Maracajá - 3ª Edição - Abril

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de 2019
Realização: Apoio: VOL.
Abril
Suplemento Gratuito
ISSN 2596-1373

ARTIGO

O Sertão de Marica Lessa e Dona Guidinha do Poço Bruno Paulino

FLORES DE AÇUCENA

O marujo que mexeu na abóbora da Ribinha Audifax Rios

CHAPULETADAS

Jarid Arraes e as fraturas do cordel contemporâneo

Gisa Carvalho

Um livro a ser descoberto*

Alfredo Monte (in memoriam)

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA

João Dummar Neto presidência

André Avelino de Azevedo direção administrativo-financeira

Raymundo Netto gestão de projetos

Emanuela Fernandes análise de projetos

MARACAJÁ

Raymundo Netto curadoria, pesquisa e edição geral

Emanuela Fernandes assistência editorial

Bruno Paulino, Gisa Carvalho, Alfredo Monte, Daniel Dias, Sarah Diva Ipiranga, Alexandre Henrique e Raymundo Netto colaboraram nesta edição com textos, cartuns e quadrinhos (exceto os da seção “Radiadora”)

Audifax Rios (in memoriam) ilustrações

GENTE ILUSTRADA

Daniel Dias

CRISTALEIRA

Jáder de Carvalho entre a presença e a ausência

Sarah Diva Ipiranga

RADIADORA

Sânzio de Azevedo

Lucirene Façanha

Rejane Nascimento Cupertino Freitas

Almir Mota

Talles Azigon

Rita Brígido

Raisa Christina

Magna Maricelle

TIRAGOSTOS

Alexandre Henrique

Raymundo Netto

Artista da capa

Audifax Rios (in memoriam)

Fabricio Saldanha

Luana Braga

Valdemar Neto Terceiro

José Jackson Coelho Sampaio

Alan Mendonça

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fdr.org.br/maracaja

Amaurício Cortez editor de design

Giselle Fernandes projeto gráfico e editoração eletrônica

Karlson Gracie tipografia Maracajá

revistamaracaja@gmail.com contato

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização prévia e escrita. Todas as informações e opiniões são de responsabilidade dos respectivos autores, não refletindo a opinião deste suplemento ou de seus editores.

Este suplemento literário mensal é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, sob o nº 05/2018.

ISSN 2596-1373

Todos os direitos desta edição reservados à:

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Maracajá não precisa de vocês Maracajá, em 7 de abril de 1929

Olhe, menino, você não deve comprar esta revista. Compre o seu chocolate e vá ao cinema berrar seu entusiasmo pelo cowboy

Olhe, menina (sei lá quantos anos você tem...), você não deve comprar esta revista. Compre o seu ruge, o seu carmim – faça do rosto duas papoulas e dos lábios anêmicos –com que você desperta o coração sangrento que ri para toda gente fútil da cidade.

Olhe, coronel, você não deve comprar esta revista. Você não entenderá nada do que ela contém e ficará arrependido dos níqueis que arrancou da bolsa. Guarde o seu dinheiro para o champanhe da francesinha.

Olhe, almofadinha, você não deve comprar esta revista para fingir que sabe ler e que é rapaz de espírito. Guarde seu dinheiro para as prestações do alfaiate.

Olhe, garoto, você não apregoe Maracajá. Água, conselho e Maracajá só devemos dar a quem chama a gente a um canto e pede baixinho.

Olhem, vocês todos, fiquem certos que Maracajá é um gato selvagem de boas garras e basta-lhe o mato para viver.

Antônio Garrido (Demócrito Rocha)

Abril é um mês de comemoração, mas também de saudade.

Foi em abril, num dia 17 (1946), que fez pouso nesse plano o santanense (de Marco) Audifax Rios. Também em abril, em 25 (2015), a onça caetana o arrastou para outra morada.

Quem o conheceu e/ou conheceu a sua vasta e múltipla obra (crônicas, romances, pesquisas, pinturas, gravuras, cenários, almanaques e revistas, ilustrações e DE UM TUDO mais), sabe o tamanho da lacuna que esse sempre jovem, inquieto e criativo artista, no vigor dos seus 69 anos, nos deixou.

