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Cultura | “Dia Internacional de Preparação Epidemiológica da ONU” | PhD António Delgado

PhD António Delgado Docente Universitário Investigador no CIEBA- U.Lisboa

CULTURA

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“Dia Internacional de Preparação Epidemiológica

da ONU” 27.12. 2021 Desenhos de Leonardo da Vinci, como utopias desta preparação.

As pandemias impõem restrições a todos e as cidades de todo o mundo tiveram que aderir ao isolamento social com a Covid. Transformando o quotidiano de muitos milhões de pessoas cujas casas passaram a ser o seu único espaço no mundo e a concentrar todas as rotinas, em suma o lugar onde tudo passou a acontecer. Mas será que as urbes criam ou preparam soluções para superar esta realidade, quando neste contexto, a circulação das pessoas e a partilha dos espaços públicos são locais muitas vezes desadequados?

As Pandemias fazem parte da história da humanidade e normalmente trazem mudanças substanciais nos modos de viver. Todos os locais desde os espaços públicos e de trabalho deixam de ser os mesmos e ganham outras perspectivas, após elas. O texto de hoje vem na sequência de uma reflexão suscitada pelo «Dia Internacional de Preparação Epidemiológica da ONU» a 27 de Dezembro. Para ela reuni algumas pinturas com cidades dos séculos XIV,XV e XVI do Baixo e Alto Renascimento e como a arquitetura, e sua representação, teve um enorme impacto na pintura e consequentemente na planificação de cidades para elevar a qualidade de vida e melhorar a saúde publica no seu interior. De que modo idealizou Leonardo Da Vinci uma nova cidade para Milão, depois da antiga urbe ser assolada por uma pandemia. Facto que aproxima a ideia sugerida pela ONU a preocupações claras com as realidades pandémicas em Pleno Renascimento. pelo realismo como representavam as pessoas e os espaços. Na altura quem eram, o que faziam e onde era o local representado era-me totalmente desconhecido Achava curiosa a forma como as pessoas representadas se vestiam, tão diferente da minha, e das pessoas com quem privava, ficava fascinado pelas arquiteturas que mostravam espaços amplos, pisos bem ladrilhados e brilhantes. Estranhava, a ausência de lixo nas ruas, árvores ou papéis no chão e folhas caídas de árvores. Também não via crianças a brincar ou a correr como na pista de patins do jardim zoológico ou do Campo Grande... As minhas referências infantis levavam-me a projetar estas e outras ideias e espreitar por estas “janelas abertas” para lugares que não conhecia e despertavam a minha imaginação por se tratarem de lugares muito amplos sem obstáculos, direitos e limpos e quase sem

Fig. 1 - Rafael Sanzio; Casamento da Virgem, 1504 (170cmX 117 cm) Pinacoteca di Brera Milão . Fig. 2 - Piero de la Francesca; Cidade Ideal (detalhe), 1470/1480/1490, Galeria Nacional das Marcas, Urbino.

vivalma, que representavam a vantagem de se poder andar à vontade, até para longe, porque os meus pais me veriam sempre (FIG.1 e FIG.2).

Tudo isto ao contrário da cidade onde vivia (Lisboa) sempre cheia de gente a caminhar à pressa e aos encontrões, sem contacto entre si, distantes e frias e nada comunicativas. Ninguém sabia o nome de ninguém, a todos se designava indiferentemente por «Senhor ou Senhora» e quando alguém dizia «Senhor, por favor» logo todos viravam a cabeça. Era um drama para mim explicar à minha mãe que era aquela senhora da saia vermelha e não outra. A vida nas ruas fervilhava, sonora e viva, semelhante à Babel como a Bíblia descreve este símbolo urbano de espírito coletivo, mas ninguém se falava, conhecia ou mesmo entendia.

Apesar disto a cidade, ao longo da história, constituiu sempre um ideal e um conceito planeado ou apenas idealizado, mas raramente consumado, cujo projeto reflete um esquema essencialmente geométrico, de critérios e princípios de racionalidade abstrata ou com uma «abordagem científica». E, frequentemente resguardada pela tensão ideal e filosófica com um forte caráter utópico.

No entanto esta planificação seria impossível, sem haver concretamente considerações do ambiente característico que rodeia a vida humana no conjunto das modificações e alterações introduzida na superfície terrestre. Alterações com o objetivo de satisfazer as necessidades humanas inseparáveis da natureza, como sinal de uma vida social rica e cheia de aliciantes criativos.

Por isso, só anos mais tarde percebi que uma daquelas imagens era uma “ aliciante e criativa” exemplificado na reprodução do famoso quadro de Rafael :casamento de Maria com S. José inspirada pelos evangelhos apócrifos e num desenho de Leonardo de um edifício de planta central, religioso. (FIG.1)

A cena teatral, desenrola-se num cenário que era de moda na pintura de então: a Perspetiva e que elevava a pintura ao nível da ciência para a subtrair à mera habilidade manual

Esta ideia saiu da matemática depois de um aturado processo de análise tendo outra associada: a utopia que estava muito associada ao social e tinha repercussões diretas, no âmbito da arquitetura e do urbanismo. (FIG. 3)

As duas irão proporcionar um acasalamento perfeito para a difusão das imagens religiosas, da arquitetura e urbanismo utópicos, pelo rigor geometrico e da prespectiva. (FIG. 4). Seria uma espécie de “dois em um”.

