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Dick Porter Kris Needs
Tradução Martha Argel Humberto Moura Neto
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Título original: Parallel Lives Blondie. Copyright © 2012 Omnibus Press (Uma divisão de Music Sales Limited) Copyright da edição brasileira © 2015 Editora Pensamento-Cultrix Ltda. Texto de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa. 1a edição 2015. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas. A Editora Seoman não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro. Capa: Michael Bell Design Pesquisa de fotos: Jacqui Black Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores dos direitos das fotos apresentadas neste livro, mas isso foi impossível para uma ou duas. Agradecemos muito se os fotógrafos envolvidos entrarem em contato conosco. Editor: Adilson Silva Ramachandra Editora de texto: Denise de Carvalho Rocha Gerente editorial: Roseli de S. Ferraz Preparação de originais: Marta Almeida de Sá Revisão técnica: Adilson Silva Ramachandra Produção editorial: Indiara Faria Kayo Assistente de produção editorial: Brenda Narciso Editoração eletrônica: Join Bureau Revisão: Vivian Miwa Matsushita Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Porter, Dick Blondie : vidas paralelas : uma biografia da banda precursora da new wave music / Dick Porter, Kris Needs ; tradução Martha Argel, Humberto Moura Neto. – São Paulo : Seoman, 2015. Título original: Parallel lives Blondie. ISBN 978-85-5503-015-4 1. Blondie (Grupo musical) 2. Harry, Debbie 3. Músicos de rock – Estados Unidos – Biografia 4. Stein, Chris, 1950- I. Needs, Kris. II. Título.
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CDD-782.421660922 Índices para catálogo sistemático: 1. Blondie : Grupo musical : Biografia 782.421660922
Seoman é um selo editorial da Pensamento-Cultrix Ltda. Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA., que se reserva a propriedade literária desta tradução. Rua Dr. Mário Vicente, 368 — 04270-000 — São Paulo, SP Fone: (11) 2066-9000 — Fax: (11) 2066-9008 http://www.editoraseoman.com.br E-mail: atendimento@editoraseoman.com.br Foi feito o depósito legal.
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Sumário
Prefácio à edição brasileira...............................................................
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Introdução.........................................................................................
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1.
Uma garota americana ..............................................................
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2.
Loucos pelo Village .................................................................
35
3.
Admirável Nova Babilônia ......................................................
55
4.
East Side Story ........................................................................
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5.
Roqueiros de Nova York ..........................................................
91
6.
Cruzando a linha tênue ............................................................ 111
7.
Sobrevoando com bombas ......................................................... 141
8.
Embrulhado como um doce ..................................................... 169
9.
Você sempre paga .................................................................... 197
10. Andando sobre vidro ............................................................... 221 11. Seis como nos dados ................................................................ 249
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12. Ninguém pode dizer que não aguentamos durante 15 minutos...... 271 13. Os anos de sorvete ................................................................... 293 14. Assunto inacabado .................................................................. 313 15. O segundo ato .......................................................................... 339 16. Muito melhor para uma garota como eu ................................... 361
Agradecimentos ............................................................................... 385 Bibliografia ....................................................................................... 387 Discografia selecionada ................................................................... 395 Índice................................................................................................ 403
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Para Donna & Michelle
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Prefácio à edição brasileira André Barcinski
Q
ue cena musical interessante existia na Nova York de meados dos anos 1970, não?Se pensarmos nas grandes cenas da história do rock – Memphis nos anos 1950, Liverpool no início dos 1960, o pessoal hippie flower power de São Francisco alguns anos depois – veremos que todas buscavam inspiração no passado. Quando Elvis, Jerry Lee Lewis, Ike Turner, Howlin’ Wolf e outros pioneiros do rock gravaram pela Sun Records, no início dos anos 1950, estavam levando à frente uma tradição musical que vinha do blues e de suas raízes. Já os Beatles e seus comparsas, na Liverpool cinzenta do início dos 1960, tentavam, à sua maneira, emular justamente os inventores do rock: Jerry Lee, Chuck Berry, Elvis e Buddy Holly, entre outros. E os criadores da cena psicodélica de São Francisco, como Grateful Dead e Jefferson Airplane, simplesmente uniram as tradições da música folk norte-americana à lisergia que rolava na Califórnia, então em ebulição contracultural. Já Nova York nunca olhou para trás. A cidade que nunca dorme sempre se recusou a apelar à nostalgia. O Velvet Underground, banda mais importante da cidade – do mundo, talvez? – foi a primeira a abraçar 9
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a vanguarda teatral, musical, comportamental e das artes plásticas, e inventou o rock urbano. O Velvet foi a primeira banda a extirpar de seu som qualquer traço de blues e saudosismo, e se transformou num farol para todos os grupos nova-iorquinos que vieram depois. Para entender a cena musical nova-iorquina, é preciso entender um pouco sobre a história da cidade. No início da década de 1970, Nova York era um esgoto a céu aberto. As ruas eram imundas e habitadas por todo tipo de degenerados. O Central Park era um “parque de diversões” de viciados em heroína e pervertidos de todo tipo. Veja filmes como Perdidos na Noite, Caminhos Violentos, Warriors – Os Selvagens da Noite e Taxi Driver, e você terá uma ideia melhor da Sodoma que era Nova York naquela época. A parte sul da ilha de Manhattan estava completamente dilapidada. Prédios abandonados foram invadidos por squatters. Prostitutas e traficantes dominavam o pedaço. Donos de prédios abandonaram suas propriedades ou os alugaram por uma ninharia. Isso atraiu milhares de jovens de todo o país, que fugiam de suas tediosas vidinhas suburbanas e buscavam um local onde pudessem ser livres. Nesse ambiente pra lá de doido, floresceu o teatro de vanguarda, a nascente cena gay, o cinema underground, o grafite – que deu origem a pintores como Basquiat –, e as festas de black music, que impulsionaram a disco music e o nascimento do hip hop. Também surgiu uma cena musical das mais ecléticas, radicais e transgressoras, que abraçava desde o rock andrógino da banda glitter/protopunk New York Dolls, os experimentos eletrônicos do Suicide, o rock poético de Patti Smith, as jams do artrock do Television ao minimalismo barulhento dos Ramones, o funk branco do Talking Heads e o noise de Lydia Lunch e James Chance, entre muitas e muitas outras manifestações artísticas e musicais que surgiram no coração já um tanto apodrecido da Big Apple setentista. Esses artistas buscavam inspiração no passado, mas conseguiram criar algo novo, que refletia a urgência, o inconformismo e o antagonismo típicos dos nova-iorquinos daquela época barra-pesada. Foi nesse ambiente social e cultural de anarquia e ecletismo que nasceu o Blondie, a banda mais importante e de maior sucesso comercial da new wave.
