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O “CANTO DOS MALDITOS”: COMPREENDENDO HOSPÍCIOS BRASILEIROS DO SÉCULO XX A PARTIR DA ESCRITADE AUSTREGÉSILO CARRANO BUENO

RESUMO: Utilizando-se do livro autobiográfico “Canto dos Malditos (1990)”, de Austregésilo Carrano Bueno (1957-2008), esse texto traz uma sucinta análise das experiências do autor enquanto estava internado em clínicas psiquiátricas. Sendo assim, são trazidas discussões acerca do tratamento recebido pelos pacientes nesses locais, bem como fragmentos de sua trajetória de vida.

Palavras-chave: Austregésilo Carrano Bueno; Canto dos Malditos; Hospícios; Bicho de sete cabeças.

Introdução

Austregésilo Carrano Bueno nasceu em 15 de maio de 1957, na cidade de Curitiba, Estado do Paraná. Nessa localidade, viveu uma infância e adolescência tida comumente como normal para qualquer pessoa dessa faixa etária. Ou seja, estudando, conhecendo novas pessoas, tendo as primeiras experiências amorosas, enfim, experimentando e usufruindo de sua liberdade.

Em 1974, aos dezessete anos de idade, Austregésilo foi levado pelo pai ao hospital psiquiátrico do Bom Retiro, em Curitiba; posto isso, segundo ele, o pai havia falado que iria visitar um amigo que estava internado. Porém, ao chegar

naquele local, enfermeiros o levaram de forma forçada para dentro da instituição, e ao indagar o que estava ocorrendo, o enfermeiro revelou ao menino o motivo pelo qual ele ficaria internado, sendo a pedido do pai dele, que supunha que Austregésilo era viciado em maconha, já que havia sido encontrada uma “buchinha” de maconha em suas roupas.

Austregésilo relata, em seu livro, que não era viciado em maconha, apenas fazia uso de vez em quando, e afirma que isso não afetava em nada a sua vivência. Mesmo assim, apesar de tentar explicar para a equipe dirigente, ele não foi ouvido. Pode-se entender que, dentro dessas instituições, a relação e o diálogo entre corpo médico, dirigentes e pacientes eram feitos de forma bastante autoritária, haja vista que o

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paciente deveria acatar todas as ordens e ainda corria o risco de ser punido caso contrariasse alguma decisão.

Com o passar dos dias, o escritor decidiu escrever como era a sua rotina dentro dessa instituição, relatando tanto as relações do corpo médico e dos dirigentes com os pacientes quanto o tratamento que era oferecido dentro daquele local. Sendo assim, surgem os primeiros manuscritos, os quais, posteriormente, seriam publicados no seu livro intitulado “Canto dos Malditos (1990)”.1

Correlacionado ao livro ser intitulado de “Canto dos Malditos”, de acordo como autor, se tratava do local dentro da instituição em que ficavam os pacientes crônicos, ou seja, aqueles que já estavam ali há muitos anos e que não teriam nenhuma previsão de quando iriam sair para o lado de fora dos muros do hospício. Aquele poderia ser entendido como “(...) o espaço em que os crônicos se amontoavam, vegetando ou deixando aflorar sua agressividade; era a segregação no interior da segregação”. 2

pensar durante aquele período”.3

Ou seja, todo indivíduo que ia de encontro àquilo que a sociedade impunha como sendo normal corria o risco de ir parar em um desses locais. Sendo assim, conforme supracitado, o autor havia sido internado por causa do uso de maconha, já outros pacientes possuíam vício em bebidas alcoólicas, cocaína ou outras drogas. Esses locais também contavam com pessoas que possuíam algum distúrbio mental, desde os mais leves até os mais complexos.

Inicialmente, o autor discorre que existia uma ampla gama de pessoas que eram alocadas naquela instituição, visto que “(...) eram utilizadas também para agrupar um grande número de pessoas que não se encaixavam naquilo que a sociedade ditava ser o comportamento correto de agir e/ou

1 Ressalta-se que, o livro foi censurado algumas vezes por causa de processos que a família de um médico paranaense moveu contra o autor. Para saber mais, acesse: https://www. gazetadopovo.com.br/caderno-g/justica-censura-livro-decuritibano-que-ja-virou-filme-a0igrlkbplkz7o7cthjhu830u/.

