONSTRUÇÃO: CIDADE NA NATUREZA

conexão entre propriedade física e mental. Sendo, portanto, fundamental ao resgate da essência, ao preenchimento do vazio.

Vivências em narração

Cheio. Dentro de um só corpo, muitas mulheres em uma única alma. Em um mundo multi, pluri, inter e trans seria ainda mais estranho o exata

contrário. Mas talvez seja exatamente essa a nossa essência. Será? Afinal,

experiência à que devo vivenciar nesta etapa da minha existência.

Meu

corpo.

Fisicamente

estruturado

para

receber

a

dentro de um só corpo, podemos gestar um outro corpo, como donas do

Memórias, imagens, sinais, marcas e raízes. Ancestralidade. Um mundo

futuro. Talvez, até, não um outro corpo, mas uma parte do mesmo. Talvez,

constituído, mas em constante construção. Um coração pulsante e amante

por isso, a tamanha e eterna conexão. A cadeia ancestral, o fio da

ligado a uma mente em ebulição. Descontruir é tontear na imensidão. Mas

existência. Uma parte que não significa divisão, mas sim multiplicação.

perder-se, mesmo com todo o desconforto, é o único caminho para se

Como uma camada em evolução, uma nova alma, mas não minha. O eu, o outro,

encontrar. Chegar na essência.

um novo eu. Trans-formação. E foi aí que o mundo se abriu e aumentou de

Mas essa essência não é meta, é meio (MERLEAU-PONTY, 1999). Não é

tamanho. A minha ideia de mundo.

resultado, é processo. Não é fechado, é aberto. Descobrir a fenomenologia quer dizer

Essa experiência, portanto, representa a abertura, ou ainda, a possibilidade de um

descobrir que toda a subjetividade pulsante do coração pode sim ser exata em toda sua

campo ampliado. Segundo Merleau-Ponty (1999, p. 14), “o mundo é aquilo que

ciência, pode sim ser método. E ainda, não só pode, como é parte atrelada ao meu corpo.

percebemos”, ou seja, a ideia de mundo é construída não pelo o que pensamos, mas sim

Merleau-Ponty (1999), em seu livro Fenomenologia da Percepção, define a

pelo o que vivemos. A experiência, assim, está diretamente relacionada com a percepção

fenomenologia como o estudo das essências, o “retorno às coisas”. É descrição pura e

e, consequentemente com a verdade. Já que “buscar a essência da percepção é declarar

direta, diferente da análise e da explicação. Na fenomenologia, há posicionamento, e não

que a percepção é não presumida verdadeira, mas definida por nós como acesso à

crítica. O que significa dizer que não há verdade absoluta, ou seja, está aberto em sua

verdade” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.14). Ou seja, a verdade, que define também a

totalidade. Não finda. A descrição fenomenológica dá noção, e não conceitua, a partir da

realidade, não vem daquilo que é dito e sim daquilo que conseguimos distinguir entre real

experiência única de cada momento e de cada corpo. Afinal, toda e qualquer interpretação

e imaginário, somente porque temos uma experiência do que é cada. Assim, é possível

está diretamente relacionada com a experiência de cada um. E descrever essa experiência

entender a dimensão e a importância das vivências de cada ser. Da peculiaridade de cada

de forma subjetiva é absolutamente racional, como afirma Merleau-Ponty (1999, p.18),

olhar, de cada ponto de vista.

na defesa da relação direta entre subjetivismo e objetivismo: “a racionalidade é exatamente proporcional às experiências nas quais ela se revela”, ou ainda “a ciência é construída sobre o mundo vivido”.

O tempo é outro, que vem exatamente daquele outro, que me ensinou a parar o tempo. A perceber o tempo, a dar as mãos ao tempo, a fazer as pazes com o tempo, nem que, muitas vezes, em frustrantes tentativas. Sigo

Atentamos, portanto, à relação direta entre percepção, sensação e corpo. Nas

tentando reconhecer o meu tempo, já que hoje em dia parece muito difícil

palavras de Merleau-Ponty (1999), através de uma compreensão fenomenológica, é

encontrar ele. Ninguém tem tempo de nada, para nada. Mas por que isso?

possível afirmarmos que toda e qualquer sensação é apreendida através do corpo. É,

Estaria na resposta o modo como percebo, não só o tempo, mas tudo que

assim, através do movimento do corpo que percebemos e nos relacionamos com o mundo.

está à minha volta? A dependência do ponto de vista e da relatividade?

Ou seja, permitir o movimento do corpo, o que significa percorrer e atravessar, é permitir

Tudo é relativo?

experienciar. Sendo assim, a experiência do corpo é o próprio despertar de sentidos,


Em outros tempos, no ano de 1905, o grande cientista Albert Einstein (1999) afirmou a existência de uma quarta dimensão, que é o próprio tempo. Ou seja, o espaço não é tridimensional (altura, comprimento e largura). O espaço é inseparável à dimensão temporal. Daí surge o espaço-tempo contínuo e elástico. O que permite dizer, por exemplo, que o tempo nem sempre é igual. O tempo passa mais devagar, conforme mais rápido algo se move. Enfim, segundo Einstein (1999), tudo depende do ponto de vista e só não enxergamos essas diferenças pois nossa velocidade é lenta demais em relação à velocidade da luz. Então, ainda falando sobre ponto de vista, podemos também dizer que,

do sol, por exemplo, é a própria referência de unidade de tempo, como um símbolo aperfeiçoado pelos humanos. A operação de datação e determinação do tempo em geral não se deixa conceber a partir de uma representação que divida o mundo em "sujeito" e "objeto". Ela repousa, simultaneamente, em processos físicos não importando que sejam moldados pelos homens ou independentes deles e em observações capazes de abarcar, de reunir numa síntese conceitual aquilo que se apresenta numa sucessão, e não como um conjunto. Não são "o homem e a natureza", no sentido de dois dados separados, que constituem a representação cardinal exigida para compreendermos o tempo, mas sim, "os homens no âmago da natureza”. (ELIAS, 1998, p. 12)

psicologicamente, percebemos o tempo diferente de outras pessoas de acordo com certa

Assim, o simples fato de estar conectado ao tempo significa estar conectado à

circunstância. Assim, um mesmo período de tempo, como um dia ou um ano, pode

natureza, aos fenômenos naturais e sequenciais, por mais que isso seja despercebido. E,

parecer extremamente curto para alguém e incansavelmente longo para outro. Isso

perceber esses fenômenos que estão por trás do relógio, pode trazer não só uma conexão

voltaria ao ponto em que a física afirma que o tempo é relativo e, portanto, não absoluto.

com o meio que nos cerca, mas uma conexão com nós mesmos. Experienciar o tempo de

O que poderia abrir a discussão entre tempo linear e cíclico (VERGARA, VIEIRA, 2005).

outra forma significa sentir o tempo. Encontrar o equilíbrio do corpo, e de seus ciclos,

O tempo linear, por sua vez, é aquele quantificável e irretornável. Dividido entre

através da relação com os ciclos que nos cercam. E isso, é ciência.

passado, presente e futuro, configura a comum linha do tempo, com ponto fixo inicial e

Em segundo lugar, atentamos para a percepção de tempo na pós modernidade e o

com tendência ao fim. O tempo linear é nossa principal referência atual, baseada no

consequente modo de experienciarmos o espaço. Esse tempo-espaço, de acordo com

calendário gregoriano e no relógio (VERGARA, VIEIRA, 2005). Nas palavras de Holl

Vergara e Vieira (2005), além de ser fisicamente quantificável, também é socialmente

(2011, p. 26), “nosso conceito moderno de tempo se baseia em um modelo linear, talvez

construído. Isso implica dizer que a nossa concepção de tempo é determinante no

disjuntivo”. Já o tempo cíclico, assim como o movimento, é aquele que retorna e renova.

processo evolutivo das organizações da civilização, no caso apontado pelo autor, do ponto

Coincidência ou não, o mesmo movimento aparece tanto nos fenômenos naturais -ciclo

de vista socioeconômico. A maneira como aprendemos a contar e a perceber o tempo

lunar, ciclo solar, maré e estações do ano-, assim como no nosso próprio corpo -ciclo

revela cada vez mais seus efeitos controladores. Na nova era em que vivemos, destacada

menstrual, sono e respiração. Na sabedoria grega, além de perceber o tempo de forma

pelos novos sistemas de tecnologia de informação e comunicação, construímos um novo

cíclica, tinha-se como referência, o tempo Cronos e também o tempo Kairós. O primeiro,

tempo-espaço e uma nova realidade: a virtual. O tempo, portanto, é uma variável

aquele quantitativo, é que deu origem à tantas contagens atuais: nosso cronômetro e nosso

fundamental nesta transição econômica do modelo predominantemente industrial para o

cronograma. O segundo, aquele qualitativo, está relacionado ao sentir. Aquele tempo

atual foco em sistemas produtivos de serviços. O progresso tecnológico representa uma

momentâneo, do agora, sem começo nem fim, associado ao momento da oportunidade,

aceleração em diferentes aspectos, trazendo tantos efeitos positivos como negativos.

ao momento que não precisa ser contado, ou melhor, quantificado. A definição do tempo é muito discutida até hoje e envolve campos interdisciplinares. A questão aqui, entretanto, é atentar a dois fatores que envolvem o tema desse texto. Em primeiro lugar, atentamos à forte intimidade do homem com a natureza, a partir de algo tão primordial, como o tempo. Para Elias (1998), assim como a sequência das horas no relógio é uma referência de tempo à humanidade, o movimento

São mudanças que afetam as formas organizacionais, tornando-se, a partir dos novos modelos, mais ágeis, eficientes e otimizadas em custos. Podem também se tornar cruéis, imprimindo sobre os indivíduos formas de controle menos visíveis e, portanto, de grande caráter manipulador e coercitivo, a maior parte dessas formas, sem dúvida, proporcionada pelas tecnologias da informação, ferramentas-chaves das realidades virtuais. (VERGARA, VIEIRA, 2005, p. 11)

Entretanto, cabe ressaltar que não pretendemos julgar o avanço tecnológico como um avanço maléfico. Até porque, ele também representa abertura, no ponto em que


significa um campo aberto e abundante de possibilidades, conhecimento e conexão. E

não rentável. Mais um motivo da perda do com-tato com as artes manuais, o

sim, apenas atentar à força midiática que ela intensifica e que está diretamente relacionada

adormecimento dos nossos sentidos. Somos treinados a enxergar que tempo é dinheiro.

com a alienação da sociedade, a nossa qualidade de objeto controlado, assim como os altos níveis de estresse e ansiedade. Além disso, talvez sendo o mais relevante aqui, o ambiente virtual extrai uma importante dimensão: a dimensão da experiência. E isso, traz graves consequências determinantes não somente à sociabilidade da vida humana e a diferentes saberes, mas também no nosso contato com o meio que nos cerca. Com-tato. É preciso equilíbrio. Uma série de sentidos são adormecidos pelo novo tempo e modificam consideravelmente nossa percepção e relacionamento com o espaço urbano e arquitetônico. Para Holl (2011, p. 26), inclusive, o espaço arquitetônico pode trazer uma distensão do tempo, tão necessária atualmente:

Tempo é arte. Meu mundo sempre foi mais manual do que qualquer outra coisa. E isso também é ancestralidade. Cresci no meio da arte, encantada com aquelas mãos, as primeiras a me tocarem. E foi assim que nasci. O meu melhor encontro comigo mesma sempre foi através da arte. Descarregando a mente. Despertando o coração. Aflorando os sentidos.

A arte sempre teve um grande papel na sociedade. Nos dias de hoje, ela vem assumindo uma estreita relação com a sensibilidade coletiva, intensificando seu vínculo social. A obra artística contemporânea gera relações entre o objeto e as pessoas, construindo um campo de experimentações único para a produção de subjetividade. Falamos, portanto, de uma estética relacional. Segundo Bourriaud (2009, p. 21), “a arte

A experiência física e perceptiva da arquitetura não resulta em espalhamento ou dispersão, e sim em concentração de energia. Este “tempo vivido” fisicamente experimentado se mede na memória e no espírito e contrasta com o desmembramento das mensagens fragmentadas dos meios de comunicação.

sempre foi relacional em diferentes graus, ou seja, fator de sociabilidade e fundadora de diálogo”, entretanto, com a intensificação de uma cultura urbana mundial, generaliza-se uma experiência de proximidade entre as pessoas (BOURRIAUD, 2009). Em outras

Inevitavelmente, a era da internet intensifica o distanciamento do ser humano com

palavras, a arte contemporânea comemora o encontro. A condição de que a subjetividade

seu meio, tanto natural quanto construído. A instantaneidade alcançada cada vez mais

só pode existir na presença de outra subjetividade (GUATTARI, 1992). Mais do que isso,

parece encurtar o tempo, mesmo tendo razão contrária. O maior número de tarefas ao

esse novo conceito de arte, traduz não só um dispositivo gerador de relações, mas um

mesmo tempo é pura eficácia. Entretanto, mesmo interconectados cada vez mais falamos

dispositivo de interação que envolve transformação. Ou ainda, que envolve uma afetação.

na falta de afetividade. Curiosamente, talvez, a lentidão seja a melhor forma de não perder

Ou seja, o objeto de arte é transformado na presença do outro, o que significa abertura.

tempo. Em outras palavras, pode ser a melhor forma de concentrar essa energia de que

Não finda.

Holl associa à experiência. E, em particular, na experiência da arquitetura, de sentir a

Assim como Bourriaud (2009) defende o espaço urbano como fio condutor desses

arquitetura em sua completude. Essa experiência, portanto, seria a junção de todas as

encontros tão importantes para a produção de subjetiva, Guattari (1992, p. 175)

partes, a união da percepção exterior e física com a percepção interior e mental.

responsabiliza os arquitetos e urbanistas, artistas criadores do espaço, pela mudança de

A sensibilidade, tão perdida atualmente, pode ser o caminho de retorno à nossa

que tanto precisamos: “apenas uma experiência bem-sucedida de novo habitat individual

essência. Novamente, nas palavras de Holl, podemos estabelecer a forte relação entre

e coletivo traria consequências imensas para estimular uma vontade geral de mudança”.

percepção, sensação e corpo. Através de um simples instante de atenta distração, uma

Para o autor, a “subjetividade se encontra ameaçada de paralisia” (GUATTARI, 1992,

mudança de olhar, “nossa percepção modifica nossa consciência, a atenção amplia e o

p.169) e a redefinição da relação entre os espaços construídos tem o poder de recuperar

tempo se distende” (HOLL, 2011, p. 27). E isso, não é perder tempo. E por que não

essa sensibilidade perdida. Nesse caso, é interessante refletir que na importância da

podemos perder? O paradigma da escassez traduz o mundo atual porque fomos treinados

relação dos espaços construídos, inevitavelmente, falamos também na importância dos

a perceber o mundo dessa forma. Com a industrialização, nossas ações estão diretamente

espaços vazios. Afinal, não só o espaço cheio define o vazio, mas também o vazio pode

relacionadas com a quantidade de horas que dedicamos a elas. O fato de ser lento,

definir o que é cheio. Ou seja, todo vazio pode ser figura (AGUIAR, 2010). Fundo ou

necessitando de um maior número de horas para realizar tal atividade, torna essa mesma

figura, individual ou coletivo, manual ou mecânico, cidade ou campo, objetivo ou


subjetivo. Vivemos nessa dualidade, mas na verdade, nenhum vive sem o outro. Talvez,

mais singulares da pessoa quanto os níveis mais coletivos” (GUATTARI, 1992, p. 169).

assim como o cheio e o vazio, um sempre, inclusive, definirá o outro.

A oposição aqui, entretanto, vem do pensamento único e consensual associado a uma

De modo geral, os autores aqui citados compreendem a arte e a arquitetura como produtoras de subjetividade e, consequentemente, como frentes de superação à uma economia baseada no lucro que reduz tudo a mercantilismo e todos ao serialismo. Um despertar que, curiosamente, não significa abrir os olhos, mas sim fechá-los. Uma intensificação da vida através dos olhos da pele, como diz Pallasmaa (2011, p.40): “a visão revela o que o tato já sabe”. Para o autor, a arquitetura permite uma experiência multissensorial, atrelada ao corpo, capaz de ampliar horizontes. E foi por essa subjetividade que me encontrei com a arquitetura e o urbanismo. Do desenho da maçaneta à miscelânea da cidade. Amante da

cidade espetacular vazia de sentido, em suas imagens midiáticas e luminosas. Enquanto a vida coletiva, por sua vez, contempla uma complexidade repleta de multiplicidade. Um duelo entre o espetáculo urbano pacificado versus a cidade opaca, intensa e viva (JACQUES, 2014). E é exatamente nesse ponto que falamos novamente da experiência, já que somente assim podemos vivenciar essa multiplicidade: A experiência da diferença, do diferente, do Outro, seria uma experiência de alteridade. A experiência errática pode ser vista como possibilidade de experiência da alteridade na cidade. A experiência errática seria uma experiência da diferença, do Outro, dos vários outros, o que a aproxima de algumas práticas etnográficas e posturas antropológicas. O errante, em suas errâncias pela cidade, se confronta com os vários outros urbanos. (JACQUES, 2014, p. 30).

cidade. O incrível cruzamento entre subjetivo e objetivo, imaterial e material, arte e técnica. Uma porta se abriu. E ao deitar a porta, como diz Fuão (2014), uma ponte.

A ligação é indispensável pra a produção de subjetividade. Um sentido só é despertado pela relação a algo ou alguém. Ou seja, é preciso conexão. Nesse sentido, a reflexão de Fuão (2014) sobre as funcionalidades de uma ponte, aquela estrutura que dá passagem entre dois pontos, acrescenta nesse ponto de vista. Para o autor, não só a ponte, mas todos os elementos com essa a mesma finalidade, “possuem a propriedade de criar a ilusão de integridade, homogeneidade da pele, mesmo sendo tudo distinto. Desta forma,

A errância, então, é associada à ideia de percorrer e atravessar, no movimento do corpo que experimenta a cidade ao acaso, ao encontro da alteridade. O corpo errante experimenta a cidade não pela visão de um mapa, mas por dentro dela. Ou seja, nas palavras de Jacques (2014, p. 32), “ele inventa sua própria cartografia a partir de sua experiência itinerante”. A partir dessa visão, a autora conceitua o que seria a errantologia, ou o estudo da nomadologia errante. Segundo Guattari (1992), precisamos reconquistar o nomadismo existencial, presente nas nossas raízes mais primordiais, contra o falso nomadismo que vivemos nos dias de hoje, ao qual não nos faz sair do mesmo lugar.

nos aproximamos do próprio conceito de costura e sutura” (FUÃO, 2014, p.56). Assim,

Essas derivas, se assim podemos chamar, ressaltam o poder do caminhar.

essas ligações afetivas e essa abertura relacionam-se com o conceito de hospitalidade.

Francesco Careri (2013), estuda profundamente a história do nomadismo e defende o

Conceito, portanto, que transporta o sentido de acolhimento tão importante no

caminhar inclusive como uma prática estética. A experiência vivida, o encontro com o

entendimento da arquitetura e da cidade. Para Fuão (2014), a hospitalidade é a fundadora

Outro, a riqueza das sensações. Os espaços urbanos, portanto, como produtores de

das cidades, muito mais que o encontro entre hóspede e hospedeiro. O conceito de

subjetividade e protagonista do destino da humanidade, como afirma Guattari (1992). E

hospitalidade envolve abertura e vazão, envolve alteridade. Envolve a união de sentidos

é nessa lógica que o autor fala sobre ecologia.

opostos: hóspede-hospedeiro, familiar-não familiar, espera-errância, dentro-fora, aberto-

Uma ponte. Uma linha que separa e ao mesmo tempo une planetas de seres vivos distintos. Assim como a linha que separa o fundo do mar do céu. Até que ponto se separam ou se unem em um mesmo sistema? Cresci aprendendo com a natureza, a amar o que de mim faz parte. A proximidade virou necessidade. Amante da natureza, mas também amante da cidade. Um eu duo ou um só eu?

fechado. Um condiciona o outro. Um em encontro ao outro. E quando falamos do encontro com o outro, salientamos o coletivo. Mas não em oposição à singularidade, já que a mudança está na recomposição da singularidade individual e coletiva: “Não se trata mais aqui de uma “Jerusalém celeste”, como a da Apocalipse, mas da restauração de uma “Cidade subjetiva” que engaja tanto os níveis

A palavra ecologia nos remete, imediatamente, à palavra natureza. Mas não só de natureza, na sua qualidade de ambiente natural, trata a ecologia. Guattari (1992) discursa


sobre a necessidade de uma ecosofia, o que seria o conjunto de uma ecologia ambiental,

natureza. Se queremos agito, somos cidade. Praticamente, então, nos dividimos como

social e mental. O verdadeiro avanço de consciência ecológica não corresponderá

subespécies. O que faz aquele ser urbano ser automaticamente distante da natureza, o que

somente aos “fatores ambientais, mas deverá também ter como objeto devastações

significa sua grande necessidade por “gente” e não “mato”. Talvez esteja aí a essência da

ecológicas no campo social e no domínio mental” (GUATTARI, 1992, p. 173). Assim, a

palavra cidade: aquela proximidade entre as pessoas que Bourriaud (2009) tanto ressalta

verdadeira mudança trata de uma nova relação com a biosfera e, consequentemente, com

como uma qualidade. Certamente, uma grande qualidade. Mas será que necessariamente

a própria vida. A consciência coletiva e as atividades humanas, relacionadas à sua

exclui a natureza? Como se nossa espécie conseguisse se isolar em uma bolha

sustentabilidade econômica, condicionam a relação entre homem e natureza. Nesse

absolutamente e exclusivamente nossa: o espaço urbanizado, o reino do ambiente

sentido, portanto, que o autor defende o nomadismo existencial, a subjetividade, a

construído. O “fora” da cidade seria então o ambiente natural, reservado para seres de

desvinculação com os meios de controle e a nova relação corpo-espaço como definidores

outras espécies e para poucos humanos que não se identificam com a miscelânea da

do futuro da humanidade e da biosfera. Dessa forma, o autor salienta a organização do

cidade. Talvez nossa visão esteja enraizada na cidade como um produto da

homem no espaço, ou seja, de novas relações entre o espaço construído, salientando a

industrialização, quando efetivas grandes massas de pessoas se adensaram criando um

responsabilidade dos arquitetos e urbanistas. Em outras palavras, a protagonização dos

efeito de intensa tendência até os dias de hoje e ainda nos próximos. Mas como eram as

espaços urbanos.

aglomerações humanas antes dessa economia controladora? De acordo com Benevolo

Mas será que ao falar de espaços urbanos também não estamos falando de natureza? E essa relação tende a estreitar cada vez mais. Falamos hoje em dia das estimativas que declaram a tendência da urbanização do planeta. Os espaços não urbanizados tendem a desaparecerem:

(2007), a origem da cidade está nas aldeias, na mesma época daquele nomadismo existencial ao qual Guattari (1992) se refere. Seria então possível coexistir aglomerações humanas e ambiente natural? Mas não aquele ambiente natural delimitado, diferenciado ordenadamente por uma linha invisível, em oposição ao ambiente urbano. Aqueles ambientes ao qual a natureza se resume na cidade, como diz Guattari (1992): espaço de

Os prospectivistas predizem-nos, com efeito, que nos decênios futuros cerca de 80% da população mundial viverão em aglomerados urbanos. E, devido a isso, convém acrescentar que os 20% restantes da população mundial, mesmo que “escapem” do habitat da cidade, dela serão, entretanto, tributários, através de vários liames técnicos e de civilização. Em outros termos, é a distinção mesma entre a cidade e a natureza que tenderá a se esmaecer, dependendo os territórios “naturais” subsistentes, em grande parte, de programação com o fim de organizar espaço de lazer, de esporte, de turismo, de reserva ecológica... (GUATTARI, 1992, p. 170)

lazer, de esporte, de turismo, de reserva ecológica. Continuamos sem com-tato, sem

Podemos assim concluir que mesmo existindo ainda áreas rurais, as mesmas estão

da natureza, nem mesmo se ela existir como áreas de reserva ecológica. Talvez seja uma

diretamente ligadas com a cidade, numa relação interdependente. Talvez a tendência não

questão de invisibilidade. E não somente em relação ao que se refere à falta de visão, mas

seja o campo desaparecer, mas sim coexistir no espaço da cidade? Ou será que o problema

sim à falta de todos os outros sentidos. Consequentemente, então, uma falta de percepção,

está no conceito de cidade? No que definimos como espaço urbano? Se dependemos do

o que gera uma falta de consciência. A natureza existe, e mais, nos sustenta. Enquanto

meio rural como ele deixará de existir? Ou, então, se nossas cidades aumentarem

houver cidade haverá natureza e enquanto houver natureza é que existirá cidade. De

excessivamente, como uma parcela tão mínima do campo, que envolve as atividades

acordo com Hough (2004), é comum associarmos educação ambiental com idas ao

agrícolas, irão ser suficientes para nos sustentar? Existe como falar de campo sem falar

zoológico, florestas e reservas ambientais. Essa questão, portanto, “ilumina um problema

de cidade, e vice-versa?

básico sobre como a maioria das pessoas pensam acerca dos processos naturais: a natureza

perceber. A maior experiência urbana de natureza hoje são aquelas paisagens (in)visíveis e (in)tocáveis. Ao rasgar o asfalto: terra. Ao rasgar o cano: água. Por toda parte: ar. Será que existe “fora”? Vivermos em um planeta urbano não pode significar o mesmo que ausência

Mas a discussão envolve ainda outras reflexões. Nossa cultura insiste no duelo

é algo alienígena, está separada dos assuntos humanos, e somente pode ser estudado nos

entre campo ou cidade, natureza ou espaço edificado. Se queremos tranquilidade, somos

entornos não urbanizados” (HOUGH, 2004, p. 25). Talvez, então, a melhor forma de nos


conectarmos com a natureza e mudarmos nossa visão antropocêntrica, seja vivenciar o

impactar em menor nível o meio que nos cerca. E sim, como nossa alteração no meio

espaço urbano.

ambiente, decorrente do nosso espaço construído, pode contribuir para o desenvolvimento

Nessa lógica, podemos salientar a importância das experiências urbanas de natureza. O que, por sinal, continua evidenciando a responsabilidade dos criadores do espaço, já que, segundo Hough (2004, p. 28), “um desenho que oculta os processos naturais leva a um empobrecimento sensorial”. Arriscamos dizer aqui, que a mesma distensão do tempo, descrita por Holl (2011), ocasionada pelo espaço arquitetônico, também pode ser efetuada pelo contato com a natureza. Certamente em outros tempos tínhamos esse contato muito mais presente no meio urbano. As cidades, antes da monopolização mercantilista, tinham sua essência nos espaços abertos, que funcionavam

ambiental. Confusão. Muitas vezes uma culpa por ser uma profissional em construir e encobrir aquela natureza que tanto amo. Pensei em construções de baixo impacto. Pensei em recuperar aquilo que havíamos perdido. Mas não perdemos. Não se trata de uma coisa ou objeto. Não é questão de ter e sim de ser. Somos natureza. Cidade é natureza. Só estamos vivos na cidade porque ela é natureza. É questão de perceber e sentir. É questão de abertura. Não de baixo impacto e sim de contribuição. Em paz por contribuir comigo mesma, o que significa contribuir com o todo. Apenas um nó de uma grande teia.

muito além da recreação. O contato com a água, a terra e outros elementos naturais eram

Cabe, então, encontrar o equilíbrio e o ponto de junção que possibilite a

não só visíveis, mas realmente sentidos. A natureza era presente e conectada ao corpo,

coexistência dessa diversidade de pessoas, paisagens e comunidades ecológicas. Aquela

enquanto físico e mental. A experiência urbana era muito mais estriada do que lisa. Nossa

ponte, ou aquela costura, que Fuão (2014) descreve, a ponto de tornar-se homogêneo

própria noção de tempo era outra.

mesmo o que é distinto. Aquela união entre sentidos opostos. Dessa maneira, falar em

Talvez, a atual vontade de refúgio em ambientes predominantemente naturais, ou seja, a necessidade de contato com a natureza, também pode ser considerada como um gesto urbano. Um gesto, sim, possível na cidade, e perdida no cenário atual. Um gesto que sobrevive na memória, enquanto carga da nossa essência, já que somos, comprovadamente, matéria cósmica. Ou seja, somos parte da natureza, e a desconexão com a mesma, esvazia e dessensibiliza. Um gesto involuntário, cultural e social que sempre irá sobreviver, mesmo que não se perceba seu real sentido. Afinal, sem sentir, no tempo de agora, não percebemos. Cabe ressaltar, entretanto, que a intenção não é defender um retorno ao passado, replicando um velho tempo. O estudo às origens significa originalidade, no sentido de reunir fragmentos temporais em busca de construir algo com novo significado.

defesa da natureza não significa falar contra o ambiente construído, e até mesmo à tecnologia. A questão está no equilíbrio, no cruzamento, no laço, na trama, no emaranhado. Em perceber o nosso tempo natural. O movimento do que nos cerca. Em uma integração total entre desenvolvimento ambiental e desenvolvimento humano. Em um desenho de paisagens multifuncionais e produtivas que integrem ecologia, gente e economia. É possível? A cidade in-corpo-rando a natureza. Ou a natureza in-corpo-rando a cidade? E o que é, então, cidade? Ideário construído dessa maneira exatamente pelas vividas e aqui narradas. Em outras palavras, somente por experiências que consegui perceber e articular essas desenvolvidas. Elas demonstram uma trajetória e de justificam essa pesquisa que não finda, atrelada a um experiência de vida.

Certamente, a diversidade e a possibilidade de trocas entre as pessoas no meio urbano são algo extraordinário que só deve ser acentuado. Assim, não pretendemos defender aqui ideais ambientalistas, em oposição aos grandes adensamentos populacionais que tanto geram essa diversidade. Nem pretendemos enxergar o desenvolvimento humano como um destruidor da natureza. Michael Hough (2004) atenta para a grande diferença entre impacto ambiental e contribuição ambiental. Defende, assim, que qualquer espécie precisa construir seu habitat alterando necessariamente o meio ambiente. Entretanto, toda alteração pode beneficiar outras espécies. Portanto, não devemos nos perguntar como

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

experiências causa dessas ideias aqui certa forma corpo, a uma


AGUIAR, Douglas. Alma espacial: o corpo e o movimento na arquitetura. Porto Alegre: Ufrgs, 2010. BENEVOLO, Leonardo. Histà ria da cidade. São Paulo: Perspectiva, 2007. CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G. Gili, 2013. EISNTEIN, Albert. A teoria da relatividade especial e geral. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. Tradução de: Carlos Roberto Nogueira de Freitas. ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. FUÃO, Fernando Freitas. As formas do acolhimento na arquitetura. In: SOLIS, Dirce Eleonara; FUÃO, Fernando Freitas. Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014. p. 43-111. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. HOLL, Steven. Cuestiones de percepcià n: FenomenologÃa de la arquitectura. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2011. HOUGH, Michael. Naturaleza y ciudad: planificacià n urbana y processos ecolà gicos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2004. JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. 2. ed. Salvador: Edufba, 2014. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011. VERGARA, Sylvia Constant; VIEIRA, Marcelo Milano Falcão. Sobre a dimensão tempoespaço na análise organizacional. Rev. Adm. Contemp., [s.l.], v. 9, n. 2, p.103-119, jun. 2005. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s1415-65552005000200006


URBGRAFIAS OU CARTOGRAFIAS DA PRODUÇÃO DE UM DEVIR: A ARTE COMO FAZER CIDADE Elaine Nascimento


Esse movimento, quando estou tomada pela urgência das forças que me atravessam e elas ficam me azucrinando enquanto eu não invento alguma coisa, esse movimento que seria uma ação do pensamento, é a produção de um devir, uma sublime ação, algo que dê corpo para o que nos atravessa. (ROLNIK apud MUSSI, 2012, p. 45).

URBGRAFIAS ou cartografias da produção de um devir: A arte como fazer cidade. Elaine Nascimento Para Ler: Sublinhado – ideias em gestação Itálico – conceitos, pertencentes a outros autores. Alguns são especificados em notas de rodapé, outros serão ao longo do trabalho. Negrito – Ações práticas, materialização.

PERGUNT(A)ÇÃO Seria possível fazer cidade a partir da arte? O que é fazer cidade? Dessa pergunta observam-se os seguintes pontos: O ato de fazer cidade pressupõe aqui ação em processo ou agenciamentos coletivos de enunciação , visto que o espaço da cidade pertence a uma coletividade, se caracteriza como espaço de trocas e interações sociais. Por isso, a pergunta recaiu sobre o termo ‘fazer’ não ‘construir’. A arte se torna veículo dessa ação, é a materialização do devir em transe, é a ação do desejo. Artigo desenvolvido como escrita experimental da disciplina de ARQ 410037 - ‘Cartografia do Espaço Habitado: fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade’, de Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina. 2016.2


FRAGMENTO I

então a essa esfera pública tudo que é exposto e compartilhando, o que pode ser

Tenho para mim que a condição pública de uma obra de arte não reside em sua existência em uma localização que se predetermina como pública, mas em vez no fato de que executa uma operação: a operação de produzir espaço público ao transformar qualquer espaço que a obra ocupe no que se determina uma esfera pública. (DEUTSCHE, 2007, p.2)

caracterizado a luz da aparência, ficando as coisas irrelevantes designadas a uma esfera privada, coisas que só podem ser em uma esfera privada. Porém, são tais coisas da ordem do irrelevante, não porque o são, mas porque não encontram materialização na aparência, fundamentais para o sentimento, poderíamos dizer que elucidam os movimentos de

Primeiramente (#foratemer) se faz necessário mergulhar no conceito de esfera pública

singularização3. Em segundo, o que concerne ao comum, ao interesse mútuo, o que é

e sua inscrição para o trabalho em processo, ou work in progress1. Isso induz a observar o

compartilhado “pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e

comportamento de termos como vida pública e espaço público, visto que parecem estar

estabelece uma relação entre os homens” (ARENDT, 2007, p. 62). Existiria, portanto nessa

interligados de forma rizomática, ou mais além, assumindo o papel um dos outros em

esfera pública um vínculo primordial entre os homens, que seria o próprio mundo. Porém,

determinados momentos. Acredito que tratam da narração de um mesmo espaço, em

nas sociedades contemporâneas esse vínculo inicial vem sendo substituído pela cultura de

diferentes dimensões.

massa e consumo. E dentro dessa segunda premissa é importante destacar uma citação da autora sobre o espaço público:

A esfera pública...

Só a existência de uma esfera pública e a subsequente transformação do mundo em comunidade de coisas que reúne os homens e estabelece uma relação entre eles depende inteiramente da permanência. Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a duração da vida de homens mortais. (ARENDT, 2007, p. 64)

Ressalto a condição fundamental do ser humano citada por Hanna Arendt a partir de Aristóteles: o ser humano enquanto animal político. A partir daí traça-se duas paralelas, duas naturezas desse ser: o privado e o público (bios politikos2). A autora definia o espaço público como espaço da ação, estando sua definição intimamente ligada à vida pública na pólis grega.

É no espaço público que a esfera pública toma forma, sendo necessário o

Havia uma esfera privada definida pela propriedade e bens do cidadão da pólis, e um espaço

entendimento do sentido de coletividade e mundo, de partilha e principalmente de

de ação (práxis) e do discurso (conversação), sendo esse último um espaço destinado à

legitimação, seja de um ideal político, seja de uma forma de viver, de uma existência.

decisão sobre assuntos em comum, nomeado esfera pública. Aos poucos as duas noções A vida pública...

foram se distanciando, estando o discurso e persuasão mais diretamente atrelados a essa esfera pública. Era o contrário do que acontecia em uma esfera privada, na qual a violência e

Segundo Jan Gehl, a vida pública ou a vida entre os edifícios se caracteriza como as

autoridade serviriam como base para as tomadas de decisão e organização. A autora ainda define dois pontos importantes do que é inerente a essa esfera pública:

atividades exercidas pelos indivíduos no espaço público, sendo elas programadas ou não, ou

primeiro a noção de realidade, e em seguida o significado de mundo. Na primeira, está o

urbanidade. É a vida desenvolvida no espaço destinado ao compartilhamento da cidade, no

conceito de que tudo que é visto e ouvido em coletivo se constitui realidade. Pertenceria

espaço comum ou, em outras palavras, relaciono aqui as atividades desenvolvidas a partir de uma noção de esfera pública, da existência dessa natureza coletiva e pública. Seguindo o

1

Para o pesquisador Renato Cohen, uma obra em work in progress se refere à criação em processo, pautada por linhas geradoras (leitmotiv). Caracteriza ainda a criação de obras contemporâneas onde processo e produto caminham em conjunto. É abordado dentro dessas obras conceitos tais como irracionalidade, incorporação do acaso e sincronicidade, por exemplo. (COHEN, 1997). 2 Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não apenas difere, mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo o centro é constituído pela casa (oikia) e pela família. O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, ‘além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon)’. (ARENDT, 2007, p.33)

desenvolvimento dos conceitos, tomo a liberdade de relacionar essa vida pública à ação, aos

3

O termo “singularização” é usado por Guatarri para designar os processos disruptores no campo da produção do desejo: trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc. (GAUTARRI; ROLNIK, 1996, p.45). 2

3


processos micropolíticos4 visto que ao contrário de uma coletividade como me pressupõe a

Muito além de definição enquanto um espaço físico delimitado, o espaço público pode

esfera pública, a vida pública me permite uma redução de escala, chegando ao individuo e

ser visto como um espaço que abriga um conjunto de manifestações socioculturais e de

sua ação dentro do espaço público. Seria o encantamento das coisas irrelevantes, mas que

formas de sociabilidade (ABRAHÃO, 2007, p.30) entre indivíduos.

são necessárias, o corpo-a-corpo do sujeito dentro do espaço urbano. O conjunto dessas

Aqui, seguindo um entrelaçamento das ideias, proponho entender como o espaço da

individuais interações, sensações e experiências constituem o que aqui é abordado como vida

materialidade de uma esfera pública, onde a vida pública se transforma em ação e onde os

pública. Segundo a pesquisadora Gabriela Tenório (2012);

processos micropolíticos ressoam e constrói sua materialidade, inerente a formação do desejo

Querer fazer parte da vida pública, em qualquer nível de interação com os demais, corresponde à nossa própria natureza, já que isso nos é fonte de estímulo. Comparativamente a vivenciar edifícios e elementos estáticos, vivenciar pessoas, que se movimentam, falam, criam, divulgam e implementam ideias, é uma experiência muito mais rica e atraente. Tanto mais rica e atraente quanto mais variada for, e não repetitiva e previsível, como costuma acontecer nos locais de lazer intramuros. (TENÓRIO, 2012, p.22)

no campo social. Segundo a pesquisadora Rosalyn Deutsche, “El espacio público, siguiendo la argumentación de Lefort, es el espacio social donde, dada la ausência de fundamentos, el significado y la unidad de lo social son negociados: al mismo tiempo que se constituyen se ponen em riesgo.” (DEUTSCHE, s/d, p.8). Ao mesmo tempo em que esse espaço se caracteriza

A autora estabelece a vida pública como uma necessidade humana: necessidade de

como o espaço de interação, é um espaço de negociação, conflitos e tensões, na medida em

interação social, de viver o meio social presente a sua volta, de saber quem é e o quê

que lida com tais singularidades.

acontece com determinados grupos de pessoas, normalmente os grupos mais próximos, de legitimar opiniões políticas ou não frente a uma coletividade organizada em sociedade.