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Prefácio à edição brasileira
Hoje, todo mundo conhece o Blondie como um colosso de vendas, uma banda que conseguiu escapar do gueto punk nova-iorquino para se tornar uma das maiores vendedoras de discos dos anos 1980. Canções brilhantes como “Heart of Glass”, “Rapture”, “Call Me”, “Atomic” e tantas outras fazem parte da programação de qualquer rádio de classic rock. Mas a história de como o Blondie chegou ao estrelato é fascinante, e ocupa boa parte deste livro. Por trás da doçura das melodias pop do Blondie, existem duas figuras – Debbie Harry e Chris Stein – de personalidade forte e transgressora. Debbie, a “Marilyn Monroe” do punk, uma deusa platinada que, ainda criança, deixava homens e mulheres desconcertados com sua beleza, e sabia o efeito extremamente magnético que tinha sobre as pessoas. E Chris Stein, o arquiteto da dominação pop que o Blondie levaria a cabo a partir de 1975. Essa dupla fez do Blondie uma marca, cuja influência na cultura pop foi imensa. Eles foram os primeiros a fazer a ponte entre a música underground da cena do CBGB e o mainstream do pop, gravando discoteca (“Heart of Glass”), rap (“Rapture”) e reggae (“The Tide Is High”). Esteticamente, o Blondie também foi inovador, com videoclipes que entraram em altíssima rotação na então nascente MTV e o visual retrô-cool de Debbie Harry influenciando todo o pop oitentista, de Madonna a Pet Shop Boys, de Duran Duran a Soft Cell. No Brasil, o Blondie fez grande sucesso em rádios, mesmo que nunca tenha aportado por aqui para shows (melhor sorte tiveram os hermanos argentinos e chilenos, que já puderam testemunhar as apresentações sempre empolgantes do grupo). Mas “Heart of Glass” foi hit em discotecas do Oiapoque ao Chuí, e acabou, 36 anos depois de lançada, na trilha de uma novela da Globo, Boogie Oogie. Outro aspecto interessante da trajetória do Blondie foi sua ressurreição comercial após sua volta, em 1997, depois de quinze anos separado. O disco No Exit (1999) mostrou que Debbie Harry e Chris Stein ainda tinham o poder de criar pérolas pop, especialmente o single “Maria”, que chegou ao número 1 na parada britânica, exatamente vinte anos depois do primeiro número 1 da banda, “Heart of Glass”. 11
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Este livro conta a história de Debbie, Chris e seus parceiros no Blondie, com riqueza de detalhes e revelações surpreendentes. E a lista de coadjuvantes impressiona: Iggy Pop, David Bowie, David Cronenberg, Nile Rodgers, H. R. Giger, John Waters, Andy Warhol, Joey Ramone, Patti Smith... Todos orbitaram, em situações diversas, a galáxia de Debbie e Chris, e esses encontros renderam histórias sensacionais, que estão escondidas em algum canto deste livro.
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Introdução
“T
alvez estivéssemos em um reality show antes de estes existirem”, observou Chris Stein durante uma conversa telefônica, alguns anos atrás. Claro, Chris referia-se ao Blondie, o grupo que ele havia formado com Deborah Harry cinco décadas antes, e que, a partir de um início bem pouco promissor, abriu caminho por entre as ruínas da Downtown de Nova York para tornar-se um fenômeno global. Hoje, o Blondie é devidamente reconhecido como um dos grupos mais influentes e inovadores do século XX, tendo à frente uma das mais imitadas vocalistas femininas de todos os tempos (embora inigualável). Impulsionado pelo sucesso de “Denis”, de 1978, o Blondie disparou uma rajada de hits inovadores que, entre outros, incluíam “(I’m Always Touched by your) Presence Dear”, “Hanging on the Telephone”, “One Way or Another”, “Sunday Girl”, “Heart of Glass”, “Atomic”, “Call Me”, “The Tide Is High” e “Rapture” – este último como uma homenagem ao Chic, que transformou a revolução do hip hop de Nova York em mainstream. A beleza deslumbrante de Debbie não permitiu que ela escapasse de se tornar uma pin-up à moda antiga, porém ela fez com que isso acontecesse dentro de suas próprias condições. Logo ficou evidente que ela era uma mulher determinada, inteligente e culturalmente articulada, que 13
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abriria as portas para que gerações sucessivas de mulheres cantoras assumissem o controle de seus próprios destinos. Ao demonstrar que era possível ser inteligente e bela, ela iluminou um caminho que vai de Madonna a Lady Gaga. Sua recusa em ser manipulada por qualquer autoridade que não a sua estabeleceu um ideal pós-feminista que inspiraria mulheres como Shirley Manson, do Garbage, Gwen Stefani e Pink. Da mesma forma, o movimento contestatório grrrl, fugaz, mas dinâmico, derivou de Debbie e de seu espírito de independência. Como o dínamo criativo e o coração pulsante do Blondie, Debbie e Chris podem ter constituído a parceria mais idiossincrática e vibrante que emergiu da era punk de Nova York. Mas eles também enfrentaram o desafio de manter um relacionamento em meio às pressões incessantes de liderar uma banda de primeira grandeza, assediada por pesadelos empresariais e guerras de ego entre bandas, tudo isso agravado pelas drogas. Estes e outros fatores combinaram-se para desgastar a primeira fase do Blondie, com a enfermidade debilitante de Chris constituindo o último prego no caixão da banda. Felizmente, o Blondie retornou em 1998, quando Debbie, Chris, Clem Burke e Jimmy Destri chegaram novamente ao topo das paradas com “Maria”. Novos membros foram incorporados para ampliar o legado do grupo e firmá-lo como parte integrante e popular do circuito de festivais de verão. Em virtude da magia atemporal das músicas e graças ao fascínio por Debbie, as novas gerações acolheram a banda, enquanto os fãs de longa data relembravam o passado com carinho. A história do Blondie está entre as mais vibrantes do mundo do rock’n’roll. Por um lado, ela diz respeito ao amor e à criatividade compartilhados por duas pessoas ímpares. No entanto ela igualmente é sobre Nova York, a cidade que impregnou a banda com sua energia, sua atitude e seu entusiasmo. Poucas outras bandas equivalem tanto a um sinônimo de sua cidade natal, ou são tão evocativas dela, quanto o Blondie. Mesmo no auge de sua popularidade global, Debbie e Chris mantiveram-se atentos às ruas de Nova York e com os pés fincados nas variadas cenas que floresciam em meio ao epicentro de arte underground e por entre os movimentos paralelos do punk, da disco e do hip hop. No caso deste último, eles foram o primeiro grupo branco a propagar o revolucionário novo 14
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Introdução
estilo, obtendo um tremendo sucesso com “Rapture”. Durante quatro dos cinco anos em que estiveram no foco dos holofotes da mídia, Chris e Debbie garantiram sua participação regular no programa semanal de Glenn O’Brien, TV Party, da televisão a cabo. Somando-se ao fluxo constante de material novo, sempre muito aguardado, a influência do Blondie pode ser vista o tempo todo, com suas músicas que aparecem na trilha sonora de programas de TV, filmes e comerciais; e o beicinho de Debbie é sempre imitado pela mais recente cantora loira de cabelos revoltos. Como ela própria hoje reflete, “O Blondie foi parte de uma cadeia de eventos, parte de uma cena de Nova York que de fato sentimos e vivemos. O Blondie fez o que fez antes que qualquer um soubesse o que estava acontecendo e lançou bases importantes para outras bandas que vieram depois. Nós surgimos cedo demais. Acho que a indústria da música acabou nos alcançando, mas eles não gostavam de nós quando começamos. Nós nos sentíamos como outsiders invadindo o establishment”. Este livro é o segundo dos autores da trilogia New York Stories (Histórias de Nova York) – o primeiro foi Trash!, uma história do “antes, durante e depois” do New York Dolls, cujas façanhas infames se mesclam à vida de Debbie na parte inicial da narrativa deste livro. Há também uma ligação pessoal entre o Blondie, a arquetípica banda de Nova York, e o coautor Kris, que a promoveu desde o princípio, quando era editor da revista Zigzag. Como conta Kris: Algum tempo atrás, sempre que me chamavam para escrever matérias sobre a vida no olho do furacão Blondie ou para aparecer em documentários, a pergunta sobre um livro ressurgia. O trabalho nestes projetos já havia me colocado de novo em contato com Chris e Debbie, com quem eu não falava fazia mais de vinte anos. Conversar com Chris sempre foi um prazer; sua fala arrastada e mansa vagueando dos primeiros dias do Blondie até seu selo Animal Records – além de, inevitavelmente, a inexorável mudança da cara de sua amada cidade de Nova York. Nós discutimos sobre a necessidade de um livro que descrevesse a crônica da cena musical de Nova York e até de um filme biográfico do Blondie, mas nunca um “livro do Blondie” – no entanto, quando este projeto finalmente teve 15
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início, Chris disse somente “Qualquer coisa que você precisar”. Ele já me havia fornecido a melhor referência que eu poderia querer, quando lhe pedi uma introdução para um artigo sobre o Blondie que eu estava escrevendo para uma revista alguns anos atrás: “Eu realmente tinha afeto por Needs em um período em que éramos regularmente atacados pelos jornalistas britânicos de rock, que apelavam para nossa boa vontade e vinham como se fossem amigos. Kris mostrou-se um aliado incondicional, cujo código moral não conflitava com o que ele dizia ser. Em retrospectiva, relembro com certo carinho as batalhas que foram travadas na imprensa, mas na época eu estava feliz por ter a Zigzag me oferecendo uma plataforma a partir da qual eu podia rebater o fogo. Kris nos acompanhou em várias incursões pelo interior da Grã-Bretanha quando vivíamos nossas fantasias de Beatlemania, e foi um grande prazer ter notícias dele de novo, depois de tanto tempo”.
