11-Gnarus11-Cinema-Algumas considerações sobre o estudo da relação cinema

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Coluna

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DA RELAÇÃO CINEMA-DOCUMENTÁRIO E HISTÓRIA: VERDADE, REALIDADE ESTÉTICA, ÉTICA E DISCURSO HISTÓRICO 1

1 Os apontamentos aqui apresentados estão sendo desenvolvidos no âmbito da pesquisa O cinema nos lembrará: Cabra marcado para morrer e a memória tornada pública, realizada no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), linha pesquisa cultura poder e representações, sob orientação da professora Dr.ª Icléia Thiesen

Por Renato Lopes Pessanha RESUMO: O cinema documentário é de difícil conceituação, mas grande mobilizador de questões que vão ao encontro da realidade histórica. Ao longo do século XX o documentário passou por diversas clivagens teóricas que lhe conferiram diversos graus de importância. Lido como uma oposição ao cinema de ficção, por supostamente privilegiar uma realidade dita objetiva, hoje o cinema documentário, em decorrência de sua produção, possui novos olhares no que tange a sua representação da realidade histórica. Popularizado graças as novas possibilidades técnicas, como equipamentos mais leves, som direto e a massificação ao acesso de dispositivos que podem produzir e difundir registros audiovisuais com extrema facilidade, o documentário ganha um novo status frente as possibilidades de leituras da realidade histórica. O objetivo do presente artigo é discutir alguns apontamentos elementares quando do estudo e do fascínio que o documentário exerce sobre a ciência histórica.

Introdução

O

filme, seja ele de ficção ou documentário, não pode ser medido por critérios de exatidão ou imparcialidade. Ele é discurso, subjetividade, testemunho e torna-se uma

expressão relevante ou correta de algo que o realizador (diretor, roteirista, produtor) sentiu e pensou sobre o seu tempo, impregnado a narrativa com aspectos de suas concepções pessoais (ROSENFELD, 2002 p.201 e 202). E justamente por partir dessa premissa inferese que há um “ponto de vista mobilizado pela

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narrativa, qual seja, do próprio narrador” (MORETTIN, 2007, p. 52). O século XX é marcado pela presença maciça das imagens, ocupando todos os espaços em nossa sociedade. Assim como as histórias escritas, as imagens também podem gerar informações e formar conhecimentos. Seja enquanto símbolos do nosso universo mental, que eventualmente convertemos em sinais, signos ou alegorias, seja como forma de criarmos representações de uma dada realidade, a imagem guarda um intimo precedente com o ato de pensar (MANGUEL, 2001, p. 20-21). O filme documentário necessita ser pensando para além da objetividade implicada no levantamento das fontes empregadas na sua realização - o que inevitavelmente é verídico ou não - deve-se atentar também para os elementos que permeiam a sua narrativa e que ajudam a desconstruir, desmobilizar, plasmar ou tornar fluídas determinadas concepções sobre a realidade concreta. Partindo dessa perspectiva, o documentário contém uma clara parcela de metodologia historiográfica na constituição de seu discurso. Logo, o documentário pode ser um caso de bom uso – ou de um abuso - da história e da memória. Para além de uma verificação que vise tão somente indicar o que é verdade, e o que é mentira, seja no filme de ficção ou no documentário, faz-se igualmente importante saber como se construíram as possibilidades históricas que permitiram imputar os critérios de verdades ou inverdades empregados na construção na narrativa fílmica. O presente artigo traz algumas das

problemáticas que permeiam a conceituação de cinema documentário, tais como verdade, realidade, objetividade, questões estéticas e éticas e a relação entre o discurso histórico e a narrativa do documentário. Irei expor que o documentário proporciona dispositivos e meios para alcançar determinados aspectos daquilo que conhecemos como realidade e verdade. Por isso a dimensão epistemológica irá fundamentar as justificativas expressas na representação erigida pelo documentário, ou seja, a honestidade da representação quando confrontada com as práticas discursivas baseadas na experiência histórica, modelos de análise e fundamentação teórica.

Verdade, realidade e objetividade no filme documentário Diferente do gênero cinema de ficção, cujas premissas narrativas e elementos conceituais apresentam-se de forma mais bem desenhada, o cinema documentário, por outro lado, desde seus primórdios, tem um horizonte de definição teórico e conceitual muito mais problemático. “O que um documentário documenta? ”, instintivamente a resposta será “a realidade e a verdade”. “O que é a verdade? E a realidade? ”. E assim vamos deslocando o problema de lugar. Contudo, deve-se ressaltar que ao indagar sobre a verdade e a realidade o objetivo não é criar um vale-tudo epistemológico, mas sim questionar o estatuto de verdade presente na ordem do discurso de realidade que estão na representação expressa pelo documentário.

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GNARUS - 129 Dizer que o documentário “documenta o real” parte de um princípio de indexação, no sentido de que aquilo que é mostrado realmente foi captado pela câmera em dado momento (ROSENSTONE, 2015, p. 109). Mesmo quando o documentário faz uso de imagens de arquivos, de certa forma, mostra algo que aconteceu ou aconteceria mesmo que a câmera não estivesse ali para registrar. Ou, até mesmo, pode revelar algo que tentou ser ocultado do domínio público, mas nem por isso deixou de ocorrer, sendo restituído pelo registo da imagem. Pensemos no filme Primárias (Robert Drew, 1960), no qual o documentarista acompanha o John F. Kennedy e o então senador Hubert Humphrey na disputa pela vaga de candidato à presidência dos EUA pelo partido Democrata nas eleições de 1960. Drew acompanha a ambos os candidatos em sua rotina de visitas a cidades, reuniões, distribuição de autógrafos, entrevistas em emissoras de rádio e corpo a corpo com os eleitores. Esse registro realizado pela câmera (aqui sem levar em conta as representações que ambos os políticos fazem de si mesmo), tem seu valor de realidade justamente por tratar da indexação de algo que realmente se deu no plano factual, nesse caso a busca da vaga de candidato à presidência por meio das eleições primárias, processo fundamental na corrida presidencial a Casa Branca. Em Salvador Allende (Patrício Guzmán, 2004), o diretor se vale de imagens de arquivo da época da campanha da Unidad Popular1 em 1970, de Salvador Allende e do bombardeio ao palácio presidencial La Moneda em 11 de setembro de 1973, para abordar aspectos da trajetória política do retratado, nesse caso o ex-presidente morto durante o golpe

