11-Gnarus11-Cinema-O seriado historico e a experiência do passado

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Coluna

O SERIADO HISTÓRICO NA CONTEMPORANEIDADE E A EXPERIÊNCIA DO PASSADO Por Rafael Garcia Madalen Eiras RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar o conjunto de seriados históricos produzidos para a televisão e para o serviço de streaming em larga escala no cenário cultural atual, dando destaque para o caso do seriado Vinkins (EUA, 2013). São obras que, de uma forma geral, buscam através de suas narrativas cinematográficas, não somente recontar fatos da história, mas fazer o espectador vivenciar uma experiência de passado no momento presente. De forma que a analise proposta não se debruça sobre a veracidade histórica das narrativas apresentadas, mais na percepção de que na contemporaneidade a disciplina da história perdeu o seu sentido, sua funcionalidade, pois o passado não seria mais referência para se perceber um futuro fechado e certo, como percebe Grumbrecht (2011). Palavras Chaves: Historia – cinema- seriados

E

ste artigo tem como objetivo analisar o conjunto de seriados históricos produzidos para a televisão e para o serviço de streaming em larga escala no cenário cultural atual. Dando destaque para o caso do seriado Vinkins (EUA, 2013), um grande sucesso de audiência e de critica mundo a fora Essas obras, de uma forma geral, buscam através de suas narrativas cinematográficas, não somente recontar fatos da história, mas

fazer o espectador vivenciar uma experiência de passado no momento presente. Um fenômeno popular mundial que marca uma logica contemporânea percebida pelo autor Hans Ulrich Gumbrecht (2011) em que, ao mesmo tempo em que existe um obvio fascínio pelo passado, há também uma perda eminente de um sentido de progresso que funda a disciplina da história propriamente dita.

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Títulos como Roma (EUA/ Itália/ Inglaterra, 2005) produzido pela HBO, narra à trajetória de dois soldados romanos interagindo com famosos acontecimentos na passagem de uma era republicana ao nascimento do império. Além de ser um produto televisivo de enorme sucesso, apresenta uma reconstrução da famosa cidade que dá nome a obra de uma forma nunca vista antes, isso devido às novas tecnologias digitais que permitiram a reconstrução dos locais históricos colocando o espectador virtualmente dentro dos ambientes do passado. Outras obras como The Tudors (Canadá/ Irlanda, 2007) Vinkins (EUA, 2013), The Crown (EUA/ Inglaterra, 2017), Os últimos czares (EUA, 2019), Marco Polo (EUA, 2014), Knightfall (EUA/ Republica Checa, 2017), Frontier (Canadá, 2018), Last Kingdom (EUA,2015), La catedral del mar (Espanha, 2019), Freud (Áustria/ Alemanha/ Republica Checa, 2020), Coisa mais linda (Brasil, 2019) e muitas outras, sequem essa tendência criando uma relação de imersão na historia.

São obras claramente vinculadas ao mercado, e que se desenvolvem em torno do simulacro,1 numa “espécie de ‘esfera autônoma’ da cultura” (RAMOS, 2016, p. 455), num estilo que ressignifica os gêneros (western, horror, musical, ficção científica etc.), ao lidar com “a mercadoria filme como produção de série, com traços estéticos cristalizados, sobre os quais o espirito pósmoderno se debruça com avidez” (RAMOS, 2016, p. 465). Diferente dos filmes históricos contemporâneos, que tem as mesmas características estéticas e narrativas que circundam essa percepção de simulacro, o seriado ganha um poder de continuidade em que a experiência se prolonga de forma sequenciada, ao mesmo tempo em que busca prender o espectador em uma experiência mais complexa de narrativa, com vários 1 O conceito de “simulacro”, conforme desenvolvido por Jean Baudrillard em Simulacros e simulações e outras obras. Baudrillard inicia essa obra com uma citação ao livro de Eclesiastes da Bíblia, em que afirma que “o simulacro é a verdade que oculta que não existe” (BAUDRILLARD, 1991)