FRAGMENTO II

Considero então o espaço público, espaço que acolhe e materializa a esfera pública como o Ao mesmo tempo em que podemos

Para o espaço e para a arte, ser público significará abraçar o conflito, a heterogeneidade e a incerteza que estão no âmago da vida social, da esfera pública (SANTOS, 2015, p. 4).

compreender a vida pública como as ações realizadas dentro do espaço público, lanço mais

“A arte urbana é uma prática social” (PALLAMIN, p.23, 2000) A partir dessa afirmação

um olhar sobre esse conceito: o olhar de que a vida pública se caracteriza também como as

da pesquisadora Vera Pallamin, inicio um primeiro entendimento sobre a arte desenvolvida

negociações de território, políticas ou não, como embates de contradições e opiniões

no espaço urbano necessário para a construção do trabalho. A compreensão aqui é da arte

inversas, lugar de vivência entre o que é definido socialmente como legítimo e o ilegítimo, o

como elemento de territorialização social, como forma de apropriação física e sentimental do

moral e o marginal.

espaço urbano, como forma de criação espacial. Trata-se de movimentos subjetivos traçados

espaço de desenvolvimento da vida pública.

por sujeitos que desenvolvem seus processos de criação e inscrição em terrenos O espaço público...

segmentados e segregados, que abraçam o conflito de um espaço múltiplo e heterogêneo por natureza. São criações micropolíticas de espaços de subjetivação, que através da identificação ou embate físico de um passante, desperta outros movimentos singulares que partem da identificação, crítica, ou da simples busca de sentido. Espaços já sacralizados e definidos por

4

A problemática micropolítica não se situa no nível da representação, mas no nível da produção de subjetividade. Ela se refere aos modos de expressão que passam não só pela linguagem, mas também por níveis semióticos heterogêneos. Então, não se trata de elaborar uma espécie de referente geral interestrutural, uma estrutura geral de significantes do inconsciente à qual se reduziriam todos os níveis estruturais específicos. Trata-se, sim, de fazer exatamente a operação inversa, que, apesar dos sistemas de equivalência e de tradutabilidade estruturais, vai incidir nos pontos de singularidade, em processos de singularização que são as próprias raízes produtoras da subjetividade em sua pluralidade. (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.28)

seu uso ganham outro significado através da ressignificação inscrita por uma ação artística. A produção da cidade por práticas artísticas aqui se dá como “Fenômeno macro e micropolítico na medida em que acontece como um trabalho de elaboração da experiência de embate pela construção do espaço público” (MUSSI, 2012, p.22-23). 4

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A prática artística se dá como uma tentativa de fazer emergir, como ao menos a “imagem de um devir”, outros projetos de sociedade, sendo a cidade o domínio no qual as múltiplas escalas em jogo na disputa por esse projeto se evidenciam, se encontram, se sobrepõem, se atualizam, se confrontam. (MUSSI, 2012, p.24-25)

representação” que aglutinam o espaço ligado às artes, utopia, filosofia, a criação de novas

Seria a produção de agenciamentos de enunciação, que refletem criações de

apropriação do espaço urbano.” (PALLAMIN, 2000, p.46). A partir disso, como afirma a

subjetividades inscritas no espaço urbano, ou que corporificam a heterogeneidade latente de

autora, podemos tomar a arte urbana, ou a intervenção artística no meio urbano, como uma

um espaço de todos e todas, que pertence a todos e todas. Isso se solidifica dentro do

forma de produção de espaço, como forma de legitimação ou não desses espaços, de

entendimento de que “a subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no

resistência e reflexão crítica sobre ele, de direito a própria cidade. Partindo dos níveis

individuo (...). A subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social.”

propostos por Lefebvre imagino que existem formas de se fazer cidade sendo as intervenções

(GUATARRI; ROLNIK, 1996, p.31) e de que tais processos trazem a produção de uma

temporárias, artísticas ou não, uma dessas formas.

possibilidades de produção e vivência desse espaço, sendo exatamente nessa última dimensão caracterizada a arte urbana, “como uma prática social relacionada a modos de

micropolítica processual, que constrói novas formas de subjetivação do sujeito, ou movimentos de singularização.

FRAGMENTO III

Territorialização/Desterritorialização: relacionados à identificação e criação de relação, “Eu confronto a cidade com meu corpo (...) eu me experimento na cidade; a cidade existe por meio da minha experiência corporal. A cidade e meu corpo se complementam e se definem. Eu moro na cidade, e a cidade mora em mim.” (PALLASMAA, p. 37-38).

os territórios são construídos através das relações entre sujeitos, do desenvolvimento de laços através dos afetos, “da invisível criação de afetos a visível e consciente composição de territórios” (ROLNIK, 2014, p.50). Quando esses laços são quebrados,

Definição de cidade segundo o dicionário Aurélio:

os afetos não concluem o seu ciclo espiral de matéria invisível, esses territórios são abandonados, cabendo ao sujeito à criação de outros territórios, outros laços a partir

1 Povoação que corresponde a uma categoria administrativa (em Portugal, superior a vila), geralmente caracterizada por um número elevado de habitantes, por elevada densidade populacional e por determinadas infraestruturas, cuja maioria da população trabalha na indústria ou nos serviços. 2 Conjunto dos habitantes dessa povoação. 3 Parte dessa povoação, com alguma característica específica ou com um conjunto de edifícios e equipamentos destinados a determinada atividade. 4 Vida urbana, por oposição à vida no campo. 5 Território independente cujo governo era exercido por cidadãos livres, na Antiguidade grega. 6 Sede de município brasileiro, independentemente do número de habitantes. 7 Vasto formigueiro de saúvas dividido em compartimentos a que chamam panelas. 8 Parte dessa povoação, com alguma característica específica ou com um conjunto de edifícios e equipamentos destinados a determinada atividade.

dos novos agentes de afetação. Segundo a pesquisadora Suely Rolnik (2014), movimentos de territorialização correspondem a “intensidades se definindo através de certas matérias de expressão” ou “nascimento de mundos”, enquanto os movimentos de desterritorialização são “territórios perdendo a força de encantamento; mundos que se acabam, partículas de afetos expatriadas, sem forma e sem rumo” (ROLNIK, 2014, p. 36-37). Apropriação física e sentimental: Quando os territórios se estabelecem, se considerarmos que eles tratam da composição dos mesmos, Criação espacial: ...

O entendimento do que é cidade perpassa inicialmente a relação intima com processos: de desenvolvimento dessas cidades, de ordenação, de planejamento. A priori,

Segundo Pallamin (2000), a definição de arte urbana corrente vem da consideração de

antes mesmo dos processos, podemos nos remeter a dualidade: a cidade seria aquilo inverso

Lefebvre sobre produção do espaço urbano, através da divisão de dimensões e níveis desse

ao campo. É assim que Raquel Rolnik (1995) inicia seu pensamento sobre o que é cidade, para

espaço: “práticas espaciais”, ou a relação de produção social no espaço; “representações do

lançar a primeira ideia: a cidade é antes de tudo um imã, um processo de sedentarizarão,

espaço”, no que diz respeito à representação técnica elaborada por arquitetos, urbanistas,

local de reunião materializada através do tijolo cozido dos zigurates que, ao mesmo tempo

planejadores urbanos, que permitem tratar e compreender práticas espaciais; e “espaços de

em que construíam um habitat, induzia a uma organização política dentro da construção dos 6

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mesmos (ROLNIK, 1995, p.15). Em BENÉVOLO (1997) a cidade surge ao mesmo tempo em que

linear e homogêneo, pelo contrário, se caracteriza por várias espirais em encontro infinito,

uma estratificação social binária surgida da divisão entre indústria e serviços, onde a

pela heterogeneidade de subjetivações de massa e por singularidades disruptoras.

“sociedade se torna capaz de evoluir e de projetar sua evolução” (BENÉVOLO, 1997, p.23). Podemos entender inicialmente a cidade como polo da força de trabalho, como centro das

Das ações: Experimentos Gramíneos, Florianópolis, 20 de agosto de 2016.

relações econômicas, políticas e sociais de uma civilização, como concentração de atividades

Centro de Florianópolis, mais precisamente Rua Felipe Schmidt. Dentro da

e organização de tais.

programação do festival Palco Giratório 2016, ocorre a intervenção urbana intitulada

Dentro do estudo sobre a formação das cidades destaco a recorrência dos seguintes

“Experimentos Gramíneos” da artista Macyra Leão de Alagoas. Vestida com uma roupa de

temas: uma necessidade de organização econômica, da relação entre espaço construído e

verde, que remete a grama, a performer anda pela rua com um regador, interagindo com os

natureza e da estruturação social. Tais aspectos perpassam a construção das cidades, desde a

passantes. Sem falar, apenas existindo, a performer passa entre olhares curiosos, rega, é

pólis grega a cidades contemporâneas, como aspectos geradores, ou aspectos que estão na

fotografada, intriga. Em um rápido diálogo com um senhor, descubro a impaciência por parte

gênese da construção de um espaço coletivo.

do público da falta de resposta sobre o sentido da ação, como solicitado por muitos.

Dentro dessas necessidades geradoras sugiro a análise aqui proposta divida em três

Em seu percurso, outra apreensão do espaço: a rua que é de uso predominantemente

platôs : O lugar de morar, lugar de gerar, lugar de ser e dividir. Sendo esses lugares descritos

comercial se transforma em um espaço de debate. O que quer dizer? O que é? É homem ou

da seguinte forma:

mulher? Porque ela não fala? O assunto não era mais a promoção ou o preço abusivo de

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O primeiro platô: O lugar de morar como o espaço da casa e de todas as instituições e

mercadorias, mas a presença daquele ‘corpo estranho’, que certamente queria dizer algo. O

pressupõe uma organização individual e de núcleos. Envolvo aqui ainda a dimensão material

contraste com o concreto trazia o questionamento mais óbvio. Logo, uma criança falou: “é

do fazer cidade, aquilo que se refere ao que é construído.

uma árvore mamãe, tem que regar se não ela morre!” E assim seguia a performer se regando

O segundo platô: O lugar de gerar como o espaço que movimenta a economia, em que

ao longo do percurso. São dois platôs que se interceptam e criam um espaço de debate sobre

se é possível continuar a construção da cidade enquanto potência geradora. Aqui se

aquela presença e seu significado. A rua se torna um espaço de tribuna, onde se é discutido o

executam todas as relações sociais e econômicas que me remetem a uma esfera pública de

experimento e a sustentabilidade. Se foi discutido também o fato de não saber, de querer

atuação.

entender, de não desvendar. Se falou que poderia ser o prefeito disfarçado, pois ele não

O terceiro platô: O lugar de ser e dividir como o espaço da interação social, como

poderia mais sair a rua. Se falou sobre o efeito de drogas lícitas e ilícitas. Se falaram.

espaço da construção de relações e singularidades, como espaço de potencialidades humanas

Mas de que forma isso é fazer cidade?

e estéticas, o lugar onde se considera a inseparabilidade do espaço e do corpo vivido6.

As pistas são dadas, mas a resposta final não. Não é o momento, não é a hora.

Todos esses platôs interagem dentro da construção maior do que é cidade. Todos eles, em suas peculiaridades, produzem espaços condizentes com seus universos de conceitos e criações, produzem cidade em instâncias que se misturam e complementam. Isso, pelo entendimento de que cidade é algo complexo e múltiplo, não se caracteriza pela linha, pelo

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É como um conjunto de anéis quebrados. Eles podem penetrar uns nos outros. Cada anel, de cada platô, deveria ter seu clima próprio, seu próprio tom ou seu timbre. (DELEUZE, 2013, p.37) Cada anel ou platô deve, pois traçar um mapa de circunstancias... (DELEUZE, 2013, p.38) 6 GUATARI, 2012, p. 135. 8

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Figura 2 - "Experimentos Gramíneos" Palco Giratório 2016, Florianópolis. Fonte: Acervo Pessoal.

Figura 1 - "Experimentos Gramíneos" Palco Giratório 2016, Florianópolis. Fonte: Acervo Pessoal.

Eu: 'o que o senhor acha que é?' Ele: 'Ah, não tem como saber, ela não fala! Eu nos meus 60 anos de vida acredito que seja algo sobre ecologia, sustentabilidade... Mas ela não fala!' Figura 3 - "Experimentos Gramíneos" Palco Giratório 2016, Florianópolis. Fonte: Acervo Pessoal.

Figura 4 - "Experimentos Gramíneos" Palco Giratório 2016, Florianópolis. Fonte: Acervo Pessoal.


Bibliografia ÁBALOS, Iñaki. A boa-vida: visita guiada às casas da modernidade. Barcelona: Gustavo Gilli, 2003. ABRAHÃO, Sergio Luís. Espaço Público: do urbano ao político. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2008. ___________________. O Espaço Público Urbano Como Espaço Público Político. IXX Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, 2006. COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. ALBENAZ, Paula. Reflexões sobre o espaço público atual. In: LIMA, Evelyn Furquim Werneck (org.), MALEQUE, Miria Roseira (org.). Espaço e Cidade: conceitos e leituras. Rio de Janeira: 7Letras, 2007. ARENDT, Hanna. A Condição Humana. Tradução: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. BENÉVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, Vol.3. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1996. DEUTSCHE, Rosalyn. Evictions. Art and Spatial Politics, Cambridge, MIT Press, 1998. ________________. Agorofobia. Quaderns Portàlis, Barcelona, s/d. GEHL, Jan. Cidade Para as Pessoas. Tradução: Anita Di Marco. São Paulo: Perspectiva, 2013. GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografia do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. GUATTARI, Félix. Caosmose. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 2012. GUATTARI, Félix. Revoluções Moleculares: Pulsações Políticas do Desejo. Tradução: Suely Rolnik. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. MUSSI, Joana Zatz. O espaço como obra: ações, coletivos artísticos e cidade. 327 f. 2012. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. PALLAMIN, Vera M. Arte Urbana: São Paulo: Região Central (1945-1998): Obras de Caráter Temporário e Permanente. São Paulo: Annablume, 2000. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo. Porto Alegre; Sulina; Editora da UFRGS, 2014. ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. SANTOS, Patrícia Azevedo. Fora de água: considerações sobre a prática e a recepção da arte no espaço público urbano, 2015. Fonte: https://patriciaazevedosantos.wordpress.com/textostexts/6372/ TENÓRIO, Gabriela de Souza. Ao Desocupado em Cima da Ponte: Brasília, Arquitetura e Vida Pública. 391 f. 2012. Tese (Doutorado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Brasília, 2012.

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MEMÓRIAS E PERCEPÇÕES: DIFERENTES IDENTIDADES DE MESMO NOME Carolina A. R. Schmitt


Esse texto tem por objetivo descrever algumas dessas experiências passadas vividas ainda na primeira fase do curso de Arquitetura e Urbanismo em dois espaços de mesmo nome e função, porém com características distintas. Duas experiências que serão narradas com a ingenuidade e carinho do estudante de arquitetura que entra em contato com obras arquitetônicas imponentes (ou não) pela primeira vez.

MEMÓRIAS E PERCEPÇÕES: DIFERENTES IDENTIDADES DE MESMO NOME

Carolina A. R. Schmitt | Agosto 2016 Texto (em construção) final. Disciplina: Cartografia do Espaço Habitado: Fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade. Prof. Dr: Rodrigo Gonçalves. Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PósArq) |UFSC

A experiência transforma. Saber ver, entender e participar de uma obra arquitetônica produz sensações não imaginadas pelo arquiteto que diferem para cada usuário. A intensidade é necessária. Citando Merleau Ponty, “O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras, ele é portanto, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. ” (1994, p.18). Essas experiências, vivenciadas

diariamente, constroem um mundo único ligando sensações a objetos. As que atingem um grau de subjetividade maior, ativam nosso corpo sensível, nosso corpo vibrátil ganhando intensidade necessária para permanecer em nosso corpo memória. Agindo nesse corpo memória está o referencial teórico analítico que desenvolvemos todos os dias e constantemente interfere e muda nossas opiniões e perspectivas sobre objetos construídos.

“A arquitetura tem o poder de inspirar e transformar nossa existência do dia a dia. (HOLL, 2011)” -tradução da autora-

A HOSPITALIDADE “(...) somente a arquitetura pode despertar simultaneamente todos os

A percepção de um arquiteto sobre um espaço urbano é com certeza distinta de um outro profissional, assim como a de um estudante que inicia no curso de Arquitetura e Urbanismo difere com a de outro que esteja terminando o mesmo.

Buscando seguir Merleau Ponty e desdobrar o mundo em uma transparência absoluta, animada por uma série de apercepções, deseja-se tomar distância, se abster, para descrever e compreender o fenômeno que estas duas obras arquitetônicas proporcionam. É necessário colocar em suspenso as afirmações de atitude natural para encontrar a essência na experiência, pois “(...) o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo (...) (PONTY, 1945 p. 14).

sentidos, todas as complexidades

da

percep-

ção.” (HOLL, 2011) -tradução da autora-

Para tentar descrever o encontro com os dois edifícios e espaços conformados será usado aqui o conceito de Hospitalidade de Fernando Fuão. Para Fernando Fuão, “todo ato de hospitalidade pressupõe um encontro” (FUÃO, 2014 p.47): A hospitalidade, desde Jaques Derrida, apresenta-se como um potente elemento para compreen-

dermos a cidade e a arquitetura, não só para percebermos os lugares hospitaleiros e inóspitos, mas sobretudo para nos abrirmos para outro entendimento da arquitetura, em que as formas do acolhimento se traduzem em termos de abertura/ fechamento, separação/ união, recortar/ colar, público/ privado, familiaridade/ não familiaridade. Enfim, o acolhimento se coloca com um desvelamento, um (de)voile, que nos permite ver a hospitalidade na arquitetura, na cidade, numa porta, num banco de praça, ou até mesmo nos materiais que empregamos numa obra. Há um sentido de acolhimento em todas as coisas no mundo. (FUÃO, 2014, p.43) Fuão compara esse processo de econtro e sucessão de acontecimentos ao processo de recorte e colagem de figuras para formação de uma nova figura e divide esse processo em três etapas: 1. O corte-recorte que produz os fragmentos-figuras liberados pela passagem da tesoura (a abertura ao outro). 2. O econtro dessas figuras, o acolhimento. 3. A cola, sua aplicação como cola, união, ligação. (FUÃO, 2014, p. 48) Para o autor a cidade pode ser representada por meio desse processo de colagem, sendo possível identificar a abertura ao outro, o acolhimento e por fim a ligação. E a hospitalidade, na cidade e em suas obras arquitetônicas, seria “dar lu-

Imagem 01: Cartaz de exposição de arte, colagem e intervenções realizada na Avenida Paulista.


gar ao lugar, abrir o lugar, dar passagem , dar passo ao outro, acolher a diferença.’’ (FUÃO, 2014 p.52) Quantas vezes não iniciamos verdadeiras histórias de amor por esses espaços públicos e obras arquitetônicas em que nos sentimos acolhidos? Mesmo no meio da multidão, ou no hiato de alguns edifícios, no banco que nos acolheu ou no edifício que nos emocionou, na árvore que nos deu sombra ou no único espaço na rua com sol em um dia de inverno de céu azul.

IDENTIDADE 01 1. A ABERTURA AO OUTRO O silêncio que perdura por alguns minutos é justificado pela admiração e tentativa de apreensão de todos os detalhes ainda do outro lado da rua. Para Steven Holl (2011) além da qualidade física dos objetos arquitetônicos e dos detalhes práticos para qual ele se destina, a experiência vivida não é simplesmente um emaranhado de acontecimentos, usos e funções que os objetos se destinam e sim algo mais intangível que surge a partir do desenvolvimento contínuo dos espaços, materiais e detalhes sobrepostos. Essa sucessão de espaços novos que os olhos conseguem percorrer agregam os objetos individuais em um todo coletivo que parece apenas existir pela união de suas partes e cenários. A relação entre eles conforma a paisagem que segundo Jean-Marc Besse (2014) “não existe em si, mas na relação com um

sujeito individual ou coletivo que a faz existir como uma dimensão da apropriação cultural do mundo.’’ A paisagem desconhecida se torna familiar.

O céu estava aberto, com poucas nuvens, era meio da tarde e fazia calor. Holl (2011) afirma que o espírito preceptivo e a força metafísica da arquitetura se guiam pela qualidade de luz e sombra conformada pelos cheios e vazios, pelo grau de opacidade, transparência e translucidez. A sombra do vazio do vão do edifício, era o que guiava os alunos naquela tarde de calor.

De acordo com Jean-Marc Besse (2014) a paisagem é relativa de acordo com o ponto de vista de quem a tenta definir. Ela seria um “tipo de grade (retícula) mental, um véu mental que o ser humano coloca entre ele mesmo e o mundo, produzindo, com essa operação, a paisagem propriamente dita.” Ainda do outro lado da rua, a paisagem vivida ali naquele momento era formada pela grande avenida movimentada e barulhenta - barreira a ser ultrapassada - pessoas apressadas, pessoas distraídas, carros e motos em competição de espaço e tempo, árvores isoladas contrastando com uma massa de vegetação mais fechada do outro lado, o restante da turma de alunos ainda parados esperando o semáforo fechar para atravessar e chegar ao edifício. As faixas de pedestres são as maiores já vistas, proporcionais ao tamanho da cidade de São Paulo, a dimensão do espaço é feita para o carro com caixa de via larga e grandes edifícios. Mesmo fazendo parte de um grande grupo de alunos, com aproximadamente 40 pessoas, naquela avenida éramos apenas mais um grupo de pessoas que logo já começava a fazer parte da paisagem em constante transformação. O semáforo fecha na Avenida Paulista.

Imagem 02. Semáforo Avenida Paulista.

A luz do sol batendo nos diferentes materiais escolhidos pela arquiteta do edifício criava novas perspectivas e dava autenticidade ao material. O vidro da fachada refletia um pouco do céu e das nuvens, o concreto aparente mostrava a solidez e leveza do edifício ao dar forma a um enorme vão sem pilares no meio. A água dos espelhos d’água próximas aos únicos 4 pilares existentes refletiam e perpetuavam a beleza das próprias estruturas e texturas. O vermelho foi a cor escolhida para pintar os enormes pilares de concreto e mais uma vez a luz tem papel importante nessa paisagem pois de acordo com a intensidade de luz modifica-se a percepção dos pilares que naquele dia, por ter bastante luz, eram um vermelho bem aberto, forte e vivo. A cor tem força e causa impacto quando deseja. Junto com a aproximação do prédio começa também a sensação de estar entrando dentro de um espaço infinito, um respiro em meio a imensidão de prédios e carros que contornam a Avenida Paulista.

Embaixo do vão é possível ouvir o barulho da vida urbana que não se interrompe em São Paulo e que torna o vão do edifício um convite à reflexão. O tempo ganhou outra dimensão. Para Holl (2011), a experiência física e perceptiva da arquitetura converge para uma concentração de energia, onde o tempo vivido, experimentado fisicamente é medido através da memória, dilatando (e confundindo) o tempo linear corrido do relógio. “É possível coexistirem diversos diversos tempos num mesmo tempo” (FUÃO, 2014) Aliado à sensação de proteção inicia o conflito de grandiosidade diante do imenso vão que torna qualquer um pequeno; apenas estando no meio do vão vazio é possível perceber o desejo da arquiteta do edifício de tornar aquele o espaço público no qual o homem tem a totalidade do espaço em sua volta. O vão era a transição entre cidade

Imagem 03: Perspectiva Avenida Paulista.


e a obra arquitetônica, a abertura ao outro.

2. O ACOLHIMENTO Embaixo do vão principal do edifício, somos surpreendidos (recepcionados) por uma feira de antiguidades distribuídas em várias pequenas barracas. Telefones antigos, instrumentos musicais, discos de vinil, porta-retratos, pinturas, fotos antigas, roupas, brinquedos antigos, esculturas. Fragmentos de histórias de outros tempos. O território ali era livre e convidativo, qualquer pessoa poderia entrar, passar, permanecer, a escolha era dela, a cidade era dela. Este acolhimento é proporcionado a todos, à turma de alunos, aos vendedores ambulantes, aos feirantes, aos moradores de rua, aos turistas em geral, aos curiosos paulistanos. Acolhimento que nos põe em contato com a alteridade. Onde começa a alteridade? Os artistas Maurício Dias e Walter Riedweg, em 2002, intitularam uma de suas exposições com essa afirmação: “O outro começa onde nossos sentidos se encontram com o mundo.” O encontro com o outro (desejável ou não) faz parte do espaço público, do pertencimento ao local. Por vezes envolto por sensações agradáveis ou não, nos tornamos diferentes após esse encontro (visual ou físico). Eu tenho direito a escolher o nível

de aproximação que desejo ter com o outro, contudo o espaço público deve proporcionar essa oportunidade de contato, impor a presença do outro, de outras existências. Segundo Rolnik (2003), esse convívio provoca reações de toda espécie e tornam explícitas as tensões implícitas.

No terraço que se estende ao vão há a visão da cidade que totalmente adensada ali respeita a monumentalidade do edifício. O papel de luz e sombra cria diferentes cenários; a entrada de luz por todos os lados, permitido pelo térreo livre, faz com que o imenso vão não assuste tanto assim.

É fundamental incitar questionamentos e reflexões, pois somos parte do todo, concordando ou não com suas escolhas e atitudes.

A delimitação de fronteira entre cidade e edifício acontece por meio de um enorme e contínuo banco formado pelo parapeito do edifício. O banco é também importante elemento de acolhimento, que nos convida a permanecer e observar o edifício.

Essa imposição por meio do convívio afeta nosso corpo vibrátil, desejando ou não, evitando a dissociação com nosso corpo sensível. Permitindo assim, nos colocar no controle de nossos pensamentos e escolhas evitando que os conflitos e diferenças, existentes na cidade, se tornem mais uma paisagem do meio urbano. (ROLNIK, 2003) É necessário tornar visível a diferença.

Abaixo: Imagem 04: Feira de Antiguidades na Avenida Paulista.

entrar em sintonia com a subjetividade que a arquiteta do edifício pensou para o local e seu percurso. Sala após sala, um breve momento para respeitar os artistas que ali expunham e percorrer também suas obras. O museu recebe todos os dias muitos visitantes que se distribuem entre turistas e moradores de São Paulo e por isso os corredores estão sempre cheios, ávidos de curiosos leigos e não leigos. Ao longo das salas, em algumas oportunidades é possível ver Avenida Paulista através da fachada de vidro do edi-

Abaixo: Imagem 05: Perspectiva de dentro do edifício para o terraço.

Pessoas dormindo, conversando, pessoas sozinhas e acompanhadas, crianças que se arriscam a percorrer todo o trecho do banco/peitoril tornando-se gigantes pela primeira vez diante daquela cidade abaixo de seus pés, adolescentes animados em suas rodas de conversas privativas, pessoas batendo foto. Uma imensidão de diferentes dentro do mesmo espaço.

3. A UNIÃO, LIGAÇÃO O acesso ao interior do edifício acontece por meio de elevador envolto em uma caixa de vidro, impedindo que o objeto se torne uma barreira visual. Das exposições que estavam no momento no museu, poucas são as lembranças, a atenção estava voltada para apreender todos aqueles espaços, paredes, caminhos, ansiedade para encontrar brechas e descobrir mais que o visitante comum,

Abaixo: Imagem 06: Perspectiva de dentro do edifício para a rua


fício, mantendo a cidade sempre em contato, parte da exposição. Conforme o percurso da exposição mais tradicional termina, o visitante é levado a um novo vão de caráter monumental, porém desta vez dentro do próprio edifício. Mais uma vez cada detalhe parece que foi pensado para seduzir o visitante. Luz, sombra, cores e texturas. A escada entre os patamares foi pintada também de vermelho no ambiente que predomina a cor branca. Neste vão, no momento da visita não havia nenhuma exposição ou intervenção acontecendo.

INTENCIONALIDADES O arquiteto e urbanista tem na mão o poder de criar a subjetividade. Para Steven Holl (2011) “ainda que as sensações e impressões nos envolvam silenciosamente nos fenômenos físicos da arquitetura, a força geradora está nas intenções que residem por trás delas” e intenções e subjetividade eram buscados pela arquiteta ao projetar e acompanhar a construção deste edifício. De acordo com Montaner, a arquiteta do museu escreveu: “devemos buscar uma teoria de espaço totalmente disponível para o homem, ou um espaço que participa da vida humana, sendo o homem, como é, o autor do espaço do mundo.” (MONTANER, 2011 p.42) Relembrando, para esse texto, a experiência da estudante de arquitetura que iniciava seus estudos e entrava neste novo mundo (apaixonante e conflituoso) da arquite-

IDENTIDADE 02 O museu da experiência 02 também foi visitado na primeira fase do curso de Arquitetura e Urbanismo com a mesma expectativa da visita ao MASP. Acompanhando a mesma turma de alunos, a viagem (de estudos) para Porto Alegre tinha por intenção apresentar aos alunos uma cidade, seus espaços e edifícios.

tura, a citação de Bachelard se encaixa nesse momento: (...) memória e imaginação não se deixam dissociar. Uma e outra trabalham para seu aprofundamento mútuo. Uma e outra constituem, na ordem dos valores, a comunhão da lembrança e da imagem.” (BACHELARD, 1957 p.200) Nossa memória é o teatro do passado, daquelas pessoas, daqueles momentos vividos sozinha ou junto com as demais pessoas da turma. “Em seus mil alvéolos o espaço retém o tempo comprimido. O espaço serve para isso.” (BACHELARD, 1957 p.202) e ficarão sempre guardadas (em meu corpo memória e corpo sensível) as emoções e sensações vividas nesse primeiro encontro com o museu. Mesmo quando não existir mais nenhum som, mesmo quando o concreto e o vidro se dissolverem, ficará para sempre o fato de ter vivido e se apaixonado pelo MASP. (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand)

Imagem 07: Perspectiva de dentro do edifício para a rua

Diferentemente do primeiro museu, que acessamos a pé, este já precisávamos chegar de ônibus pois o mesmo ficava em local mais afastado do centro percorrido a pé. A escala é alterada, a perspectiva do encontro muda. O contato já não é tão harmonioso e facilitado pois o espaço ao redor do museu é pouco convidativo, conta com poucas árvores e em dias de verão (como aquele em questão) não induzia a ficar no exterior do museu. Seu sítio de implantação, por outro lado, conta com uma ampla e bela vista de um importante rio da cidade. Contudo o contato é apenas visual, pois o acesso ao rio é através de avenidas de carro e não existe atração do outro lado que convide as pessoas a atravessarem. O dia de céu azul contrasta com o museu de concreto branco. As formas e curvas do edifício revelam o trajeto a ser percorrido. O museu está vazio. Apenas a turma de Arquitetura, que já estava sendo aguardada para uma visita guiada, estava lá.

Um grande vão recepciona os visitantes e rampas convidam para iniciar o percurso. Somos informados que o museu é todo branco para servir de pano de fundo a todas as obras ali expostas.

Imagem 08: Perspectiva da calçada do museu para o rio na frente.

Somos apresentados à exposição permanente do museu. Traços fortes, emoções fortes. Alguns riscos mais violentos contrapondo a outros suaves. Um grande artista que foi homenageado recebendo o nome do museu. Em seguida somos liberados da visita guiada para percorrermos/ descobrirmos sozinhos o museu. A visita, agora sem o guia, é mais livre, mais sensível. O percurso todo, feito através das rampas, é em torno do vão central que faz com que possamos ter a visão de uma totalidade do edifício. Esta configuração permite o compartilhamento das experiências – interligando a minha experiência com a experiência de outras pessoas e a de ou-

Imagem 09: Pintura da exposição permanente do museu.


LEGENDA:

tras pessoas na minha experiência. (PONTY, 1994) Alternando lugares abertos com fechados, o arquiteto do museu dá ritmo ao percurso, “a arquitetura da música’’ (HOLL, 2011). O museu é todo fechado para o rio em sua frente, porém em todas as rampas existem pequenas e grandes janelas com vistas escolhidas para o rio. Pequenas entradas de luz que nos atraem para olhar, conhecer e admirar o rio. Apesar de não ter a sensação de acolhimento em todos os espaços do edifício, este foi o encontro com o museu Iberê Camargo.

Trechos do texto em cinza: citações diretas do autor referenciado com mais de 3 linhas. Trechos em negrito: Destaques de frases importantes para a autora.

Imagem 10: Corredores do museu.

Trechos em negrito com itálico: Destaque para o momento em que está a experiência do encontro com o edifício.

LISTA DE SIGLAS: MASP: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand

REFLEXÕES

LISTA DE FIGURAS:

“A aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da racionalidade. A racionalidade é exatamente proporcional às experiências nas quais ela se revela. Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece. Mas ele não deve ser posto à parte, transformado em Espírito absoluto ou em mundo no sentido realista.” (PONTY, 1994. p.18)

Imagem 01 : Cartaz da exposição DE DENTRO E DE FORA - Arte Urbana Contemporânea, nos subsolos do MASP e no Vão Livre. Dezembro de 2011. Disponível em: http:// masp.art.br/masp2010/exposicoes_integra.php?id=107 Acesso em agosto de 2016

Apreender o mundo com a visão fenomenológica incita o corpo a participar do espaço. O corpo registra as sensações agradáveis ou as ofensivas e permite que olhemos o mundo através de suas subjetividades e intersubjetividades.

Imagem 11: Janelas do museu - abertura para o rio.

Imagem 02: Semáforo na Avenida Paulista. Fonte: Foto de Vovchenco disponível em: https://www.flickr. com/photos/vovchenco Fevereiro de 2014. Acesso em agosto de 2016 Imagem 03: Vão do MASP. Fonte: Foto de Ana Dujardin - disponível em: https://www.flickr.com/photos/anadujardin/. Data: Outubro de 2010. Acesso em agosto de 2016 Imagem 12: Contraponto do céu azul com o concreto branco do museu.

Imagem 04: Feira de antiguidades do MASP. Fonte: Foto de Herbert Albuquerque. Disponível em: ht-

tps://www.flickr.com/photos/betinho_had/ Data: março de 2013. Acesso em agosto de 2016 Imagem 05: Perspectiva de dentro do MASP olhando para a rua. Fonte: Foto de fbuonafina. Data: fevereiro de 2016. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/fe -yard/28859314971/in/pool-maspmuseu/. Data: fevereiro de 2016. Acesso em agosto de 2016 Imagem 06: Perspectiva de dentro do MASP olhando para o terraço. Fonte: Foto de fbuonafina. Data: agosto de 2016 Disponível em: https://www.flickr.com/photos/fe-yard/24736964010/in/pool-maspmuseu/ Acesso em agosto de 2016. Imagem 07: Perspectiva do vão interno do MASP. Fonte: Foto de Lihhilg. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ lihhilg/26795026534/in/pool-maspmuseu/ Data: Maio de 2016. Acesso em agosto de 2016 Imagem 08: Perspectiva da calçada do museu Iberê Camargo para o Rio Guaíba. Fonte: Foto de Johnoaser. Data: junho de 2008. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/johnoaser/ Acesso em agosto de 2016 Imagem 09: Pintura de Iberê Camargo. Fonte: Foto de Mona WN. Disponível em: https://www.flickr. com/photos/monaart/ Acesso em agosto de 2016 Imagem 10: Janelas do museu Ibe-


rê Camargo para o rio Guaíba. Fonte: Foto de ida&volta Disponível em: https://www.flickr.com/photos/idavolta/. Data Junho de 2008. Acesso em agosto de 2016. Imagem 11: Corredores do Iberê Camargo. Fonte: Foto de Maíra Schaeffer. Disponível em: https:// www.flickr.com/photos/maihra/. Data: Maio de 2008. Acesso em agosto de 2016. Imagem 12: Contraste do céu azul com o concreto branco do museu Iberê Camargo. Foto de Pedro Milanez. Disponível em: https://www. flickr.com/photos/pedromilanez/ Data: julho de 2008. Acesso em agosto de 2016. Imagem 13: Perspectiva pilares do MASP. Fonte: Foto de Marcos Nozella. Disponível em: https://www. flickr.com/photos/bradnozella/. Data: Fevereiro de 2012. Acesso em agosto de 2016.