O sentimento foi mútuo. A natureza da independência impetuosa de Debbie e Chris assegurou o legado duradouro do Blondie. Este livro conta como isso aconteceu. KRIS NEEDS DICK PORTER 2012
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Capítulo Um
Uma garota americana A única coisa que eu queria ser, quando adolescente, era uma beatnik. Eu adorava todo aquele ideal de artistas, músicos e escritores. Foi uma escolha, uma escolha de vida, e nem sempre tem sido fácil.
– Debbie Harry
E
m junho de 1979, o Blondie atingiu o que era então considerado um sinal importante de que uma banda havia alcançado o sucesso nos Estados Unidos: aparecer na capa da Rolling Stone. O jornalista Jamie James – logo depois descrito por Debbie Harry como “um idiotinha metido e arrogante” – pegou o grupo num daqueles dias ruins que às vezes ocorriam naquela época em que a fama do Blondie crescia exponencialmente enquanto a imprensa parecia quase sempre relutante em levar o grupo a sério. Em sua matéria na Rolling Stone, James colocou-se na defensiva desde o início: “Assim que Debbie pôs os olhos em mim, pude perceber que ela me abomina”. O fato de o interesse da revista ter sido despertado só depois de “Heart of Glass” ter chegado ao número um nas paradas nos Estados Unidos irritou Debbie, que perguntou a James por que ele não havia demonstrado nenhum interesse três anos antes. O infeliz redator tentou emendar relatos das desavenças internas da banda com sua evidente falta de empatia com a música do Blondie ou com a cena da qual o grupo emergiu, iniciando e terminando a matéria com uma entrevista com uma mulher que gosta de ser chamada de “Cag” – Catherine Harry, a mãe adotiva de Debbie. 17
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Até aquela época, relatos sobre o passado de Debbie antes de Nova York tinham se restringido a sua adoção, a seus dias de escola em Nova Jersey e vagas alusões a uma rebeldia adolescente em geral não específica. James abriu a matéria com a anedota de Cag sobre a estreia de Debbie como cantora – uma vez, sua classe da sexta série encenou um “casamento do Pequeno Polegar”, apresentando uma criança como noivo, outra como noiva e uma terceira no papel de dama de honra. Ela lembrou que, no grand finale, Debbie fez um solo de “I Love You Truly”, música que chegou ao topo da parada de 1912 e que era padrão de salões de baile e sempre tocada nos casamentos. Cag contou que a família Harry era muito unida. “O único Natal que ela não passou aqui foi quando estava em turnê na Austrália [em 1977]. Ela ficou muito deprimida, e eu também. Ela disse: ‘Nunca vou ficar longe no Natal de novo’. Debbie é uma filha maravilhosa.” Debbie fazia muito sucesso com os garotos? “Você está brincando?”, Cag disparou, passando a relatar como sua filha adotiva foi procurada para entrar no concurso de beleza do ensino médio. “Ela não estava muito a fim de entrar. Pediram que entrasse... Ela sempre foi linda. Quando era bebê, minhas amigas costumavam me dizer que eu devia mandar uma foto dela para a Gerber [fabricante de comida para bebês], pois ela seria escolhida como um dos Bebês Gerber. Mas eu não fiz isso. Eu não queria que ela fosse explorada.” “Ofereceram à minha mãe um contrato para que eu fosse um Bebê Gerber, mas minha mãe me disse que isso estava fora de cogitação. Ela não queria ser uma mãe do showbiz. Talvez tenha sido por isso que demorei tanto para me acertar com a música”, Debbie confirmou, sobre o fato de ter despertado a criatividade um tanto tarde. “Ela é tímida”, Cag continuou. “Quando não está se apresentando – é bom que você saiba disso –, ela é quieta, com um senso de humor travesso. Não é muito extrovertida ou expansiva. Ela é meio retraída... Bem ligada à família... Daquelas que ficavam com saudade de casa durante os acampamentos.” 8 8 8
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Uma garota americana
Deborah Ann Harry nasceu Angela Tremble em Miami, Flórida, em 1o de julho de 1945. Ela foi adotada aos 3 meses de idade por Catherine e seu marido Richard, que trabalhava como vendedor de etiquetas para roupas no distrito da moda de Manhattan. (“Ele era bem despreocupado em relação a isso”, Debbie recordou. “Sempre dizia que se as pessoas quisessem algo, iriam comprar.”) A família morava em Hawthorne, uma típica cidade pequena do estado de Nova Jersey, descrita por Debbie como “a cidade-padrão do típico suburbano que trabalha no centro”. Debbie parece ter sido uma criança solitária e insegura, infeliz com a forma conservadora como era vestida por uma mãe que “não via outro futuro para mim senão o casamento”. Até certo ponto, essa ênfase na conformidade vinha dos ensinamentos da fé episcopal, que a família seguia. Debbie posteriormente abandonou essa corrente ascética do cristianismo protestante (que ela resumiu como sendo feita só de “nada de incenso, nada de confissão” e “bons hinos”), mas também reconheceu que foi ela que lançou as bases de um interesse mais amplo na espiritualidade. “Ela ensina a ser pragmático de fato. Aí você começa a questionar sobre Deus. Aí você simplesmente larga a igreja. Muitos protestantes não vão à igreja. Mas ela é muito social, dá muito apoio à comunidade. No entanto eu acho que D-E-U-S é tipo a resposta a uma fórmula para a criação da vida. Ou algum tipo de energia ou antigravidade. É como a resposta de uma equação, e isso se tornou mítico com o passar dos anos. Entretanto, num certo momento, todos nós sabíamos o que era. Não sei quando foi exatamente, mas aquilo era um conhecimento antigo. Ele foi ficando mais difuso à medida que foi transmitido e transformou-se em mito.” Embora as inseguranças de Debbie possam ter resultado de sua adoção, o lar da família Harry (que também incluía uma irmã mais nova, Martha, e um primo, Bill, que vivia com a família) era evidentemente aconchegante e amoroso. Apesar de Catherine e Richard serem rígidos, eles impunham limites aos seus filhos de maneira afetuosa. Quando Debbie tinha 4 anos de idade, seus pais tocaram no assunto de sua adoção do modo mais sutil possível. “Eles o incluíram em uma história de ninar sobre uma criança que foi escolhida”, ela revelou mais tarde. “E então disseram: ‘E foi assim que recebemos você’.”