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GNARUS - 146 níveis de enredos e personagens mais desenvolvidos. Nessa perspectiva o seriado histórico se apresenta como uma obra de ficção que usa do tempo passado como motivo principal de seu desenvolvimento. Ou seja, é uma narrativa que usa dos estudos existentes em relação ao período representado para validar uma postura de suposta verossimilhança e consequentemente reforçando a percepção do simulacro. No entanto, nem toda obra que representa o passado necessariamente pode ser considerado histórica, ela pode somente usar a ambientação do passado como um cenário para um romance ou uma aventura sem se preocupar em interagir com os diversos discursos historiográficos existentes sobre o período retratado. O seriado ou o “filme histórico, por outro lado, interage com aquele discurso fazendo e tentando responder perguntas que a muito tempo circundam um determinado tópico.” (ROSESTONE, 2010, p.74 ). Uma relação importante de se destacar é que esses formatos cinematográficos usam os fotos históricos, ao mesmo tempo em que se permite inventar outros, privilegiando, assim, muito mais as questões narrativas. A invenção no cinema esta em cada fotograma, mudança de período de um acontecimento, diálogos inventados para se entender melhor o personagem, cores de roupas para seguir uma paleta de cor que tenha algum significado importante para a narrativa, ações e gestos alterados por atores na hora da filmagem. Todos os elementos que se unem para gerar o drama. Dessa forma a analise proposta não se

debruça sobre a veracidade histórica das narrativas apresentadas, pois invariavelmente toda obra histórica é uma ficção. Mais na concepção de que na contemporaneidade há a percepção de que a disciplina da história perdeu o seu sentido, sua funcionalidade, pois o passado não seria mais referência para se perceber um futuro fechado e certo, como percebe Grumbrecht (2011). Para o autor o modelo historicista existia como base de previsões e projeções para o futuro que orientavam o homem para sua ação. O marxismo, por exemplo, traz essa ideia da história sendo movida pelos conflitos de classe em um caminho prodigioso para um futuro comunista. “Talvez tenha sido o experimento mais caro da história da humanidade, pois claramente não funcionou. Não estou falando da política socialista, mas da crença de que podemos identificar leis e regularidades na transformação histórica.” (GUMBRECHT, 2011, p.28). Porem, e contraditoriamente a esse movimento, os fatos históricos estão cada vez mais presentes nas mídias digitais e no audiovisual, uma dinâmica dicotômica entre a valorização de um passado sem o sentido de progresso que funda a disciplina da História. Na contemporaneidade surge uma polêmica entre um conceito de modernidade e um de pós-modernidade que acaba por enfraquecer essa convicção de que podemos aprender com o passado. “Não no sentido de dizer que foram os malvados pósmodernistas que abandonaram a história, mas a discussão foi intensa, foi um momento em que, na prática, abandonou-se a crença.” (GUMBRECHT, 2011, p.31) A principal polêmica estaria no texto do filósofo Jean-François Lyotard citado por Gumbrecht (2011). Para ele

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GNARUS - 147 não existiria uma história única, representada por uma narrativa, e sim múltipla histórias locais e regionais. “Para cada história existem uma infinidade de representações. Isto quer dizer que, de repente, o historicismo já não é mais a solução, já não consegue mais absorver a infinidades das representações” (GUMBRECHT, 2011, p.38). Característica pós-moderna que acaba por valorizar muito mais uma cultura da presença do que do sentido, como um importante conhecimento epistemológico que interpreta o mundo (GUMBRICHT, 2010) É de fundamental importância, nessa trajetória, perceber dois pontos inerentes a discussão da contemporaneidade: o que se define como o pós-moderno, e a confusão conceitual entre Pós-Modernidade e pósmodernismo. Para Ítalo Moriconi (1994) o prefixo “pós” surge como referente a um período posterior, mas em um diálogo constante com a modernidade; não a sua simples negação, mas a necessidade de repensá-la: “O pós refere-se ao balanço dos resultados dessa aventura e assinala um deslocamento e uma inversão em relação a suas metas iniciais, mas assinala também sua irreversibilidade.” (MORICONI, 1994, p. 25). Movimento que traz para o mundo uma temporalidade diacrônica e fragmentada, desconstruindo todas as explicações totalizantes e fixas do tempo moderno, em que os dogmas e as teorias passam a ser relativizadas e perdem sua força. Segundo o autor, uma das causas foi o fato de o capitalismo não se dar de maneira uniforme, da mesma forma que o projeto da Modernidade não foi um desejo de todos aqueles que dela participaram.