militar e como sua história se confunde com a história recente do Chile. Por outro lado, o documentário Noite e Neblina (Alain Resnais, 1955), intercala imagens de campos de concentração desativados, enfocando inclusive os escombros que denunciam as claras tentativas dos nazistas de ocultar as provas materiais da Shoah2 (aquilo que não deveria vir a público), com imagens de arquivos que foram captadas pelos próprios soldados de Hitler e pelas forças de liberação dos países Aliados, expondo o drama do massacre de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Essas imagens acabaram servindo de provas nos julgamentos de Nuremberg (19451946), expondo para o mundo os crimes do Nazismo.

2 A palavra Shoá, em hebraico, significa catástrofe. Preferi por usá-la para designar o extermínio das minorias na Segunda Guerra Mundial em substituição da palavra Holocausto, que dentro da religião judaica faz referência ao cerimonial de sacrifícios sagrados.

1 Concertação de partidos de Esquerda e Centro-Esquerda que elegeu o Salvador Allende presidente do Chile em 1970

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GNARUS - 130 Os três exemplos citados no parágrafo anterior possuem em comum o fato de serem documentários que podemos chamar de históricos. Isso nos traz de volta as relações de indexação das imagens do documentário com a realidade histórica, com o fato, que nos remetem a própria escrita da história tal qual nos assinala Rosenstone: Sem dúvida, há um pouco de verdade na noção de que as imagens nos documentários muitas vezes têm uma relação indexativa com o mundo, mesmo que – como acontece com o “fato” na obra de história escrita – no que se refere ao momento individual ou cena: aquele político de fato se levantou diante de uma multidão e fez aquele discurso de posse; aqueles soldados de fato saíram da trincheira e avançaram pelo campo aberto no meio de rajadas de metralhadoras; aqueles operários de fato fizeram um piquete na frente da fábrica e foram expulsos pela polícia com seus cassetetes; aquele é Adolf Hitler desfilando em carro aberto, saudando a multidão em Nuremberg em 1935. (ROSENSTONE, 2015, p. 109).

Equivocadamente colocado como elemento chave do cinema documentário, contudo muito amplo e complexo para ser tratado nesse breve artigo, o conceito de verdade será exemplificado aqui do ponto de vista epistemológico presente nas asserções falaciosas ou tendenciosas na estrutura narrativa do documentário e que dinâmicas são igualmente comuns no domínio da história e da historiografia escrita. A verdade, ou a representação de algum aspecto seu, pode ser entendida como a forma e a qualidade das questões que o documentário se propõe a abordar. Peguemos como exemplo o polêmico e premiado documentário Fahrenheit 11 de setembro (Michael Moore, 2004), Moore tem

como mote para as suas asserções os ataques terroristas do 11 de setembro aos EUA.3 O sensacionalismo com que o diretor explora o fato faz com que o documentário seja tratado como tendencioso na apresentação de seus argumentos. Isso não anula por si só o fato histórico e social que representou o primeiro ataque terrorista em solo estadunidense bem como suas consequências, desencadeando uma guerra que dura até os dias de hoje e que se somaria a outra guerra dos EUA no Oriente Médio, dessa vez iniciada em 2003 contra o Iraque do então ditador Saddam Hussein.4 Podemos questionar a qualidade das representações expostas nos argumentos de Moore, que se propõe a ser crítico da política externa dos EUA, principalmente da família Bush na condução do país,5 George Bush o filho era o presidente quando dos ataques terroristas do 11 de setembro. O diretor ainda se propõe a mostrar a relação entra a família Bush e a família de bilionários do petróleo da qual Osama Bin Laden é um dos 3 Em 11 de setembro de 2011 quatro aviões foram sequestrados por integrantes do grupo terrorista Al-Qaeda, dando início a uma série de ataques suicidas em solo americano. Dois aviões foram jogados contra as torres gêmeas do complexo do World Trade Center (WTC), em Nova Iorque. Um outro avião foi jogado contra o prédio do Pentágono, em Arlington, no estado da Virgínia. O último avião caiu em Shanksville, Pensilvânia, após passageiros lutarem contra os terroristas. Estima-se que os ataques tenham vitimado quase 3000 pessoas, entre os passageiros dos aviões, pessoas que estavam no WTC, funcionários do Pentágono e membros das equipes que de resgate que trabalharam no WTC. 4 A Guerra EUA e Iraque, desencadeada em março de 2003, contou com uma coalizão de forças multinacionais, liderada pelos EUA, com o intuito de derrubar do ditador Saddam Hussein e parar a produção de armas de destruição em massa pelo país, algo que nunca foi totalmente provado. 5 George Herbert Walker Bush, pai de George W. Bush, foi presidente dos EUA entre 1989-1993, estando a frente do país durante a Guerra do Golfo Pérsico, quando o Iraque de Saddam Hussein invadiu o vizinho Kwait, país rico em petróleo no Oriente Médio, desencadeando um conflito que culminou no aumento dos preços do barril de petróleo, já que a extração e distribuição foi prejudicada pela guerra, inclusive com a destruição de poços de petróleo pelo exército iraquiano.

