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Olhos atentos ao mar
from Edição 1087
A pesca da tainha é uma tradição do nosso litoral, que une de velhos pescadores à nova geração. Os homens do mar aguardam ansiosos a chegada dos cardumes que vêm do sul, a partir de uma conjunção entre frio e vento
Da sua casa, a uns 250 metros da praia, ouve-se o barulho do mar.
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O som da maré soa como se fosse a trilha sonora de sua vida. O que não seria exagero, afinal praticamente desde a infância ele se dedica à lida dura da pesca – difícil porque é preciso enfrentar os perigos do mar, mas também os caprichos da natureza, que aqui é quem determina os dias de fartura e os dias de escassez nas redes.
É tarde de segunda-feira, e o sol começa a cair no horizonte. O pescador está em casa, onde horas antes ele se reunira com seus parceiros de pesca para um almoço. Mas antes ele e o grupo foram até a praia conferir o mar, com olhos atentos à procura de algum cardume. Primeiro dia do mês. Primeiro dia da safra da tainha, uma unanimidade do nosso litoral, capaz de agradar paladares de gregos a baianos.
Por enquanto, nada de redes ao mar. Enquanto isso, Zé Guede espera. “Não tem um dia que eu não vou ver o mar. Não fico um dia sem molhar o pé no mar. Tá no sangue”, conta ele. Cabelos meio grisalhos, 65 anos de idade, o pescador do Campo Bom, em Jaguaruna, um dos mais antigos em atividade na região, está pronto para mais uma safra da tainha. Seu barco, o Viana, com a imagem de Nossa Senhora Aparecida pintada na proa, aguarda em cima do caminhão, na garagem de casa, o momento certo de zarpar.
“De Imbituba para cá, até o Arroio Chuí, conheço como a palma da minha mão”, orgulha-se Zé Guede. “Se me perguntar qualquer tipo de arroio que tem, quantos navios encalharam, sei todos”, comenta. Pescador desde a infância, Zé Guede está aposentado há cinco anos, mas não pensa em pendurar a rede. Pelo contrário, tem programada para novembro uma temporada de pesca no Rio Grande –a do ano passado durou 45 dias. “Só com o salário mínimo não dá”, brinca a esposa, Maria de Fátima dos Santos Viana.
Filho de pai mineiro das minas de Criciúma, Zé Guede mudou-se com a família para o Campo Bom quando ele ainda tinha 3 anos. Era um local quase inabitado, de poucas casas. Para visitar o pai no trabalho, ia-se de carroça por um caminho entre o mato até o Distrito de Morro Grande e de lá embarcava-se no trem para Criciúma. Foi com os pescadores da vizinhança que ele e os irmãos aprenderam o ofício da pesca, ainda na infância. Zé Guede não parou mais: aos 12, já descia com os parceiros de pesca para o Rio Grande e aos 28, em 1986, comprou sua primeira canoa.
Renomado para além de Jaguaruna, Zé Guede herdou o apelido do pai, de modo que quase ninguém o co- nhece pelo nome de batismo: José Viana. O pescador lidera uma parelha de cerca de 20 homens, um contingente que pode aumentar na praia conforme a quantidade de pescado trazida pelas redes da embarcação. “No barco vai eu e mais dois. Na tainha a gente faz o cerco e puxa pelas duas pontas. Se tiver peixe, vem puxando pra fora. Quando chega na praia, às vezes tem 50, 100 pessoas para ajudar. É uma festa, um mundaréu de gente”, relata.

Nova geração mantém a herança da pesca artesanal
Maique Ramos, 28 anos, da Praia do Camacho, também em Jaguaruna, trabalha na pesca desde os 10. A pesca da tainha, no seu caso, vem de berço. É uma tradição que começou com o seu bisavô e foi sendo repassada de pai para filho –como herança. Seu avô Gelson é dono de uma parelha com cerca de 20 homens, a Parelha Ramos.
“Acredito que sou a última geração de pescador da minha família. Sou a quarta geração desde meu bisavô nessa pescaria de tainha. Tenho muito orgulho”, comenta Maique, que na parelha do avô Gelson se divide entre as funções de cozi- nheiro e motorista do caminhão que transporta o barco pela praia.
“A pesca da tainha fazemos desde Imbituba até Torres. Mas geralmente elas são sempre localizadas en- tre o Farol de Santa Marta e Jaguaruna”, conta. A exemplo de seu colega Zé Guede, do Campo Bom, o pescador do Camacho compartilha do mesmo entusiasmo com a safra da tainha recém-li- berada.
“A expectativa é muito boa pelas saídas de peixe no Sul, na barra do Rio Grande, o que nos auxilia muito na nossa pesca aqui no litoral catarinense”, aposta.
Para a safra da tainha recém-aberta, todos na parelha de Zé Guede estão otimistas, ainda que nestes primeiros dias o mar não esteja assim para peixe. Entre os pescadores a informação agora corre rápido. Eles trocam notícias por rádio amador e em grupos de WhatsApp. Mas a pesca artesanal conta com outro expediente: o olhar cirúrgico do pescador, que consegue avistar cardume onde para quem não é do mar não há nada além de água e ondas. Daí vem o otimismo deles.
A informação que chega do Sul é de que há muitos cardumes entre as costas do Uruguai e Argentina, à espera, portanto, das condições ideais para iniciar viagem mar acima, rumo ao norte: “No Rio Grande também tem muita tainha. O peixe tá pronto pra sair da lagoa. É só dar o vento sul”. Para isso, é preciso também o frio e um mar um pouco mais agitado. “Mar manso não dá tainha”, ensina Zé Guede.
O pescador conta com a mudança de tempo que se anuncia para os próximos dias para, quem sabe, entrar com o Viana no mar. Uma temporada satisfatória, considerada lucrativa, rende em média 20 toneladas de tainha por barco. Sua parelha, e certamente as demais da região, está ansiosa com o início da safra. O que significa que é preciso ir aonde o cardume está. “Quando não tem por aqui, vamos de Passo de Torres até Imbituba. Tem que correr atrás”, explica. Tudo, claro, de maneira calculada para que os custos não corroam tanto a renda obtida com a venda do pescado.
Da sua rotina diária mar adentro, Zé Guede não esquece o dia em que a força da onda virou sua canoa a remo no Balneário Copa 70, em Jaguaruna. “Quase morremos. Quebrou tudo. O mar tava ruim, encheu a canoa de água, ela virou. Eram seis pescadores nadando, sem colete”, relembra. Só não houve uma tragédia maior porque Zé Guede manteve a calma em meio à aflição e ajudou a conduzir os colegas até a terra firme. “Foi um susto.” (Continua na pág. 4)