Gabriela Manfredini - Lentidão como Revolucao

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UNIVERSIDADA DE COIMBRA

Lentidão como Revolução: A Profundidade da Arte e da Vida no Presente Trabalho apresentado com base no texto Comrades of Time (2009) de Boris Groys e alimentado por vivências cotidianas e sentimentos recentes. Acompanha áudio cujo título é Correria (2025), gíria frequentemente utilizada em alguns contextos urbanos para expressar uma vida agitada, cheia de compromissos e responsabilidades, muitas vezes associada a um ritmo acelerado de vida. Pode ser acedido através do link: https://youtu.be/wrzlZbzr08k

Comrades sleep faster!

No texto Comrades of Time (2009), o filósofo Boris Groys nos traz algumas reflexões sobre a contemporaneidade e as sensações e características acerca do tempo presente:

1) contemporâneo significa estar presente;

2) algo que faz com que as nossas esperanças e os nossos planos não sejam oportunos, não estejam atualizados ou sejam simplesmente impossíveis de se concretizar;

3) tempo de dúvida e incerteza;

4) tempo aborrecido;

5) um local de reescrita permanente do passado e do futuro.

As definições parecem um tanto pessimistas, mas concordo com as proposições do autor. Acredito que o presente tem se tornado cada vez mais complexo e caótico na era da pós verdade e da iminente catástrofe que ameaça a biosfera planetária.

O fato do presente ser algo difícil de suportar pelas suas incertezas, pelo sentimento enfadonho e também pela crescente ansiedade, causa um sentimento de fuga para a ânsia do futuro ou a nostalgia do passado. Ou seja, estamos constantemente fugindo dele. Ficamos distraídos, rolando os dedos infinitamente pelo ecrã com notícias e futilidades que se reinventam todos os dias. Absortos do presente, agindo sem pensar, de modo automático como máquinas.

Groys também diz que a modernidade nos impôs a andar com malas leves, e aqui adiciono que estas malas leves nos ajudam a andar (ou correr) com cada vez mais velocidade rumo a um futuro também cada vez mais incerto. A um dado momento do texto ele faz a seguinte pergunta: “Como é que o presente se manifesta na nossa experiência quotidiana?” que tentarei responder ao longo do texto.

Correria

A velocidade parece ser uma das principais características da contemporaneidade. Os carros, aviões, trens com o passar dos anos têm se tornado cada vez mais rápidos. A comunicação antes feita por cartas, pelo rádio, telefone ou televisão se tornou muito mais veloz e democrática depois da popularização da Internet. E acredito que é ela, umas das principais responsáveis por acentuar este sentimento na sociedade atual.

Para pagar uma conta alguns anos atrás, era preciso ir a um determinado local e entrar numa fila para ser atendido e realizar o pagamento. Hoje é possível fazer o mesmo com poucos cliques e de qualquer lugar do globo. Para a geração Alpha, por exemploque já nasceu dentro do contexto das mídias digitais - a sensação temporal de velocidade causada pela Internet não é percebida porque já nasceram dentro dela. Porém ao fazer comparações, notamos que esta velocidade chegou a um ponto onde “num dia, diz-se que uma pessoa média numa cidade ocidental está exposta a tantos dados como alguém no século XV encontraria em toda a sua vida” (Vince, 2013).

A velocidade abrange cada vez mais itens e áreas da vida cotidiana. O trabalho, os deslocamentos, as mensagens, e-mails e serviços tem que apresentar cada vez mais rapidez e eficiência numa sociedade tecnológica e imediatista. Do fast food ao fast fashion a pressa se infiltrou em todas as áreas da vida. Apresento abaixo dois exemplos recentes que ilustram esta ideia.

Publicidade da feira Speed Recruitment 2024. Imagem retirada do site da Câmara Municipal do Porto

Speed Recruitment é uma feira de empregos que acontece anualmente desde 2004 no Porto. O objetivo é conectar candidatos às empresas participantes de forma rápida e efetiva. Na edição de 2024, uma das formas de participação foram as speed interviews, entrevistas de cinco minutos cronometrados.

Não tenho palpites aqui quanto a feira em si, no entanto, acredito que uma entrevista de cinco minutos não avalia ou apresenta de forma adequada e coerente a trajetória e a personalidade de uma pessoa. Além disso, há empresas como a HelloHire que utilizam inteligência artificial para avaliar o desempenho de candidatos em entrevistas feitas online, que podem acarretar em erros éticos e resultados enganosos.

Outra imagem que me chamou a atenção, foi a deste outdoor, que faz propaganda de um ginásio, instalado em frente ao metro D João II em Vila Nova de Gaia. A primeira frase diz “Não tenho tempo para nada”, que identifica a falta de tempo como uma ideia estabelecida e até normal nos dias de hoje. A imagem também deixa uma mensagem para que as pessoas se valorizem e priorizem o seu

tempo para cuidar do corpo. Ou seja, a pressa na vida cotidiana é tanta, que nem mesmo a saúde e o auto cuidado tem sido prioridade para muitas pessoas.