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. FUÃO, Fernando Freitas; SOLIS, Dirce Eleonora (orgs.). Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. HOLL, Steven. Cuestiones de percepción: fenomenologia de la ar-

quitectura. Barcelona: GGili, 2011. MERLEAU-PONTY, Maurice. Prefácio. In: MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 1-20. MONTANER, Josep Maria. La experiência Del Lugar: Ernesto Nathan Rogers, Enrico Tedeschi, José Antonio Coderch y Lina Bo Bardi. Cadernos de Projetos Arquitetônicos, n 2. 2011. Disponível em: http:// polired.upm.es/index.php/proyectos_arquitectonicos/article/viewFile/1412/pdf_1a ROLNIK, Suely. Alteridade a céu aberto: O laboratório poético-político de Maurício Dias & Walter Riedweg. In: Posiblemente hablemos de lo mismo, catálogo da exposição da obra de Mauricio Dias e Walter Riedweg. Barcelona: MacBa, Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2003. Imagem 13: Reflexo do espelho d`áagua em frente aos pilares do MASP.


CORPO, ESPAÇO E FERROVIA Tiago Nazario de Wergenes


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC

Por outro lado, o homem também interfere no espaço, edifica e o transforma à

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO -

sua vontade, produzindo novos e diversos espaços que, desse modo, o afetarão

PósARQ

também. Sendo assim, o que acontece quando um elemento novo, como o trem, é inserido no espaço? Quais as principais implicações que ele traz para a experiência

DISCIPLINA: Cartografia do espaço habitado: fenomenologia, arquitetura, corpo e

do homem no espaço? Quais são os impactos desse novo elemento no espaço e de

cidade.

que maneira isso afeta o homem?

PROFESSOR: Rodrigo Gonçalves dos Santos ALUNO: Tiago Nazario de Wergenes

O corpo em movimento Em uma primeira reflexão, é possível perceber que uma das principais

CORPO, ESPAÇO E FERROVIA

novidades trazidas pela invenção da locomotiva a vapor foi a velocidade, afinal, até sua criação a humanidade, de maneira geral, jamais havia experimentado um movimento tão rápido quanto o que essa máquina introduziu. Enquanto um cavalo,

Corpo e espaço são intrínsecos à descrição fenomenológica, como afirma Guattari (1992, p. 153), ao falar sobre o espaço e corporeidade: “A abordagem

galopando, chega a 40/48km por hora, em 1830, velocidades perto dos 100km por hora já eram praticadas em ferrovias (HOBSBAWN, 1982).

fenomenológica do espaço e do corpo vivido mostra-nos seu caráter de

Essa máquina significou a possibilidade de uma nova experiência para o ser

inseparabilidade.” Heidegger (2002) também trata da relação entre o homem e o

humano. Viajar em um trem, por mais que hoje nos pareça algo banal, para aqueles

espaço:

que tiveram, pela primeira vez, a experiência de andar em uma locomotiva, naquele tempo, vendo a paisagem passando depressa do lado de fora, sentindo o vento Quando se fala do homem e do espaço, entende-se que o homem está de um lado e o espaço de outro. O espaço, porém, não é algo que se opõe ao homem. O espaço nem é um objeto exterior e nem uma vivência interior. Não existem homens e, além deles, espaço.

bater no rosto, ou mesmo observar distante uma composição passando pelos trilhos

Ou seja, Heidegger reitera a fala de Guattari, destacando o caráter de

viagem inaugural da linha ferroviária Liverpool-Manchester, uma das primeiras do

inseparabilidade entre o homem e o espaço, o homem existe à medida que vive e

mundo. Na multidão estava o reverendo Edward Stanley que, assim como o restante

habita o espaço, o homem é um “ser-no-mundo”, como ele afirma em outra obra sua

do público, estava perplexo com a nova invenção (HARDMANN, 1988). Stanley

(HEIDEGGER, 2005).

(1830 apud HARDMANN, 1988) descreve sua experiência com a locomotiva e,

Por sua vez, o espaço afeta o homem o tempo todo de várias formas, Merleau-Ponty (1994, p. 23) entende por sensação "a maneira pela qual sou afetado

certamente foi algo singular. No dia 15 de setembro de 1830, uma massa de 400 mil pessoas assistia à

através do seu relato, pode-se ter noção da apreensão do público da época perante à mesma:

e a experiência de um estado de mim mesmo. [...] Eu sentirei na exata medida em que coincido com o sentido, em que ele deixa de estar situado no mundo objetivo e em que não me significa nada." No espaço há sons, cheiros, sabores, etc., elementos do mundo objetivo, que o homem apreende através dos sentidos, e quando essas sensações atravessam o corpo elas passam a ter algum significado.

Não há palavras que possam dar uma ideia adequada da grandiosidade (não posso usar palavra menor) de nosso progresso. A princípio era relativamente lento; mas logo sentimos que verdadeiramente estávamos em marcha, e então todos aqueles para quem o veículo era novo devem haverse dado conta de que a aplicação da força locomotora estava estabelecendo uma nova era no estado da sociedade, cujos resultados definitivos é impossível colocar-se. [...]


As amplas linhas ininterruptas de espectadores pareciam deslizar-se na distância, como figuras pintadas arrastadas velozmente através dos tubos de uma lanterna mágica.

[...] as janelas do trem são comparáveis a uma sucessão de clichês, a uma película cinematográfica para a qual se deve descobrir a velocidade de projeção. Então, todas as imagens se sucedem sobre uma superfície contínua e as figuras desencadeadas se superpõem sem muito choque, constituindo uma entidade muito especial, um evento que Deleuze chama de imagem-movimento...

Tomando as palavras de Hardman (1988), Stanley "ressalta o poder transfigurador da locomotiva, os efeitos da velocidade sobre a percepção espaço temporal, o deslocamento rápido propiciado pela força do mecanismo, alterando a visão da paisagem e dos passantes." Em seguida, ele continua seu relato, dessa vez, do lado de fora, ao lado dos trilhos, vendo a locomotiva passando:

Há algo característico, quando nos movimentamos, na maneira como percebemos o espaço. Ao contrário do observador parado, estático em um ponto, que tem uma única vista da paisagem, alguém que se movimenta terá uma série de vistas diferentes, que variam conforme o ângulo e a velocidade do movimento, como

No rápido movimento destas máquinas, há uma ilusão de ótica que vale a pena mencionar. Um espectador que observa como se aproximam, quando vão à máxima velocidade, mal consegue despojar-se da ideia de que, mais do que movendo-se, estão crescendo e aumentando de tamanho. Não sei como explicar melhor o que quero dizer, senão referindo-me ao agigantamento dos objetos em uma fantasmagoria. A princípio apenas se pode discernir a imagem, porém, à medida que avança desde o ponto focal, parece crescer mais além de todo o limite. Desta maneira uma locomotiva, à medida que se acerca, parece aumentar de tamanho rapidamente, como se quisesse preencher por completo todo o espaço compreendido entre as valetas e absorvê-lo todo em seu torvelinho (STANLEY, 1830 apud HARDMANN, 1988).

indica Holl (2011, p. 17) nesse trecho: Nuestra percepción se desarrolla a partir de una serie de perspectivas urbanas superpuestas que se despliegan según el ángulo y la velocidad del movimiento. Aunque podríamos analizar nuestro movimiento a lo largo de un trayecto determinado a una velocidad determinada, nunca llegaríamos a enumerar todas las vistas posibles.

Tempo e velocidade

Um filme do fim do século XIX, ilustra bem o relato de Stanley, Arrivée d'un

Nas falas anteriores de Martin (2000) e Holl (2011), nota-se a influência da

train en gare à La Ciotat, de 1895, produzido pelos irmãos Lumière, é um dos

velocidade na percepção do espaço quando estamos em movimento. A locomotiva

primeiros filmes produzidos na história. O filme retrata um trem chegando à estação,

marca o início da era dos transportes motorizados. Precursor do motor a explosão, o

em um ângulo que demonstra esse “agigantamento” descrito por Stanley.

motor a vapor presente nas primeiras locomotivas foi um grande avanço, porém, não

Inicialmente se vê a plataforma em primeiro plano e as pessoas esperando, então o

possuía a força que os seus sucessores viriam a ter. Além disso, a versatilidade dos

trem vai surgindo ao fundo e, à medida que o trem se aproxima da plataforma, a

motores a combustão interna permitiria a criação do automóvel, que teria um

imagem vai crescendo na tela. Uma curiosidade com relação ao filme, são os relatos

impacto enorme da conformação dos centros urbanos, algo que a locomotiva só fez

de que algumas pessoas, não acostumadas à experiência do cinema, ao assistirem

em parte.

o filme, se esquivavam do trem quando ele se “aproximava” acreditando que seriam

O automóvel tem grande influência na vida humana atualmente, com relação

atropeladas. Compreende-se a escolha dessa cena pelos irmãos Lumière

a percepção do espaço, o automóvel introduz velocidades médias maiores que a

justamente pela característica de movimento que o trem evoca, tão buscada pelas

locomotiva, restringindo bastante a percepção do ambiente externo de dentro do

primeiras projeções. A própria palavra cinema deriva do grego kinema, que significa

veículo. Gehl (2013) condena veemente o predomínio do automóvel nos centros

‘movimento’ (PIROLI, 1965).

urbanos atuais, em detrimento do pedestre, ele destaca a influência da velocidade

Ainda com relação ao cinema e o trem, Martin (2000, p.99) faz uma

na percepção do espaço urbano (figura 1), no seguinte trecho:

comparação entre os dois ao falar do livro “Cinema 1: A imagem-movimento”, de Gilles Deleuze, em uma passagem ele fala que:

A arquitetura de 5km/h baseia-se numa cornucópia de impressões sensoriais, os espaços são pequenos, os edifícios mais próximos e a combinação de detalhes, rostos e atividades contribui para uma experiência sensorial rica e intensa.


Ao dirigirmos um carro a 50, 80 ou 100km/h, perdemos a oportunidade de observar detalhes e pessoas. A tais velocidades os espaços precisam ser grandes e gerenciáveis, e todos os sinais tem que ser simplificados e ampliados, para que motoristas e passageiros absorvam a informação (GEHL, 2013, p. 44).

distância entre estas duas cidades. Toda a paisagem que está entre elas é esmagada por esta rapidez. Neste caso, alguma coisa da grandeza natural da França se perde.

A locomotiva, em um primeiro momento, serviu como meio de transporte para grandes distâncias ligando uma cidade à outra, ou zonas de produção às cidades, mais tarde o transporte sobre trilhos também foi introduzido no espaço urbano, porém, seu impacto foi bem inferior ao do automóvel. Mas, sobre a questão da percepção, existem diferenças entre o automóvel e a locomotiva, por mais que ambos sejam transportes motorizados, as velocidades são, em média, diferentes. São recorrentes os relatos sobre a visão da paisagem de alguém que viaja de trem, a velocidade menor permite uma melhor apreensão do espaço. Os trechos das entrevistas a seguir demonstram parte da percepção de pessoas que tiveram essa experiência no passado: Mas num tem como o trem de passageiros. Você pega um ônibus daqui pro Crato, sempre eu pego ônibus daqui pro Cedro, a gente não vê nada fora, do interior do ônibus não se vê nada. Só quando chega pra fazer uma merenda, uma janta, uma coisa. [...]. Mas, antigamente não, a pessoa ia vendo toda a paisagem, as coisa mais linda do mundo. Porque nós aqui no Estado do Ceará temos muitos locais turísticos. [...]. Tem muitas coisas pra se vê. Tem o ar livre, uma coisa, a gente vai sentindo, vai mudando de clima, às vezes vai passando aqui tem sol e lá na frente chove, é assim (ROSA, 2008).

Figura 1 – Arquitetura de 5km/h e de 60km/h. Fonte: Gehl (2013, p. 44).

O discurso de Virilio (1998) complementa o pensamento de Gehl (2013): A corrida elimina ainda o território. Basta olhar a diferença entre um lugar no campo onde se pode correr e uma pista de corrida. Um hipódromo, um autódromo e um velódromo são espaços puros, marcados por linhas retas e curvas. Trata-se de um espaço instrumental, pois a velocidade da corrida eliminou as asperezas, as pequenas flores, os acidentes da paisagem. Para ir rápido é preciso tornar liso o espaço como se nele não houvesse mais a natureza. Desse modo, há sempre uma eliminação.

E pra mim o trem, tinha para a criança, para o jovem, né, mostrava coisas boas. Porque não tinha aquela pressa do automóvel de hoje, do caminhão de hoje, né. A gente passava pelas cidades, demorava um pouco nas estações, via um pouco da cidade, o movimento das cidades. [...]. (DAMASCENO, 2008). Era muito bacana a viagem de trem, porque se podia apreciar a paisagem, coisa que hoje, de carro, não dá, porque o carro é muito veloz, nem vê, né? Era muito gostosa a viagem. [...]. (COSTA, 2013).

Fenomenologia nos trilhos Nos relatos citados anteriormente estão explícitos o movimento e a

Virilio (1998) também critica os efeitos da velocidade e indica que as perdas geradas pela invenção dos motores não são apenas de ordem material.

velocidade, característicos do trem, e a maneira como afetam a percepção do espaço. Porém, em alguns deles, percebe-se mais detalhes envolvendo sentidos, como o tato que sente as alterações no clima. O universo ferroviário é extremamente

[...], aquilo que é poluído pelas tecnologias novas não é somente a substância – a água, o ar, a fauna, a flora que se destroem, por exemplo, através dos detritos industriais - mas também a distância. O TGV (Trem de Alta Velocidade), que vai, em duas horas, de Paris a Lyon, polui e aliena a

rico do ponto de vista fenomenológico, com uma infinidade de situações capazes de despertar, no corpo, diversas sensações. Até agora, destacou-se o sentido da visão,


ligado à sensação de movimento e a velocidade, apenas uma das várias sensações presentes na experienciação da ferrovia. Merleau-Ponty (1994) afirma que a fenomenologia é “um relato do espaço, do

Em outra parte de sua fala, Francisco Rosa menciona a percepção dos cheiros no interior da cabine, através deles, ele distinguia a espécie da madeira que estava sendo queimada na caldeira para produzir vapor. (CORTEZ, 2008).

tempo, do mundo "vividos". É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, [...].” No trabalho de Cortez (2008), a autora aborda a história da ferrovia na cidade do Crato, no Ceará, interpretando a construção de narrativas a partir de lembranças do trem. Através das referências pessoais dos entrevistados, o trem é reconstruído, transformado através de cores, cheiros, sons e sabores. Um dos entrevistados, Francisco Rosa, trabalhava na ferrovia e dá detalhes em suas lembranças, dos sons emitidos pela locomotiva. Cortez (2008, p. 169) relata que ele, inclusive, possuía um CD no qual estava gravado o som de um trem, o qual ele pôs para tocar enquanto fazia sua narrativa: me

Pegava a lenha, o angico, já saía um aroma diferente da caixa de fumaça. A gente conhecia a lenha mesmo, mas também o cheiro, o angico era um cheiro mais agradável. Todo tipo de madeira: sabiá, pau branco, aroeira, cada uma tinha um cheiro diferente. A jurema tinha um cheiro ruim e ainda era cheia de espinho, a gente ficava com a mão tudo furada. (ROSA, 2008).

Em outro trabalho, intitulado “Turismo e inclusão social: Lugares de memórias sobre a estrada de ferro de Bragança, Amazônia, Pará”, os autores resgatam a memória de Bragança, município localizado no nordeste paraense, através dos relatos de moradores sobre a ferrovia que interligava o interior do estado à capital Belém. Também com uma abordagem fenomenológica, trazem narrativas que possibilitam reconstruir a história do trem na cidade (NOGUEIRA et al., 2013). No relato de uma das entrevistadas, Maria do Socorro Costa, entre sons, texturas e

Aí, ela vai com 60, por aí. Isabel: 60 por hora? Fco Rosa: É, alta velocidade. É uma Maria Fumaça, é uma Pacífic. Ela foi fabricada pra trem de passageiros. Era muito econômica e, além de econômica, tinha velocidade e muita segurança. [...]. Aí, é ela chegando na estação, ela vai batendo o sino. Vai chegar! Aí, as pancada dos trilhos, das juntas, a roda passa junto, aí provoca a batida. Isabel: Além do apito tinha o sino? Fco Rosa: Tinha o sino, porque ficava mais bonito, os passageiros gostavam muito. Quando entrava na estação batendo o sino, aí era uma alegria para os passageiros. O apito era mais pra passagem de nível, animal na Linha e aviso para os passageiros que tava perto da estação, aí a gente puxava a gaita, né. E tinha uns apito duplo, que era meio rouco, né, era bonito demais. (ROSA, 2008).

Por outro lado, segundo Cortez (2008, p. 172), para “quem estava fora da máquina, nas estações ou ao longo da Linha, a percepção dos sons produzidos pela locomotiva tinha um caráter mais pitoresco ou de demarcação de espaço e tempo, porém, não destituído de um caráter informativo.” Acordava com o apito do trem. Aí tocava a sinetinha, três pancadas pra o trem poder sair, na terceira o trem saía, saía apitando. [...]. Escutava de longe. Quando o trem vinha a casa estremecia. Cinco horas da manhã, a gente se acordava com a casa tremendo. Aí eu me levantava, toda vida eu gostei de levantar cedo. A minha mãe fazia o café, mas num ia pra saída do trem, não, que era cedo. (AGOSTINHO, 2008).

cores, destaca as experiências envolvendo o paladar: [...]. Não tinha rádio, mas sempre tinha um que tocava acordeom e cantava, a viagem ficava animada. Quando entrava os vendedores e vendiam, gritava assim: ‘Cinto pra mulher de cobra!’, que eram os cintos feitos da cobra, né. Aí: ‘Pente pra homem de chifre!’ e o povo se divertia. Iam passando e quem comprava, comprava, quem não comprava não tinha problema. Era um divertimento no trem pra a gente. Outra coisa gostosa, todo mundo levava seu rancho numa lata. Quando chegava no meio do caminho em Igarapé-Açu, entre onze e meia e meio-dia, as pessoas comiam a sua farofa de ovo, carne de porco, galinha, eram farofeiros mesmo, porque não existia restaurantes, e quando acabava todo mundo jogava sua lata por lá mesmo, pra dar trabalho pra quem ficasse. Era assim mesmo. A gente conhecia pessoas. Tanta gente que namorou no trem. Se conheceu e namorou, como no avião, igual nas novelas de época, acontece. (COSTA, 2013). Todo mundo ia pra Estação esperar o trem chegar, por quê? Por que, quando o pai, a mãe, o tio, chegava de trem, eles traziam aquelas pipocas. O que eram as pipocas? Era uma broa redonda, tipo uma rosca, que vinham embaladas em saquinhos de papel de seda colorido. E aquilo fazia a atração de quem? Das crianças! E era muito bonito, muito gostoso. [...]. (COSTA, 2013).

Esses relatos são apenas parte das incontáveis experiências envolvendo o trem, a ferrovia e o que está ligado a eles. Considera-se esse conjunto de sons, cheiros, sabores, etc., demasiado complexo para ser exposto em um texto tão pequeno, para isso seria necessário um trabalho mais profundo e detalhado, porém,


as narrativas expostas nos dão uma noção de como era o cotidiano da ferrovia, através das situações vivenciadas por essas pessoas. Espaço e ferrovia

Não seria o Brasil riquíssimo si tivesse, desde os primeiros dias, incentivado a construção de estradas de ferro? Não estaria o nosso patrimônio econômico numa elevação formidável si os nossos estados si encontrassem, entre si, ligados por um caminho de ferro? Comquanto este assumpto seja o maximo dos assumptos para a vida da nacionalidade, aqui, no Brasil, não tem sido o mesmo tratado como de direito e dever. Entretanto, conforta-nos, a nós brasileiros, a marcha lenta que este assumpto tem tido entre nós (O NORDESTE, 1936 apud CORTEZ, 2008, p. 34).

Já foi discutido a inseparabilidade do homem e do espaço, que o espaço afeta homem e que o movimento e a velocidade, da locomotiva, interferem na maneira

Hobsbawn (1982) indica um possível motivo para isso:

como o homem percebe o espaço. Porém, outra questão é a interferência do homem no espaço, ele cria novos lugares e paisagens, que por sua vez mudam a forma como nos relacionamos com o ambiente, e afetam o corpo de outro modo. Nesse contexto entra a ferrovia como instrumento de alteração do espaço. Virilio (1998) aponta que a história moderna está relacionada à cinco motores: o motor à vapor, o motor de explosão, o motor elétrico, o motor-foguete e o motor eletrônico, o primeiro deles: [...] o motor a vapor, na ocasião de uma revolução da informação e da criação da primeira máquina, ou seja, da máquina que serviu a revolução industrial. Foi o motor a vapor que permitiu o trem e, portanto, a visão do mundo através do trem, a visão em desfile, que já é a visão do cinema. Cada motor modifica o quadro de produção de nossa história e também modifica a percepção e a informação. [...]. Assim, cada motor modificou a informação sobre o mundo e nossa relação com ele. [...].

Segundo Hobsbawn (...), o transporte terrestre, antes do surgimento da ferrovia, era caro e demorado, inviabilizando a exploração de territórios longe da costa ou de vias fluviais. Sua força locomotora possibilitou ao homem enorme aumento da velocidade e da massa de comunicação por terra, nunca uma quantidade tão grande de pessoas e mercadorias puderam ser transportadas de uma só vez a uma velocidade tão alta, isso foi de grande importância para o desenvolvimento econômico de várias regiões do globo. A ferrovia revelou grande capacidade para conectar países, até então isolados devido aos altos custos de transporte, ao mercado mundial. Por essas e outras razões, as ferrovias eram tidas como símbolo de progresso e desenvolvimento e sempre eram exaltadas com grande entusiasmo, como no relato a seguir:

Nenhuma outra inovação da revolução industrial incendiou tanto a imaginação quanto a ferrovia, como testemunha o fato de ter sido o único produto da industrialização do século XIX totalmente absorvido pela imagística da poesia erudita e popular. Mal tinham as ferrovias provado ser tecnicamente viáveis e lucrativas na Inglaterra (por volta de 1825-30) e planos para sua construção já eram feitos na maioria dos países do mundo ocidental, [...]. Indubitavelmente, a razão é que nenhuma outra invenção revelava para o leigo de forma tão cabal o poder e a velocidade da nova era; a revelação fez-se ainda mais surpreendente pela incomparável maturidade técnica mesmo das primeiras ferrovias. [...]. A estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, à velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia, estações e pontes formando um conjunto de construções que fazia as pirâmides do Egito e os aquedutos romanos e até mesmo a Grande Muralha da China empalidecerem de provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo do homem pela tecnologia.

Por outro lado, contrastando com a frequente referência ao progresso, muitas vezes, se esquece de que a invenção do motor a vapor foi o início do processo de exploração mecanizado dos recursos naturais, que terá consequências drásticas para o meio natural e várias comunidades. A velocidade da locomotiva significou o aumento da velocidade da exploração capitalista e da transformação da paisagem. Um exemplo foi a construção da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande no interior do estado de Santa Catarina. A obra iniciada no início do século XX, na época, era conduzida pela empresa norte-americana Brazil Railway Company e como parte do pagamento ela recebeu do governo brasileiro milhares de quilômetros quadrados de terra ao longo da ferrovia, que eram consideradas, em sua maior parte, terras devolutas. Entretanto, haviam pessoas vivendo nesse território, além das populações indígenas, os “sertanejos” ou “caboclos”, como eram chamados os habitantes locais, descendentes principalmente de índios e europeus, eram acostumados a vida na mata de araucárias onde viviam em pequenas propriedades nas quais a produção era destinada a subsistência de cada família, pequenas plantações proviam a alimentação, que era complementada pela caça e a coleta.


Isso mudou quando a ferrovia chegou e junto com ela trouxe as serras que

REFERÊNCIAS

devastaram as florestas as suas margens, na época foram construídas duas serrarias, uma delas estava entre as maiores do mundo na época, para processar araucárias e imbuias centenárias. As locomotivas proporcionavam o rápido escoamento da produção e, após a floresta ser devastada, trouxeram o imigrante europeu que compra as terras onde antes viva o caboclo.

AGOSTINHO, Vicência, 2008. In: CORTEZ, Ana Isabel Ribeiro Parente. Memórias Descarrilhadas: O Trem na cidade do Crato. 2008. 235 f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Curso de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008. Entrevista concedida a Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez.

Entretanto, esse processo não ocorre de forma pacífica, o caboclo não aceita pacificamente a tomada do local em que habita. A instalação da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande foi um dos estopins da Guerra do Contestado, conflito

CORTEZ, Ana Isabel Ribeiro Parente. Memórias Descarrilhadas: O Trem na cidade do Crato. 2008. 235 f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Curso de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008.

deflagrado entre os caboclos, expulsos de suas terras, e o estado brasileiro, do lado do capital e dos interesses privados. Ao término do conflito, o caboclo é derrotado e milhares de pessoas perdem suas vidas, 5800 a 9000 entre mortos, feridos e desaparecidos (THOMÉ, 1983).

COSTA, Maria do Socorro, 2013. In: NOGUEIRA, Charlianne Karynne Magalhães et al. Turismo e inclusão social: Lugares de memórias sobre a estrada de ferro de Bragança, Amazônia, Pará. Revista Ipiranga Pesquisa, Belém, v. 1, n. 2, p. 1-15, 2013.

Esse caso exemplifica o tipo de transformação que a ferrovia foi capaz de causar. A construção da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande significou uma mudança na vida de milhares de pessoas, a transformação do território proporcionada por esse meio de transporte trouxe consigo outro modelo de sociedade. As marcas desse período histórico estão presentes no território do

DAMASCENO, Alderico, 2006. In: CORTEZ, Ana Isabel Ribeiro Parente. Memórias Descarrilhadas: O Trem na cidade do Crato. 2008. 235 f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Curso de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008. Entrevista concedida a Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez.

contestado até hoje, não é à toa que a região do conflito é uma das mais pobres e menos desenvolvidas do estado. Ao caboclo, derrotado, restou apenas se submeter

GEHL, Jan. Cidade para pessoas. Tradução Anita Di Marco. São Paulo: Perspectiva, 2013.

a esse novo modelo, baseado no lucro e na produção, então, ele passa a vender sua força de trabalho nas serrarias (que continuaram a destruir a floresta que restou) e viver nas periferias das cidades que surgiram às margens da ferrovia.

GUATTARI, Félix. Espaço e Corporeidade. In: GUATTARI, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992, p. 151-165. HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. 15. ed. São Paulo: Companhia das letras, 1988. HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e Conferências. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2005. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.


HOLL, Steven. Cuestiones de percepción: fenomenologia de la arquitectura. Barcelona: GGili, 2011. MARTIN, Jean-Clet. O olho do fora. In: Alliez, Éric, org; Oliveira, Ana Lúcia de, coord. e trad. Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 99-110. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. NOGUEIRA, Charlianne Karynne Magalhães et al. Turismo e inclusão social: Lugares de memórias sobre a estrada de ferro de Bragança, Amazônia, Pará. Revista Ipiranga Pesquisa, Belém, v. 1, n. 2, p. 1-15, 2013. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da Pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011. PIROLI, Samuel. Noções de cinema. Caxias do Sul: Marista, 1965. ROSA, Francisco, 2008. In: CORTEZ, Ana Isabel Ribeiro Parente. Memórias Descarrilhadas: O Trem na cidade do Crato. 2008. 235 f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Curso de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008. Entrevista concedida a Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez. THOMÉ, Nilson. Trem de ferro: história da ferrovia no Contestado. Florianópolis: Lunardelli, 2a ed., 1983. VIRILIO, Paul: Os motores da história. In: ARAÚJO, Hermetes Reis de (Org.); SEILER, Achim et al. Tecnociência e cultura: Ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 127-147. Filme: ARRIVÉE d'un train en gare à La Ciotat. Produção: Lumière frère, 1895. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=b9MoAQJFn_8>. Acesso em: jul. 2016.


./ TEXTO, CASA, COLAGEM. Lucas Oliveira Roux


Universidade Federal de Santa Catarina

_ ‘TODO ESPAÇO VERDADEIRAMENTE habitado traz a essência da

PósARQ ­ Programa de Pós­graduação em Arquitetura e Urbanismo

noção de CASA (gb). A CASA é onde a vida e as relações são man꛶ das. Não é suficiente habitar, é necessário viver. A CASA nunca aparece

Disciplina: Cartografia do Espaço Habitado: fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade

sozinha; sem a ideia de troca, a noção de CASA se desfaz. ‘Ela só

Professor: Rodrigo Gonçalves

emerge como CASA quando misturada a outros elementos não considerados espaciais (lb).

Aluno: Lucas Oliveira Roux

A praça aos pés da estação, na margem direita, com seus (outrora gloriosos)

./ Texto, casa, colagem.

hotéis com rígidas sacadas em art déco; seu palacete eclético, de um amarelo ocre, com grossas camadas de fuligem recobrindo cada curva de

. I

seus arabescos; e a escola de dança que funciona nos andares superiores de _ ‘A CASA SUBJETIVA constitui as medidas do mundo, é um pouco o

um antigo casarão que teve o térreo ocupado por um posto da polícia

tom desse Núcleo que vibra aqui e acolá, à espreita do poético,

militar; se prolonga até a margem esquerda, onde parte da população, mais

sempre (lb). Definir os limites da CASA é, para o fenomenólogo, ‘ compreender o germe da felicidade central, seguro e imediato (gb) ,

humilde, se estabeleceu, superando o rio e a estrada.

é buscar na memória e na imaginação a concha inicial existente em

A margem esquerda, colada ao pé do morro, se desenvolvendo pelas

cada CASA , que é vivida pelo abrigado ‘em sua realidade e

encostas, através da população sem acesso ao planejamento ordenado da

virtualidade, através do pensamento e dos sonhos (gb) . Mais do que

malha a direita.

um estudo das essências, a fenomenologia busca repor a essência

na existência, compreendendo homem e mundo de maneira

_ ‘A CASA É NOSSO LUGAR DO MUNDO. Ela é, como se diz

indissociável. É ‘um relato do espaço, do tempo, do mundo

frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos

"vividos". É a tentativa de uma descrição direta de nossa

(gb). ‘O espaço dessa CASA resulta da combinação inusitada de uma

experiência tal como ela é (mp).

miríade de elementos heterogêneos que, ao alcançar uma certa

A CASA fica próxima a atual região central da cidade, que se deu por crescer

consistência, produz um espaço singular. ‘A CASA é resultado dessa combinação de elementos díspares entre si, nos quais nós, seus

no fundo do vale do rio, serpenteando suas margens contrariamente ao seu

produtores, estamos incluídos (lb).

curso, para o norte. A estação, primeira porta, centenária, na margem direita, se abre para o antigo caminho, primeiro corredor, com seu leito

Nas margens do rio, a grande avenida de conexão entre os eixos norte­sul

historicamente dourado perseguindo a margem esquerda, sob os olhares das

atravessa o vale ao longo de doze quilômetros praticamente estéreis.

capelas no alto dos morros leste e oeste. Desde a fundação, estavam

Galpões dominam toda a margem esquerda e as habitações se conformam

determinadas as relações esperadas para a casa, em (permanente)

ainda mais a esquerda, a partir da rua paralela a grande avenida na região

construção. A troca. O antigo corredor dourado se tornou cinza petróleo. A

central do eixo.

primeira porta foi engolida por outras paredes. A troca jamais deixou de

De pé na praça da estação. A capela sobre o grande morro oeste olha de

acontecer.

cima a ordenada malha vertical. Atrás da torre do relógio da estação, sobre o

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modesto morro leste, uma modesta capela se ergue ao lado de uma frondosa

Atravessando a ponte, na esquina com a grande avenida, em um edifício

e solitária árvore. Acreditam que seja sagrada.

simples, de dois andares, funciona a sede do departamento de limpeza

Atravessamos a antiga linha férrea, ainda em funcionamento. De tempos em

urbana. Logo ao lado, em outro edifício de pavimentos, ainda mais simples,

tempos o trim­trim estridente do sinal do trem nos pede atenção, pessoas

uma lajo de produtos para animais. Nessa região, poucos edifícios chegam a

correm apressadas antes da interrupção do fluxo. Ele se aproxima, o apito é

quatro pavimentos. Nenhum ultrapassa. Durante o dia, a calçada em frente a

ensurdecedor, não adianta mais correr, tudo para por alguns minutos.

loja cede espaço a inúmeras gaiolas com os mais variados animais. Galinhas,

Com a retomada do fluxo, a ponte entre margens se abre a nossa frente. Em

coelhos, patos, porquinhos da índia, entremeados por sacos de ração. A

um tom claro e amarelado a ponte se estende com grandes postes de metal

noite, a marquise sobre a calçada da loja somado ao ponto de táxi

forjado com arabescos de motivos florais e um conjunto de cinco grandes

praticamente em frente cria um espaço seguro para os cidadãos em situação

lâmpadas ovais, dispostas em cruz. É uma intervenção recente. Os antigos

de rua.

postes modernistas, com globos de luz dispostos em uma armação ortogonal

Ao lado da loja de animais, prosseguindo o nosso caminho em direção ao

de metal vermelho, foram substituídos por uma imitação de postes ecléticos.

norte, um vazio se abre; um estacionamento. O supermercado se estende até

O rio entre as margens é marrom.

o fim da quadra, no nosso caminho o ponto de táxi continua até dar lugar ao

Nas avenidas marginais a velocidade é alta. Carros e ônibus dividem as

ponto de ônibus em frente a entrada do supermercado. O fluxo é intenso, na

quatro pistas que existem em cada direção, pessoas praticam caminhadas e

avenida a velocidade continua alta.

corridas nas calçadas beira­rio. As charretes foram há pouco proibidas. Um

O quarteirão chega ao fim. A rua que se abre a leste é residencial, com

lugar tipicamente de passagem, um corredor. Mas que está prestes a ter sua

pequenos conjuntos de apartamentos. Na esquina em frente, um posto de

natureza completamente alterada, momentaneamente.

gasolina. Ao longo da avenida marginal, sempre ao norte, a rua continua

cega. Outra rua residencial se abre a leste, desta vez em grande _ ‘O HOMEM ESTÁ NO MUNDO (ia).‘O espaço que compreendo é

profundidade. Muros e esquinas cegos a leste.

aquele que me toca por todos os lados e que percebo com todos os

sentidos simultaneamente. Por nossa vez, somos impensáveis sem

Do outro lado do rio, na margem direita, um alto, cinza e solitário edifício

as CASAS que nos acolheram e nos co­produziram (lb). Nós somos também produzidos pelo espaço e mantemos uma relação

compete com a torre do relógio da estação. Dez, doze andares? No topo, o

comprome꛶ da e a꛶ va com o meio 㢖 sico se esse espaço for capaz de

nome prateado da empresa. O rio se estende por quilômetros a frente,

a꛶ var a subje꛶ vidade da nossa noção de CASA , a꛶ ngindo nossa

descendo do norte. A cidade vertical domina a paisagem a noroeste, na

concha inicial inconsciente, existente em toda moradia. ‘O sujeito

margem direita, até aonde se pode enxergar. Em meio a ela se ergue uma

que constitui a CASA fenomenológica é um individuo cujo experiência

torre alta e fina, branca. No topo, uma cruz negra. E luzes de sinalização. No

do espaço provém tanto das lembranças e rememorações do

oeste mais distante o grande morro, com a grande capela, continua

passado, quanto das experiências sensoriais do presente (ia). O sujeito que habita a CASA ‘ extrai a vivência, das coisas e de si mesmo,

preenchendo a paisagem.

através do espanto ante o mundo (ia).

O caminho a frente continua cego. São longos seiscentos metros de avenida marginal em alta velocidade e muros encardidos até che gar a praça . Os 3

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galpões continuam em sequência. Grandes portas de metal fechadas, muro,

Em sequencia ao térreo comercial, na rua que vai para o nordeste, nenhuma

uma loja de material de construção, muro. Estamos na borda da cidade da

porta, nenhuma janela. Um enorme paredão creme claro, com teto curvo em

margem esquerda.

metal. Nove, dez metros de parede lisa? Um galpão, um ginásio? O muro

com um portão gradeado, permeável, deixa escapar uma mancha verde, _ ‘A CASA ABRIGA O DEVANEIO, a CASA protege o sonhador. O ser

denunciando a copa das árvores por detrás. O portão, apenas para carros, se

abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a CASA em sua

abre para um caminho que sobe curvo, parcialmente visível pelas grandes.

realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos

No alto, distante, por detrás das copas, uma torre redonda, com um telhado

sonhos. A CASA nos permite sonhar em paz. A CASA é um dos maiores

cônico. Um palacete? O gradeado do portão acaba, o muro sobe alto e cego.

poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. A CASA mantém o homem através das

Três; quatro metros ásperos de cimento e brita pintados de cinza. Por de trás,

tempestades do céu e das tempestades da vida (gb).

quatro andares de um bloco creme claro, pontuados por sete basculhantes em

fileira, horizontalmente. No alto, em tinta azul, ‘colégio dos santos anjos’.

O muro cego termina em uma esquina com a rua que seguia quase

paralelamente a leste, a praça à frente. Existe gente. A praça é uma porta.