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GNARUS - 131 principais herdeiros. Líder do que viria a ser o grupo terrorista al-Qaeda, Bin Laden monta esse grupo para combater os soviéticos que estavam tentando conquistar o Afeganistão na segunda metade da década de 80, ainda no contexto da Guerra Fria. Esse grupo foi armado e treinado pelos EUA,6 partindo dessa relação escusa entre famílias e políticas, Moore defende a tese de que a família Bush é a principal responsável pelos ataques do 11 de setembro, e que atitudes como essa refletem a política externa dos EUA, que criam seus próprios inimigos quando estes deixam de atender seus interesses políticos, que podem ser monopolizados por grupos particulares encastelado em empresas e famílias poderosas. É possível criticar o documentário pela manipulação explicita da narração em off,7 que estabelece a relação desses fatos e das imagens indexadas pela câmera com o mundo onde se constitui a experiência histórica, pois o diretor dá ênfase a ao papel da família Bush nos atentados do 11 de setembro, flertando até com a teoria da conspiração, sugerindo que os EUA sabiam do ataque e optou por não fazer nada, ou até mesmo que a CIA atuou indiretamente para isso, pois num passado 6 Em 1989 é lançado o filme Rambo III (Peter MacDonald), no qual o veterano da Guerra do Vietnã, John Rambo, parte em uma missão de resgate no Afeganistão, que está em guerra contra os soviéticos. O filme usa e abusa de estereótipos, tais como os soviéticos perversos e inimigos da liberdade e os estadunidenses bons e defensores da liberdade. O filme aborda a questão das milícias afegãs, que dariam origem a diversos grupos terroristas após a Guerra Fria, tal como a Al-Qaeda de Osama Bin Laden. Vale lembrar que o personagem Rambo tem um longo histórico de defesa dos valores americanos, chegando até mesmo a funcionar como um agente que interfere diretamente na memória recente dos EUA, isso está em suas origens, pois Rambo foi criado com a intenção de contornar o trauma político e psicológico causado pela derrota na Guerra do Vietnã. 7 Voz em off, ou voz over, é um recurso presente no audiovisual para designar uma voz exterior a cena, que comenta ou narra os acontecimentos

recente foram responsáveis por terem armado e treinado o grupo que viria ser a alQaeda. Dada. Dada a forma tendenciosa com que representa alguns aspectos da realidade isso não torna Fahrenheit 11 de setembro menos capaz de ser definido como cinema documentário, ou indicar que seu recorte é menos verdadeiro. O Triunfo da Vontade (Leni Riefenstahl, 1935), não implica tornar um nazista quem o assiste, embora sua visão do III Reich seja extremamente parcial, ainda assim ele traz uma visão sobre o fato histórico que é a Alemanha Nazista. Contudo, suas asserções, a forma como a diretora apresenta suas justificativas, são falaciosas, pois estão condicionadas ao contexto ideológico do nazismo no seio da sociedade alemã e da campanha de endeusamento da figura de Adolf Hitler. Comparando as duas obras

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GNARUS - 132 citadas podem surgir argumentos que alegam tratar-se de uma questão de objetividade, já que o filme de Moore pode contar com recursos estilísticos ou estéticos que tornam, apesar do sensacionalismo, suas ideais mais objetivas em contraposição a dissimulação que o filme de Riefenstahl representa, nunca trazendo objetividade acerca do que o ideário nazista realmente representava. Verdade, realidade, objetividade, esse trígono pode ser muito frágil diante de argumentações mais bem elaboradas. Se a verdade é um estatuto que oscila em contextos históricos distintos, podemos então defini-la como uma simples questão de interpretativa. Sendo assim, O Triunfo da Vontade, bem como a interpretação na qual se assenta a partir de um conjunto de fatos históricos congregados (a sociedade alemã durante o Nazismo), epistemologicamente falando, traz asserções falsas, já que usa da estruturação narrativa empregada pela linguagem do documentário para indexar imagens deslocadas da interpretação histórica mais consistente, a partir de pressupostos teóricos e metodológicos capazes de expor suas fragilidades argumentativas e factuais (o Nazismo como um regime político totalitário e seu peso na deflagração da Segunda Guerra Mundial). Por outro lado, o filme de Moore, apresenta imprecisões na exposição dos dados que compõem sua narrativa, privilegiando somente o impacto que tais informações podem ter na realidade, reforçando até mesmo o senso comum das opiniões correntes em relação a política externa dos EUA, constituindo assim uma estratégia narrativa que apela as emoções do público e gerando polêmicas. O erro, ou a tendenciosidade das asserções de Moore não

está na distorção ou negação do fato, tal como no filme de Riefenstahl, e sim na qualidade dos argumentos que apresenta. Nesse caso, podemos focar a análise do filme de Moore em sua forma narrativa e na indexação que promove das imagens captadas por sua câmera e do quão ético é a sua postura em interpretar esses fatos antes de expôlos ao público. Contudo, mesmo assim, ambas as obras se encaixam na categoria de documentário. A partir desses dois exemplos bem díspares, que envolvem desde a qualidade dos argumentos apresentados até o discurso histórico que os assenta e irá determinar se uma intepretação pode ou não ser verdadeira, necessitamos realizar uma operação de análise do documentário, independente de abordar um tema histórico ou não, que seja capaz de explicitar o leque de possibilidades que estão sendo mobilizados e representados pela narrativa documental.

O documentário versus ficção? Éticas e estéticas O cinema, ou a consolidação da estética cinematográfica, emerge no centro do nascimento da vida moderna,8 por ele ser o 8 Não é da alçada desse trabalho esmiuçar em demasia o sentido histórico da modernidade. Todavia, para efeito de contextualização, estamos aqui trabalhando as noções de modernidade conforme expostas por Marshal Berman e Anthony Giddens. Berman capta no período revolucionário francês a primeira manifestação de uma coletividade em compartilhar uma experiência comum, no caso a experiência revolucionária. O século XX consagraria a expansão do processo de modernizaçindexativoão da modernidade por ser o período que permitiu a mundialização dos principais pilares das sociedades modernas, tais como as instituições políticas liberais, a racionalidade força motriz do progresso técnico, que por sua vez traria o desencantamento do mundo e imprimira nos indivíduos certa ascese necessária para se portar diante da disciplina imposta pelo ritmo