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Crianças são criaturas muito adaptáveis, e isso certamente se aplicava a Debbie. “Para mim, eles eram somente minha mãe e meu pai e eu era muito feliz assim.” Lembrando o passado, fica evidente que ela valoriza o papel fundamental que Catherine e Richard tiveram em seu desenvolvimento. “O momento decisivo em minha vida foi ter sido adotada e ter me mudado para Nova Jersey. Eu podia ter ficado na Flórida, e quem sabe o que poderia ter acontecido? Talvez eu tivesse trabalhado na Disneylândia.” Como ocorre com muitos adotados, a ideia de sua mãe biológica como uma figura misteriosa inspirou a imaginativa especulação infantil. “Não saber de onde vim é um grande estímulo para a imaginação, e isso sempre quis dizer que não dou nada por garantido”, Debbie observou. “Numa tarde, enquanto estávamos sentadas na cozinha tomando café, minha tia Helen disse que eu parecia uma estrela de cinema, e isso me empolgou e alimentou outra fantasia secreta, de que Marilyn Monroe talvez pudesse ser minha mãe natural. Sempre pensei que era filha de Marilyn Monroe. Eu sentia uma ligação física e me achava parecida com ela, bem antes de saber que ela também tinha sido adotada... Por que Marilyn e não Lana Turner, Carole Lombard ou Jayne Mansfield? Talvez fosse a necessidade de Marilyn por imensas doses de amor explícito o denominador comum entre nós. Embora esse não seja bem meu caso, pois tive amor aos montes. Meus pais tiveram que aguentar muita besteira de minha parte, tipo a sensação de predestinação que sempre tive; quando sentia que eles não estavam me dando o devido valor, eu dizia a eles: ‘Vocês vão se arrepender por terem falado comigo assim quando eu for rica e famosa!’. Eles riam. Pelo menos, eu os divertia.” Em vez de deixar-se dominar pelo sentimento de abandono, Debbie permitiu que a vida familiar estável e sua agilidade mental extraíssem elementos positivos do fato de ter sido adotada. “Ter um grande ponto de interrogação quanto à sua identidade, sobretudo quando você é uma criança e está sempre tentando desvendar quem é, levou a esta dose dupla de ambiguidade – o grande desconhecido. Uma das coisas que eu sempre sentia em relação a não ser identificada, não saber exatamente que aparência deveria ter ou o que deveria fazer era que eu podia ser quem quisesse ser. E eu não era mesmo, de verdade, como ninguém. Acho que isso me ajudou, mas às vezes era difícil.” 20
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Debbie mais tarde encontrou seu pai biológico, embora sua mãe verdadeira tivesse recusado qualquer contato quando seu paradeiro foi descoberto, no final dos anos 1980. “Descobri um pouco da história pessoal. Fui à agência por meio da qual fui adotada e conversei com a representante. Ela pegou todos os meus arquivos, e os arquivos daquela época eram mesmo bem detalhados. Fui adotada logo depois da guerra, e o pessoal mantinha bons registros, porque havia muitos amores perdidos e muita confusão acontecendo – tantas crianças...” Relatando as circunstâncias de seu nascimento, Debbie explicou: “Acho que, por parte de pai, tenho sete ou oito meios-irmãos e meias-irmãs. Meu pai já era casado, mas minha mãe não era casada. Ela engravidou e depois descobriu que ele era casado e tinha um monte de filhos. Ela se desiludiu e foi embora, deu à luz e me colocou para adoção”. Até hoje, Debbie não tem a menor intenção de ter contato com algum irmão paterno. “Não sei para que serviria”, ela afirma. “Que relação eu teria com eles?” Nos últimos anos, Deborah usou a terapia como meio de explorar o impacto emocional de ter sido adotada tão nova. “Acho que me deu um pouco de medo e um pouco de raiva, e eu não sabia como separar as duas coisas, pois acho que ambas têm uma relação muito estreita entre si... Foi uma questão crucial para mim, e deve ter acontecido numa época em que eu era incapaz de expressar em palavras, mas foi algo que vivenciei como bebê – um trauma. Então, finalmente fui capaz de identificar aquilo e dizer ‘Ah, foi isso que aconteceu’ e pegar aquilo pela mão.” Além das aspirações convencionais de Cag quanto à sua filha, a necessidade econômica teve um papel fundamental na forma como Debbie se vestia. “Eu sempre usava roupas de segunda mão. Na época, estávamos quebrados de verdade, e minha mãe não era muito ligada na cultura pop, de modo que eu não tinha muita noção de como eram os anos 50.” “Detestava minha aparência quando eu estava crescendo. Eu tinha cabelo loiro, olhos azul-claros e maçãs do rosto salientes. Eu não me parecia com nenhuma das crianças com quem convivia, e me sentia muito pouco à vontade com meu rosto. Eu detestava me olhar no espelho e definitivamente não me achava bonita”, Debbie afirmou mais tarde. “Quando era bebê, eu era bonita de verdade, mas, numa fase intermediária, virei uma catástrofe. 21
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Eu era muito feia. Simplesmente fiquei esquisita... Minha mãe sempre me fazia uns cortes de cabelo esquisitos, e sempre tive de usar uns sapatos pesadões, esse tipo de coisa. Nunca achei que fosse bonita.” “Minha mãe e eu nunca nos demos bem em termos de roupas, de jeito nenhum. Ela sempre queria que eu parecesse uma WASP1 arrumadinha de Connecticut – essa era uma moda boa para ela, e eu meio que odiava isso... Eu sempre queria me vestir de preto e usar coisas que me dessem uma aparência durona. Houve uma fase em que eu queria vestir camisas de flanela largas e calças justinhas, e sempre queria usar os suéteres de trás para a frente. Eu tinha ideias claras sobre o que queria, e não tinha nada a ver com aqueles tempos. Assim, minha mãe e eu nunca concordávamos.” Olhando em retrospecto para os conflitos nos quais pais e filhos em geral se envolvem quanto à forma de vestir, Debbie agora confessa compreender melhor o ponto de vista da mãe: “Hoje, entendo muitas das coisas que ela dizia. Ela seguia algumas regras fundamentais boas. Eu queria o radical, eu queria sexo, eu queria astros de cinema. No entanto ela tinha ideias bem clássicas e estava certa em muitos aspectos – que algumas coisas no fim caíam bem em mim; tipo um modelo feito sob medida, um corte simples, ficava melhor do que algo com babados. Quero dizer, eles não tinham dinheiro, e ela não tinha um grande guarda-roupa nem nada do tipo; tinha poucas peças”. “Quando eu era adolescente, meu pai começou a ganhar um pouco melhor, e as coisas ficaram um pouco mais fáceis”, Debbie revela. “Quando você não tem muita grana, isso lhe dá um senso de humildade e valor. Contudo muita gente é criada nessas condições; com certeza, não estou me gabando disso. Além do mais, minha mãe e meu pai cultuam valores à moda antiga sobre lealdade e ficaram casados por sessenta anos, para o que desse e viesse. Nem sempre foi maravilhoso – eles tiveram seus altos e baixos.” Apesar da falta de confiança inicial, Debbie revelou sua voz no coral da igreja. “Lá estava eu, uma soprano gorducha como um querubim, se enturmando com os soldados cristãos”, ela contou mais tarde. “Eu 1