2 FERNANDES, Jaqueline Alves. A constituição do sujeito em canto dos malditos, de Austregésilo Carrano Bueno. Dissertação de mestrado em Estudos Linguísticos, Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia – MG, 2010. Disponível em:< Acesso em: 24. Set. 2022, p. 132.

Ao conhecer mais o hospital psiquiátrico de Bom Retiro, o autor se depara com outros internos que se encontravam na mesma situação, ou seja, que não possuíam nenhum tipo de doença mental. Posteriormente, ele relata que estava recebendo altas doses de medicamentos. Em relação ao tratamento, o autor revela que, já no início, identificou que este era feito de maneira autoritária pelos funcionários, os quais não se preocupavam muito, por exemplo, com a higiene do local e de seus internos. Além disso, outros pacientes relataram que isso era apenas o começo, pois existiam outras “formas de tratamento” bastante temidas por eles, como o uso do eletrochoque.

Mas um episódio lhe chama atenção, [...] hoje é quinta-feira, o hospício está mais alegre. Dia de visitas. Após o café, fila no banheiro. Muitos riem esperançosos. Tomam banho e colocam a roupa de domingo. Alguns enfermeiros dando banho naquele crônico incapacitado que passa os dias lá dentro, urinado e cagado. Mas hoje

3 SOUZA, Edivaldo Rafael. Do lado de dentro do hospício: a escrita em forma de denúncia de Nellie Bly e Maura Lopes Cançado. Revista Rumos da História, Vitória, v.9, p.130-145, 2019. Disponível em: Acesso em: 24. Set. 2022.

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ele tem visita, é dia de banho.4

No que se refere ao modo como as pessoas do lado de fora viam os internos que estavam do lado de dentro do hospício, Carrano discorre que [t]udo realmente era uma grande produção. O espetáculo parecia uma estreia de uma peça de teatro. Os mínimos detalhes eram lembrados. O grande cenário era lá fora. O interior do pavilhão é proibido a visita de estranhos, poderiam prejudicar o andamento do valioso tratamento.5

ao que era compreendido como um protocolo de tais instituições, já que, primeiramente, o interno era recebido e inserido no local, para, então, o próprio sistema fazê-lo pensar que ele era parte integrante e que pertencia ao novo ambiente.

Ademais, funcionários agiam de forma gentil e tranquila com os visitantes, bem diferente da forma autoritária que agiam do lado de dentro. Inclusive, alguns eram recompensados pelos visitantes.

O espetáculo acontecia para o agrado de todos, ou melhor, dos ilustres visitantes, que a direção do sanatório faz questão de impressionar. Ao interno, não sobram muitas chances de ser ouvido – um lugar de tanta beleza e tranquilidade, impressiona tanto que a família toda quer ficar internada no seu lugar.6

Todavia, quando se encerrava o horário de visitação, o hospício retornava àquele mesmo ambiente deprimente, que buscava de todas as formas o adestramento de seus pacientes. Assim, era mais uma semana que se iniciava com todas as etapas de “tratamento”, e que o interno estaria ali vulnerável a sofrê-las.

Nas primeiras semanas, Austregésilo não recebeu visitas, em decorrência de orientação da própria instituição. Isso pode estar correlacionado

4 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São

Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 58.

5 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 59.

6 Opus citatum.

Posteriormente, ele descreve a sua primeira experiência em relação ao uso do eletrochoque, que, de acordo com o autor, foi levado até uma sala pelos enfermeiros, que o seguraram e lhe aplicaram o procedimento. No outro dia, pela manhã, ele relata que “[a] dor de cabeça era muito forte, meu peito também doía e muito. Eu havia babado. Eu estava todo babado... E as dores, eram tantas... Meus pensamentos, todos embaraçados”. 7

O autor revela que o tratamento com choque era feito às segundas-feiras, o que lhe gerava bastante desespero já aos domingos, de pensar o que lhe iria ocorrer no dia seguinte. Sendo assim, o autor descreve que se sentia como “(...) um animal ferido e acuado, preso naquele quarto. Um garoto de dezessete anos, espinhas na cara, barba nem pronunciada. Preso, esperando o choque!”.8

Sobre a utilização do eletrochoque, Lougon enfatiza que “[e]ste tratamento, bastante temido pelos internos, tinha também um uso disciplinar, além da chamada indicação médica, podendo ser aplicado naqueles que transgrediam as regras de conduta”. 9

7 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 67.

8 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 68.

9 LOUGON, Maurício. Psiquiatria institucional: do hospício à reforma psiquiátrica. 20. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. (Coleção Loucura e Civilização), p. 89.