Deste modo o sistema perspectivo idealizado pelos artistas italianos do século XV surge como o instrumento que tornará possível a representação da natureza e o desenvolvimento da ideia tridimensional no espaço. Anos mais tarde até foi considerado segredo de Estado.

Não será excessivo referir o contexto da Peste Negra que assolou a Europa (1348), e a obra de Decameron de Bocaccio, como o marco ambiental, de referência à crise de valores que esta peste estimulou, no sentido de uma nova transformação social, cultural e económica que já havia começado mas agora com o Renascimento, atingia o seu ponto alto..

A ideia das «arquiteturas pintadas ou escritas» iniciadas no século XIV irão prolongar-se nos séculos XV e XVI, primeiro nas pinturas flamengas e depois nas Italianas, mas nesta cultura ganham estatuto de ciência e os pintores deviam ser versados em geometria para que a pintura fosse considerada uma ciência, como sugeriu Leonardo da Vinci e anos mais tarde Vasari exigia aos pintores. Moda esta de origem científica e observada com frequência, nas obras pictóricas dos grandes mestres de então. (FIG. 2, FIG. 3. FIG. 4 - Na página anterior.)

Por então (séculos XV e XVI) os maiores artistas, reuniam em si uma série de aptidões operativas, sobre ourivesaria, carpintaria, arquitetura, escultura, pintura, engenharia civil e militar… Um bom testemunho disso é a Carta de Leonardo Da Vinci dirigida ao Duque de Milão a oferecer os seus préstimos como inventor, pintor, escultor arquiteto, engenheiro militar, onde salienta que: “em tempo de paz, sou capaz de preencher o posto de arquiteto, quer por edifícios públicos e particulares, quer para aqueles que servem à conduto e à distribuição de águas” também diz que saber “construir carros cobertos, com os quais se penetra nas fileiras do inimigo para destruir a sua artilharia e por detrás destes carro a infantaria pode avançar sem obstáculos”.

Pela carta ou não, a verdade é que em 1483, Leonardo foi chamado para trabalhar em Milão e três anos após a sua chegada a cidade foi assolada por uma peste com consequências devastadoras e debates, pertinentes. De imediato imaginou uma cidade nova, de vários níveis, que devia ser (re) construida, nas

Fig. 6 - Desenho de Leonardo da Vinci; Manuscrito da Biblioteca de Paris Fig. 7 - Desenho de Leonardo da Vinci; Manuscrito da Biblioteca de Paris

Fig. 9- Desenho de Leonardo da Vinci; Manuscrito da Biblioteca de Paris

margens de um rio de águas límpidas, com ruas suspensas bem altas para peões (FIG. 6 E 7) e ruas em baixo para as viaturas de animais e um sistema de canais que permitiriam levar, por barcos, provisões até às portas das caves dos edifícios (FIG. 8) restringindo ao mínimo o contacto entre os de fora e de dentro da urbe.

Esta Utopia encontra-se num dos seus famosos Diários: o Manuscrito da Biblioteca de Paris de onde apresento alguns desenhos. As ideias de Leonardo, pretendiam a melhoria da salubridade do espaço público e dos próprios edifícios no seu interior (FIG. 9), bem como a planificação urbanística de forma sustentada, no entanto para objetivar as suas ideias o artista necessitava do patrocínio de um mecenas. Sobretudo quando alguns edifícios, como o hospital (FIG. 5, FIG. 5B, FIG.10 - Na página seguinte.) alcançavam por este período a sua formulação tipológica concreta e surge como consequência do novo papel que

Fig. 5 - Adams Elsheimer; Santa isabel da Hungria dando comida a pacientes num hospital (1598)

Fig. 5B - Beneficência num hospital. Autor desconhecido, pintura provável do séc. XV

assume o Poder como responsável da beneficência considerada como um bem público, mas igualmente relacionada com o desenvolvimento da ciência.

No entanto o projeto de Vinci não transcendeu do papel, talvez por falta de mecenas, mas as suas ideias marcaram os arquitectos na planificação das cidades que desde então passaram por processos de mudanças com novos conceitos e cenários urbanos. No presente as cidades além do primitivo nome absorvem outros como Cidade inteligente, Cidade criativa, Turística, Industrial, termos saídos da cartola de operadores económicos e turísticos quando se tenta dar a uma cidade a perspectiva da inovação ou de serviços onde a cultura e o espírito coletivo é o elemento norteador, quando não inventado «ad-absurdum” ou travestido, a mando da economia.

Ao analisar a «A Morte em Portugal» num cenário de peste em 1500, verifiquei o ar pútrido e a falta de condições de higiene, mas igualmente a circulação dos animais à solta pelas ruas, as casas, as águas inquinadas e os lugares de inumação em torno das igrejas e seu interior, eram as principais fontes de micróbios e miasmas. Servindo de viveiros para as doenças epidemiológicas .

Em Lisboa, apesar da tentativa de mudar a cidade para a zona de Belém, foi no Bairro Alto onde esta realidade quinhentista de ruas amplas e ortogonais se iniciou. Os desenhos de Leonardo são, estranhamente modernos e dão sentido, há quinhentos anos, uma preocupação que a ONU definiu como “Dia Internacional de Preparação Epidemiológica”. E mostram como as Belas Artes sempre estiveram em sintonia com a Ciência e no campo dela n

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