White Anglo-Saxon Protestant, “protestante anglo-saxão branco”. Ou seja, uma garota com visual tradicional, dentro dos padrões americanos de “moça bem-comportada”. [N.T.] 22
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gostava tanto de cantar que ganhei o prêmio de comparecimento perfeito ao coral, uma cruz prateada, que na verdade deveria ter sido dada a meus pais, por me fazerem ensaiar toda semana.” Ela mais tarde se tornou uma líder de torcida limitada, porém entusiástica. “Na verdade, eu não era muito boa em girar o bastão”, ela confessou. “Eu ficava muito nervosa e sempre o deixava cair. Entretanto acho que foi por isso que me escolheram. Eles queriam que eu girasse e derrubasse o bastão por um único motivo: para que me abaixasse. Eu estava lá para os pais pervertidos. Que queriam ver minha calcinha!” Embora Debbie reagisse contra qualquer tipo de destino suburbano predeterminado, ela nunca foi uma rebelde completa no ensino médio; mais tarde, foi descrita por colegas de classe como “amável” e “popular”. “Eu temia e odiava imensamente a escola”, ela refletiu. “Para mim, frequentar a escola era como andar sobre as águas. As aulas de arte eram minhas favoritas, mas pintura e desenho não eram considerados importantes. Depois que deixei para trás meus anos de gorda, tornei-me baliza de banda e fui eleita a garota mais bonita no meu último ano. Fora isso, não tive muita coisa a meu favor no ensino médio. Eu sentia que todo mundo tentava limitar o que eu era antes que eu tivesse tentado qualquer coisa.” “Eu sempre ficava nervosa na escola. Gostava de estar na sala de aula, aprendendo coisas. Mas não aguentava a tensão de ter de passar num teste. Era terrível em matemática, apesar de ser bem boa em geometria: proporções, visualizar as relações das linhas no espaço... Inglês e artes eram minhas matérias preferidas, mas eu não tinha pretensão alguma de ser uma escritora, ou uma compositora, naquele momento.” Como um meio de escapar à vida suburbana sufocante de Hawthorne, Deborah ia a Manhattan para absorver a atmosfera e a emoção ausentes das ruas tranquilas de sua cidade. “Eu tinha 12 ou 13 anos de idade e, nas manhãs de sábado, por 80 centavos, eu podia comprar um bilhete para a cidade de Nova York, ida e volta. Então eu tomava o trem para a cidade e caminhava pelo West Village, que era a Nova York dos velhos tempos, com suas ruazinhas, e passava por todos os teatros, e clubes, e cafés. Eu olhava para todos os pôsteres e via quem estava se apresentando – era muito emocionante para mim.”
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Como muitos adolescentes de famílias de baixa renda, Deborah também arrumou um emprego de meio período como forma de ganhar uns trocados. Essas primeiras incursões no mundo do trabalho rapidamente consolidaram a ideia de que trabalhar no mundo certinho provavelmente não seria com ela. “Tive dois empregos dos quais não gostei nada. Eu costumava fazer faxina na casa de uma mulher, mas isso foi quando eu era bem nova, e aí, mais tarde, quando estava no ensino médio, arrumei um emprego num centro de troca dos selos verdes da S&H,2 e aquilo era completamente humilhante. As pessoas que entravam lá e queriam seus produtos tinham uma postura muito arrogante. Talvez achassem que estavam obtendo algo a troco de nada, e por isso precisavam ser agressivas, mas o fato é que todo mundo parecia ser muito mesquinho.” Enquanto sua visão de mundo se expandia, Debbie – que conquistou o primeiro namorado sério quando tinha 14 anos – gravitava em direção às margens criativas e sociais. “Eu era uma outsider no ensino médio”, ela explicou. “Eu estava acostumada a sempre me vestir de preto e tinha descolorido mechas do cabelo, que sempre tingia com diferentes tons pastel. Toda vez que eu me envolvia com uma pessoa, me desencantava e levava um fora ou desistia do relacionamento, e tinha de me preocupar porque minha mãe sempre ficava apreensiva quanto a minha reputação, e meu melhor amigo era gay. Ele era vulgar, mas divertido.” “Tudo que me lembro do ensino médio era de como era chato”, Debbie se recorda. “Eu tirava notas médias e boas na Hawthorne High School. Nunca tive problema algum. Eu era estável, só isso. Eu só estava lá... Acho que não fiz nada na escola que me representasse. Você tem de se encaixar no sistema para conseguir levar adiante.” Apesar da pressão contínua para que se adequasse, a adolescente Debbie tinha pouca inclinação para seguir regras. “Entrei numa irmandade feminina. Eu tinha de ficar de um lado para outro e agir de uma determinada forma, trazer certas coisas quando pedissem, tipo chiclete se quisessem chiclete. Elas não gostavam de mim, e então fui chutada. Mas o motivo pelo qual fui 2
S&H Green Stamps, selos emitidos pela companhia Sperry & Hutchinson, da década de 1930 ao fim da década de 1980; recebidos quando eram feitas compras em supermercados, lojas de departamentos e postos de gasolina, podiam ser trocados por produtos do catálogo publicado pela S&H. [N.T.] 24
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expulsa era um amigo meu que era muito legal, muito doido, mas que elas achavam horrível demais. Principalmente porque ele era gay. Elas diziam: ‘Você não pode ficar por aí com ele’. Então me cortaram. A garota que fez as acusações se casou com ele tempos depois.” “Devo ter tido de dez a doze cores de cabelo diferentes. No começo eu usava uma mistura de água oxigenada e amônia, material que era fácil conseguir. Comecei com mechas, e aos poucos ele foi ficando alaranjado. Foi quando minha mãe começou a notar. De repente, no jantar, ela disse: ‘Seu cabelo está diferente. O que você fez?’. E eu simplesmente respondi: ‘Ah, eu clareei um pouco’. Meu pai disse: ‘Bom, não sei se gosto disso, hummm...’. Mas ele gostava disso na minha mãe. Então, era semiaceitável. Tempos depois, ele ficou platinado.” Sua atitude experimental com os cosméticos também levou Debbie à primeira experiência de vida como uma outsider autoconstruída. “Eu costumava ir à escola coberta de pintas falsas”, ela explicou. “Parecia que estava salpicada com lama, e as outras meninas me achavam meio esquisita. Eu costumava voltar para casa para almoçar e, quando minha mãe não estava, eu corria para o quarto dela e começava a me aplicar os produtos por toda parte. Mas eu era bem jovem.” “Eu treinava muito para me maquiar. Costumava estudar com cuidado a maquiagem e praticar todo dia. Ficava diante do espelho e tentava me pintar como uma oriental. Cometi muitos erros; às vezes, eu saía de casa parecendo um zumbi e nem percebia. Uma vez, na oitava série, minha mãe não estava em casa. Então fui lá para cima e comecei a fuçar. Quando voltei para a escola depois do almoço, ninguém queria falar comigo. Foram todos para um canto da sala de convivência e eu fiquei lá sozinha, praticamente em prantos.” Apesar desses contratempos iniciais, a percepção de que Debbie não era bem o patinho feio que imaginava ser ficou clara para ela, e então a puberdade chegou cedo. “Tomei consciência de minha sexualidade pela primeira vez quando tinha uns 10 ou 11 anos. Acho que é o que acontece com todo mundo, certamente não foi só comigo. Tive uma experiência interessante quando tinha 11 anos: estávamos de férias em Cape Cod, e eu costumava sair com minha prima... caminhando pelas ruas movimentadas à noite. Quando saíamos de casa, costumávamos passar 25