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Após a sessão de eletrochoque a qual foi submetido, o autor discorre que pensou da seguinte forma: “[d]omingo, já poderia receber visitas. Vou relatar tudo aos meus velhos. (...) Eles não devem saber que estou tomando choque. Vão ter que processar esse médico do caralho! Amanhã... eles vão me tirar daqui!”.10

de que a equipe médica e/ou a equipe dirigente não ouvia nem pacientes nem familiares sobre como iriam agir nessas instituições.

Sendo assim, no dia da visita, Austregésilo conta que pediu para os familiares lhe retirarem do hospício, visto que estava sofrendo, inclusive, com sessões de eletrochoque. Apesar disso, os familiares disseram que ele tinha que ter paciência para o tratamento funcionar e que iriam falar com os médicos para não lhe aplicarem mais eletrochoque.

Na segunda-feira, ele estava confiante de que não iria ter mais sessões, já que sua família o havia prometido que iria conversar com os médicos, no entanto, ele diz que aconteceu tudo da mesma forma das semanas anteriores, de acordo com Carrano,

“o mesmo martírio, dores, vômitos, e até diarréia, o que não tinha acontecido nos outros dias de aplicação. Na terça-feira, levantei mal-humorado, revoltado com minha família”. 11

Depois de vários meses internado recebendo aquele “tratamento”, o autor expõe que familiares lhe retiraram daquele local, no entanto, a reclusão em seu quarto fez com que pessoas próximas começassem a julgá-lo cada vez mais. Muitos não entendiam que era o tempo que passou no hospício que o havia deixado daquela forma. Ele relata que “[o]s comentários na Vila Esperança eram um só: ‘o filho da dona Maria está louco, não sai do quarto nem pra cagar – viram só o que a maconha faz? Deixou o rapaz louco”. 12

Correlacionado ao fato de o corpo médico não modificar o seu tratamento, entende-se que pode haver algumas hipóteses. Dentre elas, nesse período, como de costume, os familiares dos internos eram induzidos a acreditar que o tratamento deveria continuar, pois só assim o paciente iria ser “curado”, ou até mesmo a casos

10 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 81.

11 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 88.

Toda aquela dificuldade de readaptação a sua rotina do lado de fora do hospício fez com que, aos poucos, ele se fechasse cada vez mais e ficasse indiferente a toda aquela situação, tanto que, após esse período de reclusão, a família decidiu perguntar a ele se ele queria ser internado novamente, e ele concordou. Austregésilo Carrano Bueno discorre [a]lguns crônicos me rodearam, diretos aos meus cigarros. Sentia-me bem, estava entre iguais. Ninguém cobrava nem criticava. Cada qual com seus problemas e seu próprio mundo. E eu também estava criando o meu próprio mundo. Entendia, agora, os do canto dos malditos. Fugiram das cobranças, das satisfações, das obrigações, das normalidades. Dentro de seus ostracismos, eram o centro, o todo era eles, o ponto sobre o qual tudo girava. Intocáveis frente a tudo e a todos. Não se machucavam mais.13

Essa fala do autor pode ser entendida como

12 Opus citatum.

13 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 95.

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uma forma de que, após passar por todas aquelas experiências da sua primeira internação e após retornar ao hospício, ele se sentisse como se estivesse entre seus iguais. Esse estigma, feito por pessoas em relação aos pacientes dessas instituições, acabava contribuindo para que muitos passassem a se sentir pertencentes a esses locais. Quanto à questão do estigma, para Goffman, “[a]ssim, mesmo que se diga ao indivíduo estigmatizado que ele é um ser humano como outro qualquer, diz-se a ele que não seria sensato tentar encobrir-se ou abandonar ‘seu’ grupo”. 14

Depois de mais três meses internado, ele retorna a sua casa. Carrano revela que “[e]u estava diferente, não ria mais nem era aquele garoto alegre e cheio de sonhos. Não falava muito, tinha dificuldades em comunicar-me com todos”. 15

“[j]á se comentava em achar outra instituição psiquiátrica para me internar. Mas agora eu recusava. E às vezes achava que meu lugar era dentro de um hospício mesmo. A confusão era tanta no meu interior...”. 17

A partir desse momento, o autor decidiu ir morar no Rio de Janeiro, no entanto, a sua estadia nessa nova cidade também seria conturbada, tendo em vista que se encontrava agressivo. Nesse ínterim, realizava acompanhamento com uma psicóloga.