Já a relação entre Pós-Modernidade e pósmodernismo se dá de forma análoga a relação de Modernidade e modernismo: (...) a modernidade teria começado com a Revolução Industrial, em meados do século XVIII; o modernismo, mais de 100 anos depois, no final do século XIX segundo alguns, no início do século XX segundo outros, com Picasso, Stravinsky, James Joyce etc. Percebe-se que, assim como nem toda a cultura da Modernidade pode ser chamada de modernista, nem tudo é pós-modernista numa época pós-moderna. Da mesma forma, pós-moderno não equivale a contemporâneo, palavra que designa o que é atual, seja pósmoderno ou não. Em nossa época, tudo é contemporâneo, mas nela convivem o tradicional, o moderno e o pós-moderno, por exemplo, nas artes. (PUCCI Jr., 2016, p. 361).

Dessa forma o que Grumbecht evidencia é que a analise do passado para se perceber o progresso para um futuro foi profundamente modificado por esse sentido Pós-Moderno. Onde o futuro é hoje cada vez mais uma ameaça, um risco que toda a humanidade corre. Do mesmo modo, o passado para nós já não é uma realidade que estamos deixando para trás. Tenho a impressão de que ficamos cada vez mais inundados de passado. E acho que muitas vezes temos um excesso de produção de lembranças históricas. Temos tanto um excesso de lembranças históricas que as vezes, me pergunto se existe a cultura de nosso momento, uma cultura do tempo presente. A chamada arquitetura pósmoderna é cheia de lembranças, cheia de citações, cheia de referências; (GUMBRECHT, 2011, p.39-40)

De forma bastante semelhante o historiador Fraçois Hartog (2003) entende esse fim do sentido histórico através do que ele vai denominar de presentismo. Um processo que evidencia a quebra com um regime

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historiográfico moderno. ”O fim deste regime moderno significa que não é mais possível escrever história do ponto de vista do futuro e que o passado mesmo, não apenas o futuro se torna imprevisível ou mesmo opaco. Deve ser aberto” (HARTOG, 2003, p.11) Exemplos desta ideia estariam presentes, segundo Hartog, em algumas atitudes na contemporaneidade. Como a relação para com a morte, a extrema valorização da juventude, todas as técnicas que tendem a suprir o tempo, ou estendê-lo, através do computadores e novas mídias que fazem do presente um espetáculo à parte. Ocorre, então, uma extrema valorização do passado, mas como fascínio e não mais com o intuito de aprender. Ou seja, a própria disciplina da historia parece perder sua funcionalidade. E o fenômeno midiático dos seriados que se relacionam com os fatos da historia são exemplos deste processo. Pois

através de uma estética pós-moderna, que explora a percepção do simulacro, há uma busca pela experiência do passado, e não um sentido crítico de relacionar os fatos com o presente para projetar novas possibilidades futuras. O que ocorre é um cinema de presença que se sobrepõem a idea de sentido dialético existente em uma estética moderna. O caso do seriado Vinkings é um excelente objeto de analise, neste sentido, pois trás os elementos abordados acima de forma bastante explicita. A obra é classificada como um drama histórico, que tem como pano de fundo a disputa e conquista dos Vikins, povo nórdico que dominou territórios de leste a oeste da Europa durante a Idade Média. Criada pelo roteirista Michael Hirst para a emissora History, a narrativa acompanha a saga do viking Ragnar Lothbrok (Travis Fimmel) um dos mais conhecidos heróis