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GNARUS - 133 principal vetor e um dos produtores dessa modernidade. Foi o cinema que reorganizou o olhar sobre a modernidade na virada do século XIX para o XX, destacando o cotidiano das cidades, a expansão do consumismo e da sua contraparte o comunismo, foi o principal meio de publicidade e criador da cultura do star system e louvou as promessas de progresso infinito da modernidade baseado na racionalidade, criou mitos e vendeu sonhos por meio de seus produtos culturais que moldavam o olhar e o comportamento do público. Antes da televisão o cinema foi a principal forma de penetração ideológica e atualmente movimenta tanto dinheiro quanto outras indústrias bilionárias, como a do cigarro e a armamentista. Desde a Revolução Russa de 1917 é tratado como política de Estado, incluindo leis que garantam seu fomento, distribuição e proteção do mercado interno, garantindo fatias para a produção cinematográfica doméstica em diversos países (CHARNEY & SCHWARTZ, 2004). Nos primórdios do cinema os gêneros ficção e documentário não estavam separados. Essa separação, primeiramente em termos mercadológicos, surge de uma implementação industrial em relação a forma como as películas passam a ser produzidas e distribuídas. Na virada do século XIX para XX, tínhamos um cinema de atrações, das sociedades industriais. Giddens complementa a visão exposta por Berman, expondo o fenômeno da regularização das relações sociais em um complexo tecido de tempoespaço proveniente dos centros urbanos, o efeito simbólico dos sistemas de separação que diferenciam espaços (locais onde se realizam determinadas atividades formais) de lugares (investidos de um sentimento de particularidade e informalidade) e o uso progressivo do conhecimento técnico na vida social, transformando não só mercadorias como também a interação e transformação dos próprios indivíduos. Cf. BERMAN, M. Tudo o que é sólido desmancha no ar. Companhia das Letras, São Paulo: 1996 e GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002

popularmente conhecido como nickelodeons, voltado para uma “interpelação direta do espectador, com o objetivo de surpreender”. A preferência do público está em “filmes mais como espetáculo visual do que como uma maneira de contar histórias. Atualidades, filmes de truques, histórias de fadas (féeries) e atos cômicos curtos”. (COSTA, 2012, p. 26). O intuito era surpreender, seja com algum elemento inesperado ou que parecesse arriscado, no caso das performances artísticas, seja com a apresentação de alguma novidade revolucionária da vida moderna, ou imagens que chegavam de lugares distantes e desconhecidos e que parecessem igualmente inóspitos. Essas exibições ocorriam em espetáculos de variedades (conhecidos como vaudevilles), cafés, feiras e museus que exibiam atrações que variavam entre o horror e o cômico, cujas entradas custavam alguns poucos centavos. Os rolos de filmes, com em média cinco minutos de duração, eram adquiridos por um exibidor que tinha liberdade para editar o conteúdo de acordo com a preferência do público, ou de acordo com a programação do local de exibição, que podia privilegiar atualidades ou atrações encenadas em estúdios, que como já citado eram os principais gêneros desse início do cinema (DA-RIN, 2004, p.35). A popularização dessas exibições, majoritariamente frequentadas pelas camadas com menos poder aquisitivo, levou exibidores e distribuidores a repensarem as formas de produção e distribuição desses filmes, procurando criar condições para assentar sua atividade em bases econômicas sólidas, como nos diz Da-Rin

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GNARUS - 134 Este processo começa a se delinear a partir de 1903, quando os filmes deixam de ser vendidos aos pedaços e editados nos mais diversos formatos de programas, passando a ser alugados como produtos prontos, com duração definidas. Ao mesmo tempo, as diferentes tecnologias empregadas nos primeiros modelos de projetores convergem para uma padronização da velocidade, bitola e formato das perfurações, tornando os filmes compatíveis e intercambiáveis. A prática de copiar filmes é inibida pela incorporação do cinema ao sistema de registro de direitos autorais, o que proporciona maior segurança para os investimentos em produção (DA-RIN, 2004, p.35)

O crescimento da demanda, a hierarquização e racionalização da produção desloca o poder das mãos dos exibidores para os produtores que passam a organizar os conteúdos dos filmes. Com isso abrem-se novas possibilidades não só comerciais, como também artísticas para se criar uma gramática cinematográfica, atingindo em cheio as estruturas narrativas dos filmes bem o status atribuindo a então emergente arte junto as camadas mais privilegiadas da população. Costa ressalta que: As tentativas de construir novos códigos narrativos, que pudessem transmitir ao espectador as intenções e motivações de personagens, acontecem paralelamente às tentativas de regulamentação e racionalização da indústria. Entretanto, essas novas estruturas narrativas são ainda confusas e ambivalentes, havendo muitas diferenças entre as estratégias usadas por cada estúdio ou produtora [...]. As estruturas de narrativas mais integradas no cinema de transição são fruto de uma tentativa organizada da indústria para atrair o público de classe média e conquistar mais respeitabilidade para o cinema, mas isso não significou a eliminação do público de classe baixa, que continuou a assistir aos filmes nos cinemas mais baratos (COSTA, 2012, p. 26)

Em 1895 os irmãos Lumière realizaram a primeira exibição de seu cinematógrafo, em Paris, com a exibição de A chegada dos trabalhadores a estação de trem. Seu registro seguinte foi A saída dos trabalhadores da fábrica. Ambos têm em comum o fato de serem um registro do cotidiano, que se convencionou chamar de realidade. Não havia a transição entre planos, mudança de ângulos da câmera, trilha sonora, direção de arte, montagem, as tomadas eram externas e feitas em ambientes naturais. Tomando esses dois registros como base, durante muito tempo convencionou-se dizer que o cinema nasce com o gênero documentário. Essa associação, entre o nascimento do cinema e o documentário, se dava justamente pela indexação, do ponto de vista lógico, que se criou entre um fato real objetivo e a sua captação em todo seu tempo de duração que é restituído no instante da projeção, sem a manipulação de elementos que comporiam um quadro estético para a obra, e que viria a ser a marca do drama de ficção (seja de cunho histórico ou não). Todavia, muitas das atualidades exibidas nos cinemas no início do século XX também podiam ser dramatizações encenadas em estúdios: Nas atualidades, misturavam-se filmagens de situações autênticas com reconstituições em estúdio ou locações naturais, uso de maquetes e trucagens. Do mesmo modo, havia cenas documentais nas ficções. A mistura entre esses dois registros era aparentemente considerada normal pelos espectadores. (COSTA, 2012, p. 31).