No que concerne a essa fala, identifica-se que, no início do livro, ele explica a respeito da vida descontraída e cheia de sonhos que levava. Posto isso, percebe-se que o hospício o havia transformado completamente, de forma negativa.

Em outro episódio, ele acaba revelando que “[m]uitas vezes pensava em acidentarme propositadamente, aleijar-me, ou em matar-me. Tudo era só confusão dentro da minha mente... Efeitos e efeitos dos quilos de comprimidos e dos eletrochoques”. 16

Além disso, ele estava trabalhando. Em certo momento, envolveu-se em uma briga e acabou indo parar em uma delegacia. Em algum momento durante as discussões entre Austregésilo e o delegado, descobrem que ele já havia passado por instituições psiquiátricas. Diante disso, foi levado em um camburão, “[s]ó que esses guardas usavam uniformes brancos. Eu estava sendo internado no Hospital Psiquiátrico Pinel, em Botafogo. Não podia ser verdade! Meu pesadelo voltara”. 18

14 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988, p. 135.

15 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 97.

16 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 99.

Essa atitude dos policiais pode ser entendida pelo ponto de vista de que, para eles, se o indivíduo já tivesse frequentado esse tipo de instituição, ele possuía algum distúrbio, sendo assim, na percepção da sociedade, o mais correto seria internar novamente o paciente, já que, o mesmo não havia se recuperado. Isso estava ligado à questão do estigma e da distribuição de rótulos que eram atribuídos aos pacientes e expacientes de hospícios. Quanto às internações, de acordo com Lougon, “à autoridade policial ou jurídica, instância

17 Opus citatum.

18 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 104.

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Narra também que

estas que, como atestam os prontuários, são, junto com as famílias, os maiores encaminhadores de pacientes para internação”. 19

Após chegar na instituição, “[e]m uma sala, mandou-me tirar as roupas e vestir um daqueles uniformes. Colocou as minhas roupas num plástico, anotando meu nome num papel e deixando-o dentro”. 20

“[à]s onze e pouco da manhã, fui conhecê-lo. Em menos de cinco minutos, perguntou meu nome e rabiscou na ficha. Fui diagnosticado”.22 Sobre o atendimento médico aos pacientes, geralmente era feita de forma “(...) meramente burocrática, não permitindo que o hospício seja um lugar de conhecimento da loucura e de restabelecimento do doente mental”. 23

O principal intuito dessas mudanças era padronizar os internos e lhes desfigurar o “eu”, ou seja, ali, aquele indivíduo era visto como somente mais um paciente, mais um número perante todos que ali se encontravam. Ligado a essa questão, conforme Goffman, “[a] barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do eu”. 21

Mesmo não sendo como a instituição de Curitiba, já que estava tomando menos medicamentos, o autor conta que viu muitas irregularidades, como agressões a pacientes, insalubridade e falta de higiene em relação a alimentação. Depois, após quinze dias internado, o seu pai lhe tirou e o levou de volta para Curitiba.

Após a chegada em sua terra natal, o seu relacionamento continuou conturbado com sua família. A partir daí, esteve internado em outros hospitais psiquiátricos, dentre eles o San Julian, no qual o autor descreve sobre o primeiro contato com o médico psiquiatra da instituição,

19 LOUGON, Maurício. Psiquiatria institucional: do hospício à reforma psiquiátrica. 20. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. (Coleção Loucura e Civilização), p. 67.

20 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 104.

21 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 24.

Ao pronunciar-se sobre o tratamento recebido nessa instituição, Austregésilo descreve que recebia altas doses de medicamento, injeções e outros procedimentos. A maneira que os pacientes ficavam acondicionados também foi destacada pelo autor, conforme Carrano, [e]stávamos em muitos dentro de pouco espaço. Amontoados como feras contaminadas. As agressões aconteciam a todo o instante. Entre os crônicos, todos se agrediam. A maneira desumana como éramos obrigados a aceitar essa situação nos irritava. 24

Ao final de seu livro, o autor faz uma indagação de como conseguiu, aos poucos, se recuperar, no entanto, se questiona sobre como os internos dos hospícios ainda eram “tratados” no Brasil durante aquele período, ele afirma que [p]ara conscientizar os meus familiares, que ali não era o meu lugar, precisei ir quase ao suicídio. E até hoje não sei de quem seja. A maneira como são tratados os internos, como vivem, realmente... não sei quem mereça ficar ali. 25

22 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 112.