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GNARUS - 149 nórdicos lendários e chamado de flagelo da Inglaterra e da França. A premissa inicial se desenvolve na trajetória de Ragnar, um simples fazendeiro, que ganha fama por seus ataques bem-sucedidos na Inglaterra e, mais tarde, se torna um Rei escandinavo, com o apoio de sua família e colegas guerreiros. Hirts, que tem uma origem acadêmica, – se formou na Londons School of Economics e depois estudou inglês e literatura americana na Universidade de Nottingham - é o mesmo criador da também histórica série The Tudors, sobre o rei Inglês Henrique 8º e seus turbulentos matrimônios. Assim ele seque uma trajetória criativa que se preocupa com uma precisão histórica através de detalhes como o bordado nos figurinos á construção dos castelos bretões e os vilarejos do estreito da Dinamarca e a Suécia. Como explica o próprio criador em relação a Vikings, tudo que aparece na imagem vem de uma pesquisa histórica (HIRST apud BARSANELLI, 2019). Pesquisamos sete línguas diferentes, e algumas precisavam ser rejuvenescidas, para terem uma logica dentro dos diálogos, noutras vezes tivemos que entender como eram as pronuncias. Temos acadêmicos trabalhando nisso. Aparentemente eles brigam entre si para decidir como fazer (HIRST apud BARSANELLI, 2019).

O que chama a atenção na postura do criador é que ao mesmo tempo em que Hisrt usa de detalhes históricos em sua estética como legitimação de uma narrativa realista, sua perspectiva é claramente muito mais a da literatura ao não se fixar nas necessidades de uma logica historiográfica. Isso fica evidente quando se recriam línguas, ou quando se juntam personagens que historicamente nunca se encontraram relações recorrentes

em toda a narrativa da série. Nessa logica se cria uma fascinante emergência da historia, mas que o passado não é apresentado de forma complexa e critica. ”Foi minha ideia, por exemplo, dizer que os vikings se ofereciam para o sacrifício, achei que seria interessante para a história. Não sabemos ao certo, mas eu acho que na realidade eles apenas usavam escravos” (HIRST apud BARSANELLI, 2019). Além disso, também há temas, como a religiosidade e a participação feminina na sociedade, que se ligam diretamente com necessidade de uma identificação com a audiência do seriado. Por exemplo, a narrativa cria através de características que seriam nórdicas uma espécie de feminismo que surge com força em algumas personagens, como Lagertha ( Katheryn Winnick), uma guerreira e dominadora, e Torvi (Georgia Hirst, filha do criador), que se liberta do marido agressivo. Em uma clara tendência do criador de buscar “que os desafios delas fossem assuntos contemporâneos, com que mulheres de hoje pudessem se relacionar” (HIRST apud BARSANELLI, 2019). As obras históricas acabam não demostrando os fatos com uma rigidez acadêmica, mas usa das metáforas cinematográficas como forma de dialogo com a tradição historiográfica. Como ressalta Rosenstone (2010) isso é possível perceber já em filmes do diretor Russo Serguei Eisenstein como Outubro (1912) ao retratar o início do socialismo soviético no uso de diversas metáforas para encaixar as coisas no seu quadro temporal. Ele coloca em cada imagem, em cada movimento, em cada ângulo de câmera e em cada corte, ideias que explicam o contexto histórico que o filme se propõe.