Nosso caminho continua pela rua que vem e volta do leste. São poucos

Uma rua chega do sudeste, uma rua vem e volta do leste, outra rua vai para o

metros até a próxima esquina ­ a esquerda, uma outra entrada para o colégio;

nordeste. O corredor marginal continua em alta velocidade. Árvores com

para a direita, o nosso caminho; em frente, a rua inicia sua subida, ingrime,

copas cheias circundam o vazio central da praça quase vazia. A sombra é

em curvas, pelo modesto morro leste. Na esquina da subida, um portão de

agradável.

entrada de emergências de um pequeno hospital regional divide espaço com

Na esquina mais distante da rua que chega do sudeste, uma construção de

o muro de uma residência. Viramos a direta, a tipologia continua

dois pavimentos com a fachada do térreo em granito marrom e um grande

semelhante. Sobrados, edifícios residenciais de três, quatro andares, sem

letreiro na parte superior. As luzes neons sobre o fundo branco do letreiro,

afastamento lateral, sem afastamento frontal.

agora apagadas, desenham as curvas do corpo de uma mulher nua deitada. A

Do outro lado da rua, uma vitrine no térreo com os maios variados bibelôs e

noite, as luzes coloridas piscam alegremente.

lembrancinhas. Mais adiante um intrigante e comprido edifício de um

Sobrados geminados, com fachadas em azulejo, completam a rua até a

pavimento, com um resquício de art déco na fachada amarela e branca ­ a

esquina, ocupada por uma modesta lanchonete e uma sorveteria, sobrepostas

ocupação da margem esquerda é antiga. Um galpão não utilizado? Nunca

por um maciço bloco marrom de três pavimentos. Na cidade da margem

soube. Ao lado, um edifício simples, de dois andares, amarelo, com um

esquerda, não existe afast amento frontal. Outro bloco bastante semelhante

grande portão azul. Uma escola infantil. Estudei lá.

ocupa a outra esquina, sobre um pavimento de pequenas lojas. Na esquina,

Do lado de cá da rua, um longo conjunto residencial, de quatro pavimentos,

um restaurante ­ antes era uma videolocadora, eu tinha conta. Quatro outras

com muitas sacadinhas cavadas no bloco maciço, domina grande parte da

lojas dividem o térreo com as duas portarias do bloco maciço residencial

rua. A fachada com pequenos relevos geométricos na cor areia é cortada por

acima; a padaria funciona até mais tarde, assim como a academia na rua que

um alto portão verde, de aço e vidro. Uma porta para outra CASA.

vem e volta do leste.

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.0

.II _ ‘A CASA fenomenológica poderia ser, numa primeira aproximação,

_ ‘A CASA É UM CORPO de imagens que dão ao homem razões ou

como uma grande CASA familiar, habitada por grandes períodos,

ilusões de estabilidade. Estamos sempre em busca da CASA natal.

com seus recantos secretos, conformada por uma multiplicidade

Habitar oniricamente a CASA natal é mais que habita­la pela

inapreensível de habitações, à semelhança de um labirinto (ia). A

lembrança, é viver na C ASA d esaparecida como sonhamos (gb).

CASA a꛶ va todos aqueles atributos da evidência e da presença que

explicita a estreita estrutura entre relações e reflexos.

Abrindo o alto portão verde, de aço e vidro, o dia lá fora parece claro demais

para os olhos. O sol se encam inha para o meio do céu. O silencioso edifício, com resquícios de art déco na fachada, continua vazio. A escola infantil,

As luzes coloridas piscam alegremente, neons, contrastando contra o céu noturno, desenhando as curvas do corpo da mulher nua na fachada da casa de shows. O corredor marginal, deserto. Os primeiros caminhões começam a chegar, cada um já sabe o seu lugar.pilhas de ferragens começam a ser descarregadas, rolos de lona começam a ser desenrolados. O Mutreta chega as três horas, há trinta anos. Carrega caixas. Seu carrinho­de­mão equilibra dezenas de caixas contendo as mais diversas cores que escapam pelas frestas da madeira. No vai e vem constante de equilibramento de caixas, o cheiro no ar começa a mudar. As cinco e meia os primeiros fregueses começam a aparecer. Dançarinas e clientes da casa de shows ­ e de vários outros estabelecimentos noturnos costumam começar o domingo com um caldo de cana na beira do rio.

vazia, dessa vez está silenciosa. O que não está nem vazia e nem silenciosa é a rua. O trânsito de automóveis na avenida marginal foi interrompido e desviado. A caixa da rua local, congestionada, canta com o buzinaço. Seguimos para o lado direto da rua, em direção a avenida marginal. O sol, que nasce por detrás do modesto morro leste, nos acompanha pelo lado esquerdo, se somando ao calor das buzinas. A esquina da rua é, na verdade, um cruzamento onde a avenida marginal e a avenida que a seguia quase paralelamente se tocam. O canteiro formado na área entre o cruzamento das ruas abriga o trailer do João. A essa hora de domingo não é possível notar o desenho incomum do cruzamento e o posicionamento incomum do trailer; todo o cruzamento está ocupado por muitas barracas, mesas, cadeiras,

Vejo um grupo de jovens que aparentava ter entre 18 e 25 anos, não mais que isso. Eram quatro moças e um rapaz que se destoavam dos demais fregueses que ali circulavam. Com roupas de gala já amarrotadas, os penteados e maquiagens se desfazendo e chinelo de dedo nos pés, o grupo cantava em voz alta o trecho de uma música do MC Marcinho [Princesa, por favor volte pra mim… já não aguento a solidão] carregando latas e copos de cerveja que trouxeram de uma festa de formatura. A formanda, que vinha guiando o grupo, usava uma coroa de plástico, aos moldes das princesas dos desenhos animados, enfeitada com miçangas que imitavam pedras preciosas e um colar com um pingente de estrela, na cor verde claro, que não parava de piscar, sisse a outra pesquisadora que se encontrava no local que “é lei vim pra feira depois da formatura. É a minha formatura com a graça do Senhor. A feira de Juiz de Fora é o point depois das formaturas, todo mundo tem que vim” (dp).

carrinhos de mão que viram lojas, carros estacionados que viram loja, gente. É nesta ponta norte da feira que se concentram os lugares de alimentação e bebidas. As nossas compras só começam depois do café da manhã; o caminhão de pastel e caldo de cana fica logo mais ao norte. Ao longo de toda a avenida marginal, da ponte à praça, as seiscentas e setenta e seis barracas da feira se organizam em quatro fileiras, dois corredores de passagem; uma das maiores do estado. Barracas com uma armação simples de metal pintado de verde, uma cobertura em duas águas com as lonas verde e branca; cada uma com as mesas cobertas da maior intensidade de cores possível. Voltando para a direção sul, nossa primeira parada é na barraca em frente ao trailer do João. A mais verde das barracas cheira a verde: salsinha,

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cebolinha, couve agrião, taioba. Atravessando por entre as barracas, nossa

_ ‘A CASA É UM SER entreaberto, uma multiplicidade de

próxima parada é na fileira de barracas mais próxima ao rio. A intensidade

microcosmos. Um espaço de transição onde se regulariam os

do vermelho dos tomates contrasta com a lona verde da barraca e com as

intercâmbios e se organizaria a complexidade labiríntica. A CASA tem um caráter fragmentário, cenográfico e complexo, como uma soma

árvores da margem do rio logo atrás. Na barraca geminada aos tomates,

densa de peças que a experiência e o tempo viriam destilando. É

cebola. Todo apreciador de molhos, agradece.

aquela que contém lugares que somente adquirem pleno sentido

Logo nas barracas ao lado, frutas. Laranjas, maças, bananas o ano inteiro;

através do uso que a eles se dá, através da capacidade de deles nos

aqui as frutas vêm do mundo inteiro. Provavelmente existe alguma barraca

apropriarmos (ia).

vendendo mirtilos por aí. Continuando para o sul, a barraca de batatas

encabeça a sequência de barracas de vegetais e legumes. O laranja intenso

Sentados ao redor das mesinhas; entre copos, garrafas e pratinhos; amigos,

das pilhas de cenoura, a casca áspera e terrosa das mandiocas, abóboras nos

parentes, família. Um tio, um ou dois primos, aquele cara que mora na rua

mais curiosos formatos. O quiabo precisa ser escolhido um por um, têm de

de cima, a mulher que aceita encomendas de bolos de aniversário.

estar bem fresco, crocante.

É um trailer comum, de metal pintado de vermelho e um toldo amarelo, que

Os carrinhos ­ de compra ­ que agora ocupam o corredor se movem de

pode ser aberto. A única diferença é que o trailer está fixado ao solo. Após

acordo com o corpo não motorizado. A velocidade na avenida marginal é

as quatro horas da tarde, o trailer do João será a única barraca da feira a

outra.

permanecer de pé. Aos domingos, João posiciona dois televisores em seu

Cruzando por entre as barracas novamente, vamos para a fileira de barracas

trailer, voltados para as suas mesinhas. Uma construção aparentemente

mais distante do rio, colada na longa sequência de galpões cegos da avenida.

precária, feita em chapas de metal, colada ao trailer, esconde um vaso

A barraca de flores esconde o altíssimo muro nu as suas costas com a maior

sanitário cerâmico conectado ao chão. João deixa as mulheres freguesas que

variedade imaginável de vasinhos de violetas em cima dos suportes de

ele conhece utilizarem o banheiro do seu depósito, do outro lado da rua.

exposição. Pilhas de vasos, sacas de terra, varais com as mais cheias

Mas antes de chegar até as mesinhas do trailer do João, uma última parada é

samambaias.

inevitável. O cheiro de comida gostosa, que já vinha despertando nossos

Para o sul, as barracas continuam e se repetem. Nosso caminho começa a

estômagos, se intensifica de tal forma que é impossível não parar para espiar

retornar para o norte; o passo é lento por entre as quinze mil pessoas, e

o que tem. É a tradicional barraca de churrasquinho e jiló; não há quem não

outros milhares de carrinhos, que a feira recebe semanalmente. A avenida

conheça o jiló frito da feira de domingo.

não é mais áspera; precisamos nos mover com fluidez por entre as pequenas

A barraca fica a poucos metros ao sul do trailer do João, possui suas próprias

brechas que se abrem. A avenida não é mais cega. E, definitivamente, a

mesinhas, vende sua própria cerveja. O problema é resistir ao calor pulsante

avenida não é mais inolente. Nas nossas costas, outra barraca de pasteis faz

da proximidade com as chapas e fogões com as gigantescas frigideiras com

nossas bocas inundarem de desejo. Na nossa frente, a barraca de cafés; com

óleo incandescente. A solução é escolher algumas das várias opções de

seus moedores enchendo os pacotes com pó e o ar com cheiro. Uma das

espetinhos de churrasco, pedir uma generosa porção de jiló frito e levar tudo

últimas paradas, já pegamos quase tudo. O sol se aprox ima do meio do céu;

para sentar sob a sombra nas mesinhas do trailer do João; onde a família já

a frente, ao norte, o trailer do João se aproxima. Os copos de cerveja em

estava esperando.

cima das mesinhas parecem bem gelados.

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.Quadro de referências .(dp) ‐ Daniela Pedrosa . A Feira Livre da avenida Brasil. .(gb)

‐ Gaston Bachelard . A casa. Do porão ao sotão. O sen꛶ do da cabana.

.(ia)

‐ I ñaki Ábalos . Picasso em férias: a casa fenomenológica.

.(lb)

‐ Ludmila Brandão . Abordagens e problemas epistemológicos.

.(mp) ‐ Maurice Merleau‐Ponty . Fenomenologia da Percepção

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CIDADE INFORMAL, FENOMENOLOGIA E PERCEPÇÃO: UMA PASSAGEM PELA COMUNIDADE DA RUA ARARANGUÁ Tatiana Pereira de Araújo


CIDADE INFORMAL, FENOMENOLOGIA E PERCEPÇÃO: Uma Passagem pela Comunidade da Rua Araranguá

Passando a geografia humanista pelo método fenomenológico e colocando a cidade informal como um lugar detido de significados e vastas experiências existenciais, seria a cidade

Disciplina: Cartografia do Espaço Habitado: fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade Professor: Dr. Rodrigo Gonçalves Mestranda: Tatiana Pereira de Araújo

informal um lugar fenomenológico? Se para Ábalos (2003) a casa fenomenológica é a casa da experiência, da riqueza perceptiva,

Cidade informal em aspectos físico-territoriais é a cidade que acontece nas áreas

da intenção e do momento existencial, uma multiplicidade de microcosmos, talvez possamos sugerir a

despreparadas para a vida urbana, às margens da cidade do controle, formalizada. Cardoso (2014)

cidade informal como a cidade fenomenológica. Nesse sentido a cidade informal é também um

coloca estes espaços como resultado de um processo de desenvolvimento orgânico e espontâneo de

ambiente de riqueza perceptiva, que desperta nossos sentidos. “O espaço deixa de ser entendido como

auto organização.

aquela extensão neutra própria do cientificismo cartesiano, e passa a ser um ‘ente habitado’ por

“[...] uma das características essenciais que define estes espaços urbanos, e que faz com que funcionem tão bem, é o fato de a estrutura física e espacial suportar de forma muito adequada a estrutura social e de relações das comunidades que neles habitam [...]. O tecido urbano orgânico é assim povoado de vida, por comparação com as estruturas urbanas fabricadas mecanicamente, que são eficientes em termos funcionais, mas se esvaziam de conteúdo.” (Cardoso, 2014)

estímulos e reações, por vetores, por desejos e afetos que orientam, antecipam e dão sentido às coisas, e ao nosso corpo entre elas.” (Ábalos, 2003). Para avançar nesta indagação propõe-se aqui um texto colagem, inspirado em Fuão, para o qual quem faz colagem recola os fragmentos do mundo e constituí um novo, a colagem acolhe e então

Meirelles e Athayde (2014) seguem uma abordagem semelhante afirmando que mais do que

cola. Tão fragmentado quanto a cidade informal, tão reconstruído e colado quanto a comunidade da

núcleos de moradia, são lugares vivos, orgânicos, compostos pela síntese de gente, histórias e culturas

rua Araranguá, em Blumenau. Resgato aqui as memórias da primeira visita realizada na comunidade

que ocupam um território. Os autores utilizam a geografia humanista para explicar a riqueza de

ainda em 2014, que deram lugar a uma descrição em sua tentativa mais pura, livre de análises e

experiências e vivências que é a cidade informal, colocando-a como “muito lugar”, pois um lugar de

julgamentos, uma redução fenomenológica.

verdade só adquire identidade pela interação humana. “Para um observador externo [...] pode ser o

“A fenomenologia é o estudo das essências, [...] a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia também é uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua ‘facticidade’.” (Merleau-Ponty, 1994).

lugar mais feio do mundo, desconexo, assimétrico e desprovido de estéticas formais. No entanto, enternece quem ali viveu a infância, que recebeu na construção modesta o primeiro carinho materno.” (Meirelles, 2014) Segundo a geografia humanista, corrente da Geografia que pesquisa as experiências das pessoas e grupos em relação ao espaço com o fim de entender seus valores e comportamentos, o conceito de “lugar” supera em muito o conceito de referência de localização: é o ambiente das nossas experiências, onde criamos raízes, onde nos sentimos seguros, onde nos consideramos em casa. Meirelles e Athayde (2014) fazem menção ao geógrafo Edward Relph, que afirma que boa parte do mundo atual está ocupado pelo “deslugar”, espaços padronizados, repetitivos, ocupados por pessoas alienadas ao mesmo, que não veem nada nele de particular, onde o verbo “estar” inspira o “tédio”. Rocha (2007) coloca ainda a fenomenologia como aporte para a geografia humanista. “A fenomenologia tem a ver com os princípios e as origens do significado e da experiência” (ROCHA, 2007) e para o autor, o uso dessa metodologia na Geografia coloca como mundo enquanto espaço vivido e de vivência, um conjunto contínuo e dinâmico onde o experimentador vive, se desloca, percebe e valoriza as coisas buscando atribuir-lhes significados.

A essa descrição juntam-se relatos de quem ali habita, representados pela Emanuela Conceição, moradora desde 2005 da comunidade e que nos guiou pelas primeiras visitas, e colam-se então estes fragmentos por breves reflexões. Escolhi a rua Araranguá como objeto de estudo nas etapas finais da graduação de arquitetura e urbanismo, não por existir qualquer memória afetiva com o lugar, mas pela curiosidade que esse território tão desconhecido e incompreendido me trazia. Encarei ela primeiro a partir de textos, que revelaram aquele pedaço de território incomum como sendo o pior dos casos. No Plano Municipal de Habitação de Interesse Social encontrei que era a mais populosa, com mais de seis mil moradores e de suas duas mil casas, mais da metade locada em áreas de risco, a carta de uso recomendado do solo indicando as raras áreas propícias à habitação. As análises geográficas mostraram uma ocupação feita utilizando rasgos do morro por onde corriam cursos d’água, o que tornou instável suas ruas e pavimentação, uma


geologia nada propícia a ocupação, altas declividades e topos de morros já ocupados. Abordagens históricas revelaram sua origem atrelada ao processo de favelização de Blumenau, quando às vésperas do centenário da cidade, o projeto urbano modernizante e higienista removeu os moradores operários próximos à Ponte de Ferro e transferiu para a rua Araranguá, na época já discriminada, deslocando o problema para trás dos morros. E nos rumores pela cidade muito se ouviu falar da rua Araranguá em 2008, quando uma catástrofe sócio-ambiental atingiu com força a cidade, atrelando enchentes e deslizamentos que trouxeram tragédia, medo e devastaram boa parte da comunidade. Além é claro, dos comentários sobre o “beco”, as drogas, a violência e o perigo, julgamento de grande parte das pessoas que desconhece o lugar.

sob uma parede de contenção que separa uma curta rua mais abaixo, onde vislumbra-se casas muito bem feitas. Uma delas, como se fosse uma composição de mosaicos e detalhes, cada peça tendo seu lugar, formando uma fachada de cores, texturas e ornamentos incomum, uma obra de arte. Continuamos a subida como se tivéssemos atravessado um portal. Não havia mais a conexão com a cidade, o barulho do terminal ou do trânsito central movimentado. Ali, envolvido em toda aquela densa vegetação, o que atraía era o frescor do ar, a brisa suave, o calor que havia amenizado, o som de pessoas conversando e a forma como parecia que cada casa tinha sido cuidadosamente encaixada na paisagem. A rua seguia asfaltada, mas quebradiça, possivelmente pelas águas pluviais e pelo excesso de peso de caminhões e ônibus em uma terra tão instável. Poucas calçadas, mas também poucos carros, os donos da rua agora eram os pedestres, que cumprimentam-se quando passam, provavelmente reconhecendo uns aos outros.

Poderia um lugar ser tudo de ruim e ainda assim reter mais de seis mil pessoas,

A esta altura já começava a aflorar os sentidos e percepções trazidos por um breve

construindo suas vidas a cada dia naquele território? Poderia ser tão ruim assim e se

estar que mesmo incompleto trazia novas perspectivas urbanas. Estava tão próxima do centro

reerguer com tanta força e coragem após uma grande catástrofe?

da cidade, mas já estava tão distante. Holl (2011) em sua obra “Questões da Percepção” traz as zonas fenomenológicas, que embora descritas para uma arquitetura, servem bem para o

Era preciso conhecer de verdade, era preciso ir além daquele amontoado de análises e

espaço da não-arquitetura. A comunidade da rua Araranguá, como a maioria das cidades

informações frias, olhar de perto e sem julgamento, permitir-se ver o que o morador vê, porque só ele

informais, traz cores à paisagem, cores que enchem os olhos de vida sejam por fachadas

ali habita e portanto minhas verdades tampouco interessam. Meu primeiro encontro com a Rua

fortes, por materiais crus ou por ornamentos, que vibram ainda mais em contraste ao verde de

Araranguá deu-se em um começo de tarde de verão em 2014.

seu entorno. Cercada de morro e mata, a luz que incide sobre os caminhos é superior, transcendental, e dançam sombras no asfalto. O som caótico da cidade desliga-se e dá lugar

Desci do ônibus no terminal localizado na base da comunidade, e caminhei por uma das vias bifurcadas da entrada. Esse primeiro trajeto, plano, asfaltado, tinha característica de um bairro comum, com exceção da presença forte de edifícios voltados à saúde, grandes prédios de consultórios envidraçados e hospitais. Em seguida algumas edificações públicas – creche, posto de saúde – e então a bifurcação se conecta. Compreendi olhando em frente que naquele instante começava a Comunidade da Rua Araranguá. Cheguei claramente como intrusa, caderno de anotações, máquina fotográfica, esperando uma amiga e moradora que me apresentaria o lugar. Parei por alguns momentos nesse espaço de transição, entre o formal e o informal, tentando compreender essa lacuna de identidade que parecia existir nesse primeiro trajeto. Não era o fato de Blumenau, como a boa cidade maquiada que é, esconder para dentro dos morros o que não quer mostrar, mas a ideia dessa entrada não parecer representar quem morava dali pra cima, como se dois eventos diferentes tivessem ocupado essa área, o que mais tarde descobri ter sido exatamente o que aconteceu. Emanuela Conceição, a Manu, jovem, negra, estudante, voluntária e moradora desde 2005 da rua Araranguá, chegou com um sorriso largo e começamos juntas a subir a rua. O segundo trecho, poderíamos assim chamar, apresenta dois níveis. Da rua, em um lado o morro coberto de vegetação, do outro um guarda-corpo

não a calmaria, mas ao som humano, menos motor, mais vozes. O tato capta desde a textura do piso, que segue variando na sola do pé, aos guardacorpos, cercas e escadarias. Seus materiais registram o desgaste e são puros - pedra, tijolo e madeira – e como bem coloca Pallasma “[...] deixam que a nossa visão penetre em suas superfícies e permitem que nos convençamos da veracidade da matéria [...] expressam sua idade e sua história” (Pallasma, 2011). A comunidade da rua Araranguá é verdadeira, ela é o que parece ser e assim ela acolhe, com sua escala, com sua natureza, simplicidade e valor humano. “Pra mim quando eu entro na Araranguá – eu sempre morei em lugares assim mais afastados, eu morava na República Argentina, sabe? No morro da Pedreira – e quando a gente se mudou pra cá eu senti um pouco de “baque”. Mas lá o lugar é parecido com aqui, a gente realmente entra em um lugar diferente, muitos julgam mas eu acho um lugar tranquilo porque não é aquela questão de o tempo todo passando carro não tem aquela bagunça e barulho de trânsito. Tu realmente entra e vai


se acalmando porque onde tu olha tu consegue ver carro, tu consegue ver morro. (...) As pessoas também, é diferente. Óbvio que vai ter pessoas que não moram muito tempo aqui ou que não se enturmaram mas a maioria das pessoas que tu passar não precisa nem conhecer, tu vai olhar pra ela e vai abrir um sorriso e ela vai abrir um sorriso pra ti e vai ser aquele negócio, talvez tu nunca conversou com a pessoa mas sempre que tu passar pela pessoa ela vai sorrir pra ti como se vocês se conhecessem a muito tempo ou como se já tivessem conversado. Eu acho isso uma coisa bem legal daqui. Aqui os vizinhos “cara” é uma coisa assim ó tu pode ser vizinho, tu mora no começo da rua a pessoa mora lá no final, a pessoa vai dizer que é teu vizinho. E vocês vão se encontrar no ponto de ônibus e vão conversar como se fossem super amigos. A vizinha aqui do lado da minha casa, por exemplo, nossa, é churrasco final de semana, é um na casa do outro, é por exemplo, tu precisa de tal coisa, o vizinho ‘ah eu sei disso’, ‘eu sei daquilo’, ‘vamos trocar informações’, ‘vamos se ajudar’, entendeu? Porque aqui é um clima mais harmonioso, por mais que seja conturbado na vista das pessoas ou claro que existe brigas e coisarada, mas não tem esse negócio, porque todo mundo meio que o tem faz feliz, entendeu?” – Manu sobre seu percurso pela comunidade. No mapa a rua Araranguá lembrava uma raiz axial, daquelas dos livros de biologia – uma linha mais forte, mais grossa, de onde brotavam outras linhas, em várias direções, se espalhando em traços orgânicos. Estando ali, era exatamente isso. Uma rua principal, asfaltada, iluminada, com a dita infraestrutura pública mínima necessária, por onde passa também a linha de ônibus e dos lados iam abrindo-se novos caminhos, mais altos, mais íngremes, estradas que variavam de largura, de textura, de aparência. Algumas tão inclinadas e com solos tão esfarelados que me perguntei como faziam para descer em dias de chuva. Essas pequenas ruas iam se conectando e formando o que para mim, observadora, componente externa, era quase um labirinto.

tavam sozinhos e a casa pegou fogo e a menina ficou presa na cadeira e os vizinhos ficaram tentando pular o muro pra tirar a criança mas também não conseguiram. E o outro que teve foi esses dias quando pegou fogo numa casa e a galera toda fez bazar fez isso e aquilo pra ajudarem eles porque né a mulher perdeu tudo e hoje em dia a mulher já tá reconstruindo a casa dela, isso faz pouco tempo entendeu? Ela conseguiu bastante roupas, conseguiu as máquinas dela de volta e eu acho bem legal aqui porque a galera é solidária, a gente não tem muito mas a gente mesmo assim ajuda entendeu?” – Manu sobre suas referências locais. Meus pontos de referência consistiam nos dois principais nós de ruas, após o posto de saúde, quando a bifurcação da entrada de encontrava e iniciava a comunidade, e bem mais a cima onde uma capela constituía quase que uma área central. Praticamente sempre um lado o barranco vai para cima, do outro desce, então de um lado ficam casas construídas abaixo do nível da rua onde vê-se o telhado, uma laje esperando a continuação da construção, ou uma edificação mais acomodada, sob pilares, no nível da rua. Do outro, no lado que sobe, garagens que são pequenos caixotes com portão encostadas na rua, ao lado de longas escadarias que acessam casas encaixadas na topografia, muitas vezes sequencias delas, 3, 4 casas iguais. Uma dessas casas repetia-se tão fielmente que dava a impressão de se estar presenciando uma falha na paisagem como uma sobreposição da vista. Muito se assemelha às descrições trazidas por Jacques (2003) em sua obra “Estética da Ginga” onde a autora reflete sobre a não-arquitetura, sobre o nosso despreparo enquanto arquiteto e urbanista para compreender tal lugar. Jacques relaciona três elementos à cidade informal, quase que de forma poética, estando ela constituída por fragmentos, labirintos e rizomas, “...os barracos são compostos de fragmentos, a aglomeração destes barracos forma labirintos, e estes, por sua vez, se desenvolvem pela cidade como rizomas.” (Jacques, 2003). Dos três, os fragmentos são o que, nessa escala caminhante, mais impressionam. Quanto mais

“Aqui geralmente as ruas são marcadas por bares, por exemplo, ali na rua da Alice Thiele (escola) tem o Bar do Tião que é o bar onde sempre que tu passar ali vai ter gente ali e tem a padaria da Fabi que é super conhecida. E tem uma coisa que é bem específica, que a galera sempre lembra aqui da rua que a primeira casa que caiu na enchente com morte foi aqui. Era uma mãe de uma menina ali embaixo que a menina tava chorando, daí a menina ficou em casa dormindo a mãe foi comprar um bico pra ela quando ela voltou a casa tinha caído. Isso é uma coisa também bem marcante. Outros dois fatos marcantes aqui foram que duas casas pegaram fogo (...) faz um tempão já mas o povo como é bem solidário aqui eu lembro que falaram que a casa pegou fogo porque um menino botou fogo na cadeira da irmã porque tinha formiga assim né e eles

alto no morro, mais fragmentário, talvez mais recente, as construções aparentam estar em permanente construção. Essencialmente para ser abrigo, as casas são autoconstruídas, erguidas por mutirão da própria comunidade, com materiais que vem sendo guardados ao longo dos anos. Estendem-se pilares, equilibra-se a laje, e a partir dali a casa cresce orgânica, acumulando novos materiais sobre o barranco, e avançando aos poucos nos finais de semana. Atraiu meu olhar também a relação com a rua. A rua como extensão das casas, como espaço de convivência – já que não há ali uma pracinha sequer – como lugar das brincadeiras de crianças, as casas com suas portas tão próximas, as sacadas mais altas com moradores sentados assistindo o movimento e chamando os transeuntes conhecidos para uma prosa. Diferente da cidade formal, onde


muitas vezes olhei prédios e prédios acima procurando uma alma na varanda sem encontrar ninguém, sem olhos para a rua, sem contato. E a Manu ia andando por ali cumprimentando, acenando, juntando amigas que subiam de volta pra casa depois de levar irmãos para a escola. Ao longo de percurso, poucos comércios, e quando existentes geralmente bares movimentados. Diferente de um bairro dormitório, onde os moradores saem todos para seus trabalhos distantes ao amanhecer e retornam à noite, circulavam bastante pessoas pela rua. Vários jovens, buscando irmãos na escola, alguns entregadores, muitos pareciam trabalhar no entorno também, ou estar ali por encarar jornadas de trabalho noturnas. Ao final da tarde enchem as ruas os estudantes, voltando para suas casas. A escola pública fica no centro da comunidade, em um terreno plano, porém elevado de forma que não seja vista pela rua, exceto sua rota de subida. Um pouco desconectada, a escola não consegue olhar para a Comunidade e a Comunidade não consegue olhar para a escola – reflexo da atenção dada pelo poder público? Subindo um pouco mais, na rua mais íngreme por onde caminhamos, estrada de terra, alcançamos um plano, de vegetação rasteira, grandes caixas de abastecimento de água cercadas e, ao redor, a praça que não existia na comunidade. Ali duas mulheres faziam caminhada juntas, algumas crianças brincavam de pipa e um garotinho girava com seu triciclo. Mais atrás, dois homens empinavam suas motos movimentando o barro. Das bordas, a vista ampla da cidade. Vê-se a comunidade de cima, - como Teseu e o labirinto - vê-se uma imensidão de floresta que parece não ter fim, vê-se o telhado da escola e a movimentação das crianças, vê-se a sutil linha que lá embaixo segrega a cidade, iniciando uma nuvem de altos edifícios tocando as florestas. Por cima de nós, aquele céu cheio de cor, anunciando o fim da tarde. Do alto desse mirante, vê-se a paisagem, a paisagem como um território fabricado e habitado de Besse (2014), que em seus olhares sobre a paisagem deixa evidente tratar-se muito além de valores estéticos. “[...] a paisagem pode ser definida como um território produzido e praticado pelas sociedades humanas, por motivos que são, ao mesmo tempo, econômicos, políticos e culturais. [...] o valor paisagístico de um lugar não é considerado unicamente do ponto de vista estético (embora também o seja), é considerado mais em relação com a soma das experimentações, dos costumes, das práticas desenvolvidas por um grupo humano nesse lugar.” (Besse, 2014) Ainda sobre os valores estéticos, Besse aborda Jackson, para o qual devemos considerar as paisagens “[...] também pelo modo como satisfazem algumas necessidades ‘existenciais’ do ser humano (necessidades existenciais, aliás, que são sobretudo, necessidades afetivas e sociais).” (Besse, 2014). A paisagem é um espaço organizado, como uma escrita na superfície da terra resultante da ação humana, uma obra coletiva da sociedade e lê-la é perceber os rastros da humanidade, suas memórias, desvendar sua organização no espaço. Olhando para a comunidade da rua Araranguá, enraizada e sobressalente em meio a

vegetação, fica evidente a reflexão central de Besse para a paisagem fabricada, “a expressão de um esforço humano, sempre frágil, e a ser recomeçado, para habitar o mundo.” (Besse, 2014) Descemos e seguimos para a nossa última parada, a casa da Manu. Paramos diante de uma longa escadaria, mais inclinada que de costume e sempre reta, de degraus cimentícios irregulares. À esquerda as laterais das casas vizinhas, à direita, uma, duas, três, quatro casas. Gatos descansando sobre muretas, materiais acumulados sob as lajes, janelas e portas abertas. Entramos na última casa e fui contemplada por um instantâneo acolhimento. O pé direito baixo, o piso de madeira, a mãe na cozinha, o pai na sala, o cheiro do assoalho. Uma escada caracol levava para o andar de cima, todo de madeira. Os quartos, pequenos, aconchegantes, memórias nas paredes dos irmãos que já se mudaram. A pintura clara, a janela emoldurando a paisagem lá fora, tão verde, tão viva. “Depois do desastre de 2008... eu me mudei pra cá em 2005... tipo, foi bem tenso porque da minha janela do meu quarto (...) mas caiu muita, muita terra, muita árvore e era muito estranho porque a gente tava todo mundo aqui em casa, eu, minha mãe, minha irmã, tudo e qualquer barulho que a gente escutava a gente olhava na janela porque era barulho de árvore estralando, a gente olhava aquele matagal, aquela lamaceira descendo foi bem tenso. Eu lembro que 2008 todo mundo falou que uma galera saiu das casas aqui da rua, porque (...) eu moro meio que num buraco, tudo em volta é morro e árvore e eles tavam falando que pra cima da minha casa tinha rachado a terra e tava pra cair tudo, foi bem tenso assim. Mas depois de 2008 mudou muito a galera daqui, porque a galera daqui saiu porque percebeu que tava ficando feia a situação, depois de 2008 eu percebi que caiu porque voltou a encher muito aqui a rua sabe, mas fez o povo ficar mais amigo, mais parceiro assim sabe. Porque quando dá uma chuva e vai encher uns já começam a avisar o outro – ‘teu carro ta na rua, bota num morro’, ‘vai em tal lugar’, a gente ajuda, ajuda vizinho a reerguer as coisas. (...) A galera ficou mais solidária porque querendo ou não a gente precisa disso aqui.” Manu sobre a transição pós desastre em 2008. Ali ouvi relatos das memórias desde que se mudaram, naquela janela assistiram a terra deslizar durantes as chuvas fortes, ali sentiram medo, ali sentiram solidariedade, mas ali sentiram também que era possível reconstruir. Ouvi o quanto gostavam de morar ali, ouvi que muitos moradores foram relocados e ficaram insatisfeitos – coisa que ouvi em visita posterior ao centro de educação infantil, quando uma ex-moradora havia chego para ajudar nas atividades voluntárias do centro vinda do bairro vizinho, porque seus laços ainda estavam ali.


“A minha casa é uma casa mais simples mas ela é bem acolhedora. É uma casa de dois andares e ela tem uma vista linda, eu amo essa vista aqui do meu quarto por questão de ser em volta tudo árvore tudo uma coisa mais natural (...) pega um vento muito gostoso aqui em cima, o pôr do sol é diretamente na minha janela então eu consigo tirar umas fotos muito lindas (...) a vista é realmente bonita. Eu amo o fato de eu morar numa escadaria onde as pessoas são todas elas parceiras desde o primeiro cara que mora na primeira casa tanto a última que é a minha e porque é nosso amigo de infância do meu irmão, que morava ali na frente da rua, daí casou veio morar na escadaria, a outra é a minha irmã né, tem a questão de ter meu sobrinho perto de mim, ou ela precisar de uma coisa eu tá ali pra ajudar então é muito gratificante. Tem a minha vizinha que também mora a muito tempo aqui já, eu acho muito gostoso essa questão. O ambiente aqui de casa é muito gostoso. (...) O fato da gente ser muito unido acho que ajuda muito sabe.” Manu descrevendo a própria casa. Sair da casa requereu um certo equilíbrio para descer as escadarias. Voltamos para a rua principal, sentindo ainda mais o frescor do fim de tarde e seguimos descendo, me despedi aos poucos das casas, da alegria emanada pelos moradores, das árvores que acobertavam as ruas, daquela riqueza de cores, sombras, luzes, materiais e detalhes. Porque ali nada era programado. O caminho de volta mostrou ainda mais casas e ruas que não havia percebido. Chegamos ao posto de saúde, que bifurca a via, me despedi, e segui pela direita, rua diferente da qual entrei, e passos à frente já estava de volta à cidade, me distanciado cada vez mais daquele resquício tão humano.

território livre de projetos e explicações, sua não-arquitetura e não-urbanismo, acomodam, acolhem com todo cuidado cada parte do seu ser. O despertar dos sentidos, a cidade fenomenológica vem principalmente do encontro ao inesperado, do deixar fluir por um horizonte novo a cada encontro. A rua Araranguá traz na memória a cidade de Tecla, dos contos que Ítalo Calvino bem descreve: “Quando se chega a Tecla, pouco se vê da cidade, escondida atrás dos tapumes, das defesas de pano, dos andaimes, das armaduras metálicas, das pontes de madeira suspensas por cabos ou apoiadas em cavaletes, das escadas de corda, dos fardos de juta. À pergunta: Por que a construção de Tecla prolonga-se por tanto tempo?, os habitantes, sem deixar de içar baldes, de baixar cabos de ferro, de mover longos pincéis para cima e para baixo, respondem: - Para que não comece a destruição. – E, questionados se temem que após a retirada dos andaimes a cidade comece a desmoronar e a despedaçar-se, acrescentam rapidamente, sussurrando: - Não só a cidade. Se, insatisfeito com as respostas, alguém espia através dos cercados, vê guindastes que erguem outros guindastes, armações que revestem outras armações, traves que escoram outras traves. – Qual é o sentido de tanta construção? – pergunta. – Qual é o objetivo de uma cidade em construção se não uma cidade? Onde está o plano que vocês seguem, o projeto? – Mostraremos assim que terminar a jornada de trabalho; agora não podemos ser interrompidos - respondem. O trabalho cessa ao pôr do sol. A noite cai sobre os canteiros de obras. É uma noite estrelada. – Eis o projeto – dizem.” (Calvino, 1990). Embora “As Cidades e o Céu” tenham sido descritas mais relacionadas a formalidades e ideias de perfeição, o que se encontra no poema é a construção constante, o alcance de cada vez mais altura e o projeto transcendental que a orienta. Em uma história de lutas e tragédias,

“Acho que a Araranguá já é tão mal falada pelos outros, tão julgada, que quando alguém pergunta pra gente como é aqui a gente tem que fazer o máximo pra mostrar o lado bom que a gente tem sabe. Porque não é só briga, não é só coisas ruins que acontecem aqui. A gente tem todo esse lado positivo, sabe? Então quanto mais a gente puder mostrar esse lado bom que é nosso e acabar com esse tabu que tem daqui da Araranguá eu acho que é melhor entendeu? Então por isso acho a gente faz tanta questão de mostrar o quanto é bom tá aqui, o quanto é agradável, o quanto é tranquilo.” – Manu sobre a comunidade A Manu habita a dobra, habita a palma da mão, a concavidade do morro e por isso tão

se tem algo que a comunidade deixou evidente, como tantas outras, é a sua capacidade de se reerguer e reconstruir. Construção permanente que se mantém com o surgimento de novas moradias e crescimento das existentes, melhorando ao poucos, sempre que possível, “para que não comece a destruição”. E dessa constante e rápida mutação é que vem as surpresas, o despertar dos sentidos, o encontro com o improvável e o desafio às lógicas vigentes. Bibliografia: ÁBALOS, Iñaki. A boa-vida: visita guiada às casas da modernidade. Barcelona: Gustavo Gilli, 2003.

bem acolhida. A Manu personifica a comunidade da Rua Araranguá, onde o valor social se

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus,

sobrepõe ao valor físico, o imaterial ao material, e os seres que habitam junto dela fazem parte

1994.

da representação espacial do lugar, sem os quais a Araranguá não seria. A rua Araranguá

BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.

represente bem a cidade informal, fragmentada, resiliente, e deixa evidente o quanto seu

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


CARDOSO, Maria do Rosário Andrade Santos Leitão. Da Cidade Informal à Cidade Formal: A reinterpretação da estrutura socio-espacial como suporte para a intervenção no bairro do Barruncho. 2014. Dissertação (Mestrado em Arquitetura). Faculdade de Arquitectura – Universidade de Lisboa, Lisboa. 2014. FUÃO, Fernando Freitas; SOLIS, Dirce Eleonora. Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. HOLL, Steven. Cuestiones de percepción: fenomenologia de la arquitectura. Barcelona: GGili, 2011. JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica / Paola Berenstein Jacques. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003 [2ª Edição] MEIRELLES, Renato. Um País Chamado Favela: a maior pesquisa já feita sobre a favela brasileira / Renato Meirelles, Celso Athayde. – São Paulo: Editora Gente, 2014. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. MOSER, Magali. A indisfarçável favelização em Blumenau. Blumenau em Cadernos, Blumenau, v. 2. Março/abril. 2010. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011. Plano Municipal de Habitação de Interesse Social. Prefeitura Municipal de Blumenau. 2011. ROCHA, Samir Alexandre. Geografia Humanista: História, conceitos e o uso da paisagem percebida como perspectiva de estudo. R. RA´E GA, Curitiba, n. 13, p. 19-27, 2007. Editora UFPR. SAMAGAIA, Jacqueline. Globalização e Cidade : reconfigurações dos espaçoes de pobreza em Blumenau/SC. 2010. 265 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Cento de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2010. VIEIRA, Rafaela. Um olhar sobre a paisagem e o lugar como expressão do comportamento frente ao risco de deslizamento. 2004. 198 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Cento de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2004.