O ponto de guinada ocorre a partir do emprego da montagem paralela que permite a regularização da temporalidade no momento da exibição, criando as condições necessárias para que o espectador conceba

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GNARUS - 135 a sucessão imagens atreladas a ações simultâneas, fazendo a relação entre interior, exterior e pontos de vista. O fenômeno da montagem paralela obriga diretores e produtores a reorganizar o espaço de filmagens, concebendo um espaço dotado de organicidade, pensando o posicionamento e movimentação dos atores, das câmeras, a iluminação, elementos de cena e campos de profundidade, tudo para emular um cenário o mais natural possível. Conforme nos diz Ismail Xavier: As imagens estão definitivamente separadas e, na passagem, temos o salto; mas, a combinação é feita de tal modo que os fatos representados parecem evoluir por si mesmos, consistentemente. Isso constitui uma garantia para que o conjunto seja percebido como um universo continuo em movimento, em relação ao qual nos são fornecidos alguns momentos decisivos. Determinadas relações lógicas, presas ao desenvolvimento dos fatos, e uma continuidade de interesse ao nível psicológico conferem coesão ao conjunto, estabelecendo a unidade desejada (XAVIER, 2012, p. 30).

A partir do que foi exposto, podemos concluir que nos primórdios do cinema, é “mais produtivo entender os primeiros gêneros de filmes em torno de assuntos filmados do que como uma distinção clara entre ficção e documentário” (COSTA, 2012, p. 31). Reitero que a oposição entre cinema de ficção e cinema documentário é de caráter essencialista, não levando em conta as conjunturas responsáveis por implementar modificações nas estruturas narrativas, que acabaram por dar origem a linguagem do cinema clássico e a fomentar a percepção do espectador, criando códigos e signos que viriam a formar uma cultura visual facilmente reconhecível pelo espectador. De modo

que é mais importante situarmos a forma como essa linguagem cinematográfica foi ressignificada, lida apropriada por esses dois gêneros distintos, ficção e documentário, do que necessariamente opô-los, criando uma compartimentação onde recursos estéticos e narrativos não seriam intercambiáveis. Partindo das premissas indicadas acima chegamos a questão: é possível estabelecer uma oposição no sentido de que o cinema documentário possui alguma primazia sobre a verdade em relação ao cinema ficção, mesmo que esse documentário seja de caráter histórico? O documentário histórico não é de fácil teorização. Para o historiador uma confusão conceitual torna essa teorização um tanto quanto mais complicada: o documentário como o único meio audiovisual fidedigno para discussões históricas. Essa atribuição parte do pressuposto que o cinema documentário diferiria dos filmes de ficção por não se tratar de uma representação criativa da realidade histórica, e sim a construção de narrativas a partir do rigor documental, comparando depoimentos e fontes, sobrepondo imagens de arquivo e aplicando o método historiográfico de tecer deduções a partir dos materiais analisados em torno do tema abordado. E a questão do tema, ou seja, o fato abordado, é o fio condutor do documentário histórico (ou historiográfico), uma prática muito comum àquelas empregadas pelo historiador ao escrever um livro, por exemplo. Tal como um livro, com suas referências bibliográficas, o documentário também expõe suas fontes aos espectadores. Outro equívoco teórico envolve a questão

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GNARUS - 136 das opções estéticas, que estariam ausentes nos documentários, em prol da exposição de uma verdade de forma objetiva, e esse elemento o faria ter primazia em relação ao filme de ambientação histórica que “romanceia” e toma muitas liberdades poéticas em relação a fatos e personagens. Esse modelo muito comum de documentário, cujos registros documentais partiam de um princípio de interpretação das imagens, impetrada por uma voz em off e onisciente, dotados de uma natureza inequívoca, trazia também um caráter pedagógico baseado justamente na assertiva da “verdade” e da “objetividade” a qual obrigatoriamente o documentário deveria se submeter. Essa noção é trabalhada desde a emergência do que se convencionou chamar documentário clássico nas décadas de 1930/1940. Todavia o documentário não guarda nenhuma primazia sobre a verdade ou objetividade. Ramos nos diz a respeito disso: Na medida em que a ideologia dominante contemporânea foi criada na desconfiança da representação objetiva do mundo – e na desconfiança da espessura do sujeito que assume a voz de saber sobre o mundo -, a narrativa que se locomove com naturalidade nesse meio sofre uma carga crítica (RAMOS, 2013, p.21).

O documentário histórico não exerce nenhuma primazia sobre o cinema de ficção, principalmente aquele que prima pelas representações históricas, pois ambos se constituem em representações histórias e historiográficas. Da mesma forma que a História comporta diversas correntes historiográficas, que por sua vez impactam na forma como se enquadra o processo de análise de fonte histórica e até mesmo apresentam inflexões acerca do que pode ser considerado

fonte histórica, o cinema, com seus diversos gêneros e estéticas também muda a forma de abordagem do filme de representação histórica, seja ele documentário ou uma ficção. Pode-se inferir que as questões estéticas não são prioritárias no cinema documentário. Há a crença de que o documentário seria mais confiável do que o longa-metragem de ficção, logo aquele seria uma fonte mais segura de informações e análises. Existe um equívoco nessa constatação, pois mesmo se levamos em conta as particularidades da codificação própria do cinema documentário, ainda sim, ele está inserido no âmbito da linguagem cinematográfica: De fato, sob certos aspectos, o documentário se parece tanto com a história escrita que dificilmente parece apontar, ou pelo menos em uma escala bem menor do que o longa-metragem de ficção, para uma nova maneira de pensar sobre o passado [...]. Mas trata-se de uma forma equivocada de confiança, pois o documentário também compartilha de muitos aspectos do filme ficcional. Ele também as vezes usa imagens que são aproximações mais do que realidades literais [...] – a noção de que aquilo que você está vendo na tela é, de alguma forma, uma representação direta do que aconteceu no passado (ROSENSTONE, 2015, p.110).