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GNARUS - 150 Essa mesma logica se dá para outros diretores contemporâneos que trabalham a historia em suas narrativas como Oliver Stone em filmes como Nascido em 4 de julho (1989), JFK- a pergunta que não quer calar (1991), Nixon (1995), Alexandre ( 2004), entre outros. Para Rosenstone o diretor traz em seus filmes não só acontecimentos históricos, mas ousa trabalhar com o discurso historiográfico em seus significados estéticos e metafóricos. (ROSENSTONE, 2010). Ou seja, estes cineastas conseguem criar sentidos e discursos através de suas estéticas que dialogam de forma critica e a até dialética com a realidade em que seus discursos são processados. No caso do seriado Vikings, apesar da obra não se desenvolver em uma estética de fantasia, pois é uma narrativa hiper-realista, ela é uma simulação em que há um fascínio por parte do espectador, estudante ou não da historia, ao apresentar de forma realista e detalhista objetos e locais do passado. Porem o que se descortina na maioria desses seriados históricos voltados para uma logica de máxima audiência, não seria a valorização desse discurso histórico, mas sim o uso do passado como uma espécie de “chamariz de espectador”, em que o mais importante é trazer a experiência do passado através de técnicas cinematográficas do que discutir as problemáticas históricas. Dinâmica que uma estética cinematográfica moderna consegue articular ao diluir a ilusão da narrativa naturalista. A linguagem cinematográfica clássica foi sendo desenvolvida principalmente por americanos até mais ou menos 1915 como herdeira das tradições narrativas do teatro clássico e do folhetim do século

XIX, e se desenvolve como uma indústria do entretenimento de massa, tendo em Hollywood seus principais modelos, em que o fio condutor narrativo se dava pela a primazia da ilusão e do desenvolvimento do drama de forma naturalista. Com o surgimento do Cinema Moderno, no pós Segunda Guerra – paradoxalmente o momento em que a pós-modernidade se apresenta – se evidencia uma estrutura em que o fluxo narrativo ou, era diluído, ou, até mesmo quebrado. O cinema moderno seria um passo além dessa arte de ilusão e se apresentaria com a quebra da experiência passiva do espectador em um movimento modernizante, segundo um ponto de vista relacionado a Gumbrecht (2010); seria justamente o predomínio de uma cultura do sentido sobre a experiência; sobre a vivência de outro mundo e uma interação com o mundo real, colocando, assim, no fluxo histórico, principalmente do ponto de vista dialético, o filme. Um cinema “engajado em uma produção de mundo que não se limita em um ponto de vista sobre questões específicas, mas como produtor de modos de pensar o mundo em si” (MIGLIORIN, 2016, p. 19). Segundo Gumbricht (2010) o advento da Modernidade, valoriza uma cultura do sentido, baseada na interpretação, na hermenêutica, na metafísica, se contrapondo a uma cultura da presença, baseada nas experiências do corpo e tudo que pertence à materialidade. Havendo, assim, a prioridade da dimensão temporal sobre a dimensão espacial, ”numa cultura que deixará de centrar-se num ritual de produção de ‘presença real’, passando a se basear na predominância do cogito.” (GUMBRECHT, 2010, p. 50), tanto

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GNARUS - 151 que é na Modernidade que a dimensão da historicidade, se sobrepondo ao que seria um tempo mágico, circular uma simples justaposição entre começo e fim, inverno e primavera, morte e renascimento. Imagens que se movem “no círculo biocósmico do ciclo vital produtor da natureza e do homem [...]. A noção implícita do tempo contida nessa antiquíssima imagem é a noção do tempo cíclico da vida natural e biológica” (BAKHTIN, 1993, p. 22) Assim, para o autor, a pós-modernidade seria a prevalência de uma cultura de presença sobre a de sentido. Seguindo essa linha de raciocínio o que seria o cinema pós-moderno, seria, justamente, o fim da necessidade das características modernas, ou até a incorporação das quebras de linguagem no fluxo comercial e mercadológico, onde não existiria mais um tipo fechado de linguagem, mas exercícios estéticos. Características como a fragmentação, o pastiche, o hibridismo, a hipertextualidade, e principalmente, a releitura de códigos já utilizados em vários momentos da história do cinema, como a utilização da narrativa clássica hollywoodiana, das construções de ruptura da Nouvelle Vague” francesa, ou as tradições neo-realistas italianas. Assim, o hiper-realismo surge como forte característica do cinema mais convencional, principalmente de filmes e séries comerciais norte-americanos que usam das novas tecnologias para simular uma realidade impossível cada vez mais crível. (...) em uma sociedade cujas narrativas são fragmentadas e dispersas, o cinema precisa se adaptar ao aparato sensorial desse novo espectador, o que motiva o uso de estratégias

de manipulação (ou intensificação) das relações de tempo/espaço, tornando as narrativas mais atrativas que a própria fruição corriqueira de suas vidas. Esses espaços de culto, como a igreja, os shows e o próprio cinema, passam a fazer uso de estratégias de espetacularização, seja no dispositivo, com recursos imersivos de tecnologia, seja na linguagem, com alterações nos elementos formais das obras. (JUNIOR, 2019, p.112)