23 MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, p. 458.

24 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 113-114.

25 CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São

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Ressalta-se que, já existiam, nesse período, alguns médicos psiquiatras que indagavam sobre esse método de tratamento invasivo. Tanto que [e]m 1986, é fundado em São Paulo o primeiro CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), e, posteriormente, os NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial). Identifica-se que isso foi resultado de bastante empenho e dedicação dos movimentos da luta antimanicomial, que defendem, em benefício ao doente mental, a adoção de um local de tratamento digno e humano. 26

importante ressaltar que Austregésilo Carrano Bueno faleceu em 27 de maio de 2008.

Após as experiências vividas por Austregésilo Carrano Bueno dentro de hospícios, ele decidiu publicar, em 1989, o livro autobiográfico “Canto dos Malditos”; no entanto, a divulgação e a comercialização da sua primeira edição foi proibida, já que um médico psiquiatra que havia sido citado no livro entrou na justiça para que o seu nome não fosse exposto. Sendo assim, somente algum tempo depois, o livro pode ser novamente publicado e comercializado.

A partir daí, o autor se dedicou à causa da luta antimanicomial,27 participando de diversos eventos e manifestações. Além disso, no ano de 2000, seu livro foi adaptado para o cinema e ganhou destaque através do filme “Bicho de sete cabeças”, dirigido por Laís Bodanzky. Nas filmagens, o ator Rodrigo Santoro interpretou Austregésilo, já o ator Othon Bastos deu vida ao personagem de seu pai, Wilson. Por fim, é

Paulo: Lemos editorial, 1993, p. 126.

26 SOUZA, Edivaldo Rafael de. Do “Diário do Hospício ao Hospício é Deus”: (re) visitando os diários de Lima Barreto e Maura Lopes Cançado. Revista Bilros, Fortaleza, v. 8, n. 17, p. 127-144, jul. - dez., 2020. Acesso em: 24. Set. 2022, p. 132-133.

27 Em 6 de abril de 2001, foi aprovada a Lei Nº 10.216 que, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Para saber mais, acesse:<http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>.

Após a realização desse breve estudo, que analisou fragmentos da vida e da obra de Austregésilo Carrano Bueno, percebe-se que a sua escrita foi de grande valia para que a sociedade brasileira pudesse ter acesso ao que se passava do lado de dentro dos muros de instituições psiquiátricas. Sendo assim, indubitavelmente, o caráter de denúncia do autor contribuiu para que, juntamente com ele, outras pessoas se engajassem na luta antimanicomial e lutassem por um tratamento mais digno às pessoas que possuem algum transtorno mental, além de impedirem que outras pessoas fossem internadas nesses locais.

Edivaldo Rafael de Souza é Graduado em História pelo Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM). Especialista em Metodologia do Ensino de Sociologia pelo Instituto Superior de Educação Ateneu (ISEAT). Especialista em Biblioteconomia pela Faculdade Futura. Especialista em Filosofia e Sociologia pela Faculdade Futura. Especialista em Orientação, Supervisão e Inspeção Escolar pela Faculdade Metropolitana do Estado de São Paulo (FAMEESP). Graduando em Serviço Social pela Universidade Santo Amaro (UNISA). Professor regente de aulas na disciplina de História na Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE-MG).

REFERÊNCIAS:

CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. 2. ed. São Paulo: Lemos editorial, 1993.

FERNANDES, Jaqueline Alves. A constituição do sujeito em canto dos malditos, de Austregésilo Carrano Bueno. Dissertação de mestrado em Estudos Linguísticos, Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia – MG, 2010. Disponível em:< Acesso em: 24. set. 2022.

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GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988.

LOUGON, Maurício. Psiquiatria institucional: do hospício à reforma psiquiátrica. 20. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. (Coleção Loucura e Civilização).

MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.

SOUZA, Edivaldo Rafael. Do lado de dentro do hospício: a escrita em forma de denúncia de Nellie Bly e Maura Lopes Cançado. Revista Rumos da História, Vitória, v.9, p.130-145, 2019. Disponível em: Acesso em: 24. set. 2022.

SOUZA, Edivaldo Rafael. Do “Diário do Hospício ao Hospício é Deus”: (re) visitando os diários de Lima Barreto e Maura Lopes Cançado. Revista Bilros, Fortaleza, v. 8, n. 17, p. 127-144, jul. - dez., 2020. Acesso em: 24. set. 2022.

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