As questões estéticas guardam uma estreita relação com as questões éticas do documentário histórico. Bill Nichols, teórico e crítico de cinema, ressalta: A interpretação é uma questão de compreender como a forma ou organização do filme transmite significados e valores. A crença depende de como reagirmos a esses significados e valores [...]. A crença é encorajada nos documentários, já que eles frequentemente visam exercer um impacto

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GNARUS - 137 no mundo histórico e, para isso, precisam nos persuadir ou convencer de que um ponto de vista ou enfoque é preferível a outros (NICHOLS, 2005, p.27).

Por mais que a divisão entre documentário e ficção tenha suas fronteiras borradas por alguns atores e abordagens teóricas, no presente artigo, oriunda de uma pesquisa maior de doutorado, foi privilegiada uma abordagem conceitual, conforme enunciada por Ramos de “ferramentas analíticas que tem por trás de si uma realidade histórica” (RAMOS, 2013, p.22). O cinema documentário, aqui conceituado e analisado, está ligado às noções de representação e cultura do nosso tempo. Ainda em Ramos: Na tradição narrativa documentária podemos vislumbrar uma história na qual alguns traços estruturais são recorrentes formando períodos. À repetição de conjuntos, mais ou menos homogêneos, podemos dar nomes. Documentário é um desses nomes. Designa um conjunto de obras que possuem algumas características singulares a estáveis, que as diferenciam do conjunto de filmes ficcionais (RAMOS, 2013, p. 23).

Sobre as diferenciações entre documentário e ficção, o conceitual está na distinção da forma como ambos expressam suas assertivas acerca da realidade. Ramos explica Quando vemos um filme de ficção, nos propomos a nos entreter com universo ficcional [...].Entreter-nos deve ser entendido em seu sentido amplo, não exclusivamente de entretenimento. Entreter-nos com um universo ficcional, significa estabelecermos (entretermos) hipóteses, relações, previsões sobre os personagens, suas personalidades e as ações verossímeis que lhes cabem, e com eles estabelecemos empatias emotivas (emoções) [...] (RAMOS, 2013, p.25).

Sendo o documentário uma forma de erigir representações sobre o mundo, representações essas que aspiram a ser universais, contudo podem também trazer consigo a visão de um grupo social especifico ou hegemônico (SILVA, 2008, p. 124), ele se singulariza em relação aos filmes de ficção pela intenção social de seu autor fazer asserções sobre o mundo empregando uma linguagem manifestamente diferente daquela empregada nas narrativas de ficção. E, manifesta essa intenção, seguem-se os processos estéticos e éticos que irão servir como balizas epistemológicas para qualificar as asserções que serão levantadas pelo documentário.

Documentário e discurso histórico Antes de dar início a esse tópico, precisamos posicionar, mesmo que brevemente, a diferença entre filmes históricos e filmes de ambientação histórica. Os filmes históricos estetizam ou representam processos históricos conhecidos, que podem constituir uma versão romanceada de eventos ou da vida de personagens históricos. Já os filmes de ambientação histórica se referem a enredos criados livremente, mas sobre um contexto histórico bem estabelecido, tendo na condução de seu fio narrativo personagens fictícios. Um filme pode ser histórico tanto pelo tema que aborda em seu argumento, quanto pela sua relevância no âmbito das práticas cinematográficas que dão forma a história do cinema, conferindo-lhe um status particular em discussões que perpassam os âmbitos históricos e cinematográficos.

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GNARUS - 138 Sendo assim a divisão elencada no início desse parágrafo adquire novos contornos e possibilidades de leitura diante de uma abordagem que privilegie análises dialéticas que envolvam forma e conteúdo e não só o contexto de realização da obra fílmica, considerando também as tensões próprias da narrativa em consonância com as opções estéticas empregadas. O cinema é um projeto de poder que serve a interesses diversos, como também é um instrumento de contra poder, ou contra hegemônico. Marc Ferro conceitua o filme como uma contra-análise da sociedade, processo por meio da qual um filme, seja ele histórico ou não, deixa transparecer elementos que estão latentes nas narrativas cinematográficas. Seriam lapsos que permitiriam identificar a condição sócio histórica no momento da realização daquele filme, “a sociedade que o produz e o recebe”, nas palavras de Ferro. Elaborase uma perspectiva de análise que não se limita ao textual, mas que leva em conta também o misce en scene,9 torna identificável

que antes estariam vetadas ou sem o devido espaço de representação histórica (FERRO, 2010, p. 32 e 33). Para ilustrar a explicação de Ferro, gostaria de citar o filme A tristeza e a piedade (Marcel Ophüls, 1969). Realizado na década de 60 a partir de imagens de arquivos e de entrevistas com oficiais alemães, colaboradores e membros da resistência francesa, o filme desnuda o mito da República de Vichy, como a última defesa da França, e foca no colaboracionismo dos franceses com o invasor alemão, movidos por razões como o antissemitismo, xenofobia e o medo do bolchevismo. O filme ficou proibido na TV francesa por quase vinte anos, sendo permitido sua exibição na TV francesa na década de 80, momento em que a França, em suas guerras de memória, decide rever o papel da República de Vichy, pois entendia-se que na ocasião de lançamento esses temas

os elementos que estão sendo censurados por essa mesma sociedade, a partir da evidenciação de determinadas características político-ideológicas que transparecem nas escolhas estéticas e narrativas do filme. Para a adequada leitura dos lapsos de discordância que o filme projeta se faz necessária uma mudança de paradigmas de significação de uma determinada sociedade. Geralmente essa mudança, conforme assinala Ferro, estaria nas transições ideológicas de uma sociedade. Só assim seria possível a emersão de leituras 9 Movimento e arranjo dos elementos no quadro ou na tomada de uma cena a fim de observar como se podia gerar significados, construindo relações entre as tomadas através da montagem.