Por outro lado esse movimento também gera outro tipo de cinema em que a diferença se encontra no próprio uso das inovações tecnológicas, não só para recriar esse simulacro, como também tornar a narrativa antinaturalista, e inserindo a presença do espectador através do uma característica pessoal e lúdica, talvez uma das poucas formas de separar, hoje em dia, o filme comercial do filme artístico. Desta forma os seriados percebidos neste artigo circundam o universo comercial e por tanto sequem o padrão do simulacro hiperrealista em que os fatos históricos surgem como espetáculos midiáticos sem um objetivo concreto de critica, ou uma relação dialética com o passado. Em Vikings, afinal de contas, o mais importante não é como as dinâmicas desse passado nos influenciam hoje, mas sim a própria presença deste passado no presente, na experiência do simulacro pós-moderno. Isso pode ser percebido também na forma como a violência se apresenta nesses seriados, de forma exageradamente explicita e muitas vezes chocante, muito mais com o objetivo de impactar o espectador do que o fazer refletir sobre o ato. Gumbrecht percebe que em uma cultura de parecença o corpo, a relação entre os seres humanos seria uma relação em que a violência é inerente, pois

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GNARUS - 152 estaria expressa numa dinâmica de “ocupação e no bloqueio do espaço pelos corpos contra outros corpos” (GUMBRECHT, 2010, p. 111), da mesma forma que, se o espaço é percebido como a principal dimensão da presença, em uma cultura de sentido o tempo seria primordial, “pois leva tempo para concretizar a ações transformadoras por meio das quais as culturas de sentido definem a relação entre os seres humanos e o mundo” (GUMBRECHT, 2011, p. 110). Para as culturas de sentido, em contrapartida, é habitual (talvez seja mesmo obrigatório) adiar infinitamente o momento da verdadeira violência e, assim, transformar a violência em poder, o que poderemos definir como o potencial para ocupar ou bloquear espaços com corpos. Quanto mais a autoimagem de determinada cultura corresponde à tipologia da cultura de sentido, mais ela tentará ocultar e até excluir a violência como o mais avançado potencial de poder. (GUMBRECHT, 2010, p. 110-111).

Quando o ato da violência se esconde, estratégia muito utilizada em filmes de abordagens modernas se cria um símbolo. Um esforço estético de inserir as ideias filmadas num tempo histórico, em que todas as representações se debruçam sobre o esquema temporal passado-presentefuturo. Muito diferente quando se assume a violência como estratégia de presentificação, de experiência, onde não existe essa dialética entre o ver e o não ver. Ou seja, a estética pósmoderna se esvazia do sentido Histórico em vários sentidos gerando o que pode entendido como uma relação pseudo-histórica. Outro caso bastante particular é o seriado Freud (2020) que utiliza o gênero criminal através de uma forte reconstrução histórica da Cidade de Viena, no século XIX. A narrativa