Foto da autora. Frase em produto de beleza da marca Rituals. Tradução livre: Escape ao ritmo agitado da vida quotidiana através de um relaxamento profundo e de um sono reparador.

Foto da autora

Viver numa eterna corrida contra o tempo traz uma série de malefícios para o ser humano. O fato de não precisarmos mais memorizar números de telefone, rotas, endereços, nem fazer contas sem calculadora são alguns dos fatores que nos levaram a perder memória, concentração e foco. Somado a isto, temos a sobrecarga do uso de telas que faz o cérebro no mundo hiperconectado funcionar de forma mais lenta do que anteriormente (Bardini, 2025).

Lentidão

Ao buscar pela lentidão, encontro dois títulos que apresentam o tema com 13 anos de diferença entre as publicações. Milton Santos, geógrafo e cientista escreve o ensaio Elogio da Lentidão em 2001, onde fala sobre uma ideia de velocidade e competitividade própria às grandes empresas multinacionais que “arrastam a política dos Estados e das instituições supranacionais” (2001). O autor critica esta acentuada ideia de rapidez que pouco a pouco infiltra-se em vários setores, mas que nunca chega às questões sociais e políticas. Também defende a ideia de que cada sociedade tenha seu próprio ritmo; que tanto os lentos como os apressados tenham igualmente valor para a sociedade.

Em determinado momento surge a pergunta “será mesmo impossível limitar a velocidade dos mais velozes, isto é, dos mais fortes?” (2001). Para responder a esta questão podemos usar o termo “homem lento” (1994) criado pelo próprio. Homem lento é um indivíduo que resiste a globalização, a moda e a tecnologia. Pode ser encarado como um homem comum ou pobre. Esta figura é responsável por de alguma forma frear a velocidade do capitalismo e da tecnosfera.

O problema, eu diria, é que o homem lento está cada vez mais raro num mundo que está cada vez mais fadado ao automatismo, a cópia e a massificação, que também é marcada pelo monopólio e pela vida precarizada. Os hábitos de consumo, os já populares slogans ‘Consumir menos e melhor’, ‘reduce reuse recycle’ parecem ser um bom começo, mas não mitigam o problema de todo.

Há também um livro de 2014 com o título Elogio da Lentidão que foi escrito pelo médico e cientista Lamberto Maffei, onde explica como o cérebro humano funciona. Apesar de ter reações rápidas e instintivas, ele também apresenta um comportamento lento quando comparado a outras espécies, porque temos pensamentos mais elaborados e complexos. A lentidão estaria então relacionada com a memória e a reflexão. Quando comparado a velocidade da internet, a velocidade do pensamento

fica ainda mais em desvantagem: doze vezes mais lenta segundo pesquisa recente (Bardini, 2025).

Ambos os autores questionam a velocidade do mundo, seja pela ótica da cidadania, onde propõe-se a individualidade e o bem-estar local ou pela ótica cerebral, onde “o fazer prevalece sobre o pensar” (Maffei, 2018, p.18). Assim, temos que nos acostumar com nossa própria vagareza e valorizar os aspectos mais humanos da nossa existência. Se for preciso mais velocidade, que coloquem as máquinas e IAs para operar e conduzir para que os humanos possam refletir, criar e desenvolver.

Arte no tempo da Internet

Voltando ao Comrades of Time (2009), o argumento de que “a arte contemporânea tornou-se atualmente uma prática cultural de massas” (Groys, 2009) não me convence totalmente. Podemos dizer que Marina Abramović, por exemplo, ficou ainda mais conhecida depois da viralização do vídeo onde Ulay se senta em frente a ela na 1 exposição The Artist is Present no MoMA Sabemos também que outros artistas como 2 Banksy atraem milhões de seguidores e fãs. Porém, Picasso, Van Gogh e da Vinci continuam sendo os artistas visuais mais conhecidos mundialmente ou ainda Frida Kahlo e Andy Warhol que foram difundidos pela cultura pop.

Entretanto, existe um esforço para tornar as exposições de arte mais acessadas tornando-as instagramáveis e espetaculosas. O maior expoente desta prática talvez sejam as exposições da artista Yayoi Kusama, mas há uma profusão de experiências imersivas de arte que funcionam através de projetores e animações. No entanto, o público se atenta mais às fotos e publicações do que realmente na arte que estão a ver. Também se sabe que tirar fotos prejudica a memória dos eventos e dos objetos numa exposição (Henkel, 2013).

Assim, podemos concluir que estas experiências supostamente interativas e participativas não o são, já que a maioria das pessoas não observa atentamente e o interagir se torna sinônimo de fotografar e publicar.

A viralização é um termo usado quando um conteúdo é difundido rapidamente através da 1 Internet e atinge um grande número de pessoas.

Nesta performance, a artista Marina Abramović ficou sentada numa cadeira por 2 aproximadamente sete horas por dia durante três meses seguidos, num total de 700 horas. Pessoas do público podiam se sentar em frente a ela para partilhar uma experiência de observação, contemplação e sobretudo presença.