PRÉ-TEXTO OBLÍQUO, HÍBRIDO E (COM)PAIXÃO Moema Parode


Acompanhe imagens em https://moemaparode.wordpress.com/

não-indígena, autóctone e alóctone, aldeia e meio urbano? Não sei, talvez. Decidi partir para a investigação corporal novamente.

___________________________________________________Pré-texto A trajetória ainda é mínima na busca em descobrir quem sou, e para isso, a existência do outro sempre me foi essencial. Acabei por descobrir em Merleau-Ponty (1994) o ideal de mundo bem-sucedido que sempre acreditei: “a ciência não tem e jamais terá o

MERLEAU-PONTY, Maurice. Prefácio. In: MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 1-20. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011.

mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma

SOMOS NÓS

determinação ou explicação dele”, e na ciência de projetar casas, o maior dos experimentos

Vocês dizem que não entendem

vivenciado pelo meu corpo foi construir uma com as próprias mãos. Revivi alguns dos

Que barulho é esse que vem das ruas Que não sabem que voz é essa

minutos exaustivos martelando na tentativa de prender viga a pilar, e dores a cada

que caminha com pedras nas mãos

centímetro da cova de um metro e meio de profundidade, no momento em que lia

em busca de justiça, porque não dizer, vingança.

Pallasmaa (2011) e percebia que “a arte da visão tem nos oferecido edificações imponentes

Dentro do castelo às custas da miséria humana

e instigantes, mas não tem promovido a conexão humana ao mundo”. Revivi os momentos

Alega não entender a fúria que nasce dos sem causas, dos sem comidas e dos sem casas.

em que o corpo buscava interpretar o que era dito através de olhares, gestos, sorrisos,

O capitão do mato dispara com seu chicote

expressões faciais e (re)senti o cheiro da falta de saneamento básico, das roupas molhadas,

A pólvora indigna dos tiranos

dos corpos sem banho, e do almoço. Estávamos conectados com o mundo, o corpo

Que se escondem por trás da cortina do lacrimogêneo,

enxergava por inteiro. A casa em madeira, com dezoito metros quadrados, três janelas,

O CHICOTE ESTRALA, MAS ESSE POVO NÃO SE CALA

uma porta, dois centímetros de lama sobre o piso, cartazes de boas-vindas, balões,

___________________________________________________oblíquo,

abraços, risadas e choro. Talvez nosso mundo fenomenológico. O mundo fenomenológico, nas palavras de Merleau-Ponty (1994), pode ser definido

A ideia indígena aprendida no meio escolar, era equivocada. Quando pediam comida

como o sentido que transparece na intersecção das minhas experiências e a relação delas

ou qualquer outra coisa que tivéssemos para dar, no portão de casa, ou quando estavam

com as dos outros, ou seja, meu primeiro encontro com a vulnerabilidade social,

de passagem pela cidade, não usavam tanga, cocar, não estavam com os rostos pintas, e

segregação urbana, ausência de emprego, moradia, educação, relacionado a quem vivencia

definitivamente não ficavam fazendo sons estranhos, batendo a mão na boca, em círculos.

esse mundo todos os dias, desde o nascimento. Respostas foram obtidas, mas as perguntas

Aprendi sobre a etnia indígena, e em casa sobre “bugres”. A diferença entre eles era que

acumulam-se. O corpo experimental é incapaz de retornar ao estado anterior. Seria o

“bugre é um índio mais moderno”. Não sabia onde moravam, porquê saiam de suas casas,

universo dos esquecidos? Economicamente, talvez. Abandonados pelos ideais, costumes,

por que não trabalhavam, como não sentiam frio. Depois de alguns momentos de

sociabilidade? Falta infraestrutura, alteridade, empatia, e integração com o restante da

questionamentos a vida seguia. Afinal são “os ninguéns” de Galeano: “custam menos que

cidade. É basicamente um mundo paralelo. Um mundo que inicia onde o do outro finaliza.

a bala que os mata”.

Sem relação, sobreposição, afinidade, ou vínculo qualquer. Fui separada do mundo pela visão, e foi necessário o envolvimento de todos os outros sentidos para voltar a me unir a ele (Pallasmaa, 2011). Percepção de pessoas,

Hoje adquiro um pensamento diferente, conflito com a sociedade, que inicia dentro de minha casa. Acredito que o assunto indigenista seja como um tabu, como falar de sexismo, racismo, xenofobia. Foi o maior genocídio da história mundial, inclusive.

objetos, clima, tempo, espaço, cidade, casa, caminho, movimento, ações, interações, que

Estamos em uma cidade a cinquenta quilômetros da maior Terra Indígena do Rio

vivenciei e investiguei com todos os sentidos existentes em mim, e que agora transcendem

Grande do Sul, somos descentes alemães, brancos, e nos solidarizamos com os colonos

a geometria, a mensurabilidade, a ciência. Meu corpo encontra explicações, compreende,

que perderam suas terras - com muito conflito1 - e agora não cultivam mais os vinte e três

respeita e aceita, quando se coloca no lugar do outro. Alteridade, talvez. Em algum momento, repassando essas memórias da experiência corporal, pensei comigo: não poderia relacionar as indagações que ainda residem em mim, com o que acontece entre indígena e

Desde a primeira demarcação da TI Guarita, ainda em 1908, os indígenas aldeados passaram a estabelecer as mais diversas relações com o homem branco residente nas regiões periféricas. É neste espaço de transição, ou fronteira, que podem ser caracterizadas as contravenções entre índios e não índios, em seus diversos aspectos, como o geográfico, étnico, social, econômico. O que pode ser explicado pela crença da superioridade intelectual, de raça de religiosidade, de vida em comunidade perante a visão 1


mil hectares ocupados pela Reserva. Percebi que é um discurso patriarcal, que passa de

professor, amante da poesia, afirma para os alunos que a poesia é para ser vivida, não

geração para geração, remontado ao longo da nossa existência, como um folclore: nossos

calculada, e que devem pensar por si mesmos, e não do modo como são mandados. Que

antepassados alemães chegaram no país, no Rio Grande do Sul, após muito sofrimento,

se deve rasgar o que pretende nos massificar, a poética de nossa vida nos é livre. Encontrei

sem posses, dispostos a trabalhar e reconstruir sua vida. Lutaram, conquistaram e

outro dia, colado em um sanitário, o trecho de um livro de Conceição Evaristo:

construíram tudo o que temos até hoje. Os indígenas, sem esforço algum, esperaram assistência e solidariedade. Não possuem residência, não idealizam construir patrimônio.

Creio que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os

Privilegiados, desde sempre os sustentamos com nosso progresso, e hoje eles têm celular,

limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do

dirigem carros, têm casas de alvenaria, usam roupas, calçados, nem são mais verdadeiros

sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo. Na maioria das vezes escrever dói, mas depois do texto escrito é possível apaziguar um

índios. E então, passa a ser hipocrisia de quem quer que seja “ficar ao lado deles”. É ainda

pouco a dor, um pouco... Escrever pode ser uma espécie de vingança, um desafio, um

uma dicotomia, uma escolha de partido. É fazer política. É não estar a favor do capitalismo,

modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda, um gesto de teimosa esperança. E afirmo

ser contra nós brancos, modernos, evoluídos, trabalhadores, que lutamos pela nossa

sempre que a nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da

cultura e nossos direitos – contra o dos outros.

casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos (EVARISTO, 2007,

Em um trabalho voluntário na Argentina, descobri que às vezes também me incluo

pag. 21).

no senso comum, que acredita no conceito de cultura como algo elitista, como sendo um produto superior, desenvolvido com tempo e qualidades superiores, e exige qualidades

Porque escrever também me dói. Muitas vezes preferi exatizar, a poemizar a vida.

superiores para ser usufruída. É o teatro, a ópera, pintura, esculturas. É, portanto, possuir

Porém, esse exercício de escrevivência permite expor e continuar as lutas de gênero e

um conjunto de conhecimentos, informações, que “pessoas comuns” não possuem, e ter

classe que vieram de meus pais. Uma, doméstica aos onze anos de idade, mãe aos

capacidade especial para apreciar e usufruir desse patrimônio. Esses seres, cultos, são em

dezessete, divorciada, hoje graduada; o outro, fruto de “pai desconhecido”, neto de

geral, admirados pelo “povo em geral”. As pessoas são divididas entre as que sabem, e as

indígena, até a idade escolar não usava calçados, militante.

que não sabem (DURKHAM, 1984), mas a todo momento tento entender e incorporar as

De um presente dele para ela, um livro de poesias, surgiu um nome. O triste poema

ressignificações, os novos conceitos, os tabus destruídos, e a quebra de crenças e

em que Moema, a índia, apaixonada por Diogo, português, morre nadando, tentando evitar

preconceito.

a partida de seu amor com Paraguaçu para Portugal. Trecho do épico “Caramuru” de Santa

Esse é o desejo: fazer algo, que acrescente ao outro e a mim mesma ao mesmo

Rita Durão. Temos em comum, além do nome, não saber sobre desistência.

tempo, que desconstrua e remonte. Talvez exista essa capacidade subcortical expressada por Raquel Rolnik (2011), que nos permite apreender a alteridade em sua condição de

DURÃO, Santa Rita. Caramuru. Rio de Janeiro: Agir: coleção Nossos Clássicos, 1961.

corpo sob a forma de sensações e com ela, o outro é uma presença que se integra à nossa

EVARISTO, Conceição. Representações Performáticas Brasileiras: teórias, práticas e suas interfaces. (org) Marcos

textura sensível, tornando-se, assim, parte de nós mesmos. O que me leva a querer invadir

Antônio Alexandre, Belo Horizonte, Mazza Edições, 2007.

a geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer a sua travessia.

FRANCISCO, Aline Ramos. Selvagens e intrusos em seu próprio território: a expropriação do território Jê no sul

Chegando à cartografia, às estratégias das formações do desejo no campo social.

do Brasil (1808-1875). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História, Universidade do Vale do Rio

No filme de Peter Weir, Sociedade dos poetas mortos, 1959, houve quem tentasse “matematizar” a poesia, transformando-a em gráficos, de natureza exata. Keating, o novo

dos Sinos, 2006. GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução Eric Napomuceno.- 9. Ed. – Porto Alegre: L&PM, 2002. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental – transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina/Editora

europeia do imigrante, que acreditava poder impor sua vontade, seus conceitos e exercer plenamente seus direitos. Esse pensamento ocidental, classifica, ordena e identifica o objeto de análise segundo os critérios que existem apenas na sua cultura. A atitude de classificar o outro a partir de suas visões é característica de todos: indivíduos, grupo e comunidades. Esse processo de ocidentalização não ocorreu sem resistências, os indígenas da etnia Kaingang apresentavam as resistências mais diretas, com ataques. Em Guarita, no período inicial de convivência com os fazendeiros, os indígenas fabricavam erva-mate para troca, alugavam seus serviços para ervateiros da região, plantavam em suas roças, vendiam cestos, peneiras, chapéus de fibras vegetais e saiam ao mato para caçar e pescar, sendo considerado um dos aldeamentos mais produtivos em relação aos outros, porém as entradas e saídas de grupos eram constantes, tornando a permanência no aldeamento uma constante negociação de roupas, objetos e até as terras (FRANCISCO, 2006).

UFRGS, 2011. Quem grita somos nós, Os sem educação, os sem hospitais e sem segurança. Somos nós, órfãos de pátria Os filhos bastardos da nação.


Somos nós, os pretos, os pobres, Os brancos indignados e os índios Cansados do cachimbo da paz. Essa voz que brada que atordoa seu sono

maioria graduados na Universidade de Santa Catarina. A direção é composta por duas professoras brancas, e todos os funcionários são indígenas que residem na aldeia. Tamara,

a

secretária,

contou-me

alguns

diferencias

de

seu

trabalho,

Vem dos calos da mãos, que vão cerrando os punhos

principalmente, a possibilidade de transferências entre escolas indígenas para a

Até que a noite venha

permanência do aluno por cinco, sete dias (ou durante o período que sua família fica

E as canções de ninar vão se tornando hinos Na boca suja dos revoltados.

____________________________________________________híbrido

visitando os parentes). Antes de ser interrompida por Vitória, que adentra a secretaria para dizer à Tamara que ela estava linda. Vitória, engraçada, sorridente, alegre com os cabelos encaracolados e levemente loiros nas pontas, lindo, era uma das poucas crianças que possuía um caderno capa dura e espiral. Frequentava o 2˚ ano, alfabetizada em Kaingang

O modo curto, sintetizado, sucinto e prático de falar do Cacique Valdonês, me trouxe

e português. Falava a língua que melhor cabia ao momento. Logo que cheguei, ria de mim

felicidade. Não houve cordialidades em excesso, apenas o essencial. Antes de atender à

em Kaingang com as colegas, mas não demorou muito para me pedir que tirasse uma foto

ligação, escutei ao invés do rotineiro sinal de chamada, um sertanejo romântico atual.

sua, em português, e logo em seguida, que pudesse ela mesma tirar fotos pela escola. Foi

Animador. Reconheci os processos de hibridismo, a miscigenação, a mestiçagem, ainda no

a primeira pessoa a me chamar de “profe”, e também a primeira a elogiar meu tênis rosa.

primeiro minuto de contato direto com um indígena.

Maiara, colega de Vitória, usava uma saia do filme Frozen, que combinava com seu chinelo

O fato da maioria indígena residente na Terra Indígena Guarita ter fluência em

rosa, blusa rosa e a jaqueta jeans. Tinha um sorriso maravilhoso, e os dentes perfeitos. A

Kaingang e português já é o primeiro sinal de produto resultante da fusão de dois

maioria possuía um caderno, lápis e borracha oferecido pela escola, que faz estoque dos

diferentes: são os indígenas bilíngues. Para Ana Rosas Mantecón (1993), as diferentes

materiais, sabendo que não os tratam como obrigação de posse, e quase que diariamente

culturas são vistas como indefesas, despreparados para encontros com culturas

necessitam de novos.

metropolitanas, suas produções simbólicas locais são subestimadas. Ulf Hannerz acredita

Me diverti vendo-os disputar a câmera para tirarem fotos uns dos outros, enquanto

que os contínuos contatos entre centro e periferia tem proporcionado às criativas culturas

me chamavam de profe, e tentavam me agradar, para ganhar preferência na fila. A

locais uma ampla assimilação e reformulação das ofertas metropolitanas. Essas interações

espontaneidade só veio com um indígena atrás da câmera, confiança talvez. Como Solange,

com as produções culturais locais, produzem muitas influências, e após um tempo,

professora do 6 ˚ ano, indígena, graduada pela licenciatura indígena na Universidade

tornam-se irreconhecíveis, estão hibridizadas.

Federal de Santa Catarina em 2007, que conversava comigo desviando meus olhos, e em

Valdonês também dirigia seu carro, usava calça jeans e camiseta, ligava de seu

alguma parte da história que contava, referiu-se a mim como “vocês brancos”. Percebi que

smartphone. A mulher que o esperava no carro, também indígena, tinha os cabelos

não há confiança em quem já conviveu em meio predominantemente branco por muito

pintados, loiros. Precisei comunica-lo, explicar, deixar registrado minha ideia de pesquisa,

tempo. Aceito, sei que faço parte desse grupo, e que cotas, como a que Solange utilizou,

e breve permanência de alguns dias em um trabalho voluntário na Escola Toldo Campinas,

ainda é o mínimo que fizemos para iniciar o processo paliativo de nossa remissão à história

na aldeia Estiva, para que pudesse receber seu aval e poder frequentar a Terra Indígena

indígena.

que lidera.

Os cartazes expostos na área aberta do espaço escolar, são em Kaingang e

Na chegada à aldeia por um caminho não usual, uma placa no estilo “atenção

português, expõe sobre as metades exogâmicas, sobre sexualidade, emoções e sentimentos

animais na pista”, havia substituído a palavra “animais” por “indígenas”. A RS-330

na adolescência, frases “trava-língua” e festa junina. Perguntei ao Cristian, um menino da

delimita uma das fronteiras da Terra Indígena. É utilizada pelos indígenas da Estiva como

4 ˚ série qual o cartaz que ele era – se Kamé ou Kanhru – me explicou que era Kamé, e

meio político, para manifestos e protestos, e como principal acesso às cidades vizinhas de

sabia fazer todos aqueles artesanatos que estavam desenhados (balaios, garrafas, cestos,

Tenente Portela e Redentora.

entre outros). Entre alunos e não-alunos circulando pelo local, há gatos e cachorros, e o

A Escola Toldo Campinas, que frequentei pouco mais de um dia, funciona de

chão coberto de poeira. Almoçamos galinhada, eu, Tamara e Solange, que preferiu a

maneira diferenciada. Alunos e não-alunos podem frequentar o espaço, entrar e sair a hora

batata-doce, o que chamou de “comida forte”, e que por isso, quando esteve na

que desejarem. O corpo docente é em maior número composto por indígenas e em sua

Universidade, vendia seus passes do Restaurante Universitário para brancos, uma vez que


“aquela não é comida para índio”, e que no hotel onde se hospedavam a comida destinada

utilizado o carro para ir até lá, mas foi um empréstimo de meu pai, na verdade, e não fazia

a eles era diferenciada, com instruções dos próprios indígenas ao chef da cozinha, para

nem ideia do tipo de motor, só lembrava que era 1.4. O que o leva a concluir, todo

que pudessem preparar o alimento aos seus gostos, diariamente.

sorridente e orgulhoso, que ele possui um carro igual, porém, motor 1.8.

Me surpreendi ao ver que era um dia incomum na vivência da escola: havia ensaio

Há na aldeia duas instituições públicas: a Escola Indígena de Ensino Fundamental

da Banda Marcial Indígena, formada por alunos da própria escola e de escolas de diferentes

Toldo Campinas, e uma Unidade Básica de Saúde. Há também um pequeno local para a

aldeias. O ensaio foi em uma quadra de futebol, espaço que me parece ser utilizado para

venda de artesanato local, ao lado da RS-330. Tamara me explica que há pouco tempo

todas as formas de lazer. O ensino do professor, também indígena, não era absorvido pelos

uma família iniciou no processo de revenda de produtos alimentícios. Produtos que não

alunos logo da primeira vez. Era necessário demonstrar/explicar quatro ou cinco vezes,

produzem no local, como refrigerantes, bolachas, sorvetes, que atualmente precisam se

até que pudessem entender.

deslocar aos municípios mais perto para comprar. Uma nova era, a comercial, se aproxima.

Percebi uma timidez no geral. E quanto o tempo passa de forma diferenciada. Praticamente todos da aldeia vieram assistir o ensaio, ente suas conversas e rodas de

BALLIVIÁN, José M. P. P., BALLIVIÁN, Alexandra C. P. P. Tecendo Relações Além da Aldeia: O artesanato indígena

chimarrão. Foi incomum encontrar uma estrutura efêmera, como se fosse uma grande

em cidades da região sul. In: O bem viver na criação. São Leopoldo: Oikos, 2013.

barraca montada ao lado dessa quadra de futebol. Segundo Tamara, ela estava montada

________ Moradias indígenas e seus entornos. São Leopoldo: Oikos, 2014.

há alguns dias para os cultos e festividades da recente religião que havia conquistado fiéis

_______ Artesanato Kaingang e Guarani. São Leopoldo: Oikos, 2011.

na aldeia, a Igreja Universal do Reino de Deus. Era possível ver várias mulheres usando

MANTECÓN, Ana Rosas. Alteridades. México: Universidad Autónoma Metropolitana Unidad Iztapalapa, Distrito Federal,

saia, um vestuário específico dessa religião.

vol 8, num. 16, pp. 3-9, 1998.

Sentamos para assistir à banda, eu, Vitória, Maiara, e outras três ou quatro Tenham medo sim,

meninas tímidas demais. Entre passos de dança, disputas pela câmera que agora estava

Somos nós, os famintos,

no modo de filmagem, conversamos sobre poucas coisas. Vitória contou que morava na

Os que dormem na calçadas frias,

casa rosa – de alvenaria – toda orgulhosa. Perguntei quem morava do lado, porque

Os escravos dos ônibus negreiros,

contrastava: uma casa era de alvenaria, com reboco, pintada, aberturas em alumínio,

Os assalariados esmagados no trem, Os que na tua opinião,

telhas fibrocimento, e outra casa, logo ao lado, com madeiras de demolição, grandes

Não deviam ter nascido.

frestas, telhado em zinco, e um tamanho reduzido, parecia apenas um cômodo, Vitória

Teu medo faz sentido,

então me respondeu que era Ricardo, seu primo, mas que “tinha ido vender balaio”, uma

Em tua direção Vai as mães dos filhos mortos

das principais formas de renda das famílias.

O pai dos filhos tortos

Uma das fontes de renda recebida na maioria das famílias é o “Bolsa Família”, porém

Te devolverem todos os crimes Causados pelo descaso da sua consciência.

já não é suficiente para sanar as necessidades, levando-os a buscar emprego fora da

Quem marcha em tua direção?

aldeia. Há também profissões de pessoas ligadas à escola, ao posto de saúde, e trabalhos temporários como vigias noturnos, tratorista/peão em propriedades rurais, e em indústrias da região. Poucas famílias sobrevivem exclusivamente da agricultura, porém a maioria possui uma pequena roça e animais. As três principais fontes de renda das famílias são: a venda de artesanato, a aposentadoria, e o trabalho de “diarista” (BALLIVIÁN, 2013, pag. 12).

_____________________________________________e (com) paixão. Nos quarenta quilômetros que seguiram até chegar em casa, ri sozinha, lembrando das peripécias das crianças, do sotaque engraçado, do carinho e recepção calorosa. Ainda me alegro lembrando de Vitória e Maiara. Apego fácil, e também um afeto, uma curiosidade

O senhor indígena que fazia a limpeza da área coberta da escola, curioso, me

de saber o que fazem agora, o que irão fazer nos próximos anos.

pergunta, se o carro que estava estacionado em frente à escola era meu, e quais as

Sinto fazendo pouco. Mesma sensação de quando retornei do trabalho voluntário.

configurações do motor, quantos cavalos, ou algo do tipo. Respondi que sim, tinha

Lá me senti útil, nem que fosse modificando a realidade uma pessoa, uma família, modificando um dia da sua vida, nem que fosse com minha simples presença.


Não houve “choque cultural” como dizem. Os indígenas são normais, apenas muito mais inteligentes: bilíngues e mestres no artesanato com apenas sete anos. Por várias

CHAUÍ, Marilena. O que é democracia?. Florianópolis, 2016.

vezes pude me encontrar neles, no jeito sucinto de falar, na falta de confiança à primeira

VAZ, Sérgio. Flores de Alvenaria. São Paulo: Global, 2016.

vista, na timidez inicial, no jeito afetuoso, na necessidade de elogiar, na reciprocidade e simplicidade. Afinal, segundo Merleau-Ponty, eu e o outro somos tecidos da mesma carne e o que eu faço influencia em outrem e vice-versa. O corpo necessita de experiências, de situações abstratas. Várias vezes me pergunto

Somos nós, os brasileiros Que nunca dormiram E os que estão acordando agora.

se está na academia o meio de encontra-las. Encontro alguns egos elevados, que desejo

Antes tarde do que nunca.

nunca parecer. Como diria o poeta Sérgio Vaz, “uns esperando o mundo acabar. Outros,

E para aqueles que acharam que era nunca,

começar. E eu, sequer sei de que mundo sou”. Porque vivemos em um mundo de incertezas, de fatos novos que vivem continuamente, necessitamos de capacidade de inovação. Pesquisas sensíveis à diminuição das desigualdades sociais. Nossa sociedade brasileira, polarizada, entre as carências das classes populares e os privilégios das classes dominantes, conduz a bloqueio de direitos. O autoritarismo e preconceito racial, de classe e sexo, está interiorizado em nossos corações e mentes. Essa sociedade é oligárquica, hierárquica e polarizada, segundo palavras de Marilena Chauí, e define a dificuldade de instituir uma sociedade democrática (que ultrapassa a simples ideia de um regime político, forma de governo, que deve ser tomada como forma geral de uma sociedade, uma forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia, da igualdade) que dê pleno sentido à cidadania. Acredito que o mundo prefira as pessoas neutras, mas só respeita as que tem atitude. Tentemos não ser tão covarde. Se tivéssemos coragem, não aceitaríamos as crianças passando fome, em escolas que não ensinam. Não deveríamos aceitar uma pessoa subjugar a outra pela cor de sua pele, seu cabelo. Somos covardes diante da violência contra a mulher, do homem contra homem, contra os homossexuais, e às famílias inteiras que vivem na rua. Aceitamos que um Deus seja maior que o outro, e como as flechas dos índios estão tão longe de nossas aldeias, não nos importamos que tirem suas terras e suas almas. Condenamos um homem que rouba outro homem, e de quatro em quatro anos, apertamos as mãos daqueles políticos que roubam milhões. Assistimos a falência da educação, e ficamos em silêncio quando a multidão pede redução da maioridade penal. Cortam nossas árvores, enquanto ficamos abraçando lagos poluídos, e os verdadeiros peixes mortos somos nós. Somos analfabetos de solidariedade, e calados, assistimos a falsa democracia desse país. O sangue que pulsa em nossas veias, deveria estar nos olhos. E ainda que não consigamos mudar o mundo com a única arma que temos, a poesia, comecemos por nós mesmos. Tão pouco se trata de uma briga. É uma luta para vida inteira (VAZ,2016).

agora é tarde. Sérgio Vaz ___________________________________________________________________________________________________________


A JANELA DA PERCEPÇÃO Daniela Raquel Fritsch


Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PósARQ Professor: Rodrigo Gonçalves Disciplina: Cartografia do espaço habitado Aluna: Daniela Raquel Fritsch

A Janela da Percepção

“A aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da racionalidade. A racionalidade é exatamente proporcional äs experiências nas quais ela se revela.” (Merleau-Ponty 1994). O corpo e o espaço geram infinitas subjetividades, as sensações, as associações e a percepção são os norteadores dessa relação. Quando o corpo identifica o espaço através das suas diversas percepções, o espaço a pardir disso cumpriu o seu papel.

“Hoje, a comunicação encerra os contatos humanos dentro de espaços de controle que decompõe o vínculo social em elementos distintos.” (Bourriaud 2009). O avanço da tecnologia isola o nosso corpo do espaço. Nossa atenção é

Feirinha em frente à catedral, alguém cantando, dia de sol e frio, os

roubada por aparelhos que nos envolvem com todo o tipo de informação que muitas

sinos tocam avisando o horário do meio dia misturado com alguma batida

vezes não nos acrescenta nada. Os espaços precisam disputar atenção com aparelhos

de tambores distante.

que cabem no nosso bolso.

Os sinos param de bater antes dos tambores que não persistem por muito tempo. Ambos escolheram o mesmo horário para se manifestar.

Essa disputa faz com que o desenvolvimento dos projetos desses espaços sejam cada vez mais elaborados a fim de captar toda a persepção do nosso corpo. Os sentidos precisam ser cada vez mais explorados criando experiências mais competas e subjetivas. “O olhar fenomenológico carrega consigo não essa consistência temporal – associada a um “pertecer” estável, a uma linhagem e a um lugar – que daria sentido à casa existencial, mas uma maior intensidade do vínculo pessoal como o espaço como fenômeno do sentido.” (Ábalos 2003).


A experiência se torna completa quando conseguimos perceber a subjetividade que nos completa diante de cada espaço. Que nos faz focar a nossa atenção em nosso

arquitetura; ele relaciona nossa consciência para o mundo e nossa própria sensação de termos uma identidade e estarmos vivos” (Pallasmaa 2011).

sentidos. A nossa cultura nos fez idolatrarmos a nossa visão e ignorar todos os outros sentidos. O desenvolvimento da economia se faz através do uso excessivo de imagens que querem nos direcionar em todos os assuntos possíveis. “O projeto fenomenológico é uma divagação da mente e dos sentidos, não

A arquitetura tem um papel fundamental no desenvolvimento das percepções. Cada detalhe tem que ser bem estudado para que o usuário consiga perceber as subjetividades. O desafio é maior ainda em espaços públicos. A identidade do usuário com o espaço, do corpo com o espaço se dá através das rememorações de cada um de

conhece, nem deja aproximar-se de imagem prévia alguma: ao contrário, busca,

maneira subjetiva. E para conseguir esse resultado em um espaço em que existem

antes de tudo, evitá-las” (Ábalos 2003).

muitos tipos de usuários a participação popular no desenvolvimento de projeto nos

As revistas estampam na capa uma imagem de uma sala de estar

espaços público é fundamental.

extremamente bem estudada, com cores combinando, com luzes diferenciadas, com

A participação se torna um instrumento necessário para o projeto. Somente

seus tetos altos e peles de vidro. A única coisa que não mostra é o personagem que

com a participação é que poderemos atender com eficiência a demanda social

vive ali. Essa revista não reflete a nossa cultura nem os nossos custumes, mas vende

existente e atender a todos os tipos de usuários. Esse instrumento deve ser utilizado

como água em qualquer banca.

constantemente para os mais variados fins.

“O sujeito que constitui e polariza a casa fenomenológica é um indivíduo cuja

Esse é o caminho mais completo para o desenvolvimento de projetos em

experiência do espaço provem tanto de lembranças e rememorações do passado,

espaços públicos, mas é também o caminho mais difícil e complexo. O processo se

quanto das experiências sensoriais do presente”( Ábalos 2003).

torna mais lento, mas essa é a melhor forma de atender a complexidade da demanda

O som de uma sirene passa rápido e lembra o quanto o tempo é valioso para quem espera.

social. “A participação tem um custo – não se pode esperar que os cidadãos, além de participarem e dedicarem tempo e esforço, paguem os gastos – e exige uma série de

Quando os tambores ficam cada vez mais alto. Algo se aproxima. A curiosidade estimula a espiada na janela, mas não vejo quase nada. Vejo a copa das árvores e lembro da primavera quando estão quase todas coloridas e rendem várias fotografias. O sujeito sempre vai ser o principal elemento da casa, é através dele que a fenomenologia acontece. Quando nos apropriamos do espaço e descrevemos cada detalhe sem julgamento, sem expectativas. Quando conseguimos descrever através da subjetividade. “Em vez de criar meros objetos de sedução visual, a arquitetura relaciona, media e projeta significados. O significado final de qualquer edificação ultrapassa a

etapas: primeiro, dispor de toda a informação para ser avaliada e fazer parte dos processos de diagnóstico, oferecendo pontos de vista e experiências: mais tarde, debater, programar, planejar e propor com resultado diversos projetos a serem discutidos, revistos, refeitos e escolhidos; elaborar um sistema de gestão o mais transparente possível; e por último, deve haver um acompanhamento da intervenção pública e deve-se avaliar para que os projetos sejam valorizados, e se necessário, reformulados.” (Montaner, 2014) Os moradores como maiores beneficiados com os projetos devem ser convidados a participar de todo esse processo, reforçando assim a sua função de cidadão. Devem participar ativamente e ajudar no desenvolvimento do projeto pensando no caráter coletivo.


O poder público tem que abrir esse espaço para que a população tenha esse contato com os diversos técnicos responsáveis garantindo assim um processo democrático.

técnicos garantindo uma equipe multidisciplinar. Esse grupo gestor é que vai organizar e promover todas as discussões. Após a criação do grupo gestor, começam os trabalhos de diagnóstico da cidade

“ OS processos de participação não só permitem reforçar que os cidadãos se

em questão. São feitos os mais diversos levantamentos para que todos possam ter

reconheçam em seu bairro e sua cidade, mas deveriam ser fundamentais tanto no

acesso à real situação da cidade. As reuniões técnicas com a participação popular

início como depois da conclusão das obras. Nenhuma intervenção urbana pode

acontecem a cada 15 dias ou uma vez por mês durante todo o desenvolvimento do

começar sem que os moradores intervenham no diagnóstico, e toda obra requer a

plano direto independente da etapa em que ele se encontre.

opinião e a atividade dos usuários a fim de valorizar e qualificar sua manutenção, de modo a interpretar sua pós-ocupação.” (Montaner, 2014) O surgimento do Estatuto da Cidade (Lei federal 10.257 de 2001) abriu a

O diagnóstico é feito em todas as áreas do município (não somente a de planejamento urbano) para que além da informação de como se encontra a cidade, tenhamos também a demanda que precisa ser atendida pela sociedade, seja ela na

possibilidade de participação da população das decisões mais importantes referentes

questão da saúde, educação, etc. Essa demanda não atendida ajuda a definir as

às cidades. O Plano Diretor Participativo é o principal instrumento de participação do

propostas de zoneamentos de acordo com cada necessidade. A participação dos

Estatuto da Cidade.

moradores garante que o diagnóstico seja feito da maneira mais realista possível.

“Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:

Com o diagnóstico pronto se parte para a definição das propostas para zoneamento onde qualquer cidadão pode apresentar a sua proposta que será

1. Órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e

devidamente discutida entre todos os que participam e posteriormente votada para confirmar ou não a sua continuidade.

municipal; 2. Debates, audiências e consultas públicas;

“ A análise das diversas experiências de participação demonstra que estas não

3. Conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal;

podem ser forçadas, inventadas, nem implantadas, mas devem surgir dos próprios moradores e dos movimentos sociais, de lugares e problemas reais. Nessa prática, os

4. Iniciativa popular de projetos de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”

melhores casos são aqueles em que se somam diversos fatores e atores, quando há um autêntico movimento local, que conta com líderes ou técnicos que possuem uma

(Estatuto das Cidades, 2001)

visão e uma experiência cosmopolitas, que são capazes de impulsionar os movimentos locais e relacioná-los com outros similares em contextos diferentes, e

Em Santa Catarina são diversos os municípios que utilizaram esse instrumento

quando existe um contexto legal que o ampare e o potencialize”( Montaner, 2014).

para fazer o seu ordenamento territorial de maneira participativa (Chapecó, Brusque, Florianópolis, Laguna, entre outras). A participação garante que o plano diretor atenda à demanda da sociedade. Primeiramente é formado um grupo gestor formado pelo poder público e sociedade civil organizada, neste núcleo estão presentes também os mais diversos

Esse processo participativo ainda é muito tímido na maioria dos municípios, mas precisamos admitir que já estivemos muito mais longe em relação a processos participativos populares e democráticos. Os projetos de espaços públicos também precisam ser amplamente discutidos com a população para garantir a democratização do seu uso.


As batidas das pedras de dominó permanecem durante todo o dia, mesmo em dias de chuva. As conversas em alto tom são frequentes, as risadas também. A concentração deles é notável, pouco se olha para o que

certeza de não reprimir ou excluir nenhum tipo de público. A persepção é um fator que une todos.