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GNARUS - 139 ainda eram muito recentes e poderiam trazer sérios problemas em um contexto delicado de Guerra Fria e no pós-guerra da Argélia. A abordagem de Ophüls também colocava na berlinda os bodes expiatórios permitidos pelo General De Gaulle e sua estratégia de expulsar os invasores, punir os colaboradores e enaltecer a resistência. O foco de A tristeza e a piedade é justamente o cotidiano das pessoas comuns diante do colaboracionismo francês, da luta da resistência (que está longe de ser uma unanimidade), e dos assédios nazistas. A tristeza e a piedade aborda daquilo que foi censurado em um dado contexto, por violar um determinado valor verdade atrelado a um grupo hegemônico. Contudo, com a mudança de paradigmas históricos, esse mesmo discurso foi revisto e ganhou seu espaço de representação na sociedade, ou seja, uma memória que deixa de ser subterrânea10 passa a adentrar nos campos simbólicos e das revisões históricas da sociedade, da memória coletiva.

articulação de um discurso histórico se funda em “representar adequadamente o real”. E o caminho teórico-metodológico para tal não se resume somente em “registrar, mas considerar caminhos possíveis, alternativas” acerca das leituras que se faz sobre o passado e que estão ancoradas no presente (REIS, 2010). A historiografia é uma representação dos fatos e de si mesma. Documentários que abordam temas históricos se constituem em discursos historiográficos por também serem instrumentos para expor uma representação histórica. E isso ocorre porque, mesmo levando-se em conta os elementos comuns a narrativa cinematográfica (estética, formas de produção, gênero, etc), é possível pincelar a partir desses elementos informações que corroborem a existência do fato histórico, de seus personagens e as leituras que se edificam sobre ele. O que o cinema nos proporciona são possibilidades de leitura acerca do fato histórico pela relação forma e conteúdo presente nas narrativas e estéticas dos filmes.

O documentário, seja ele histórico ou não,

O cinema documentário, enquanto instrumento de propaganda, mobiliza elementos da psicologia social que atuam também no plano individual, criando as condições mentais que podem ser favorecidas por contextos históricos. A manipulação conduzida pela propaganda no cinema não está restrita a simples imposição de valores e crenças, sejam elas pré-existentes ou não, mas sim a ressignificação histórica desses valores e crenças de modo que atendam a necessidade de um determinado momento histórico e de uma classe hegemônica. O público, ou as massas, são impelidos a agir em concordância com a propaganda porque o cinema colabora na ritualização e na catarse dos sentimentos mobilizados pela imagem.

constitui um precioso material para análise de representações históricas e historiográficas. Assunção Barros ressalta que: ...a partir de uma fonte fílmica, e partir da análise dos discursos e práticas cinematográficas relacionadas aos diversos contextos contemporâneos, os historiadores podem apreender de uma nova perspectiva a própria história do século XX (BARROS, 2008, p.43)

No âmbito do cinema documentário, a 10 O conceito de memória subterrânea foi trabalhado por Michel Pollack e trata de memórias que estão às margens da história dita oficial e que afloram em momentos de crise engendrando conflitos e disputas, subvertendo as memórias coletivas capitaneadas pelos grupos hegemônicos. Cf. POLLACK, 1989.

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GNARUS - 140 Furhammar e Isaksson assinalam: A política é então reduzida a um jogo mágico no qual sinais morais inequívocos são o substituto da ideologia e onde não há lugar para argumentos racionais em meio a manipulação emocional. A propaganda é particularmente fascinante por sua orquestração das emoções (FURHAMMAR; ISAKSSON, 1975, p.159).

A URSS e a Alemanha nazista, só para focar nesses dois exemplos, mobilizaram uma ampla gama de recursos, além de criar outros, para empregar o documentário como um elemento político capaz de moldar e influenciar diretamente os processos históricos de suas respectivas sociedades. Para os soviéticos, no contexto da Revolução de 1917, o cinema era o meio pelo qual a boa nova da revolução era levada aos rincões da URSS, para os nazistas era o meio massificado para difundir sua propaganda antissemita e anticomunista. O cinema adquire uma clara função social, seja por meio do filme documentário ou de ficção. A grande questão que envolvia o documentário está sua capacidade de moldar a mentalidade do público por meio das atualidades, tão difundidas desde a virada do século XIX para o XX. As atualidades funcionavam como uma via para veicular mensagens políticas como aquilo que parecia irrefreável e assim construir consensos. O público se via envolvido na ação de naturalizar uma nova ordem política com seus códigos culturais e éticos. Da-Rin nos diz sobre a respeito da função social do cinema, no caso soviético A função social do cinema [...], na Rússia soviética era uma premissa inquestionável. O que estava em discussão era a definição dos métodos mais adequados à participação do cinema na construção do “homem novo” e de uma sociedade industrial e socialista. Ao

optar pelas atualidades – a “segunda via, a via da invenção” – integrando em seus filmes e textos os ideais leninistas aos princípios do Futurismo russo, Vertov assumia como tarefa essencial e programática “ajudar cada oprimido em particular e o proletariado em geral em sua ardente aspiração de ver claramente os fenômenos vivos que nos cercam (DA-RIN, 2004, p. 112).