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batom sem nossas mães saberem. Bem, conhecemos uns caras que eram bem mais velhos do que nós. Eles nos seguiram de volta até nossa casa e disseram: ‘OK, vamos nos encontrar com vocês mais tarde e sair para tomar algo’. Às 23h, nossas mães já tinham nos colocado os pijamas e nos mandado para a cama quando os dois caras bateram à porta. Descemos e a abrimos, e você devia ter visto a cara dos dois quando viram duas garotinhas, sem batom. No fim, descobrimos que os dois eram músicos muito famosos. Eles nos deram fotos autografadas e outros lances. Porém meus pais ficaram muito chocados.” A aparência precoce de Debbie sempre teve o efeito perturbador de atrair os malucos locais. “O fato é que tenho uma natureza sensual, e suponho que isso transpareça nas fotos. Como mulher, eu sempre tive esse tipo de resposta. Sei disso porque sempre fui perseguida por tarados. Sempre do tipo pervertido. Em locais públicos, exibicionistas. Eu me lembro de uma vez quando era criança. Estava no zoológico com minha mãe. Um homem chegou e abriu o casaco de repente. Nojento.” Entretanto, enquanto sua sexualidade florescia com vigor hormonal, a jovem Deborah passou a visitar uma rua de prostituição, conhecida na região como “Cunt Mile” Milha da Boceta, em busca de aventuras sexuais. “Eu gostava de experimentar, acho que eu curtia muito o lado mais obscuro – o lado oculto das coisas”, ela relatou. “Não fiz muito isso, mas foi bem significativo para mim. Eu queria ver um verdadeiro grupo representativo. Eu não estava satisfeita sendo uma garota branca de classe média crescendo e fazendo o que era esperado dela. Mas com certeza foi muito legal.” Tentando expandir seus horizontes, Debbie passou a dirigir com entusiasmo. “Isso meio que me salvou”, ela afirmou. “Foi como consegui suportar o ensino médio. Quando as coisas ficavam complicadas demais, eu simplesmente entrava num carro.” Passando a ter independência para se locomover, Deborah descobriu que era atraída por Paterson, uma cidadezinha próxima. “Minhas avós moravam em Paterson. Muita gente não acredita que esse lugar exista. No jornal Times, de Londres, em 1965, saiu um artigo sobre o poema ‘Paterson’, de William Carlos Williams. Diziam que ‘Paterson é uma cidadezinha imaginária em Nova Jersey, que Williams criou como seu símbolo dos Estados Unidos’. Fica a
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20 quilômetros de Newark, e aqueles intelectuais ingleses achavam que era um mito.” Embora Deborah tivesse ambições de viajar pela Europa, em 1963 ela foi matriculada no Centenary College, em Hackettstown, Nova Jersey. “Meus pais não achavam que ir para a Europa era a coisa certa a fazer. Eu não queria muito ir para a faculdade, mas fui porque era muito submissa. Eu não sabia mais o que fazer. Não tinha ideia alguma, mesmo, de como me virar sozinha. Tinha sido programada para o casamento e tinha certo grau de educação de nível superior. Acho que meus pais não anteviam para mim outro futuro senão o casamento. Fui lançada no mercado para isso, fui produzida para isso. Esses dois anos eram para me dar um acabamento, para talvez conhecer alguém.” Essa “escola de acabamento” (descrita por Debbie como “um reformatório para debutantes”) foi fundada em 1867 pela Newark Conference of the United Methodist Church, tornando-se uma escola preparatória para meninas em 1910 e depois uma escola pós-ensino médio feminina, em 1940. A graduação de Debbie com um diploma de Bacharel em Artes em 1965 foi vista como o último passo educacional antes de seu futuro programado como uma dona de casa totalmente domesticada. Embora houvesse já então diversos fatores que seriam cruciais para o surgimento da persona Blondie de Debbie, naquela época, ser uma das maiores estrelas no planeta teria sido só uma fantasia desvairada. Quando adolescente, suas ambições não iam além de se tornar uma beatnik: “Sempre foi meu sonho viver a vida boêmia em Nova York e ter meu próprio apartamento e fazer coisas. Eu não gostava da vida suburbana. Sempre tive minhas próprias ideias secretas, particulares... Sempre soube que eu estaria de alguma forma envolvida com o mundo do entretenimento”. Debbie tinha colocado vida em sua infância em Nova Jersey ao criar um mundo de fantasia povoado por intocáveis ícones do cinema. Na época em que chegou ao Centenary College, ela tinha desenvolvido um fascínio pelo arquétipo do antiestablishment exemplificado por James Dean em Juventude Transviada. Era bem natural que seu conceito de glamour na época fosse fornecido pela então onipresente Marilyn Monroe. “Ela era a mulher mais polêmica na época de minha adolescência, de 27
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modo que ela emitia uma aura tremenda, e eu estava muito interessada naquilo – no carisma dela. Nunca realmente tive aquela coisa de morrer de vontade de ser outra pessoa. Sempre tive admiração por todos, na verdade. Eu sabia que eu queria ser algum tipo de intérprete. Eu tinha uma ideia meio confusa quanto a isso, mas era boa em música.” Em termos de adotar tais modelos subversivos em sua vida suburbana, Debbie tinha tendência a ser pragmática. “Ser rebelde não me levaria a lugar algum, exceto ser punida e trancada dentro de casa. Mas eu sempre declarava o que pensava. [Meus pais] eram intelectual e politicamente liberais. Eles em si, e o modo como agiam, é que não eram liberais. Eles tentaram me fazer entender isso, e eu entendi, mas eles estavam bem arraigados em seu modo de vida. Eu só estava esperando a hora em que pudesse fazer o que quisesse.” A exposição ao jazz e ao cinema europeu constituiu a base de boa parte da sensibilidade estética de Debbie. “Algumas de minhas maiores influências foram Paul Desmond, Dave Brubeck, Cal Tjader, todos aqueles músicos de jazz alucinados. Eu curtia mesmo aquilo”, ela recordou. De fato, o primeiro álbum pelo qual Debbie se apaixonou foi a coletânea I Like Jazz, de 1955, que apresentava contribuições de artistas como Duke Ellington e Dave Brubeck. “Eu não tinha muito dinheiro para comprar discos... Então, ouvia muito rádio... Um radiozinho no qual eu mantinha o ouvido colado na saída de som. Naqueles dias, DJs podiam ser malucos – os DJs da alta madrugada eram assim. Um lance funk, cheio de soul, talvez um pouquinho de rock. O que poderia ser melhor? Sempre fui louca por rádio.” A crescente paleta de influências de Deborah Harry também era moldada pela atração magnética da vizinha Nova York. “Quando eu era pequena, minha mãe e meu pai costumavam me levar aos lugares tradicionais de criança. Shows do Radio City, a árvore no Rockefeller Plaza. Nova York sempre foi o grande fascínio e a grande Meca para o entretenimento, qualquer coisa que fosse exótica. Meu pai trabalhou lá por mais de 25 anos. Acho que comecei a ir de ônibus para a cidade quando estava na oitava série. Eu ia para o Village e checava o que estava acontecendo.” Uma vez estabelecida no Centenary College, Debbie matriculou-se em aulas de criação literária. “Comecei a escrever com seriedade em 1964... poemas. Não eram muito bons. Eu costumava escrever historinhas.” 28