A guitarra sendo tocada emite uma música que não se identifica.

está fora da mesa da partida. Lembro do foco deles sendo desviado

São algumas notas repetidas em arranjos diferentes. Eu já vi ele tocando

quando uma mulher subiu em uma das maiores árvores da praça em

algumas vezes e percebi que a guitarra é uma extensão de seu próprio

busca de um gato. O gato conseguiu descer, mas ela não. Somente com a

corpo. Toca com a alma, mesmo sem fazer muito sentido para muita

ajuda dos bombeiros que trabalhavam sob o olhar atento dos jogadores.

gente. Mas para ele percebe-se que faz. Ele nem tem o chapéu pedindo

O gato ganhou o jogo dessa vez.

dinheiro e está presente na praça toda semana. Poucas vezes vi ele tocando em outros lugares do centro e o reconheci pelas notas que sempre toca, pela sua música e não pelo seu visual. Aqui a visão não reina. O som é que faz com que a minha imaginação crie cenas dos acontecimentos. Algumas cenas eu consigo visualizar quando desço, mas a maioria fica apenas na minha imaginação. Se algum dia eu ouvisse o silêncio, eu ficaria preocupada. Uma vez me mudaram de posição na sala. Me colocaram mais longe da janela. Já não conseguia quase nem ouvir o moço vendendo guardachuva que sempre está presente nas horas de chuva. Meu colega de trabalho do andar de baixo sabe quando levanto da minha cadeira pelo barulho do salto ao caminhar. Acabou de me avisar que escuta tudo. É bom saber que tem mais gente atenta aos sons. A percepção do espaço fica cada vez mais completa a cada sentido aguçado.

As praças públicas são um típico exemplo de espaço público democrático. Os usos são os mais diversos possíveis e para um público que é extremamente amplo.

Quando desço percebo que toda minha percepção muda. Tenho

Quando nós arquitetos e urbanistas projetamos uma praça, um equipamento urbano,

certa dificuldade de ouvir e identificar tudo que relatei. Escuto apenas os

projetamos para que tipo de público? Será que é possível prever todos os tipos de usos

sons que estão mais perto de mim, com mais intensidade. Tudo se torna

de um ambiente democrático? Para poder receber todos os tipos de público

mais concentrado. Mas eu não consigo mais ter a noção de tudo ao

precisamos desenvolver todos os sentidos da percepção humana, para assim ter a


mesmo tempo. Agora as cenas criadas na minha imaginação através do som são fragmentos. Agora são imagens e cheiros também.


A POÉTICA DAS CASAS DE MADEIRA DA IMIGRAÇÃO Natália Biscaglia Pereira


A POÉTICA DAS CASAS DE MADEIRA DA IMIGRAÇÃO

INTRODUÇÃO Este ensaio pretende discorrer acerca da subjetividade e sensibilidade relacionada com a casa em madeira, como atmosfera, considerando uma rede abstrata de relações, a partir de uma experiência fenomenológica da casa viva, de realidade vivida, com uma conjunção de elementos heterogêneos que produzem a singularidade do seu espaço. O espaço não tratado meramente como receptáculo, mas considerado o resultado da relação indissociável entre o corpo e objeto. O espaço da intimidade, tal como a casa em madeira, são redutos do nosso imaginário, o inconsciente, o imemorial, o espaço reconfortante das nossas lembranças.

De acordo com Bachelard (1989), a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. A casa é imaginada como um ser vertical, que se eleva, por meio da polaridade entre o sótão e o porão, e também convida a uma consciência da centralidade. A escuridão do porão, a sua obscuridade, abre espaço para os devaneios, a irracionalidade das profundezas, com acionamento da imaginação. O telhado se opõe a irracionalidade do porão, pois todos os pensamentos que se atrelam ao telhado são claros. Ele é funcional, protege o homem, e revela aspectos climáticos, de acordo com a inclinação do mesmo. Como a arquitetura da casa em madeira da imigração pode reafirmar o lugar da experiência corpórea, segundo Holl (2011), relacionado ao enraizamento do homem, a autoconsciência no envolver dos sentidos, na dimensão psicológica da vida interior, como existência única e própria no espaço? Para tal análise utiliza-se principalmente a visão dos autores Bachelard (1989), Pallasmaa (2001), Holl (2011), e Brandão (2002). A leitura da abordagem fenomenológica de tais autores despertou a associação com as antigas casas em madeira da imigração, as quais possuem uma tipologia familiar para a maioria das regiões pertencentes aos Estados do Sul do Brasil, e, portanto, de certa forma, genérica, dentro deste recorte geográfico. A metodologia será realizada a partir da “leitura da casa”, com descrição fenomenológica do habitar da casa de madeira, como experiência corpórea. Será descrita fenomenologicamente a casa da vó, em duas gerações distintas, a da neta, e a da filha, para evidenciar, assim, os valores oníricos individuais relacionados à imaginação, a memória corporal e os pensamentos, demonstrando, também o dinamismo temporal da casa: o passado em dois tempos. O objetivo deste ensaio é investigar a casa natal, em madeira, originária do período imigrantista e a transcendência da sua condição física, a partir da percepção e da simultaneidade da complexa rede de sentidos intrínsecos ao seu espaço. A casa em madeira, de uma maneira ampla, abrange aspectos materiais e imateriais, os modos de fazer, relacionados à sua construção e os modos de morar, relacionados às maneiras de viver cotidianamente.

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De modo despretensioso, espera-se que este ensaio seja capaz de ilustrar a riqueza poética de tais edificações, pertencentes à memória e a imaginação, a partir da experiência multissensorial, muito além do objeto material.

linguagens e expressões que refletem o lugar e o ambiente onde foi formada.

A CASA EM MADEIRA

A VIVÊNCIA PESSOAL – A CASA DA VÓ

A casa em madeira remonta os primeiros habitantes do nosso país, os indígenas. Suas habitações, que transcendem à simples funcionalidade do abrigar, envolvem sentidos abstratos, simbólicos e o imaterial. O modo de vida presente nessas habitações é, assim, relacionado com a tectônica e o espaço perceptivo. A técnica construtiva utilizada, em geral, era o pau-a-pique e taipa de pilão. Infelizmente, pouco restou das antigas construções indígenas.

Para contar uma vivência pessoal, que é a experiência íntima do sentir, na casa em madeira da vó, buscou-se imergir na abordagem fenomenológica e o relato da poética do espaço, levando em consideração a relação da forma arquitetônica com a experiência perceptiva. Lê-se a casa.

Assim, escolheu-se o habitar da casa de madeira originário da imigração, como suporte para apreender e refletir sobre a arquitetura da casa natal, a partir dos sentimentos e imagens de memória, que englobam os aspectos materiais e imateriais, do qual a arquitetura é constituída.

De acordo com Bachelard (1989 p. 199) “encontrar a concha inicial, em toda a moradia, mesmo no castelo, eis a tarefa primeira do fenomenológo”. A casa é o nosso primeiro universo. O ser abrigado vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através da integração do pensamento, das lembranças e dos sonhos. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes. “É graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas (...).Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. O espaço serve para isso”.

A vinda dos colonizadores, em meados do século XIX, alterou o processo de utilização da madeira na construção. As técnicas construtivas, e a divisão interna dos espaços foram alteradas, de acordo com as diferentes etnias que imigraram e as suas tradições culturais. A antiga casa dos imigrantes, que ainda remanesce em algumas paisagens brasileiras, como na região sul do Brasil, como exemplar de arquitetura popular, constitui a fisionomia da cidade, exprime com

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A DESCRIÇÃO DA CASA – A NETA Ao valor de proteção, ligam-se espaços e valores imaginados, que são dominantes. Esse é o espaço vivido. Assim, descrevo a casa da minha vó, imigrante italiana, construída em madeira, narrando a partir da minha experiência corpórea, repleta de valores, pensamentos, imaginação, lembranças e sonhos. Lembranças da cozinha A cozinha ficava em um nível mais baixo, uns três degraus com relação ao resto da casa. Tinham poucos móveis, um armário, uma mesa, o fogão, e a pia. Uma porta e uma janela faziam a ligação com o pátio. Da cozinha, sempre com cheiro de comida, saíam as Rosquinhas de cachaça, feitas com muito carinho. O pão saído do forno à lenha... com cheiro delicioso. O barulho da panela fervendo a água, fritando. Lembro também da uva colhida do parreiral e comida na bacia, e a colheita na horta das verduras e hortaliças!

A tia Teresa sentada ao lado da porta em um banquinho todas as tardes, conversando sem parar com a vó, que estava sempre cozinhando. Lembranças do pátio O rebolo do vô em pedra grês rosa, para afiar a faca (era proibido ficar brincando).. a goiabeira no meio do pátio, com caule lisinho, difícil de escalar, o roseiral da vó que tinha que ter cuidado com os espinhos, e as altas taquaras e o barulho do vento que ecoavam, na divisa com o vizinho onde pendurávamos alguns brinquedos. O galpão de ferramentas do vô: o medo de entrar no escuro, no vazio. O cheiro de mofo. A busca pelo trevo de 4 folhas no jardim. A mesa de madeira e a churrasqueira, para os almoços “fora”. As cadeiras de praia e os bancos de madeira encostados na parede. O vô tocando gaita (socorro), vamos embora? e a vó cozinhando ( que delícia), vamos correndo sentar à mesa. Lembranças das brincadeiras: O falso restaurante (com meu primo, que era o garçom), o jogo de amarelinha e o pular corda com as meninas vizinhas do bairro, as brincadeiras com a cachorra Pipoca, o carrinho de rolimã, que era monopolizado pelos primos, o “puxa-pé” no tabuão encerado do corredor, que deslizava, onde os primos enfileirados sentavam em tapetes ou almofadas e deslizavam no tabuão, e o objetivo era passar à frente e chegar primeiro ao final do corredor, e a retirada secreta das camadas de tinta das paredes no entorno do sofá da sala. O fiorino do vô, onde eu e os primos pegávamos carona na carroceria e circulávamos em alguns trechos pela cidade, geralmente até o mercado. O vento na cara. Fig.1. O fiorino do vô Rosendo Biscaglia, e a gaita.

O leite fresco trazido pelo vô, o arroz com galinha delicioso da vó e as suas doces compotas: a de pêssego e de abóbora eram as minhas favoritas.

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Lembranças do interior A cristaleira da vó! Com as compotas em cima. A relíquia intocável.

O banheiro ao lado da cozinha, em alvenaria. Eu não gostava de ir. Tinha medo. O cheiro era ruim, se passava por um corredor escuro, uma espécie de labirinto, o pé direito era baixo e geralmente era bem úmido. A única parte divertida era a banheira.

A mesa “elástica” de domingo... o “aperto” para todos caberem sentados à mesa e a delícia dos sabores. A escolha discutida e democrática de qual compota abrir ao final do almoço. As janelas, enquadrando o exterior, com céu claro e sol brilhando. A cortina filtrando a luz. Os quartos, o calor, o roupeiro da vó. A máquina de costura, com seu barulho característico, a despensa, com um balcão e armarinho com estantes e gavetas cheias de tralhas e tralhas de objetos. Adoro mexer em todas estas tralhas. A sala de estar, o balcão em madeira escura, com álbuns de fotografia e livros e cadernos de receitas, que maravilha mexer e ver a bela letra (alcunha) da vó, suas anotações e sabedorias. O quarto da vó, com a penteadeira com perfumes e talcos, e a curiosa gambiarra do vô: o “alarme” improvisado com um fio amarrado na maçaneta da garagem e uma lata de tinta vazia. Um possível ladrão ia ser pego pelo barulho da lata. Quanta criatividade...

Fig.2. Casa da vó segundo memória da neta.

Os Vizinhos A “venda” da Anésia, ao lado da vó (esquerdo), e o grande baleiro colorido! Coisa boa ter um trocado para ir lá e comprar balas. A tia Nilza no outro lado da casa da vó (à direita), onde eu comprava as roupinhas de boneca que ela fazia. Era tão bom escolher as roupinhas.

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A DESCRIÇÃO DA CASA – A FILHA A casa dos meus pais em minhas memórias e sentimentos pode ser descrita com alegria, tristeza, saudades, dificuldades, valores, relações intrapessoais, medos, angústias, brincadeiras, hábitos da cultura italiana, assim, vou tentar utilizar um pouco desse turbilhão todo de sentimentos para descrevê-la.

Ah o sofá cama! Lugar de sentar para namorar horas e horas. Alguns diziam de brincadeira: ah se esse sofá falasse!

Fig.3. Aniversário em família, na sala de jantar com os primos.

Lembranças da sala de estar A sala ficava na frente da casa, bem distante da cozinha, entre ela e os outros espaços havia um corredor. Foi palco, onde eu e minha irmã Nice brincávamos de teatro à tardinha com as amigas da vizinhança, quantas brigas e tapas na cara de mentirinha. Quantos ensaios, fazíamos coreografias e dançávamos como se tudo fosse um show.

Fig.4. Aniversário em família, na sala de jantar, com vó Antonieta e tios.

Foi salão de dança nos meus 15 anos, que alegria, primos, amigos, irmãos, todos juntos fizemos uma festa. Era o cartão de visitas da casa, limpa, chão de madeira brilhando, um conjunto de sofá bem cuidado e vigiado pela mãe para não estragarmos.

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Lembranças da varanda Da varanda para sala havia o corredor, esse era o Espaço onde nos reuníamos para comer e assistir televisão: filmes do Elvis, novelas, o fantástico no domingo, que melancolia... Lugar onde à tardinha sentia medo dos atritos do pai com a mãe. Dos estalos da madeira do assoalho, da janela mal fechada. Da minha preocupação com o bem estar da mãe. Dos meus olhos acompanhando o caminhar triste da mãe pelos aposentos da casa, corredor, quarto, cozinha, em silêncio. Local de grandes realizações, jantar de 25 anos de casados dos meus pais, pedido de noivado de minha irmã, doces dos meus 15 anos, café com leite da tarde para os namorados no final de semana com as delícias feitas pela mãe: cuca, bolacha de cachaça, manteiga feita em casa. Lembranças do meu quarto Um roupeiro e um espelho com criado mudo, antigo, eram do conjunto do quarto da mãe e duas camas com colchão de palha por um bom tempo. Cobertor de lã de ovelha carpida.

Da competição com minha irmã Nice para ver quem deixava o colchão de palha mais alto, da cama bem arrumada, da janela com um raio de luz entrando com fagulhas de poeira, mas deixando o quarto iluminado, da cortina na sanefa de madeira. Do assoalho de madeira fazendo barulho a cada pisada. Da porta de madeira macho e fêmea feita pelo pai, da taramela da porta frouxa pelo uso. Da chantagem que fazia para minha irmã buscar água na cozinha a noite no inverno e matar as aranhas que apareciam. Lembranças do corredor Do brilho do chão gasto pelo uso, das fotos na parede. Do vento que circulava. Da imagem do pai sentado no canto da varanda onde podia avistar o sofá cama da sala quando estávamos namorando. Da mãe deitada num colchão no verão para um cochilo de 10 minutos à tarde, lugar mais fresco da casa, para ela. Das brincadeiras de escorregar com um tapete nos pés. Da porta do quarto da minha mãe fechada, quanta preocupação. Da porta aberta do quarto, que alívio! Lembranças da cozinha Do assobiar da mãe logo de manhã preparando o café, do leite fresquinho, da nata batida, da cerveja caseira do pai que saltava fora ao abrir a garrafa, dos almoços com feijão, arroz e laranja, da batata doce com melado, que delícia. Da janela pequena onde se avistava a rua, que lugar, melhor que olho mágico, se enxergava todo o movimento de quem estava chegando. Do degrau que separava a cozinha da varanda, eterna preocupação com os bebês para não cair.

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REFLEXÃO SOBRE AS DESCRIÇÕES A partir destas duas descrições fenomenológicas, pretende-se aqui, refletir sobre o significado da casa em madeira, a partir da experiência multissensorial, descritas a partir das vivências em duas gerações. É importante mencionar que casa da vó descrita, não segue a tipologia comum entre as casas de imigração: dividida comumente em térreo, porão e sótão. Ela é mais tardia, possuindo um único nível térreo. Assim, a casa em madeira da vó não pode ser caracterizada como complexa, o que poderia guardar na lembrança refúgios ainda mais bem caracterizados. Ainda assim, há uma forte relação sensorial que pode ser analisada através dos dois relatos. Segundo Brandão (2002), o espaço é resultado de uma relação entre seres e objetos, corpo e espaço. Guatarri (1994) relaciona a arquitetura com uma máquina que produz sensações e subjetividades de modo constante. Não pode ser operada apenas sobre os nossos desejos, não há controle sobre o que se será produzido, sobre a interação com outros elementos espaciais, materiais, imateriais e humanos.

Nesse ponto, recordo-me de O Cortiço, obra clássica naturalista da literatura brasileira de Aluísio Azevedo, na qual demonstra a influência do meio (no caso, do cortiço) sobre a conduta do homem:

Assim como o homem, a casa é um corpo de sonhos, de imagens e sensações, e sintetiza o sentido de elevação vertical (a dupla polaridade entre terra e céu) e a concentração (a centralidade interior). Entre as diversas esferas da arquitetura, a conexão da casa com o corpo humano, é, talvez, a que proporciona a maior capacidade de afirmação individual do homem (LOOMER et al, 1977), e de sua identidade. A vivência do espaço por meio do movimento corporal, e do nosso sentido háptico, pelas qualidades tácteis das superfícies. Rasmussen (2002) aponta que nos países onde existem muitas casas antigas em madeira a beleza especial da madeira alterada pela exposição ao tempo torna-se muito evidente. Sobre o uso magistral da madeira na arquitetura, em termos texturais:

Também segundo Pallasma (2011) a visão revela o que o TATO já sabe. Vemos a profundidade, a dureza, a maciez dos objetos. Uma obra arquitetônica gera um todo indivisível de impressões, em sua presença material e espiritual totalmente corporificada. O corpo é enriquecido de memória e sonhos, passado e futuro.

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O TATO é o sentido da intimidade e da afeição. Percebe-se nas duas descrições a presença da tatilidade na lembrança da casa.

Da filha, percebe-se a presença do TATO nos seguintes trechos:

Da neta, percebe-se a presença do TATO nos seguintes trechos:

Nas palavras de Pallasma (2011) as sombras profundas e a escuridão são essenciais, pois elas reduzem a precisão da visão, tornam a profundidade e a distância ambíguas e convidam a visão periférica inconsciente e a fantasia tátil. A sombra dá forma e vida ao objeto sob a luz. Percebe-se nas duas descrições a presença da SOMBRA E DA ESCURIDÃO na lembrança da casa: Da neta, percebe-se a presença da SOMBRA E DA ESCURIDÃO nos seguintes trechos:

Da filha, percebe-se a presença da SOMBRA E DA ESCURIDÃO nos seguintes trechos:

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Nestes trechos do relato da filha, percebe-se a mediação entre dois mundos o fechado, e o aberto, o interior e o exterior, ou seja, a sombra, e a luz, no qual Pallasma (2011) discorre sobre a questão atrelada a intimidade relacionada à JANELA, PRINCIPAL MEIO DE INTERAÇÃO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO, no qual cabe também a imaginação. Além destes trechos já mencionados, há um trecho ainda mais elucidativo: Da filha, percebe-se a presença da INTIMIDADE ACÚSTICA nos trechos:

Sobre a AUDIÇÃO da experiência espacial, Pallasma (2011) afere que o espaço analisado pelo ouvido se torna uma cavidade esculpida diretamente no interior da mente. O som mede o espaço. Holl (2011) acrescenta que o som se absorve e se percebe por todo o corpo. Podemos redefinir o espaço como aquele configurado pelos sons ressonantes, as vibrações dos materiais e das texturas. Em termos de artes, a música nos rodeia do mesmo modo que o espaço da arquitetura. Também se percebe nos relatos da neta e da filha, a INTIMIDADE ACÚSTICA presente na casa. Da neta, percebe-se a presença da INTIMIDADE ACÚSTICA nos seguintes trechos:

Outro ponto abordado por Pallasma (2011) são os ESPAÇOS AROMÁTICOS. Ele defende que frequentemente a memória mais persistente de um espaço é o seu CHEIRO. Cada moradia tem o seu cheiro individual de lar. Quanto aos CHEIROS, percebeu-se a presença do relato somente na descrição fenomenológica da neta, nos seguintes trechos: “Da cozinha, sempre com cheiro de comida, saíam as Rosquinhas de cachaça, feitas com muito carinho. O pão saído do forno à lenha... com cheiro delicioso.” “O galpão de ferramentas do vô: o medo de entrar no escuro, no vazio. O cheiro de mofo.” “O quarto da vó, com a penteadeira com perfumes e talcos.” “O banheiro ao lado da cozinha, em alvenaria. Eu não gostava de ir. Tinha medo. O cheiro era ruim”.

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Por meio destas duas descrições, foi possível, além de identificar no discurso da filha e da neta, o fenômeno perceptivo da TATILIDADE, DA ESCURIDÃO E DAS SOMBRAS, DA MEDIAÇÃO DA JANELA ENTRE O ESPAÇO INTERIOR E O EXTERIOR E A INTIMIDADE ACÚSTICA. Além destes, identifica-se na casa da vó, o espaço da memória, dos sonhos, da lembrança, das alegrias, tristezas, de medos e da coragem, relacionados intimamente com o espaço vivenciado. Verificou-se que houve dobras temporais, quando há aproximações em algumas lembranças da neta e da filha1, como na lembrança de brincadeiras no corredor, mas, na grande maioria, as

percepções são relacionadas intimamente com as memórias vividas por cada uma, no seu tempo e espaço definido, no onirismo

Estas percepções são subjetividades ou imaterialidades da dimensão psicológica que se relacionam intrinsicamente com o aspecto material, a própria tectônica da casa, a miniatura, e a sua VIDA. Assim como na literatura pode-se também idealizar na arquitetura a gênese da descrição da miniatura como universo pequeno que está inserido na imensidão do macroespaço. Na narração da miniatura, se permite devaneios, ou, como relata Bachelard “Todas as coisas pequenas exigem vagar. [...] É preciso amar o espaço para descrevê-lo tão minuciosamente como se nele houvesse moléculas de mundo, para enclausurar todo um espetáculo numa molécula de desenho” (1989, p. 167). A narração do espaço em miniatura perfaz a imaginação do escritor e do leitor, entrando em sentidos vivos de percepção sensorial, como a visão, audição, a tatilidade, a partir de imagens sensitivas mentais e com base no onirismo e devaneio das experiências pessoais. A miniatura se relaciona desse modo, com a intimidade do ser e, portanto é sempre particular. A imensidão intima está em nós; “a grandeza progride no mundo à medida que a intimidade se aprofunda” (1989, p. 200). A casa natal está inscrita em nós, na nossa identidade.

individual, na própria centralidade do ser, no devaneio, na imagem da alma.

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“filha, quando li tu descrição não me contive, as lágrimas vieram, senti uma emoção guardada há muito tempo se pronunciando, os detalhes, as tuas percepções leais, teus sentidos, teus momentos dentro de uma realidade vivida anos atrás... Não posso deixar de escrever que em alguns momentos tuas sensações se misturaram com as minhas. Que bom, pois, essas lembranças vivas em nos de alguma forma nos unem”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHELARD, G. A Poética do Espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins fontes, 1989. BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços domésticos. São Paulo: Perspectiva, 2002. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. HOLL, Steven. Cuestiones de percepción: fenomenologia de la arquitectura. Barcelona: GGili, 2011. LOOMER, Kent C; MOORE, Charles W. Body, memory, and architecture. New Haven Yale University Press 1977 147p. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da Pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011. RASMUSSEN, Steen Eiler. Arquitetura Vivenciada. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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APROPRIAÇÃO OU NÃO DO LUGAR? Anicoli Romanini


APROPRIAÇÃO OU NÃO DO LUGAR? Anicoli Romanini 1 A apropriação do lugar na cidade ocorre por meio da relação existente entre os aspectos físicos do espaço, sejam eles naturais e/ou construídos, com as articulações dos interesses sociais e econômicos, bem como, através dos desejos e intenções das pessoas, de se manifestarem favoráveis as possibilidades que determinados espaços lhe oferecem. A forma como muitos espaços urbanos são construídos, apresentam uma relação mais forte de apropriação com a comunidade do que outras. Busca-se com este entender porque determinados espaços têm uma interação social mais estimulada e conseqüentemente são mais apropriados pela população e porque determinadas áreas parecem ser mais inseguras, e tendem a ser evitadas por pessoas com maior vulnerabilidade. Mendonça (2007) cita que: É importante salientar que as apropriações, mesmo quando intuídas e adaptadas não implicam, necessariamente, em inadequação ou indícios de marginalidade. Podem, ao contrário, indicar criatividade, capacidade de melhor aproveitamento das infra-estruturas públicas e fornecer subsídios que alimentem o projeto e a construção futura de ambientes desta natureza.

Esse entendimento nos faz refletir como a apropriação dos espaços públicos ocorre nos Bairros urbanos, estrutura importante da cidade, pois é nele que a vida urbana acontece. Para Ferreira (2007, p.42): No que se refere aos espaços livres, as formas de apropriação em bairros centrais e bairros periféricos diferem enormemente. O lazer periférico, apropriando-se de terrenos vazios, campos de várzea, ruas de pouco movimento etc, supre a ausência de espaços projetados e mantidos pelo poder público com improviso. A precariedade do espaço (sub)urbanizado OBSERVACÃO: Textos em itálicos – descrições fenomenológicas dos lugares. Escrita experimental desenvolvida na discplina de Cartografia do espaço habitado: fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo • PósARQ/CTC/UFSC


limita as possibilidades de uso pela população; no entanto a necessidade de encontrar alternativas leva a população a transgredir o uso das ruas, de terrenos baldios, de praças abandonadas. Criam-se assim as condições para a “prática” do lazer. Já nos centros urbanos, a diversidade de usos impede, ou dificulta bastante, a apropriação de quaisquer espaços para o lazer; uma das diversas atividades em busca de espaço. A riqueza de usos e atividades, a variedade de pessoas, de equipamentos, enfim, a diversidade desses espaços acaba por configurar situações em que o espaço do lazer, do ócio, é compartilhado. Em algumas situações percebe-se uma separação tanto espacial quanto temporal; diversas funções se alternam e se complementam nos exíguos espaços livres.

Jane Jacobs (2014) descreve em sua obra “Morte e Vida de Grandes Cidades” que é essa combinação de usos que promovem a diversidade dos Bairros, e estes usos devem ter atividades que se voltem para as ruas para que estas tenham “olhos para as ruas” e favoreçam a segurança do lugar. O planejamento de bairro deve então ser definido de acordo com seu tecido, com a vida e a interação de usos que geram, em vez de definidos por fronteiras formais, com comunidades fixas e inerentes. Para a autora, a apropriação do Bairro ocorre quando este contiver quatro princípios básicos: 1. As ruas precisam ser vivas e atraentes; 2. O tecido urbano dessas ruas precisa formar a malha urbana mais contínua possível por todo o distrito; 3. Os parques, praças e edifícios públicos devem ser utilizados de forma que produza complexidade e multiplicidade de usos; 4. Enfatizar a identidade da área para que funcione como distrito. Se quiser ter espaços de sucesso, os posicione em um contexto amplo, com diversidade de usos, em áreas densas, e diversidade de pessoas, onde já exista vida urbana, com gente passando, e gente diferente. A Crítica de Jacobs (2014, p.126) sobre as Cidades Jardins, é que estas se voltam para si, sem interação com o entorno: “Infelizmente a teoria urbanística ortodoxa está profundamente comprometida com o modelo de bairros supostamente acolhedores e voltados para si. Na forma original, o modelo consiste numa unidade de vizinhança, com cerca de 7mil pessoas, que tenha tamanho suficiente para conter uma escola elementar e para manter lojas de conveniência e um centro comunitário”.


Esse modelo remete aos núcleos descentralizados das Unidades de Vizinhança que Howard propôs. O modelo apresenta ruas locais de comércio e prestação de serviços, e área residencial divida por avenidas coletoras, com a implantação de equipamentos comunitários e os parques na parte central. Cada distrito contém uma Unidade de Vizinhança e características de comunidade residencial de Uso Misto. O conceito de Unidade de Vizinhança só foi publicado em 1929 por Clarence Perry. Segundo Perry a produção em comunidade desenvolveria a consciência política dos moradores e os equipamentos comunitários ficariam locados em pontos estratégicos para atender a todos. Ele separa em seis princípios a Unidade de Vizinhança: 1. Escola: deve estar em ponto centralizado em meio a um parque e determina o tamanho da população; 2. Espaços Abertos: 10% de cada área deve ser destinado a praças, jardins, parques esportivos e playgrounds; 3. Equipamentos Comunitários: devem estar agrupados ao entorno da praça central, junto à escola; 4. Áreas Comerciais: tem que atender a demanda da população, perto de vias arteriais, permitindo seu uso por outras Unidades de Vizinhança. 5. Limites: Vias de fluxo maior não devem cruzar com áreas residências, as vias devem delimitar o tamanho da Unidade de Vizinhança. 6. Vias Locais: tem que manter o baixo fluxo viário.

A Unidade de Vizinhança do Bairro Saco Grande O Bairro Monte Verde, está localizado na região centro-norte da Ilha de Santa Catarina, entre os Bairros Saco Grande e João Paulo. É um Bairro predominantemente residencial. Em 1979, o governo do Estado promulgou uma lei que tratava da implementação do Plano Nacional de Habitação Popular (Planhap) em Santa Catarina e cujo principal objetivo era a redução do déficit de habitações. No fim de 1980, foi entregue à população o primeiro conjunto habitacional de Florianópolis, então chamado de Monte Verde. O complexo contava com 400 casas, escola, centro comunitário, supermercado e um prédio comercial (GUIA FLORIPA, 2015).


O Bairro Monte Verde representa uma Unidade de Vizinhança, nos moldes das Cidades Jardins de Howard, com Equipamentos Institucionais localizados no centro do Bairro, e em seu entorno, o uso predominante é o residencial (Figura 01).

Os Equipamentos Institucionais, Escola, Creche e Conselho Comunitário, Praça e Posto Policial, estão localizados em uma área central do Bairro, com os lotes residenciais fazendo fundo para esse espaço público. As ruas que chegam a essa área central são ruas sem saída, e há ainda a configuração de um rio margeando a área direita comunitária (Quadro 01).

Figura 01: Unidade de Vizinhança – Bairro Monte Verde. Fonte: Adaptado de Mapas de Geoprocessamento – Prefeitura Municipal de Florianópolis/SC. Praça

Parquinho

Quadra Poliesportiva

Escola

Quadro 01: Equipamentos Comunitários da Unidade de Vizinhança – Bairro Monte Verde. Fonte: Autora, 2016.

Centro Comunitário


A apropriação ou não do lugar? O Rio Vadik, que corta o Bairro, margeia a lateral direita da área de uso comum (Figura 02). Isso acaba ocasionando uma barreira física, que dificulta o acesso a área. Em alguns pontos existem passagens (passarelas – Figura 03) que ligam um lado ao outro. Figuras 02 e 03: Rio Valdik. Fonte: Autora, 2016.

“O rio segue seu curso solitário, pois as casas se fecham para ele. As ruas sem saída chegam até suas margens, e os cul-de-sacs fazem com que se dê meia volta. O espaço público não convida as pessoas para o seu convívio e sua apropriação. Está isolado, fechado pelas extensas paredes de muros, que nos barram a vista acima do nosso campo de visão”. As ruas são estritamente residenciais, ou seja, o uso predominante das ruas é a habitação. Os muros fazem a separação física dos espaços públicos e privados. Assim, em função dessa configuração do espaço, tem-se o sentimento de insegurança nas ruas, por elas estarem sempre muito “desertas” (Quadro 02).


O Rio e os grandes muros que cercam as residências e os equipamentos institucionais se transformam em grandes barreiras reais à visibilidade e a acessibilidade física. As paredes cegas entre os Equipamentos Institucionais, bem como as de fundos de lotes criam “becos”, sem gente, e assim inseguros (Quadro 02).

Quadro 02: Ruas “desertas” na Unidade de Vizinhança – Bairro Monte Verde. Fonte: Autora, 2016.

Andando pelas ruas desertas, um dia nublado, com uma garoa fina, me sinto isolada, perdida em meio às casas, sem saber muito bem ao certo que rumo tomar. Entro na área comunitária por entre as casas, fechadas com muros em toda a sua extensão. Não há ninguém nas ruas, apenas eu, tentando chegar a área comunitária do bairro. Ando sozinha pela rua. Um dia chuvoso, a garoa bate em meu rosto. Frio. Olho para trás para ver se estou sendo acompanhada, mas estou sozinha, somente eu nas ruas nesse dia cinzento. Somente nos momentos de entrada e saída da Escola, tem-se um movimento maior de gente circulando pelo Bairro (Quadro 03). Mas será que essa insegurança só não é sentida pelas pessoas “estranhas” ao Bairro? Questiona-se, pois na percepção “no lugar”, verifica-se que os moradores se conhecem em função da configuração física do espaço, e assim interagem entre si e usam o espaço.


Quadro 03: Movimento de pessoas na Unidade de Vizinhança – Bairro Monte Verde. Fonte: Autora, 2016.

“Eis que em minha frente vejo uma pessoa, um homem de meia idade vindo em minha direção. Fico apreensiva. Quem será? Para onde vai? Olho para ele com um sentimento apreensivo. Ele passa por mim, nem me vê... Chego na praça central, mesmo debaixo da garoa, jovens adolescentes estão reunidos de baixo de uma árvore conversando sobre seus anseios e desejos adolescentes. Riem e confraternizam suas estórias juvenis. Há uma edificação que se abre para esse espaço, um salão de beleza. Olho pra dentro, também não vejo pessoas. Somente uma porta aberta para uma escuridão sem fim. Os balanços solitários ... Pelo vento que os balança, Vento frio batendo no rosto”.


“O encontro faz o lugar” Nossas cidades estão organizadas com base na segregação que separa grupos e classes sociais, agrupa e afasta as diferenças pelos mais requintados artifícios. O abandono é uma dessas formas de afastamento. A organização que caracteriza a cidade formal é basicamente a segregação espacial, a definição de usos; mas quando a differenza se desloca, entra no outro território e começa a participar da vida do outro, aí então ocorre realmente uma mudança do espaço na arquitetura. Quando se desafia essa ordem, não só em seu sentido e uso, mas na estrutura física desses espaço, aí então começa a hospitalidade e o “desloucamento” dos sentidos (FUÃO, 2014, p.54).

Precisamos encontrar alternativas de apropriação e uso dos espaços urbanos por todos, na busca de superação das condições da exclusão e das desigualdades urbanas. “Os meios de mudar a vida e de criar um novo estilo de atividade, de novos valores sociais, estão ao alcance de todos”. (GUATTARI, 1992, p. 174). A Unidade de Vizinhança do Bairro Monte Verde, por ter bem presente às características de núcleos descentralizados com predominância da área residencial e agrupamento dos equipamentos comunitários em seu centro de bairro, inibem a chegada de pessoas “estranhas”, ao mesmo tempo em que promovem, em partes, a interação dos moradores locais, visto que, em partes, eles se sentem pertencentes aquele lugar. “É como se o lugar que estava em questão na hospitalidade fosse um lugar que não pertencesse originalmente nem aquele que hospeda, nem ao convidado, mas ao gesto mesmo pelo qual um oferece acolhida ao outro” [...] (FUÃO, 2014, p.52). A hospitalidade é o lugar que faz repensar a arquitetura, a casa, o abrigo. O lugar que dá lugar ao lugar. O sentido sem lugar que dá sentido ao sentido. [...]. No entanto, a cada dia mais nosso lugares, ao invés de se abrirem para os outros, de se prepararem para receber os outros, serem hospitaleiros, fecham-se em campo, em verdadeiros campos de reclusão, os quais necessitam de senhas, logins e IDs e são minados de câmeras para entrar. [...] Esse “outro” já não é mais aquele outro que outrora batia a porta, como no mito grego, mas sim um “outro outro”, agora impossibilitado até mesmo de bater a porta. Nossas cidades, nossos bairros e sacas tornaram-se mais hostis. Os muros, as paredes, as grades, as câmeras de controle, os seguranças, as identificações, os monitores, as senhas são alguns desses elementos arquitetônicos que promovem essa hostilidade, esse apartheid, que vai do real ao virtual (FUÃO, 2014, p.56).


“As cidades, com suas ruas e labirintos de anonimatos, perderam a confiança, o pacto que estabelecia para a convivência, a cidade, seus segredos e leis, deve ser muito mais forte que os parricídios cometidos a fim de que ela pudesse continuar” (FUÃO, 2014, p.56). Isso nos leva a concluir que o sentimento de apropriação do lugar ocorre sim, de acordo com as características físicas do espaço. “Olhos para a rua”, citação de Jane Jacobs, promovem lugares mais agradáveis e seguros, com diferentes tipos de pessoas, circulando em diferentes horários. Mas somente isso não garante que a população se sinta pertencente aquele lugar. Assim, [...] “Na cidade, são muitos os lugares que acolhem. Mas acolhimento não significa necessariamente um lugar de encontro. Os lugares de encontro são os lugares públicos que acolhem as diferenças. O lugar de encontro não pressupõe barreiras, é aberto a todos e deve estar preparado para receber aquele estranho” (FUÃO, 2014, p.68). [...] “Os lugares acolhedores são os espaços que conseguem juntar as grandes diferenças reduzindo-as a pequenas diferenças, a singularidades” (FUÃO, 2014, p.69). Essa relação de pertencimento do lugar, nos faz entender que se esse sentimento é “incorporado” pela população, e assim passa a ter uma relação de troca com as pessoas, “utilizado”, garantindo a urbanidade e vitalidade do lugar. O estudo do lugar, através da percepção, atitudes e valores a ele atribuídos, nos faz compreender porque moradores e a população em geral se identificam mais em determinados locais e assim, se apropriam de maneira mais espontânea. Jacobs (2014, p.152) complementa que se as pessoas “vivem em distritos diversificados e não monótonos [...] e se gostam do lugar, elas podem lá permanecer por mais que mudanças locais ou da natureza de seus outros objetivos e interesses”. Para termos lugares públicos vivos e bem utilizados, precisamos buscar uma interrelação positiva dos lugares com as pessoas. As barreiras físicas e visuais causadas pelos grandes muros dos Equipamentos Institucionais acabam criando zonas de isolamento, pouco permeáveis com seu entorno, que deveriam ser trabalhadas de forma mais harmoniosa com o espaço público existente. Por fim, entender a disposição dos Equipamentos Públicos Urbanos em relação à forma de organização e comportamento de dois tipos de configuração de bairros fez parte do entendimento do funcionamento das cidades, na busca de ruas e


bairros cheios de vida, que encorajam a vivência em espaços públicos ativos e bem utilizados, que trarão por fim, a apropriação do lugar e o acolhimento humano oferecido pelo cotidiano. “O lugar é ‘doutro’, do outro de outro lugar, do sem lugar” (FUÃO, 2014, p.69).