apresenta Sigmund Freud como um jovem psicanalista que desenvolve suas teorias revolucionárias enfrentando uma forte oposição de seus colegas do meio acadêmico. No entanto, o que move a narrativa não é a criação das teorias freudianas, mas sim uma trama policial que se inicia quando o jovem psicanalista se une a uma vidente e a um detetive de polícia para investigar uma serie de crimes. Por tanto, a série trabalha exatamente como em Viking, uma dinâmica em que a violência, o sexo, os fatos históricos e invenções, buscam colocar o espectador em contato com o universo apresentado de forma que a narrativa seja assimilada facilmente ao espectador comum. Freud é uma narrativa de suspense, da mesma forma como Vinkngs um drama. Relação muito parecida também ocorre com o caso brasileiro Coisa mais linda (2019) que dentre as series citadas de longe é a menos representativa, por não apresentar os lugares e ambientes históricos de forma a detalha-los com precisão e riqueza como os outros exemplos. Isso basicamente devido ao baixo orçamento e as complexidades de se produzi o audiovisual no Brasil. Mas, no entanto, ela merece uma breve analise por se tratar de uma tentativa nacional de trabalhar uma narrativa histórica na buscar de uma parecença do passado. No trama a vida de Maria Luiza (Maria Casadevall), uma moça conservadora que vive em São Paulo no final da década de 50, toma um rumo completamente diferente quando seu marido desaparece ao viajar para o Rio de Janeiro para montar um restaurante. Ela seque os rastros do marido e muda completamente sua vida abrindo uma casa

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GNARUS - 153 noturna em terras cariocas. Descobrindo, assim, um novo mundo na companhia de mulheres feministas e liberais e ao som da Bossa Nova. Novo mundo característico do momento histórico representado, que gerou a Bossa Nova, o Cinema Novo, toda uma áurea de mudanças que vai acarretar em 1964 no golpe militar. No entanto a narrativa não discute essa complexidades históricas e sim se debruça sobre o drama da independência feminina, através de uma perspectiva contemporânea de empoeiramento. Desta forma esses seriados se apresentam como um fenômeno na contemporaneidade, principalmente pelo impulso de produtividade que a surgimento dos serviços de streamings trouxeram para o mercado audiovisual mundo a fora. Um fenômeno que como já visto, seque as características de uma mídia voltada para o espetáculo do hiper-realismo, em que a estética busca uma valorização de uma cultura de presença. Um movimento que também seque a perspectiva de Gumbrecht( 2011) no sentido de dialogar com a percepção pósmoderna de que cada vez mais o sentido do progresso histórico se desconstroem, como se no presente esse passado fosse barrado pela espetáculo midiático, impossibilitando a vinda de um possível futuro. E esse movimento pode ser percebido principalmente devido às relações cada vez mais intermediadas pelas logicas das mídias digitais e do mundo virtual, que inserem o individuo em uma nova experiência de mundo. A interatividade virtual é um lugar em que o tempo logico e histórico não existe como na vida ordinária. Um problema que se desdobra em vários outros: como a possível descrença na ciência, um problema cada vez

mais frequente no Brasil contemporâneo; e até a proliferação dos tão debatidos Fake News. Estariam esses seriados, apesar de erguidos sob a pesquisa histórica, seguindo uma logica que também é a do Fake News, ao exemplo do seriado O mecanismo (2018) que recria um passado muito recente do Brasil, de forma descomprometida com a realidade critica e histórica gerando conhecimentos e conclusões falsas a respeito do próprio processo histórico? A resposta parece ser mais complexa do que parece. Pois o problema em si não esta na produção dos seriados, que através de uma estética de presença buscam novas formas de lidarem com as dinâmicas do mundo atual, mas sim em como consumimos esse audiovisual. O grande problema ainda reside em uma educação critica, que deve ser consolidada dês da educação básica, e que no Brasil e em países periféricos como um todo são problemas estruturais da própria questão democrática.

Rafael Garcia Madalen Eiras é Mestre pela UNIGRANRIO, Pós-graduação Latus Senso em Fotografia, Memória, e Imagem pelo IUPERJ, Licenciado em História pela UCAM e Bacharel em Cinema pela UNESA.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: contexto de François Rebelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora UnB, 1993. BARSANELLI, María Luisa. Entrevista: ‘Não gosto de fantasia’, diz criador da série ‘Vikings’: Disponivem em: < https://www1. folha.uol.com.br/ilustrada/2019/01/nao-

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GNARUS - 154 gosto-de-fantasia-diz-criador-da-serie-vikings. shtml> Acesso em: 10/04/2020 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de “Depois de aprender com a história”, o que fazer com o passado agora? In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 25-42.

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