No caso especifico do nazismo Pereira nos diz: Nesse aspecto, os nazistas elaboraram uma síntese de todas as técnicas de manipulação da opinião até então existentes – incluindo desde elementos da mitologia germânica e da liturgia católica até as técnicas modernas de agitação comunista e do estudo da psicologia de massas -, que somada ao controle estatal de todos os meios de comunicação, possibilitou condicionar homens e mulheres, de modo a transformá-los em autômatos do Estado (PEREIRA,2007, p. 257)

Foi assim que a URSS, onde o cinema se tornou política de Estado, e a Alemanha Nazista atuaram para moldar sua nova realidade política e cultural. Contudo, não mobilizo esses exemplos como uma forma de inferir que são “duas faces da mesma moeda”, mas sim como os primeiros e mais relevantes casos de mobilização do cinema enquanto instrumento da cultura de massas no século XX. Posteriormente o cinema se tornaria instrumento político nas mãos de diversos países, tais como as ações de propaganda durante a Segunda Guerra Mundial promovidas por estadunidenses e ingleses. Outras iniciativas não necessariamente contaram com o apoio do Estado, como o Neorrealismo italiano, o cinema Terceiro Mundista,11 e o interessante caso do cinema

11 Cf, STAM (2012)

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GNARUS - 141 cubano,12 no qual artistas e o Estado socialista cubano negociavam limites de atuação e intervenção, algo que está refletido na filmografia do período dos anos 60,70,80. No caso soviético documentários como A queda dos Romanov (Esther Shub, 1927), Três Canções para Lenin (Dziga Vertov, 1934), ambos trazem versões sobre a Revolução de 1917, o primeiro enfocando o peso dos Romanov no atraso da Rússia e a necessidade de riscá-los da história (o filme ajuda a colocar mais polêmica sobre o assassinato da família Romanov por uma ala dos bolcheviques), enquanto o segundo traz a presença de Lenin em três canções que versam sobre: seu papel na revolução, um canto onde trabalhadores da indústria o homenageiam e uma ode à sua memória. Esse último filme particularmente chama mais atenção pelo nome que envolve, Dziga Vertov. 12 Cf. VILLAÇA (2010)

Vertov foi o idealizador do Cine-Olho, uma nova forma de conceber o cinema, como sendo eminentemente revolucionária. Vertov usava dos artifícios da montagem para potencializar a percepção do olho humano ao mesmo tempo em que liberta a câmera da “escravidão” de somente registrar e nunca realmente mostrar a realidade e seus efeitos. Um novo cinema passaria necessariamente pela construção de um novo olhar sobre a realidade, preparando a percepção humana para as maravilhas do socialismo (DA-RIN, 2012, p.113,114). É interessante notar que o processo de deslocamento das narrativas no documentário abarca diversas matrizes de conhecimento, incluindo a própria ciência histórica. As abordagens do documentário clássico, calcadas em um modelo sociológico, partiam de um princípio cuja interpretação das imagens, impetrada por uma voz em off e onisciente, sendo de uma natureza inequívoca, ou seja, traziam somente a verdade de forma objetiva.13 O modelo sociológico empregado na narrativa documental trazia também um caráter pedagógico baseado na assertiva da “verdade” e da “objetividade” a qual obrigatoriamente o documentário deveria se submeter. Percebemos a relação que esse modelo narrativo e estético do documentário clássico guarda com as abordagens históricas calcadas em visões absolutas e deterministas baseadas no historicismo e no positivismo. Enquanto a História-Problema que surge na década de 30 do século passado com a Escola dos Annales, desloca a História do factual para o analítico, abrindo novas possibilidades de 13 Para uma discussão mais aprofundada sobre esse modelo Cf. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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GNARUS - 142 narrativa e de representação histórica (BURKE, 1991) (HUNT, 1992). A mudança promovida na narrativa do cinema documentário, de certa forma, esbarra nas próprias mudanças que estão sendo operacionalizadas no campo do conhecimento histórico, onde o estatuto da verdade, embora não esteja desacreditando, passa a ser submetido a novos crivos teóricos e metodológico. Com isso passamos a ter documentários baseados em modelos, tais como poético-experimental, expositivo, observativo, participativo, reflexivointerativo, performático (NICHOLS, 2005). Com as devidas observações, mas correndo o risco de alguma generalização, cada uma dessas categorias de documentário abarca diferentes modos de explorar a narrativa histórica e historiográfica, vejamos alguns exemplos: poético-experimental: Terra sem pão (Luis Buñuel, 1933); Cartas da Sibéria (Chris Marker, 1957), Trilogia Qatsi (Godfrey Reggio, 1982,1988, 2002) expositivo: Terra Espanhola (Joris Ivens, 1937), Memphis Belle – a fortaleza voadora (William Wyler, 1944), observativo: Anna dos 6 aos 18 (Nikita Mikhalkov, 1995), Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Massagão, 1999); participativo: Crônica de um Verão (Jean Rouch, Edgar Morin, 1961), Isto Não É um Filme (Jafar Panahi, Mojtaba Mirtahmasb, 2011); reflexivo-interativo: Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984), Shoah (Claude Lanzman, 1985)

Conclusões parciais É importante ressaltar o trabalho de cunho histórico e historiográfico coloquem em termos os efeitos e as consequências

sociopolíticas das representações que a narrativa do cinema documentário constrói. A ciência histórica e a historiografia, aliadas ao cinema, fazem um trabalho de suma importância no seio da comunicação de massas, ao trazer à tona discussões acerca das representações do passado. Mais do que estipular ou instituir fatos fundantes, o cinema documentário têm sua real preocupação com os entrelaçamentos da memória que podem surgir como demandas do presente em uma sociedade, trazendo aquilo que, até então, estava subterrâneo. O documentário pode ser visto como uma arena privilegiada das batalhas pela representação da memória que há em uma sociedade. Por outro lado, mais do que uma visão onde a metodologia histórica pega emprestado ou se deixa influenciar por recursos do cinema e vice-versa, ocorre um imbricamento entre a metodologia histórica e as estéticas cinematográficas, fazendo com que o cinema seja mais do que fonte histórica, sendo também um agente ativo no processo histórico.

Renato Lopes Pessanha é colunista da Gnarus Revista de História, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Membro do LAHODOC (Laboratório de história oral e documentação), sob orientação da professora dr.ª Icléia Thiesen, com bolsa de demanda social fornecida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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