Referências FERREIRA, Paulo Emilio Buarque. Apropriação do espaço urbano e as políticas de intervenção urbana e habitacional no centro de São Paulo. 2007. 131 f. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. FUÃO, Fernando Freitas. As formas do acolhimento na arquitetura. In: FUÃO, Fernando Freitas; SOLIS, Dirce Eleonora (orgs.) Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014, p. 41-113. GUATTARI, Félix. Espaço e Corporeidade & Restauração da cidade subjetiva. In: GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992, p. 151-179. GUIA FLORIPA. Cidade. Disponível em: < http://www.guiafloripa.com.br/cidade>. Acesso em: 06 set. 2015. JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. MENDONÇA, Eneida Maria Souza. Apropriações do espaço público: alguns conceitos. Estudos e Pesquisas em Psicologia, UERJ, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p.296-306, ago. 2007. PMF – Prefeitura Municipal de Florianópolis. http://geo.pmf.sc.gov.br/>. Acesso em: 01 set. 2015.

Geoprocessamento

Corporativo.

Disponível

em:

<

SUGAI. Maria Inês. Segregação Silenciosa: Investimentos Públicos e dinâmica socioespacial na área conurbada de Florianópolis (1970-2000). Florianópolis: Editora UFSC, 2015.


UMA VISÃO SOBRE A CARTOGRAFIA DO ESPAÇO – SETE PONTOS PARA PENSAR Luiz Antônio Medeiros da Silva


PósArq_ Cartografia do espaço habitado – fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade Professor: Dr. Rodrigo Gonçalves Aluno: Luiz Antônio Medeiros da Silva trabalho de fechamento da disciplina

Encontrar a concha inicial em toda a moradia, “no próprio castelo”...; ...é preciso dizer como habitamos o nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num “canto do mundo”; Porque a casa é nosso canto do mundo – o nosso primeiro universo...

Uma visão sobre a Cartografia do Espaço – sete pontos para pensar

I.

Como se fosse uma introdução – ideias reminiscencias de outras leituras - lembranças

iniciais,

Esta cartografia das palavras e das coisas, relembrando Foucault, ou da condição pos-moderna, e a luta para configurar tempo e lugar, em direção a Harvey, que busca definir o tempo. À casa associa arquitetura, enfim faz rever imagens, supor lugares, imaginar portas para compreender e construir conceitos. Que dispertam duvidas entre antigas des-certezas, relativizam imagens e, teimosamente associam escalas à gestalt.

II.

O problema central da fenomelogia da casa

Não basta considerar a casa como um “objeto” sobre o qual pudéssemos fazer reagir julgamentos e devaneios – desejos e sonhos! O fenomenólogo faz o esforço, tem como tarefa:

A origem da indagação do espaço: ... refere-se tanto ao processo quanto ao produto de projetar e edificar o ambiente habitado pelo ser humano. Neste sentido, a arquitetura trata destacadamente da organização do espaço e de seus elementos: em última instância, a arquitetura lida com qualquer problema de agenciamento, organização, estética e ordenamento de componentes em qualquer situação de arranjo espacial.

III.

A Arquitetura,

...simplesmente: o conceito oikos = casa, que referencia a abordagem ampla, simbólica ao termo casa – a Terra, a Natureza, o Espaço, o Lugar para a Vida: Casa =lokus da vida. O que vem antes, a casa. A visão de um projeto que tem em si, em essência, a possibilidade que recompõe a lógica criativa, imaginária em busca da efetiva compreensão relacional de sociedade – espaço – natureza, criativos, e receptores do encontro, reencontro do ser humano com a natureza, e com sua própria natureza. Recompor esta visão significa romper com


a dinâmica de dominação tecnicista que movimenta o capital econômico em oposição ao capital cultural, dos saberes-construídos pela não-experimentação, mediada apenas pela tecnologia da dominação da mais-valia, expropriação do pensar-criar-observarfazer. Dai a razão pela qual a ideia da sustentabilidade vem sendo banalizada, estrategicamente desqualificada pelo seu uso indiscriminado, que afasta o texto do contexto que lhe deu origem. Ou, senão destrói sua essência. A sustentabilidade?

IV.

Implícito, está ai uma dinâmica, que arriscaria definir como a busca em direção a uma apreensão sobre o espaço e a natureza, que relacionando Foucault (as palavras e as coisas), permitiria pensar sobre uma apreensão da ordem da Gestalt, ou mesmo de uma “dialética” entre figura e fundo, e” vice-versa”. Em permanente busca e aproximação do todo. Trata-se, com efeito, de método. Saber ver, observar a imagem que se projeta em em representação da figura (objeto), ou desfocar à imagem em busca da sua relação com o fundo (paisagem), aproximando e reaproximando indefinidamente (em varias escalas de integração), incessantemente? E, por tantas vezes quanto necessário até se obter o objeto (materializado) construído em um dado lugar – observar a planta (o desenho), a imagem em relação à obra faz parte deste método.

Laboratório Experimagens

Um olhar sem cores, distante e racional, que organiza e define uma massa de diferentes formas, quase organico, quase um sistema de circuitos....quase uma composição de retangulos. Cheios e vazios, luz e sombra, tempo e lugar.

Aos poucos se aproxima o olhar e se localizam diferentes referencias, da ausência de cores ressalta a malha densa, e algumas diferentes densidades, vazios, ou


cheios diferenciados... Quem disse que o não cinza, não é cheio? Compõem figuras, geometrias, formas, pontos, lugares, relações.

“ (...) o primeiro objeto que deve preocupar àquele que estuda as paisagens é a forma como o espaço foi organizado pela comunidade. Ler a paisagem é perceber modos de organização do espaço. Estudar a organização do espaço quer dizer, por exemplo, responder as seguintes perguntas: como a comunidade traça uma fronteira, reparte as terras entre as famílias, constrói estradas, e um local para reuniões públicas, e reserva terra para o uso municipal “(p.31) E, segue, na p.61, sobre projetar a paisagem, diz:

Configuram-se caminhos, a imagem remete à leitura, ao pensamento, à imaginação decodificada em pontos, lugares e relações. Pontos que remetem a encontros? Lugares que se abrem e encolhem, configuram relações de encontros, acolhimento ou repulsa; a cidade que dá as costas ao natural, se aproxima e se volta ao movimento. Preciso mergulhar nas imagens para ver e descobrir!

A imagem ganha cor, a rua ganha vida, vegetação, meio-fio, e rio. Segundo Besse (O gosto do mundo – exercícios de paisagem)

“... O projeto da paisagem seria então o seguinte: criar algo que já estava aí. A situação intelectual do paisagista é paradoxal. Efetivamente trata-se de fabricar, elaborar o que está presente e não se vê. Devemos construir para ver o que está aí, para descobrir o que está ai, devemos traçar para saber o que queremos e o que queremos desenhar. A logica do projeto é a logica da obra. O critério não é a verdade (não há projetos verdadeiros e outros falsos), mas há, sim, a pertinência...” (p. 61)


É quase um cenário, de detalhes, construído em concreto e pedra, contendo o movimento natural e fluído da vida, adornado por resistente natureza, que parece se tornar uma margem que resistindo ao tempo, ainda surpreendente e poética, continua a conter e dividir, formar conexões e detalhes.

Dai encontro, de fragmentos, caminhos que se escondem e se abrem em surpresas, cores e movimento.

V.

A casa e o lugar

...os verdadeiros pontos de partida, se estudarmos fenomenologicamente, revelarão concretamente os valores do espaço habitado, o não-eu que protege o eu.... ...todo o espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa – a imaginação trabalha no sentido de que quando o ser encontrou o menor abrigo: veremos a imaginação construir paredes com sombras


impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção – ou, inversamente, tremer atrás de grossos muros, duvidar das mais solidas muralhas... O ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos. Por conseguinte, todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos tem valores oníricos. Já não é em sua positividade que a casa é verdadeiramente “vivida”, não é somente no momento presente que conhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado.... a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma narrativa, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradias de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. – Quando, na nova casa, retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da infância imóvel, imóvel como imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de proteção. Localizamo-nos no mundo. ...a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Nosso objetivo esta claro agora: pretendemos mostrar que a casa é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. ...a casa afasta contingências, ...Ela mantem o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano – Seria possível descrever a casa - OIkos, então, nas entrelinhas do texto!

VI.

A paisagem ou lugar

E, em Merleau-Ponty, vou encontrar, que: “(...) eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos não poderiam dizer nada...” (Fenomenologia da Percepção, p.3) E, segue: “(...) minha experiência não provem de meus antecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim... as representações científicas segundo as quais eu sou um momento do mundo são sempre ingênuas e hipócritas...” (Fenomenologia da Percepção. P. 3 e 4) Por fim, compreender que: “(...) Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior, ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda a determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem...” (idem anterior) Descubro a Fenomenologia, vivo. Eu penso, digo, escrevo:


“(...) primeiramente nós apreendemos o que é uma floresta, um prado, ou um riacho...” (idem). De outro lado, com um pouco mais de vida se encaminha em movimento, tramando por entre pequenos obstáculos, que fazem do lugar acolhimento e até recanto. Em oposição, aparecem, paredes e muros que se voltam de costas para aquele não vazio, que ainda tem vida, ainda que contido. Mesmo assim, configuram-se pequenos, potenciais lugares.

VII.

E, pra terminar: a tese de Harvey, sobre o tempo e o espaço, na condição pós-moderna Defende que vem ocorrendo uma mudança abissal nas praticas culturais, politico e econômicas, desde mais ou menos 1972. Que se expressam em novas maneiras dominantes pelas quais experimentamos o tempo e o espaço... Há algum tipo de relação necessária entre a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de ‘compressão do tempo-espaço’ na organização do capitalismo... transformações da aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova...

Em síntese, três pontos para interpretar:

E surpreendentemente reconfiguram-se caminhos, que almejam ser explorados, entre navegados e caminhados, de pontos virarem lugares a promover encontros, relações. Observados ocupados, refletindo a um azul-cinza, ou de cores e sombras que permitem imaginar novos caminhos e novos encontros. E, o texto vira contexto, legenda para uma caminhada por imagens. Uma brincadeira, uma experiência.

1. Conhecimento sobre o sujeito da ação – Conhecimento sobre a natureza do espaço – Conhecimento sobre os modos de vida – Conhecimento sobre os arranjos sociais e econômicos – Conhecimento sobre expectativas e perspectivas – Uma visão estética – Uma visão funcional. Não sequencial, ou apenas processual. 2. Esta “pseudo” divisão de tarefas e funções não deixa de ser expressão, materialização da lógica fordista, que esconde processos de


dominação da técnica sobre a natureza (inclui no campo da natureza a sociedade, com referencia a cultura). Entretanto, apesar dos domínios afetos à tarefa de conceber (projetar), devido às ferramentas, aos métodos e visões de mundo experimentadas em espaços; esta tarefa permanece como atribuição da arquitetura e do urbanismo (dominada pelo método e o conhecimento). Os impactos das intervenções, de ordem social, econômica, ambiental, legal, espacial são multidisciplinares, e requer capacidade de síntese e integração, domínio de escala, de capacidade de analise e proposição integrada-coordenação. Deve-se trabalhar o projeto da cidade buscando responder aos aspectos da relação ampla, na perspectiva da mediação ser humano-natureza, como signo e representação cultural. 3. Em essência, a divisão de tarefas, não passa da simples resultante do modelo de dominação fordista que destrói a capacidade criativa, relacionada ao processo de construção cultural. A qual retira da atividade propositiva a condição de imaginar e produz uma relação de conflito interno ao processo criativo que é estranho a ele próprio, ou a sua natureza. Enfim, não dá para deixar de citar a compreensão do mundo como técnica, como ciência, afinal é isso que buscamos. Explica-lo, construí-lo, reconstruí-lo como diria Foucault, em as palavras e as coisas, podemos ver este mundo como um triedro de saberes, como uma expressão de um tempo que poderia se estruturar geometricamente – para não fugir ao oficio – como um espaço contido entre as faces que delimitam epistemologicamente um campo das ciências humanas. Organizada como

vida, linguagem e trabalho. Contido na forma do espaço interno de um prisma. Define que: As ciências humanas endereçam-se ao homem na medida em que ele vive, em que fala, em que produz. É como ser vivo que ele cresce que tem funções e necessidades... e lá pelas tantas encontra-se que: ...a representação não é a consciência e nada prova que este trazer à luz elementos ou organizações que jamais são dados como da representação...tem no conceito, que o papel do conceito complementar de sistema é mostrar de que modo a significação jamais é primeira e contemporânea de si mesma, mas sempre segunda e como derivada em relação a um sistema que a precede, que constitui sua origem primitiva, e que se dá pouco a pouco, por fragmentos e perfis através dela; em relação à consciência de uma significação, o sistema é na verdade sempre inconsciente, pois já estava lá antes dela... (Foucault, As Palavras e as Coisas, p. 476 a 507). Apenas o olhar que fazemos se define como planos que cortam e definem camadas da história, da vida, neste triedro de saberes, composto de faces que articulam conhecimentos, que a cada tempo enfatizam diferentes aspectos destas faces, seja a vida e o trabalho, a linguagem e a economia ou a produção. Este plano, que intercepta as faces do triedro nos indica a forma de contar e representar a historia das nossas vidas.


Bibliografia: Bachelard, Gaston. A poética do espaço – São Paulo: Martins Fontes, 1993; Besse, Jean-Marc. O gosto do mundo; tradução Annie Cambe. – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014; Brandão, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços – São Paulo: Perspectiva, 2008; Foucalt, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; tradução Salma Tannus Muchail. 8ª ed. – São Paulo: Martins Fontes; Harvey, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural; tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 2ª ed. – São Paulo: edições Loyola; Merleau-Ponty, Maurice. A natureza: notas : cursos no Collège de France; tradução Álvaro Cabral. – São Paulo: Martins Fontes.


PERCPEÇÕES URBANAS: “2h14min, uma caminhada, o centro” Guilherme de Macedo


PERCPEÇÕES URBANAS “2h14min, uma caminhada, o centro.” por Guilherme de Macedo Cartografia do Espaço Habitado Profº Rodrigo Gonçalves- UFSC Setembro / 2016

Levai-me, caminhos... BACHELARD, G. A poética dos espaços, pg. 204.

A oportunidade de extrapolar os meios tradicionais é bem vinda, quase necessária, decidido a investigar a cidade no intuito de estabelecer novas conexões, percepções e aproximações, mergulho... A partir de um pré roteiro, estabeleço uma rota, um passeio, uma caminhada observacional, procurarei me ater no que acontece ao meu redor, pessoas, movimentos, situaçôes, arquiteturas...estou no centro! Escolho ruas que levam a pontos interessantes, tradicionais, turísticos, de alguma forma já gosto deles, eles me motivam, não consigo ser imparcial em relação a isso. PRONTO! Ancioso, pois o dia está bonito, preparo o material, caderno a mão, caneta, telefone para fotos, confiro a bateria, bateria carregada, não tenho estimativa de tempo, apenos quero ir, me concentro, parece até um encontro, desses da juventude, o que vão achar de mim? Ignoro! Saio do meu local de trabalho, desço as escadas, um lance, dois lances, aperto a trava elétrica que esta a minha esquerda e vou até a porta de ferro que esta a minha frente. Saio.


Ponto de partida, 10:15h da manhã, uma bifurcação precede o caminho, uma rua escura, bem escura, outra rua ensolarada, muito ensolarada, tempo frio, sensação de 10ºC mas olho no telefone e está 16ºC. Cruzamento a frente, vários sons, um bater de escadas, dessas de pintor, carrinho de carga, freio de moto, arranque de moto, já é a terceira buzina que toca, de onde estou, encostado em uma banca, as pessoas estão quietas, ao lado observo o ponto de taxi, polícia, retorno o olhar e agora entendo a razão, uma ótica amanheceu arrombada, assaltada, entre a sombra e a luz decido por um caminho alternativo, uma galeria, o que era uma bi virou trifurcação, ao fundo enxergo onde quero chegar. Me adentro, somente presto atenção, para a meio caminho, sons de máquinas, muitos passos, alguns

Corpo sensível em relação aos efeitos dos encontros dos corpos e suas reações: atração e repulsa, afetos, simulação em matérias de expressão. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental, pg. 31.

rápidos outros nem tanto, um cadeirante espera, um porteiro espera, pessoas compram, pessoas passam ouço uma música ao fundo em algum lugar, sigo, chego a entrada/saída, farmácias, chaveiro, lotérica, tudo a mão, começo a escutar carros.


O artista é instaurador de novos mundos, universos perecíveis e provisórios... BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo, pg. 25.

Saio, olho para um lado, verde, olho para o outro, multidão, permaneço ao lado, parado, passam turistas, caminho, a minha frente do outro lado, muita gente, onde estou é mais calmo, sigo...casarões abandonados, prédios vivos, barracas, cinco, propagandas, jingles, tosse, carrinho de bebê, paro à sombra, ouço um violão, passo um carro forte, se aproxima um carro de som, o sapateiro ao meu lado conversa com seu cliente, alguém vindo grita, é o Zé da Bíblia. Chego à esquina e identifico o violão, era uma caixa de som, japoneses passam, parecem à trabalho, ouço alguém conversando em espanhol muito próximo, de repente um som de campo, uma viola, momento estranho, de novo à sombra, o sol ofusca, e agora esquenta, olho ao lado e uma outra pessoa parece fazer o mesmo que eu, escreve, as pessoas se esbarram, vendem, pedem, a música agora silenciou, sigo novamente, passo por dois moradores de rua, o primeiro pede um “trocadinho”, não dou atenção, o segundo me dá bom dia! Percebo uma banda a se aprontar, novamente no sol, agora esta melhor.


As cidades precisam tanto de prédios antigos, que talvez seja impossível obter ruas e distritos sem eles. JACOBS, Jane. Morte e vida das cidades, pg. 207.

Prossigo, um hare krishna me para, não dou atenção, lojas fechadas, lojas abertas, ouço muitas vozes, escuto que o céu está azul, “estranho” normalmente é cinza. Paro em um cruzamento, alerta sonoro, fechado, 24 segundos, prédios altos, a direita uma leve descida, fotografo e atravesso após o tempo. Continuo pelo sol, bancos e bancos, lojas, um canteiro, um cachorro, bicicletas, caminhão, as pessoas não falam, passam, mas há barulho, tosse, ao som de um chafariz eu paro, pessoas surgem de uma galeria, outras roem as unhas, famílias, jovens com pranchetas por todo lado, tentam uma aproximação, avisto um módulo policial, novamente escuto um sinal sonoro, não identifico, acho que era a ré de um ônibus, espero e cruzo mais uma rua, estava vermelho. Vejos outros caminhos, permaneço no mesmo, reto, ambulantes, sons de um rádio, rádio de polícia, barulhos de sacolas, um banco na sombra, uma pessoa no chão outra no telefone, muitas lojas e prédios interessantes, limpos, antigos, um casal olha o artesanato, olhares de desconfiança.


Estou sendo observado, escuto um grito, uma chamada, pombas, passos, estou na sombra, grande sombra, fico pelo menos cinco minutos parado,, um carrinheiro passa lentamente, vou atrás, sol, cruzamento, a mulher grita. “Olha a cobra! Borboleta dezesseis!” Muita gente passa, mas percebo uma kombi ao fundo, movimentos, som baixo, Obrigado! Diz uma moça, mas não leva o panfleto. Paro, no mesmo momento, sou abordado, “Compra um alfajór e ajuda a casa de instituição?!” Ando, banco em frente, banco em greve, muita gente, não aos panfletos, mais gente, muita gente, sons de lojas, microfones, duas grandes sombras no caminho. “Olha a blusa! São 11:10h, a rua é longa, mais lojas, conversas estranhas, suspeitas, ouço palavrôes, duas moças rindo, um passarinho canta. Ando, uma porta, sim! Uma

O sujeito fenomenológico se faz rodear por coleções de objetos sentimentais que constituem um inventário notório, a memória. ABALOS, Iñaki. A boa vida, pg. 101.

linda porta, entalhada em madeira, antiga, mal cuidada, pixada. Um som de samba na loja ao lado, ”sheik, sheik, sheik”. Gritos, almoço, cinco e noventa e cinco! Passeio com o cachorro, fumantes, cadeirantes, vendedores, Só calças!


Uma mulher chama a atenção, loira, vestido, muitos olham, salto alto cabelo liso. Paro a esquerda, uma subida, avisto uma estátua, música, microfone, vento, estou no cruzamento, olho pra cima, um prédio bonito, antigo, subo a rua, camelôs, casarões, azul, amarelo, rosa, em uma das barraca uma tatuagem nas costas de uma pessoa chama a atenção, homem? mulher? Observo a frente, um cadeirante, com toca de Papai Noel assovia, ao lado um estacionamento, um orelhão, uma vaga viva! Não tinha visto ainda, ali estavam uma criança e dois jovens, bem perto uma máquina diferente, cheguei perto e li, teatro ambulante lambe-lambe, “Antonina little star” fiquei curioso... Me estico, ando, novamente a esquerda sigo, espaço aberto, percebo outra estátua, observando lojas na caminhada leio

“Os olhos querem colaborar com os outros sentidos.” PALLASMAA, Juhani. Olhos da Pele, pg. 39.

em um toldo “Jeans do Brasil”, do outro lado um prédio, identifico, pátinas do tempo, novamente a frente uma rua com flores, desvio o caminho e vou por ali, escuto a água da fonte, escuto “flores moço!?” o cheiro muda, perfume, sombra, podia ficar mais...


“Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo...” GUATARRI, Félix. Caosmose, pg. 157.

Escuto o tocar do sino na catedral, mas não a vejo, são 11:30h, vejo um café, cheio, ouço batidas, marteladas, obras, ando a frente e agora vejo a catedral, dois cruzamentos, olho pra baixo, petit pavet à frente, cimento, atravesso, de longe ouço um tocar de violão no banco da praça, do outro lado aparece uma pessoa perdida, no ponto de ônibus, mas ele não está ali, som alto, carro forte, era um guardador de carro, ando, ao lado mais uma galeria, não entro. Uma outra mulher chama atenção, dessa vez morena, roupa de academia, muitos olham, próximo um som de funk, ao lado um vendedor de panos de prato, me olha desconfiado, ao seu fundo uma parede de azulejos e outra galeria, sigo, onde antes tinha mendigos, hoje não tem, bancos em greve, em frente fica um ponto de ônibos, o meu ponto de ônibus, hoje não uso mais , ele ia para a casa dos meus pais, o “Nazaré”, e ele chega! Ando, uma senhora de cabelos curtos e coloridos, uma máquina italiana de sorvetes, dessas antigas, outra galeria, um trevo logo em frente, confuso, a frente um obelisco e paro.


Em meio a carros, motos, ônibus, uma frase no alto, “confira, tudo que respira, conspira!... Leminski. Atravesso, mãos cansadas, me estico novamente, a rua é antiga, paralelepipedos e flores, é o centro, o centro antigo, o centro histórico. Ladeira, uma torre, e toca o sino, igreja, um sebo, tranquilidade, música, ao lado esquerdo uma placa na parede, Casa da Memória, Patrimônio Histórico e Cultural, a subida continua, um carro cruza, mas é calçadão, pedestres, mas está tranquilo, chego num lugar amplo, largo, o Largo da Ordem, parece ter vida noturna, tem

La arquitectura difiere, pues, em cada circustancia y en cada lugar. HOLL, Steven. Fenomenologia de la arquitectura pg. 41.

vida noturna! Um homem de terno, turistas, mas poucos, chego numa fonte, um bebedouro de cavalos na verdade, bem no meio, no centro, olho ao redor, casarões antigos, um vermelho se destaca, é o Bar do Alemão, tradicional, do outro lado construções neoclássicas ao fundo em estilo francês tentam se alinhar mas não conseguem, o telefone toca, atendo, enquanto isso uma pedinte se aproxima, já conhecia de outro dia, cheiro forte, desligo o telefone e continuo...


Vou em direção a uma passagem subterrânea, uma galeria, desço, muitas cores, sombra, juntos descem estudantes , um casal, mãe e filha, uma freira, na outra direção dois jovens um skate na mão e um pastel na outra, paro, lá embaixo, não escuto nenhum carro passando, um casal de garis se beijam, ao lado direito uma associação de xadrex do outro um teatro, um senhor me olha desconfiado, o piso é antigo, pedras, o sino toca, são 12:00h, pessoas suspeitas, avisto a barraca do pastel, do outro lado, buffet completo a quatro e noventa e nove, paro na

A linguagem da beleza é, essencialmente, a linguagem da realidade atemporal PALLASMAA, Juhani. A Imagem Corporificada, pg. 78.

sombra, senhoras, jovens, senhores, barulhos de moedas no bolso de alguém apressado, um casarão restaurado, a direita se abre uma rua, vazia, poucas pessoas, ouço o coral da igreja, sinto o cheiro do pastel, não resisto, paro e compro, Um de carne por favor. Dois reais! Como, satisfeito. Sigo e escuto. “vamos Larissa!” é a mãe para a filha, estão indo em direção ao ponto de ônibus, que já esta lá em desembarque, estou em campo aberto, praça, vários caminhos, muitos barulhos, penso.


A cidade viva emite sinais amistosos e acolhedores com a promessa de integração social GEHL, Jan. Cidades Para Pessoas, pg. 63.

Caminho rumo ao centro da praça, grande, verde, suja, sorvete, homem no chão, dormindo, mendigo, haitianos, idosos, muitos bancos, mais idosos, senhores, pombas, muitas pombas, tosse, enquanto ando, sou observado, mas tudo esta calmo,os andares, o som, atravessei, sinal vermelho, um novo trevo, espero, desço a rua, vejo mais lojas novamente, bancos, uma jovem de cabelos coloridos, uma fachada me chama a atenção, cores azul e verde, separam a mesma edificação, fim do trecho, avisto o destino, mais um pouco, abre o sinal de pedestres, tumulto, estudantes, continuo, chego do outro lado, “FORA TEMER” no chão, “FORA TEMER” no lixo, de um lado hotel cinco estrelas, do outro a Biblioteca Estadual, uma moça sobe, um senhor resmunga, na esquina um carrinho, pipoca, cheiro de bacon, novo trecho, a calçada estreita, afunila, tumulto, estudantes, loja, pizzaria, olho pra cima e os prédios são altos, antigos, chego numa pracinha, um largo, pequeno, uma banca, bancos, floricultura e novamente a trifurcação. 12:29h.


BACHELARD, G. A poética do Espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes,1989.

PALLASMAA, Juhani. Olhos da Pele: arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Editora Bookman, 2011.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011.

GUATARRY, Felix. Caosmose. Um novo paradigmaestético. São Paulo: Editora 34, 2006. ‘

BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios da paisagem, Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2014.

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REFLEXÕES, MEMÓRIAS, RELATOS Paula Gabbi Polli


reflexĂľes


Me coloco no mundo. Paro. Penso. Sinto a cidade? Reconheço minha vizinhança, minha história? Cresci sem saber o que o tempo causou, memórias perdidas em edificações abandonadas, espaços esquecidos na cidade.

Pallasmaa em suas sábias palavras destaca a forte relação entre a

Na correria do dia a dia escolho viver o hoje, o atual. Sigo a rotina e a rotina me persegue. Percorro sempre as mesmas ruas, mesmas edificações, mesmas pessoas. Paro. Me pergunto. Reconheço esse local que me encontro todo os dias? Vivo o espaço? Ou deixo que ele viva sem mim?

descreve a falta de humanismo nas cidades atuais por consequência

A partir do meu olhar sobre o mundo me permeio em dúvidas quanto ao que sinto na cidade. Talvez certas circunstâncias me penetrem com uma sensação de bem estar, muitas vezes de fraqueza. O passar inquietante do relógio parece não permitir que separemos um tempo para pensar os espaços que nos fazem bem, qual a cidade que me faz feliz? A rotina segue passando e deixamos de lado o porquê de se gostar de tais locais sobre outros, talvez como uma simples reflexão para se replicar no futuro as pequenas sensações de bem estar. O mundo que nos rodeia muitas vezes é aquele limitado pelo que nós nos permitimos sentir, a cidade que vivemos vai além de configurações viárias ou conjuntos de edificações distribuídas. Talvez esteja naquela sensação de uma manhã quente de vento norte em pleno inverno, no barulho dos skatistas rodopiando toda vez que adentro a universidade, ou simplesmente no sentimento de adentrar àquela mesma rua que desde criança sempre coube chamar de minha.

cidade contemporânea e esse sentimento de vida vazia, das angústias, que nos penetram. Ao ressaltar em seu livro, Os Olhos da Pele, da negligência com o corpo e o nosso sistema sensorial. As cidades dos olhos, como salienta, nos força a alienação, ao isolamento, uma vez que somos afastados de nossos instintos primitivos de conhecer o que nos cerca através do toque, da interação física com o espaço. Nos perdemos em um mundo onde o eu não pertence a lugar algum. A sensação de apropriação pela cidade que vivemos se torna enfraquecida, a relação com as pessoas cada vez se perde mais com o passar corrido das horas. Me encontro perdido no tempo, espaço. O que eu sou, o que é esse mundo que me rodeia? Merleau-Ponty em Fenomenologia da percepção destaca a busca pela essência do mundo, podendo-se alcançar através daquilo que de fato ele é pra nós antes de qualquer tematização. A redução perante as diversas coisas que nos ensinaram, que nos guiam a definir os espaços e os elementos à que pertencem. Talvez o que tenhamos perdido ao longo da nossa vida seja o simples sentimento de vivenciar aquilo e aqueles que nos rodeiam. Merleau-Ponty (1994) ainda reforça o fato de que o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo. Talvez a resposta para tantas perguntas decorridas até então não esteja


no desmembramento dessa inquietação que gira dentro da minha cabeça, mas sim no simples ato de se sentir, de se expor à vivacidade do mundo. Por fim, ou primeiramente, Pallasmaa (2011) apresenta a cidade como meio da experiência corporal, como parte complementar e integrante do meu corpo, o autor então conclui: “Eu moro na cidade, e a cidade mora em mim”.

Será?


memórias Aquela mesma rua, hoje tão difícil de se imaginar. Pessoas chegando, partindo, se encontrando, outra época, outros usos, outras pessoas? Ao me posicionar em frente à praça da igreja tornase quase impossível imaginar que esse espaço, hoje esquecido pela maioria das pessoas, já foi outrora o centro econômico e social do bairro. Ouço o barulho do vento, um carro que passa longe, aos poucos um casal se aproxima, conversa, caminha, segue, some, silêncio, o vento mais uma vez. Ao longe observo a edificação esquecida no tempo, quantas histórias se perderam e foram enterradas junto à (alma da) antiga estação. Fecho os olhos e tento imaginar o que já foi, não consigo. Frequentei esse espaço desde criança, na minha memória sempre foi vazio, gelado, esquecido. O bairro que uma vez surgiu e aconteceu nesse espaço se desprende completamente da sua origem. Os tempos passaram, as rodovias instaladas, o centro agora é outro. O comércio se fundiu junto às grandes vias de deslocamento, o pedestre perdeu o espaço no centro urbano e junto a ele se deixou de lado a verdadeira identidade do bairro, que bairro? Me coloco nesse espaço e penso, onde antes era vida agora é vazio, o que antes foi permanência agora é só passagem.

A definição de cidade segundo Ítalo Calvino em seu livro Cidades Invisíveis não se caracteriza pelo conjunto de elementos construídos aliado ao espaço externo residual. Para o autor, a cidade está na soma das relações das medidas do seu espaço e os acontecimentos do seu passado. As cidades das memórias, essas surgem como a real e crua definição do espaço público que vivenciamos. Como se pretende reconhecer o espaço das cidades quando hoje grande parte da sua história e memórias se encontram perdidas no tempo, abandonadas junto à antigas edificações e espaços públicos desconsiderados por grande parte da população? A partir deste pensamento da valorização das memórias da cidade se dá o início da busca pelos reais desdobramentos desse trabalho, o reconhecimento desse espaço que me penetra e circunda diariamente. A busca pelos fatos históricos surge como primeiro passo na compreensão do que hoje se encontra constituído como a minha cidade. Esse espaço onde inicialmente foram instaladas as primeiras habitações e o centro comercial e social do bairro perdeu seu uso e reconhecimento após o fechamento das ferrovias, ocorrido no país durante a segunda metade do século XX. Juntos à redução do transporte de passageiros nos trens se deu gradativamente a perda da memória do lugar, hoje desconhecido pela maior parte da sua


população. Silvio Macedo expõe a situação do abandono da áreas

Jane Jacobs em Morte e Vida das Grandes Cidades, também destaca

férreas no Brasil a partir do seguinte trecho:

a importância econômica da presença de edificações de valor antigo

“Nas cidades cujo crescimento era antes estruturado por

juntamente às novas inseridas no contexto urbano. A inserção de

eixos ferroviários, com o seu sucateamento durante quase

prédios de valor histórico além de reforçar a memória da cidade

todo o século, este se desloca para os novos eixos

surgem como elementos desencadeadores da vivacidade e diversidade

rodoviários em implantação, e quando subsistem, não são mais indutores do crescimento urbano” (MACEDO, 2012).

das área públicas. A carência de sentido e uso nesse espaço resultou na desvalorização da área provocando o desinteresse e desvalorização

O deslocamento do centro comercial e estruturador do Bairro resultou

imobiliário do entorno. A área da Praça da Igreja e antiga estação

tanto na queda do interesse econômico quanto sentimental pelo

férrea se encontra hoje habitada por um número reduzido de antigos

espaço. O interesse agora está nas grandes vias e espaços comerciais,

moradores que a partir do senso de comunidade que ainda resta no

cheios de pessoas mas vazios de significado.

local (muito influenciado pela presença da religião) cultivam e zelam

Pallasmaa (2011) destaca o afastamento da relação do corpo com o

por essa área.

espaço, característica presente na arquitetura modernista. O autor

O reconhecimento do que eu, morador, percebo como meu bairro,

expõe o fato de o sentimento de memória, imaginação, sonhos, se

minha vizinhança, minha comunidade, surge como elemento

encontrarem perdidos, deixados de lado, da mesma forma que o nosso

fundamental na apropriação dessa área pela população. A autora Ana

corpo hoje se encontra desabrigado num espaço urbano perdido no

Fani Carlos (2011) destaca a importância de se estabelecer o recorte

tempo/espaço. A perda do papel da pessoa como indivíduo ocupante

do bairro devido ao fato das pessoas habitarem apenas fragmentos da

do espaço juntamente ao esquecimento do histórico resultou no

cidade, e não sua totalidade. São nesses espaços da malha urbana que

abandono de diversos espaços urbanos pela população. A perda do

ocorrem os momentos de socialização e a efetiva vida cotidiana das

sentimento de reconhecimento e apropriação da área da antiga estação

cidades, independente da presença de infraestrutura adequada. São

no Bairro Camobi hoje se classifica com um espaço sem uso, atrativos

esses os momentos em que a vivacidade e urbanidade se manifestam

e significado, inserido na malha urbana da cidade.

na sua maneira mais pura no contexto das nossas cidades.


Assim, torna-se evidente a importância da compreensão desse espaço, meu espaço pra o entendimento do que é a minha cidade, meu bairro. Elementos como fatos históricos, demarcação do recorte urbano e incentivo ao uso do solo surgem como aspectos fundamentais nesse contexto de identificação das pessoas com o lugar. No entanto, talvez seja necessário ir além, além do meu entendimento, da minha experiência. Para entender o que se passou ali propõe-se a busca pela visão do outro. Relatos desses moradores, pessoas que vivenciaram a transição entre o que esse espaço já foi e como ele se encontra atualmente. Talvez esteja nessa busca a possibilidade de começar a entender, passo a passo, o que é esse espaço que eu habito, espaço esse descrito por Merleau-Ponty no texto a seguir como: “O mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável. "Há um mundo", ou, antes, "há o mundo"; dessa tese constante de minha vida não posso nunca inteiramente dar razão.” (MERLEAU-PONTY, 1994)


relatos Talvez meu olhar de intrusa num tempo que não foi meu não transmita o que esse espaço já foi. Reconheço essa rua, esse bairro, esse espaço como meu, mas realmente sei de onde ele veio, seu significado, sua importância? Me pergunto ainda, isso realmente importa, senão pra mim, pros outros, pra cidade?