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No entanto, tendo idade suficiente para se lembrar de uma época antes do rock’n’roll, foi essa música ainda nova (mais do que a literatura) |que despertou seus instintos rebeldes. “Uma das melhores coisas quanto a ele era o fato de ser proibido”, ela recordou. “Aquilo forçava as pessoas jovens a terem uma identidade. Você podia classificar todas as pessoas de acordo com quem elas gostavam ou mesmo se gostavam de rock’n’roll.” “O período de 1959 a 1965 foi uma grande época para ser um adolescente do rock’n’roll”, ela rememorou. “O rádio estava no auge. Todos os shows estavam numa competição pesada para descobrir o som mais novo e mais selvagem gravado em disco... A primeira coisa do rock que me interessou foi o doo-wop de Frankie Lymon durante os anos 50. Mais tarde, minhas amigas e eu dançávamos o strand, o hully gully, o swim, o jump, o bop, o watusi e o twist – iniciado pelo Mashed Potato, que, quando foi visto pela primeira vez, causou uma espécie de escândalo na escola: ‘Você está dançando feito uma negra, garota... Você não pode fazer isso!’. Até aquela época, demonstrar como a música fazia você se sentir era algo inédito.” Como muitas adolescentes americanas da época, Debbie não poderia deixar de sentir o impacto dos Beatles na cena pop dos Estados Unidos quando a banda aterrissou para invadir o país em fevereiro de 1964. No entanto, em vez de ser levada pelas correntes dominantes da Beatlemania, sua sensibilidade artística prestou atenção à dinâmica por trás da popularidade desenfreada do grupo. “Aprendi muita coisa sobre ousadia com os Beatles. Sempre os achei ousados. Esse era meu rótulo para eles. Atitude é muito importante. E sempre senti que sexo é uma coisa bacana para vender. É a coisa certa.” Enquanto John, Paul, George e Ringo extasiavam as massas, Debbie foi enfeitiçada pela breve supernova das girl groups (bandas de garotas) de Nova York. Elas forneciam garotas rebeldes em carne e osso com as quais era possível se identificar, e com base nas quais era possível modelar sua individualidade precoce. O Brill Building, edifício de dez andares que recebeu esse nome por conta do alfaiate que ocupava o térreo, havia dominado a indústria do entretenimento de Nova York no final dos anos 1950. Por volta de 1960,
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porém, enquanto ele ainda abrigava os compositores figurões Jerry Leiber e Mike Stoller, a maior parte da música contemporânea emanava do Music Building, mais barato e menos convencional, no número 1650 da Broadway – um labirinto de cubículos equipados com escrivaninhas, telefones e um piano vertical, que acolhia hordas de editores, promotores e compositores que chegavam à cidade. À medida que os anos 1960 transcorriam, aqueles pequenos cubículos passaram a produzir em série sucessos do Top 10 num ritmo incessante – com frequência lançados pela Aldon Music, companhia fundada pelo veterano da indústria musical Al Nevins e pelo jovem e talentoso empreendedor Don Kirshner, que ganharam a primeira de muitas boladas no mercado branco adolescente, aberto por Dion & The Belmonts, com seu jovem cantor e compositor Neil Sedaka. Parcerias de composição novas e modernas da época incluíam Gerry Goffin e Carole King, Barry Mann e a letrista Cynthia Weil (que quebraram a barreira do Brooklyn, vindos de um rico contexto judaico do Upper West Side), Ellie Greenwich e Jeff Barry. Goffin e King tiveram o mérito de compor o primeiro single de um grupo feminino negro a chegar ao número um, a nostálgica e contagiante “Will You Love Me Tomorrow?”, das Shirelles, de Nova Jersey, em 1960. Isso abriu as comportas para a forma inicial do que viria a ser o girl power.3 O fenômeno das girl groups espalhou-se como fogo num palheiro, incitado com toda a força por um recém-chegado chamado Phil Spector – um produtor de discos diminuto que lançou uma sombra de arranha-céu sobre a cena musical de Nova York no início dos anos 1960. Embora tenha nascido no Bronx em 1939, ele foi levado para a Califórnia por sua mãe em 1953, depois do suicídio do pai. Ele aprendeu sua técnica de estúdio com o produtor Stan Ross, do Gold Star, e conquistou sua primeira gravação de sucesso no final de 1958, com “To Know Him Is to Love Him” (título tirado da inscrição na lápide de seu pai), do grupo The Teddy Bears. Lester Sill, mentor de Leiber e Stoller, então providenciou para que ele fosse a Nova York e trabalhasse com a dupla, resultando na 3
Em português, “poder da garota”. O termo foi usado pela primeira vez pela banda norte-americana Bikini Kill em uma entrevista a um fanzine e entrou no mainstream com as Spice Girls. Passou a expressar um fenômeno cultural de empoderamento feminino na década de 1990 e no início da seguinte. [N.T.] 30
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inebriante “Spanish Harlem”, enorme sucesso de Ben E. King no final de 1960. Vindo do Brooklyn, The Crystals foi o primeiro grupo que Spector contratou para o Philles, selo que fundou com Sill em 1961 (do qual mais tarde seria o único dono, após a desistência do sócio). Spector dedicou-se a desenvolver a panorâmica estética sonora do “wall of sound”4 que aplicou às novas girl groups, abrindo caminho com The Crystals depois de o hit de estreia da banda, “There’s No Other (Like my Baby)”, mal ter entrado no Top 20. A loira e comunicativa cantora, compositora e produtora Ellie Greenwich foi outro componente-chave no fenômeno das girl groups. Junto ao marido Jeff Barry, a rainha pop da Broadway compôs alguns dos maiores hits para as girl groups, incluindo as Ronettes, de Spector, The Crystals e vários para The Shangri-Las. (Além de escrever vários dos hits que incendiaram as paixões musicais de Debbie, mais de uma década depois, Ellie forneceria os vocais de apoio para o Blondie no hit-single “In the Flesh”.) Embora vinda do Brooklyn, Ellie Greenwich cresceu em Levittown, bairro próspero de Long Island, aprendendo piano sozinha e compondo músicas no começo da adolescência. Ela frequentou o Queens College aos 17 anos e, em 1958, lançou seu primeiro single solo, “Silly Isn’t it”, pela RCA, com o nome Ellie Gaye. Tornou-se frequentadora do Brill Building depois que sua habilidade no piano chamou a atenção de Jerry Leiber enquanto ela esperava uma reunião. Leiber e Stoller permitiram que ela usasse as instalações deles contanto que fossem os primeiros a escolher as canções que ela criava. Ellie e Jeff Barry se casaram em outubro de 1962, no entanto sua parceria de composição desabrochou em um arranjo exclusivo imensamente bem-sucedido com o Trio Music, de Leiber e Stoller. Quando Leiber, Stoller e o veterano George Goldner, o terceiro sócio, iniciaram a Red Bird Records em 1964, Barry e Greenwich foram colocados como compositores e produtores da equipe, conquistando um primeiro lugar imediato com “Chapel of Love”, cantada pelo grupo The 4