No fim do texto Boris Groys discute a popularização da arte contemporânea pelo que qualquer pessoa conectada pode publicar fotos, vídeos e textos num espaço cibernético de alcance global. O autor questiona o papel do artista num mundo onde todos podem ser artistas, e afirma que “se a sociedade contemporânea é, portanto, ainda uma sociedade do espetáculo, então parece ser um espetáculo sem espectadores” (Groys, 2009).

Com base nos pensamentos de Groys, acredito que vivemos numa sociedade paradoxal no sentido de que muitos querem ser artistas (ou famosos), poucos conseguem e todos se tornam espectadores, seja da vida uns dos outros, através das redes sociais, de programas como Big Brother - que depois de 25 anos ainda faz sucesso - de notícias e etc.

A partida, as mídias digitais possibilitam que qualquer pessoa poste sua arte publicamente, no entanto, para conseguir muitas curtidas e ter grande alcance nestas redes é preciso trabalhar duro. O algoritmo exige um trabalho e esforço constante para que um usuário possa se manter “em alta”. Então para além de criarem arte, os artistas têm que encontrar tempo para o marketing e a performance online de si mesmo.

Muitos deles têm encontrado cada vez mais dificuldades ao tentar vender ou conseguir público através das redes sociais. O algoritmo do Instagram, por exemplo, dá preferência para vídeos curtos ao invés de imagens paradas. O TikTok é outra rede de entretenimento que alcança mais de um bilhão de usuários e é feita para a publicação de vídeos curtos. Assim, muitos artistas começaram a gravar vídeos do processo da obra ou até mesmo trazer reflexões e pensamentos para seus seguidores em busca de mais visualizações.

Foco no Presente

Percebe-se uma relação entre estes sentimentos despertados pelo tempo presente mencionados acima com um possível aumento da ansiedade na sociedade contemporânea. Estima-se que um terço da população terá ansiedade em algum momento da vida (Bandelow, Michaelis, 2015). Este é um transtorno que causa uma preocupação excessiva ou medo do futuro. É uma doença que essencialmente te tira do momento presente. Durante uma crise, um dos conselhos dos especialistas é se concentrar na respiração que deve acontecer de forma lenta, o que ajuda a relaxar e oxigenar melhor o cérebro.

Por isso, o antídoto para este mal cada vez mais comum e presente na sociedade parece ser a presença mental e física no tempo presente. Estudos sobre permanecer em estado de presença - também comumente chamado de mindfulness - tem aumentado vertiginosamente nos últimos anos devido ao seu caráter efetivo no tratamento de doenças mentais como ansiedade, stress e depressão. Esta prática pode ser treinada para desenvolver “consciência da experiência de um momento a momento, sem julgar e com aceitação” (Keng, Smoski, Robins, 2011).

Outras práticas como yoga e tai chi chuan, que são exercícios de meditação em movimento, também apresentam benefícios físicos e mentais como ajuda na concentração e redução do estresse.

Se o mundo contemporâneo é marcado pela vita activa (por vídeos e a circulação de pessoas), qual é o tempo que sobrou para as imagens e a vita contemplativa? Na tradição socrática, a vita contemplativa tinha condição superior a inquietação da vita activa: “A ação passara a ser vista como uma das necessidades da vida terrena, de sorte que a contemplação . . . era o único modo de vida realmente livre” (Arendt, 2007, p. 22). Na modernidade, os papéis se inverteram e as atividades passaram a imperar na sociedade. Me parece que o movimento mais acertado seria o de equilibrar os pólos: atividade/contemplação, corpo/alma, rapidez/lentidão. Assim, a lentidão e a presença, cada vez mais perdidas no mundo contemporânea possam ser re-acionadas para que possamos nos conectar com a profundidade da arte e da vida.

Bibliografia:

Arendt, H. (2007). A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Bandelow, B., & Michaelis, S. (2015). Epidemiology of anxiety disorders in the 21st century. Dialogues in clinical neuroscience, 17(3), 327–335. https://doi.org/10.31887/ DCNS.2015.17.3/bbandelow

Bardini, P. (2025, 1 de janeiro). Como o cérebro humano interpreta a velocidade da internet. Nexo Jornal. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/ 2025/01/01/velocidade-cerebro-humano-estudo-internet

Groys, B. (2009). Comrades in Time. e-flux Journal #11. Disponível em: https://www.eflux.com/journal/11/61345/comrades-of-time/

Henkel, L. (2013). Point-and-Shoot Memories: The Influence of Taking Photos on Memory for a Museum Tour. Psychological science 25(2). DOI: 10.1177/0956797613504438.

Keng, S., Smoski, M., & Robins, C. (2011). Effects of mindfulness on psychological health: a review of empirical studies. Clinical psychology review, 31(6), 1041–1056. https://doi.org/10.1016/j.cpr.2011.04.006

Maffei, L. (2018). Elogio da lentidão. Lisboa: Edições 70.

Santos, M. (2001). Elogio da lentidão. Folha de São Paulo, Caderno Mais, São Paulo,11 mar 2001.

Santos, M. (1994). Técnica, espaço e tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec.

Vince, G. (2013). Cities: How crowded life is changing us. BBC. Disponível em: https:// www.bbc.com/future/article/20130516-how-city-life-is-changing-us

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