Bachelard (1993) destaca a importância da ativação da lembrança e do sono para a experiência da cidade. Em A Poética do Espaço, ao apresentar a casa fenomenológica, o autor reforça a importância dos devaneios que remetem à primeira infância, identificando estes como momentos supremos, onde a relação do eu com o mundo ainda não

Morador 1. “(...)os trilhos de trem fazem parte da minha vida. Sou filho de ferroviário e o som, o cheiro, a presença do trem remetem a um tempo de grandes felicidades: a infância. Ainda, o trem cruza o bairro Camobi, sendo outra marca importante“.

foi deteriorada pela imposição de um modelo racional na nossa forma

Morador 2. “Porque passei a minha infância brincando nos trilhos, ficava horas nos domingos esperando para ver o trem e muito viajei com o mesmo para várias cidades do Rio Grande do Sul, como Santa Maria, Cacequi, Rosário do Sul, Livramento, Uruguaiana, Porto Alegre, etc. Sinto muitas saudades daquele tempo. Ouvia o apito do trem de longe e já dava um friozinho na barriga. A emoção falava mais alto. Tempo muito bom”.

moradores locais quando questionados sobre o sentimento que aquele

Morador 3. “Porque relaciono com o caminho de idas e vindas que a vida pode dar. Os trilhos trazem recordações e pensamentos de um futuro melhor pela frente”.

de visão. Nos relatos coletados em trabalho anterior no ano de 2015 foi possível perceber a forte presença de experiências da infância dos espaço lhes transmitia. A memória do lugar, apesar de esquecida através da falta de uso do espaço, ainda permanece viva e forte na mente dos seus antigos frequentadores. Vale ainda ressaltar a memória dos diferentes sentidos a partir dos relatos obtidos nas entrevistas, a lembrança daquele tempo e espaço não se manifesta apenas na visão ou acontecimentos como a chegada

Morador 4. “Porque é um local histórico. Me faz voltar no tempo, imaginar quantas pessoas já passaram por ali. Quantos sonhos se iniciaram ali. As despedidas”.

e partida do trem, mas se encontra forte e evidente no barulho do apito

Morador 5. “Gosto dessa área pois morei desde que nasci até a idade adulta próximo a Igreja. Foi onde me batizei, onde meus irmãos foram batizados também, onde minhas irmãs casaram. Boas recordações de lá”.

tremer da terra com a chegada dos passageiros.

do trem ao longe, no cheiro da fumaça espalhada pelo caminho, no

Corroborando esse pensamento, Steven Holl (2011) destaca a importância de se isolar das questões mundanas para uma real percepção do espaço, percepção essa possível ao sujeito dos sentidos


que se permite sentir o espaço ao seu redor. Experiência essa muito

no decorrer do tempo e a subjetividade por trás do que àquele espaço

mais fácil e comum de ser captada na primeira infância quando o

já significou aos primeiros habitantes e fundadores do bairro.

corpo ainda se encontra livre dos conhecimentos e preocupações que penetram e por fim afetam a habilidade de se trabalhar o imaginário na vida adulta. Apesar de não ter vivenciado a época do transporte ferroviário de passageiros e de reconhecer esse espaço da estação como mais um esquecido no tempo, o apito do trem, que até hoje soa toda vez que os trens de carga chegam na cidade, se encontra na minha memória de infância. Ainda hoje quando retorno à minha cidade, ao encostar a cabeça no travesseiro, aquele apito que soa ao longe, parece que mais alto quanto mais o tempo se encontra armado pra chuva, me faz sentir realmente em casa, talvez mais forte do que qualquer outra coisa.

A perda do caráter de centralidade do bairro identificada no espaço em estudo pode ser justificada por diversos acontecimentos ao longo dos anos: o crescimento da malha urbana através da instalação de novos parcelamentos de terra, a inauguração de duas rodovias de caráter estadual e a implantação de equipamentos atratores e definidores do espaço urbano do bairro como a Base Aérea e a Universidade Federal de Santa Maria. A busca pelos relatos dos antigos moradores da região colabora na intenção de se identificar as reais qualidades do local, funcionando como elemento separador entre a realidade objetiva e histórica do desenvolvimento da malha urbana

Surge aí o principal paralelo na pesquisa deste trabalho, enquanto estudo do espaço público, a intenção de se ressaltar a importância da memória da cidade incentivada através da experiência do corpo individual aliado ao estudo da morfologia do espaço. Busca-se assim, iniciar uma compreensão do que é esse espaço que habitamos diariamente, do que ele é feito, quais seus sentimentos, cheiros, memórias, atributos que somados à sua estrutura construída constituem o mundo em que vivemos. O afastamento já identificado entre o papel do corpo dos indivíduos em relação ao significado dos espaços distribuídos pela malha urbana resultam no enfraquecimento da relação de apropriação e zelo por estas áreas de uso da população. No entanto esse afastamento dos reais significados dos espaços aliados à pressa e alienação no cotidiano da vida contemporâneo resulta no enfraquecimento das relações entre os próprios habitantes das cidades. O espaço da vida pública por excelência, às ruas, juntamente às praças, agora em desuso no sistema urbano, refletem cidades e comunidades sem interação, sem vida. Esse espaço onde já se trocaram ideias, mercadorias, aconteceram encontros, chegadas, despedidas de amantes, reencontros familiares,


ambientes estes cheios de vida nas cidades hoje se resumem ao que pode-se observar na imagem a baixo, um vazio, perdido num tempo e espaço de quase ninguém.

Figura 1. Antiga estação vista lateral e frontal.

Figura 2. Espaços vazios locados na Praça da Igreja, em frente à antiga estação.


relato Me coloco mais uma vez nesse espaço, talvez agora com um olhar diferente, uma mente diferente, um corpo diferente. Dou início ao meu percurso onde a então Avenida surge na malha urbana da cidade. Começo a caminhar, aos poucos vou me afastando do som dos carros que se deslocam da rodovia atrás de mim. Desço a rua e o silêncio se instala, sinto o vento frio mexendo meus cabelos, me empurrando, como se me convidando a seguir em frente. Percorro a rua, sigo pelo asfalto, quase não há calçada, observo ao longe duas pessoas adentrando minha visão, um casal de amigos, amantes, talvez. Ao meu lado me desperta o som de uma risada, vejo dois vizinhos conversando um de cada lado do muro, dentro de mim um sentimento bom, sentimento de vizinhança que se instala nesse momento, nesse ambiente.

talvez nos morros que insistem em fazer companhia à minha esquerda desde o início do meu percurso. Enfim chego ao meu destino, a praça em frente à igreja. Assim como na minha memória ela continua igual, vazia, escura pela presença da vegetação carregada de folhas, subo alguns degraus e me volto para a antiga estação. Essa imagem sempre me tocou muito forte, não sei dizer ao certo o porquê, a grande área verde, os morros fechando o quadro dessa paisagem que sempre pareceu parada no tempo. Mais uma vez fecho os olhos e tento sentir o espaço com meu corpo, sinto o vento, vento esse frio que agora domina minha pele já quente. Tento imaginar esse espaço com vida mais uma vez, como eu gostaria, mas não consigo, parece que não há mais nada aqui.

Ouço o som de um carro, ele surge atrás de mim, passa, segue em frente e some. Ao seguir caminhando por vezes um carro ou ônibus passam por mim, motos, bicicletas, todos cruzam e somem, soam como se não fizessem parte desse espaço, simplesmente passam, como se não voltassem nunca mais. As pessoas aos poucos surgem, somem. São pais com filhos pequenos, crianças, senhoras de idade. O bater dos cascos no asfalto chama a atenção atrás de mim. Talvez seja o relinchar do animal, seu tamanho surgindo em minha direção, me assusto, paro por um minuto, sigo o caminho. O sol começa a bater nas costas, é um calor bom, calor daquelas manhãs frias de inverno. É manhã, são quase onze horas. Seguindo o caminho por vezes o silêncio da Avenida é cortado pelo som dos carros. Em grande parte do tempo me perco no silêncio, quase não há árvores na minha frente, mas ainda assim sinto o verde. A natureza está presente nos gramados, terrenos vazios, ou

Figura 3. Fotografias da avenida e Praça da Igreja.


Segundo Merleau-Ponty a experiência de se expor a vivacidade do

através de um relato de uma atividade de se explorar Roma por seus

mundo negando qualquer preconceito e conhecimento surge como

espaços intermediários busca a essência da cidade através de espaços

prática fenomenológica para a compreensão do espaço em sua

mais frágeis e desconhecidos pela população. A partir da leitura

plenitude, a busca pelo mundo que nos rodeia. Talvez seja a partir

verificou-se a importância de se percorrer as margens da vida nos

desse pensamento que busco recomeçar a compreender o que é essa

bairros buscando a compreensão do que é essa essência desse espaço

cidade que eu habito, que rua é essa que eu vivencio diariamente mas

que eu insisto em chamar de meu, que busco tentar compreender. Ao

sem realmente viver a sua essência.

percorrer e vivenciar essa área que hoje se encontra deslocada e

A partir da experiência descrita pelo autor, utilizando os olhos do corpo ao invés da prática da visão, fui dominada por um sentimento diferente sobre o espaço. Talvez esteja no ato de não apenas percorrer

esquecida na memória da população talvez surja como etapa fundamental nessa busca pela real compreensão dos espaços da minha cidade.

essa rua, esse trajeto, mas sim na real intenção de buscar sentir a vida

A autora Paola Jacques (2012), traz uma crítica ao urbanismo

que ela apresenta no seu percurso. Os pequenos detalhes como a

contemporâneo onde destaca o afastamento do espaço público à

intensidade do sol, a conversa entre os vizinhos, a contemplação do

experiência corporal e sensorial das cidades. Ao sugerir a prática da

silêncio, silêncio esse que esteve ao meu lado durante toda a

errância como instrumento à experiência urbana, a autora destaca a

experiência do espaço, esse sim pode ser classificado como o real

importância de três propriedades para se percorrer a cidade: a lentidão

morador dessa rua, o que pede pra ser ouvido e contemplado mas que

no decorrer do percurso, a corporeidade na sensação sobre o espaço e

geralmente passa esquecido ou atropelado pelo som de qualquer

a qualidade de se perder no trajeto. Talvez esteja nesse método uma

automóvel penetrando aquele espaço.

ferramenta na busca pela descoberta desse mundo que habitamos.

Francesco Careri em Walkspaces (2002) reforça o convite à prática do caminhar como forma de intervenção urbana, como meio de criar paisagens. O autor destaca a importância de se andar “à toa” onde

Através dessa experiência de se separar do tempo, se afastar da pressa e da ambição cotidiana e aproximar a busca pela sensação do espaço, na sua forma mais pura, lenta e sensorial, passo a compreender um


pouco mais esse espaço que hoje tive a oportunidade de reencontrar,

então ao estudo da morfologia urbana e sua configuração espacial

ou talvez deva dizer, de vivenciar pela primeira vez?

inserido no contexto urbano atual.

“Ora, a rua é muito mais do que isso a rua é um fator de vida das cidades, a rua tem alma! (...) Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as ideias de cada bairro?” (João do Rio, in Elogio aos Errantes, 1997).

Através das leituras e aplicação das ferramentas sugeridas pelos autores, hoje sinto que reconheço esse meu espaço, ou talvez esteja começando a compreender a vida nessa rua. O que a pressa do dia a dia afastou desse espaço em relação a minha vida aos poucos vai retornando seu caminho, caminho esse de quando era criança e aquele

Figura 4. Antiga Estação Férrea de Camobi em funcionamento. fonte: www.estacoesferroviarias.com.br

barulho do apito do trem me trazia sensação de segurança, de se sentir amparado dentro da minha própria casa. Talvez eu jamais compreenda o que esse espaço realmente significou para àqueles que o vivenciaram em seu período euforia, de centro econômico e social do bairro. No entanto, acredito estar justamente nessa busca pelos acontecimentos passados, através de relatos, aliado ao sentimento que hoje esse ambiente transmitiu pra mim, os primeiros passo pra compreender o que essa área significa pra esse bairro, essa cidade e a partir daí agregar o conhecimento obtido até

Figura 5. Situação de abandono da antiga estação nos tempos atuais.


por fim... Essa rua hoje já não é mais minha, 730Km me separam de uma realidade que um dia já foi meu cotidiano. Hoje me coloco em um nova cidade, uma nova rua, uma novo clima, novos sentimentos. “Me situo nesse espaço. Uma linha reta que se estende, sobe, some, sobe, para. O jogo de vozes me desperta a atenção. São palavras que saltam de uma janela à outra. Duas pessoas param, se encontram, conversam, o até logo se estende e permanecem no local. Barulho! O som das rodas sobre as pedras domina o ambiente, por alguns segundos isso é tudo, passa, some. Silêncio. Fecho os olhos, sinto o vento, a umidade no ar que aos poucos vai surgindo no contato da pele. Não sei se são os sons, a luz, o tempo, essa rua que hoje devo chamar de minha talvez não seja tão minha assim, ainda. Mais uma vez, silêncio.” Ao tentar entender o passado, me perco mais uma vez. Entender de onde venho pra onde vou, aos poucos vou escrevendo minha história no tempo. Talvez a pergunta aqui já não seja mais o que é esse espaço, de onde ele veio, quem foram seus habitantes. Talvez agora eu deva começar pelo mais simples, mas igualmente tão complexo, O que eu sou?


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO TECNOLÓGICO PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

CARTOGRAFIA DO ESPAÇO HABITADO. Fenomenologia, arquitetura, corpo e cidade - Seminário de articulação final.

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Professor: Rodrigo Gonçalves

BRANDÃO, Ludmila de Lima. Abordagens e problemas epistemológicos. In: BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços domésticos. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 7-28.

Autora: Paula Gabbi Polli

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gilli, 2013. CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço-Tempo na Metrópole: A fragmentação da vida cotidiana. São Paulo. Contexto: 2001. HOLL, Steven. Cuestiones de percepción: fenomenologia de la arquitectura. Barcelona: GGili, 2011. JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012. MACEDO, S. S. Paisagismo Brasileiro na Virada do Século 1990-2010. 1ª. Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Unicamp, 2012 MERLEAU-PONTY, Maurice. Prefácio. In: MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 1-20. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011.


ABANDONO, REVITALIZAÇÃO E GENTRIFICAÇÃO NO IV DISTRITO DE PORTO ALEGRE: UMA ABORDAGEM PSICOGEOGRÁFICA E FENÔMENO(LÓGICA). Rodrigo Vargas Souza


Rodrigo Vargas Souza

Imagem 1 : na deriva no IV distrito de Porto Alegre.

1 Deriva, piscogeográfia e fenomenologia A deriva é uma técnica do andar sem rumo que se mistura à influência do cenário (JACQUES, 2003). Segundo Debord (1982) uma ou várias pessoas renunciam seus deslocamentos habituais que geralmente fazem a trabalho ou entretenimento, para deixarem levar pelas solicitações do terreno e confluências que a ele correspondem (Imagem 1). O aleatório para Debord não é tão importante como se pensa, pois do ponto de vista da deriva, existe um relevo psicogeográfico das cidades, com fluxos constantes, pontos fixos e turbilhões que dão acesso ou saída de algumas zonas muito incômodas. Neste sentido a teoria da deriva pode fazer uma intersecção com a fenomenologia. Segundo Merleau-Ponty (2015) a fenomenologia é uma filosofia que estuda as essências na existência e compreende o mundo a partir de sua factilidade. Segundo Debord (1982) a deriva em sua unidade, compreende por sua vez esse deixar-se levar e sua contradição necessária: a dominação das variações psicogeográficas pelo conhecimento e pelo cálculo de suas possibilidades. Debord (1982) afirma que as limitações dadas pelo tecido urbano é o terreno em que se move a deriva que se molda ao seu próprio determinismo e com suas relações com a morfologia social. A fenomenologia ambiciona ser uma “ciência exata”, mas também um relato, do tempo, do mundo “vividos” (MERLEAU- PONTY, 2015). E o autor complementa: “eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu “psiquismo”, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo (...) eu sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada” (MERLEAU- PONTY, 2015. P. 3). 1


Imagem 2: população de rua de “Porto Alegre”

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É importante, considerar dentro da experiência subjetiva citada por Merleau-Ponty aspectos da pós-modernidade que podem ajudar a esclarecer os aspectos deterministas da teoria da deriva. Segundo Hall (2004) um dos principais fatores que causam descentralização da identidade do sujeito pós-moderno é o poder disciplinar destacado por Foucault. O poder disciplinar está preocupado, em primeiro lugar, com a regulação, a vigilância é o governo da espécie humana ou de populações inteiras e, em segundo lugar, do individuo e do corpo (HALL, 2004). Hall (2004) citando Dreyfus e Rabinow (1982) complementa seu pensamento sobre o poder disciplinar:

Os espaços da cidade moderna são setorizados e o trabalhador acaba dedicando muito tempo à locomoção. Lefebvre (2016) afirma que os lugares de lazer , assim como as novas cidades, são dissociados da produção, a ponto dos espaços de lazeres parecem independentes do trabalho e “Iivres”. Mas eles encontram-se ligados aos setores do trabalho no consumo organizado, no consumo dominado (Imagem 3) . Imagem 3: traçado urbano do IV distrito, edifícios industriais, comerciais e residências na mesma quadra

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“O objetivo do poder disciplinar consiste em manter as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades e os prazeres do individuo, assim como a sua saúde física e moral, suas praticas sexuais e sua vida familiar sobre estrito controle e disciplina, com base no poder dos regimes administrativos, do conhecimento especializado dos profissionais e no conhecimento fornecido pelas disciplinas das ciências sociais. Seu objetivo básico consiste em produzir um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil” (HALL, 2004, p. 42). Segundo Harvey (2014) as pressões coletivas exercidas pelo estado ou por outras instituições (religiosas, politicas, sindicais, patronais e culturais) aliadas ao exercício do poder de domínio do mercado pelas grandes corporações e outras instituições poderosas afetam de modo vital a dinâmica dos indivíduos Quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual. (Imagem 2). Segundo Harvey (2014) os indivíduos são considerados agentes movidos por um proposito engajados em projetos que absorvem tempo através do movimento no espaço. As biografias individuais podem ser tomadas como “trilha de vida no tempo-espaço”, começando com rotinas cotidianas de movimento (da casa para a fábrica, as lojas a escola, e de volta para casa).

Rodrigo Vargas Souza

“a esse espaço, cujas “propriedades” situam-se na articulação da forma e do conteúdo, corresponde um tempo que tem as mesmas “ propriedades”. O tempo , bem supremo, mercadoria suprema, se vende e se compra: tempo de trabalho, tempo de consumo, de lazer, de percurso etc. Ele se organiza em função do trabalho produtivo e da reprodução das relações de produção na cotidianidade. O tempo “ perdido” não o é para todo mundo, pois é preciso pagar caro por ele. O pretenso “tempo livre” é apenas o tempo separado e mantido como tal nos quadros gerais. Quanto ao tempo imposto, aquele dos transportes e das formalidades, já se sabe como ele se vincula de maneira deslocada ao tempo do trabalho” (LEFEBVRE, 2016, p. 49) (Imagem 4) . 3


Segundo Lefebvre (2016) a cilada na qual a burguesia captura a classe operária acaba sendo, no limite, a sua própria armadilha: espaço doentio ou espaço de doença social. De todo modo, nessa hipótese o espaço não seria uma representação inocente, mas vincularia as normas e os valores da sociedade burguesa e, de inicio, o valor de troca e a mercadoria. Isto é, o fetichismo. Considerando as abordagens sociopiscológicas e fenomenológicas de escritores como de Certeai e Foucault, Harvey (2014) afirma que a concentração foucaultiana exclusiva nos espaços de repressão organizada (as prisões, os manicômios e outras instituições de controle social) enfraquece a generalidade do seu argumento. Segundo Harvey (2014) já de Certeau trata os espaços sociais como instancias mais abertas à criatividade e ação do homem. O andar, sugere ele, define um “espaço de enunciação”, com seus pés na cidade o individuo com sua massa fervilhante é uma coleção inumerável de singularidades. Seus caminhos entrecruzados dão forma aos espaços e unem lugares e, assim criam a cidade por meio de atividades e movimentos diários (HARLEY, 2014). Segundo Harvey (2014) os espaços particulares da cidade são criados por uma miríade de ações, todas elas trazendo a marca da intenção humana. Respondendo a Foucault, de Certeau vê uma substituição diária “do sistema tecnológico de um espaço coerente totalizante” por uma “retorica pedestre” de trajetórias que têm “uma estrutura mítica” compreendida como uma história construída a baixo custo a partir de elementos tomados de expressões comuns, uma história alusiva e fragmentaria cujas lacunas se confundem com as praticas sociais que ele simboliza. Harvey (2014) complementa: “de Certeau define aqui uma base para a compreensão do fermento das culturas populares e localizadas, mesmo expressas no âmbito da estrutura imposta por alguma ordem repressiva abrangente. “ O alvo” ele escreve, não é deixar claro como a violência da ordem é transmutada numa tecnologia disciplinar, mas antes trazer à luz as formas clandestinas assumidas pela criatividade dispersa, tática e paliativa de grupos ou indivíduos já presos nas redes da “disciplina”. A ressurgência de práticas populares na modernidade científica e industrial, ele escreve, não pode ser confinada ao passado, ao campo nem aos povos primitivos, mas está presente no cerne da economia contemporânea. Os espaços podem ser libertados mais facilmente do que Foucault imagina , precisamente por que as práticas sociais especializam em vez de se localizarem no âmbito de alguma malha repressiva de controle social.” (HARVEY, 2014, p. 197) 4 Imagem 4: antigo morador do IV distrito curtindo o tempo livre.


As representações científicas segundo as quais eu sou um momento do mundo são sempre ingênuas e hipócritas, porque elas subentendem, sem mencioná-la, essa outra visão, aquela da consciência, pela qual antes de tudo um mundo se dispõe em torno de mim e começa a existir para mim. Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação cientifica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem – primeiramente nós aprendemos o que é uma floresta, um prado ou riacho. ”(MERLEAU- PONTY, 2015. P.4).

Imagem 5: passeta anarcosindicalista contra o trabalho temporário em POA.

Merleau- Ponty (2015) afirma que a fenomenologia trata-se de uma descrição e não de uma explicação ou uma analise do “espaço” (do mundo) e, que a ciência, não tem e não terá jamais o mesmo sentido do ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele. Complementado de Certeu, Merleau- Ponty (2015) afirma: “Eu sou não um “ser vivo” ou mesmo um “homem” ou mesmo “uma consciência”, com todos os caracteres que a zoologia, anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história – eu sou a fonte absoluta; minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim ( e portanto ser no único sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradição que escolho retomar, ou este horizonte cuja a distância em relação a mim desmoronaria, visto que ela não lhe pertence como uma propriedade, se eu não estivesse lá para percorrê-la com o olhar.

Debord (1982), citando um estudo de Chobart de Lauwe sobre aglomerações parienses de 1952, afirma que um bairro urbano não está determinado somente por fatores geográficos e econômicos, mas também pela representação que seus habitantes e os de outros bairros têm dele. Neste estudo Chobart de Lauwe também apresentam a limitação espacial de percurso (trajeto) que um estudante faz durante um ano em um bairro de Paris. A psicogeografia é uma “ciência” destinada a analisar e decifrar as interações entre humanos e contextos ambientais e que pretende avaliar os efeitos do meio ambiente, ordenado conscientemente ou não, sobre o comportamento afetivo e os sistemas perceptivo e cognitivo dos indivíduos.(DEBORD, 1955). Segundo Jacques (2014) a piscogeografia estudava o ambiente urbano, sobretudo os espaços públicos, através das derivas e tentava mapear os diversos comportamentos afetivos diante dessa ação, basicamente do errar pela cidade. A psicogeografia seria então uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava narrar, através do uso de cartografias e mapas, as diferentes ambiências psíquicas provocadas pelas errâncias urbanas que eram as derivas situacionistas. (Jacques, 2014) 5


O IV distrito localiza-se ao norte do centro histórico de Porto Alegre e, é formado por três bairros: Navegantes, Floresta e São Geraldo e seu nome está vinculado à historia industrial da cidade e do estado do Rio Grande do Sul. Segundo Hauser at ali. (2005) a boa localização, a proximidade do porto e a instalação e a expansão da rede ferroviária, tornaram o IV Distrito a região mais propícia para a localização das industrias nascidas com o advento da República. A partir da 1 Guerra Mundial, com o processo de substituição das importações, a região prosperou muito. A abertura da Avenida Farrapos e a construção da travessia Getúlio Vargas, sobre o Lago Guaíba, ligando a cidade de Porto Alegre ao Sul do Estado e aos países do Prata, deram novos impulsos à economia local. Contudo, a partir da década de 1970, seguido um panorama mundial, as indústrias que ali se localizavam começaram a se deslocar para áreas periféricas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, predominantemente junto às rodovias BR 116 e BR 290 (HAUSER et al., 2005). Hauser at ali. (2005) afirmam que com a saída dessas indústrias da região do IV Distrito, muitos imóveis ficaram abandonados. De características industriais e com grandes dimensões, vários desses prédios não se adaptaram a uma simples troca de função, como se exigia naquele momento. Verificouse, também, a redução da população usuária daquele espaço e de atividades ali desenvolvidas, contribuindo para a degradação da região (HAUSER et al., 2005). Porém esta “degradação” possibilitou que parte da população de baixa renda e pequenas indústrias ocupasse boa parte do IV distrito, já que ali havia moradias e galpões mais baratos e com baixo custo de alugueis. Também é importante salientar que esta “reorganização espacial” trouxe uma nova população, composta pela classe trabalhadora, se somando a já existente historicamente, fortalecendo o comercio local que ainda resiste as grandes transformações do capital especulativo da cidade.

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Assim é possível afirma que IV distrito nas últimas décadas manteve sua identidade de bairro operário e também virou um “espaço marginal” recebendo uma identidade – estigmatizada pela sociedade burocrática de consumo de lugar da subjetividade-lixo. Neste sentido Rolnik (2003) afirma que as margens do universo supostamente garantido do capitalismo mundial integrado (subjetividade- luxo) uma barreira imaginária separa os habitantes destes mundos. A miséria material é confundida com miséria subjetiva e existencial, mais precisamente com uma miséria ontológica, a qual passa a definir a suposta essência destes seres. Isto faz com que seja atribuído o lugar de subjetividade–lixo na hierarquia que rege a distribuição de categorias humanas nos mapas perversos deste regime. (Imagem 6) Mas este lugar da subjetividade lixo na verdade é uma reserva do capital especulativo, pois desde os anos 90 vem recebendo especial atenção da especulação imobiliária e do estado. Segundo Hauser at ali. (2005) a Prefeitura Municipal de Porto Alegre chegou a desenvolver um projeto, que visa a revitalização urbana e, ao mesmo tempo, a sua reconversão econômica. Esse projeto, denominado Parque Tecnológico Urbano do IV Distrito, prevê o preenchimento das lacunas deixadas pelo modelo de crescimento baseado na expansão da fronteira urbana. Trabalhos prevendo revitalização da área, Como os propostos por Douglas Aguiar e Rômulo Krafta, em 1984; por Lineu Castello, em 1988; pelo o programa de Pós Graduação (Ufrgs), com participação do arquiteto francês Philippe Panerai, em 1992, pelo projeto cidade constituinte, em 1993; pelo Instituto Goethe e Prefeitura de Porto Alegre, em 1996; pelo Encontro Porto Alegre – Barcelona, em 2000; entre outros, são exemplos disso. (HAUSER et al., 2005)

Porém por traz do discurso de revitalização do bairro e dos projetos propostos é importante considerar as observações de Jeudy (2005): “Acompanhando os projetos urbanos que definem a revitalização dos espaços a partir de uma complexidade inerente à própria cidade, os discursos mantidos por arquitetos e urbanistas não hesitam em utilizar um vocabulário completamente que inclui o fractal, o fragmentário, o caótico, o informe... sempre como considerações necessárias para legitimar seus procedimentos. Esses conceitos, cujo uso é metafórico, pretendem mostrar como a nova configuração da unidade urbana se realiza a partir do que não faz parte, verdadeiramente, da ordem clássica das representações. Tomadas da física e da filosofia, estes mesmos conceitos exercem uma função ficcional que é uma garantia estética para a exposição de todos os projetos. Sem estas palavras que designam a própria complexidade, em sua atualização permanente, sem estas palavras cujo sentido filosófico espera-se que traduza a profundeza das maneiras de pensar a cidade, o racionalismo positivista do projeto se imporia como atitude completamente desprovida do poder visionário oferecido pela metáfora”. (JEUDY, 2005. P. 95) Também é incorporado ao discurso da especulação imobiliária e dos planejadores (arquitetos, urbanistas, entre outros técnicos) o da restauração e preservação das edificações históricas do IV distrito, já que o mesmo contém significativo acervo arquitetônico: art-déco, eclética, industrial e operária. Assim é possível observar que por meio destas revitalizações, como o ocorrido na Vila Flores entre outras edificações, o bairro recebe uma nova população de frequentadores, provenientes na sua grande maioria das classes abastadas da cidade, Resultando assim, em uma maior presença da segurança privada e do estado por meio da policia . (Imagem 7). 7


Segundo Arantes (2006) a prática da preservação não legitima simplesmente sentidos socialmente atribuídos pela cultura comum e cotidiana a determinados aspectos da cultura, mas põe em prática os critérios, as concepções e os valores que são defendidos por técnicos e especialistas (arquitetos, urbanistas, historiadores, arqueólogos, antropólogos e geógrafos, entre outros). Neste sentido Jacques (2005) afirma que o atual momento de crise da noção de cidade se torna visível principalmente através das idéias de “não-cidade”: seja por congelamento – cidade-museu e patrimonialização desenfreada – seja por difusão – cidade genérica e urbanização generalizada. Essas duas correntes do pensamento urbano atual, apesar de aparentemente antagônicas, tendem a um resultado bem semelhante, que pode ser chamado de cidade espetáculo. Muitas vezes os atores e patrocinadores destas propostas também são os mesmos, assim como é semelhante a não participação da população em suas formulações, e a gentrificação das áreas como resultado, demonstrando que as duas correntes antagônicas são faces de uma mesma moeda: a mercantilização espetacular das cidades (Jacques, 2005) ( imagem).

Segundo furtado (2014) o processo de gentrificação aparece como um dos elementos de um processo permanente de (re)estruturação urbana. Processo esse que é parte da organização do espaço urbano, de acordo com as necessidades do modo de produção dominante na economia e que está em sintonia com os propósitos da estrutura dominante da sociedade em um período histórico determinado. Assim a gentrificação é consequência de mudanças, não apenas na qualidade, composição e distribuição da força de trabalho, mas principalmente, e primeiramente, na reorganização do espaço para produção, circulação e consumo de mercadorias (FURTADO, 2014). É possível afirmar que o IV distrito passa pelo um processo de gentrificação, pois parte da população já começa a se deslocar para uma periferia mais distante com custo de vida mais baixo, o capital se reestrutura dentro do espaço da cidade.

Imagem 8: os antigos armazéns da Fiateci vão se transformar em um shopping enquanto uma parte servirá de garagem com novos prédios ao fundo. 8 (Fonte: Zero Hora, 2014)


Segundo Smith (1986) se a reestruturação que iniciou agora continua na sua atual direção, nós podemos esperar por importantes mudanças na estrutura urbana. A conclusão lógica da reestruturação atual seria a de um centro urbano dominado pelos profissionais-executivos, pelas funções financeiras e administrativas, residências das classes média e média alta e mais os serviços necessários a estas classes tais como hotéis, restaurantes, comércio, cinema e cultura. O corolário disto seria um desalojamento substancial da classe trabalhadora para os velhos subúrbios e a periferia urbana mais distantes. Por fim, citando Canclini (2010): as grandes cidades, dilaceradas pelo crescimento errático e por um “multiculturalismo” conflitante, são o cenário em que melhor se manifesta o declínio das metanarrativas históricas, das utopias que imaginaram um desenvolvimento humano ascendente e coeso através do tempo. 3 (des)metodologia errante Nas duas primeiras partes deste trabalho foram apresentados alguns conceitos que fazem uma abordagem sociopiscologica e fenomenológicas do espaço para melhor compreensão da teoria da deriva proposta pela a internacional situacionista e, também, discutidos alguns aspectos para entendimento das transformações que estão ocorrendo no IV distrito. Todas as imagens são decorrentes de derivas feitas pela cidade de Porto Alegre, em especial do bairro “analisado”, como também o poema em Anexo 1. Segue no próximo capitulo fragmentos de uma escrita experimental e fotografias que são o resultado de uma deriva realizada em Julho de 2016 (Imagem 9). Esta escrita experimental (poética) feita em prosa espontânea pretende expressar os efeitos sinestésicos da experimentação territorial transmitindo alguns significados revelados. As imagens tentam fazer uma espécie de “antropologia visual” condensando e veiculando representações sociais imprescindíveis ao entendimento dos fenômenos naturais e das ações humanas. Porém é importante salientar que este trabalho não termina aqui, pois há limitações que são inerentes à fenomenologia e aos registros tanto de escrita, como também fotográfico, pois foram despretensiosos e ocorreram antes de alguma ideia de escrever sobre as errâncias irregulares feitas em Porto Alegre.

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Imagem 9: percurso da deriva de Julho de 2016

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Imagem 10: bicicletas e pé de boldo.

Iniciamos a deriva por um lugar comum costumeiro um lugar nosso de cada dia. Mas nunca achamos comum a fome na mesa do trabalhador e a fartura na mesa do burguês. Esta indiferença não é nossa. Tudo é um Devir!

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Imagem 11: estamos na esquina.

“Os errantes que fizeram deambulações não estavam mais, como nas flanâncias, embriagados pela experiência e pelo choque da multidão nas ruas. Eles provocam a multidão, a devoram, entram nas passagens, se tornam passagens; como o trapeiro, recolhem trapos, sombras, restos da cidade, e se embriagam como a própria fugacidade moderna, com a fugazcidade moderna. (Jacques 2014. P. 139)

Cada esquina é uma dobra, a luz do sol um toque na cal da espinha dorsal (...) as pessoas como se fossem minhocas afofam a arquitetura (...) 12


Imagem 12: morador de rua se protegendo a chuva.

Os paralelepípedos não tomavam mais banho de sol, as nuvens vestiam os travestis, as paredes desaprumadas, as falsas volutas, as balaustradas, todos os ornamentos das fachadas, as garrafas de cachaça fechadas, pois o ar carregava um perfume de terra que brotava da boca desdentada da rua; a água densa do Guaíba evaporada e desvariada sobrevoava a cidade que era violentada por uma tarde de domingo. Caminhávamos sem nenhuma certeza, sentido apenas os cheiros da noite passada nas esquinas encardidas de purpurina. Caminhávamos embalados apenas pelos gritos de acracia, gemidos de programas de quartos vencidos, abajures “cults” sobre ladrilhos hidráulicos bem comportados. “É como se o lugar que estava em questão na hospitalidade fosse um lugar que não pertencesse originalmente nem àquele que hospeda, nem ao convidado, mas ao gesto mesmo pelo qual um oferece acolhida ao outro, sobretudo se este outro está sem morada. Hospitalidade, em termos físicos arquitetônicos, concretos, é dar lugar ao lugar, abrir o lugar, dar passagem, dar passo ao outro, acolher a diferença” (Fuão, 2014. P. 52)

E nesse espaço inorgânico chamado cidade, na fragilidade da fissura das justas das conjunturas, as ervas nascem, espontâneas, daninhas de vida rompem todo o tipo de concreto, enquanto umas se abrem para chuva outras abrem guarda-chuvas. 13


Imagem 13: Cine Teatro Ypiranga na Av. Cristóvão Colombo.

“Todos carregavam uma culpa muda, silenciosa – ninguém falava nada. No alvorecer cinzento que arquejava fantasmagoricamente por trás das janelas do cinema, já abordando suas marquises, eu estava dormindo com a cabeça apoiando no banco de madeira do assento quando seis empregados encarregados da limpeza convergiam até mim com a produção total do lixo de todas as sessões varrido naquela sala imunda e agora ali, num acúmulo monumental bem á altura do meu nariz, enquanto eu roncava de boca escancarada e cabeça pendida – por pouco eles não me varreram junto também.” (Kerouac, 1984. P. 257). 14


“Mais uma casa demolida, em seu lugar restou apenas uma lúgubre cavidade e resíduos de destroços psíquicos” (Eisner, 1987. P. 6)

Em algum momento falamos sobre a cidade, sobre o sapateiro que não estava mais ali, sobre o afiador de facas que não estava mais ali, sobre os musgos das telhas e as telhas, os móveis que não estavam mais ali e as pessoas que outrora habitavam a casa, já não estavam mais ali (...) 15


Imagem 15: edifício com revestimento Cirex na fachada

O Cirex envaidecido pisca o olho sem vidro para pegar a ruiva despenteada da calçada (...) Tudo é animado, até a janela que bate asa, ela voa enquanto as outras continuam mudas, caladas (...)

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- Vamos tomar uma naquele bar? Vamos tomar uma antes que feche!

Dentre os errantes e nômades urbanos encontramos vários artistas, escritores ou pensadores que praticaram errâncias urbanas. Através das obras ou escritos desses artistas é possível se apreender o espaço urbano de outra forma, partindo do princípio de que os errantes questionam a construção dos espaços de forma crítica. O simples ato de andar pela cidade pode assim se tornar uma crítica ao urbanismo enquanto disciplina prática de intervenção nas cidades. Essa crítica pode ser vista tantos nos textos quanto nas imagens produzidas por artistas errantes a partir de suas experiências do andar pela cidade (Jacques, 2004) .

- Dá uma bem gelada aí (...)

18 Imagem 17: bares característicos da região IV distrito.


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LAPIS 6B Segunda feira Faz frio Ele sai com seus sapatos pesados A mesma calça rota E um casaco de veludo dos anos 80 No bolso No lugar dos documentos, celular e cartão de crédito Um walkman com uma fita de Stravinsky Um lápis 6B E um pouco de dinheiro Pouco, mais o suficiente para preencher a solidão do dia Senta na mesma mesa revestida de papel Kraft Pede uma taça de vinho bordô para o mesmo garçom cansado No qual nunca trocou uma palavra Toma o vinho com notas acentuadas de vinagre Calado Começa a traçar linhas tortas na mesa Definindo sua arquitetura vazia Preenchida apenas de calungas fáticas Após algumas horas Deixa a mesa nua O copo com a solidão E entra em sua madrugada Habitando os espaços defeituosos da rua As pessoas cegas vêem apenas ele sozinho Pulando no meio do nevoeiro Zombam de sua loucura Mas ele com indiferença dança Dança com suas calungas Anexo 1: poema produzido em uma deriva 2012

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