“Parede de som”, fórmula de gravação que usava arranjos instrumentais para orquestra e câmera de eco para encorpar o som. [N.T.] 31
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Dixie Cups e produzida por Spector. O sucesso de Ellie chegou aos ouvidos de seu antigo amigo de infância, George Morton, que a visitou no Brill Building, o que não agradou ao marido Jeff, que maldosamente perguntou a Morton o que ele fazia na vida. Não querendo ser humilhado, George respondeu que compunha singles de sucesso. Barry o desafiou a produzir um. Incentivado pelo desafio, embora sem qualquer música, Morton aceitou a aposta, agendou um horário num estúdio local e convidou quatro garotas que já o haviam impressionado em eventos locais: The Shangri-Las (que pegaram seu nome de um restaurante chinês local). O grupo The Shangri-Las havia sido formado a partir da amizade entre as famílias Weiss e Ganser, que moravam em Cambria Heights, bairro violento no sudeste de Queens. Mary e Liz “Betty” Weiss e as irmãs gêmeas Marguerite “Marge” e Mary Ann Ganser frequentavam a Andrew Jackson High School, na vizinhança. Compartilhando um amor mútuo pela música, entre 1963 e 1964, as quatro ensaiaram suas harmonias, coreografias e presenças de palco em torno das canções pop do dia, logo passando a se apresentar em festas de adolescentes e bailes estudantis locais. Quando ia em seu Buick para o estúdio de gravação de demos, Morton parou numa praia de Long Island e compôs na hora “Remember (Walking in the Sand)”. A demo de sete minutos impressionou Leiber a ponto de ele contratar The Shangri-Las para a Red Bird por cinco anos, em abril de 1964. Depois de elas gravarem uma versão mais compacta, “Remember” tornou-se um hit do verão, complementado pela imagem de bad girls do grupo. Essa foi uma nova corrente do rock’n’roll adolescente, vista de uma perspectiva feminina. A produção inovadora de Morton elevou a dramaticidade da canção com efeitos sonoros que eram sua marca registrada, na forma do bater de ondas e dos gritos das gaivotas. Morton de repente era um ás do estúdio sendo contratado para a equipe de produção da Red Bird. “Shadow” [O Sombra] foi o apelido dado a ele por George Goldner – por causa do misterioso personagem das revistas pulp, pois nunca conseguiam saber onde ele estava. Trabalhando mais como um diretor de cinema, Morton dirigiu as Shangri-Las durante dois anos de minissinfonias e sucessos mundiais que incluíam “Leader of the Pack”, “Give Him a Great Big Kiss”, “I Can Never Go Home 32
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Anymore”, “Give Us your Blessings” e a confessional e sepulcral “Dressed in Black”, lado B do hit “He Cried” – um modelo para futuras gerações punk, e que poderia ter sido composta para Debbie Harry. A Red Bird fechou as portas em 1966, depois que Leiber e Stoller já tinham se retirado, transtornados por Goldner, que acumulava dívidas de jogo significativas, e devido ao fim do casamento de Greenwich e Barry, dois anos antes. O grupo The Shangri-Las assinou com a Mercury, lançando mais dois singles, “Sweet Sounds of Summer” e “Take the Time”. Nenhum dos dois agitou as paradas. Elas se separaram, encerrando a carreira de forma típica, quase sem dinheiro e sujeitas a ações judiciais que as impediam de gravar. Mary viajou e então trabalhou como secretária em Manhattan enquanto frequentava a faculdade. Mais tarde, entrou para o ramo da arquitetura e, depois, da movelaria, passando a administrar uma loja de decoração de espaços comerciais nos anos 1980. Betty teve uma filha e mais tarde iniciou seu próprio negócio com cosméticos em Long Island, enquanto Mary Ann morreu em março de 1970, aos 22 anos de idade, de encefalite, após sofrer de ataques convulsivos por algum tempo. As Shangri-Las remanescentes reuniram-se em 1976, quando o relançamento de “Leader of the Pack” entrou no Top 10 britânico. Lamentavelmente, Marge morreu de câncer de mama em julho de 1996, aos 48 anos de idade. A jovem Debbie Harry era particularmente atraída pela aura adolescente trágica e maldita das Shangri-Las (em 1977, Phil Spector comentou que ela lhe lembrava uma integrante do conjunto). Elas rapidamente se tornaram um dos maiores e mais influentes grupos de todos – em grande parte, graças à produção cinematográfica de “Shadow” Morton, cujas minióperas adolescentes compilavam enredos inteiros nos sulcos de um compacto de 7 polegadas. As criações monumentais de Spector eram de tirar o fôlego, mas as Shangri-Las ousaram se aventurar onde cantoras raramente haviam estado antes – explorando temas de amor proibido, alienação, solidão adolescente, morte trágica (até mesmo atrevendo-se a narrar a morte de uma “mamãe” arquetípica em “I Can Never Go Home Anymore”) e paranoia cozida em fogo brando, causada por algum trauma ambíguo, na pseudoclássica “Past, Present and Future”.
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A imagem decidida desta girl group em particular, com suas roupas pretas e seus beicinhos ingênuos, porém sexys e cheios de atitude, antecipava o punk, cativando de tal forma Debbie que uma versão da pungente “Out in the Streets”, a canção das Shangri-Las favorita de Mary Weiss, foi trabalhada na primeira sessão de gravação do Blondie, em 1975. Os melodramas épicos do grupo, recheados de caras com jaquetas de couro que eram “bad boys por fora, porém gente boa por dentro”, também influenciaram muitos artistas de Nova York na década de 1970 – incluindo Jayne County, Ramones e, pouco antes deles, os New York Dolls, que pegaram o verso de abertura de “Give Him a Great Big Kiss”, “When I Say I’m in Love” (Quando Digo que Estou Apaixonado), para seu melodrama urbano de 1973, “Looking for a Kiss”, enquanto Johnny Thunders, guitarrista dos Dolls, fez um cover da canção em seu primeiro álbum solo. (No Reino Unido, o Damned usou a introdução “Is she really going out with him?” [Ela vai mesmo sair com ele?], de “Leader of the Pack”, em seu single de estreia, “New Rose”.) As girl groups também tinham consolidado a crescente fixação de Debbie pela vizinha Nova York, que cintilava do outro lado do rio Hudson. Em 1965, a cidade estava entrando numa revolução cultural, no rastro da “invasão britânica” que ocorrera no ano anterior.
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