Pessoa simples, tímido demais, a contrastar de suas camisas berrante-coloridas, desfilava entre rostos de apáticos a admirados, carregando sua bolsa de couro com sua marca pirografada imitando ferro de marcar boi, não dispensando uma boa conversa, falando baixinho das gaiatices da vida, da literatura de todo mundo – lia que era um danado – e contando causos e histórias dos bares de Fortaleza, cheio de ideias e disponibilidades.

É em homenagem a essa saudade inapagável e raramente coletiva desse nosso “tipo inesquecível”, que a Maracajá de Demócrito nos traz uma edição AUDIFAX RIOS especial, reverenciando a imortalidade daqueles que não morrem mesmo, pois que o talento não deixa. Daí, o convidamos para ilustrar essa edição, e ele, como de costume e sem cangapés, nos disse “Eu faço é na hora!”

Último cabrito a ser entronizado por Audifax na Galeria Caprina do Clube do Bode (nº 225), Ata nº 690, Livro de Atas nº 38, em 11 de abril de 2015.

3 Do Alpendre

Dona Guidinha do Poço

história de Marica Lessa, antiga dona daquelas terras, ainda esta va fresca na memória de muita gente que morava por ali. Ele aca bou guardando muitas delas, e eu tive a sorte de ouvi-lo contar. Hoje quase ninguém se lembra dessas histórias na região.

Da casa grande de Marica não resta mais uma parede sequer em pé, porém, é possível encontrar muitas porcela nas nos escombros, o que demonstra quão rica de fato, ela era.

Da velha “Canafístula” resta apenas a capelinha da Sagrada Família (Jesus, Maria e José), onde ainda se reza missa pelo

Uma história que meu avô contava era que quando Marica Lessa foi presa na fazenda, após preso Corumbé e ele acusá-la de mandante do crime, vinha ela escoltada para a vila por um

O marujo que mexeu na abóbora da Ribinha

Não pergunte pelo louro em Icó e nem fale de muriçoca em Sobral, se quiser se dar bem. E em Natal, peça tudo para acompanhar a saborosa carne de sol – macaxeira, manteiga da terra, cebola vermelha, farinha d’água – menos jerimum.

Maria do Ribamar era de Caiçara do Rio dos Ventos, ali encostada à Cachoeira do Sapo, no sertão do Cabogi, no vizinho estado do Rio Grande do Norte. A coisa por lá andava também preta, a família mudou-se para estas bandas de cá, onde o pai vislumbrava um meio de vida melhor para sustentá-la. Caiu na construção civil, a mulher lavava roupa nas mansões da Aldeota e os filhos ficaram jogados num barraco espremido no vão das dunas mortas do Morro de Santa Terezinha.

De tanto olhar para o Farol Velho, fascinada por um não sei o quê, a Ribinha desceu definitivamente e sentou praça no “Sereno da Madrugada”, um cabaré malafamado, enfestado de marginais e marujos vindos d’além-mar.

Anos de infortúnio passados, um dia, o farol piscou uma luz alaranjada, como há muito não ousava brilhar. Aportara um cargueiro da Holanda assim de marujos ruivos, cabelos cor do brilho do farol, a barba roxa afogueada.

Um deles gamou pela Ribinha e quis demonstrar sua gratidão, além dos euros, com um presente singular: uma camisa da seleção do tempo do carrossel holandês, dizia até que era a do Cruyjf.

O marujo arrastava um pouco do português, saldo de inúmeras viagens a estes brasís, e, ao dar o presente, fez alusão à cor da camisa, não laranja, mas, sim, abóbora. Pra quê! A Ribinha ficou possessa, mandou o Popeye lá socar a camisa no seu baú mais indevassável, que comedor de jerimum era a mãe, e um bocado mais de desaforos que o gringo fogoió jamais irá traduzir.

Flores de Açucena
Extraído de O Riso, a Fé e a Dor, vol. 1, Edições Livro Técnico, Fortaleza, Ceará, 2002.

Chapuletadas

Jarid Arraes e as fraturas do cordel contemporâneo

cordel cearense está mudando. Aliás, todo o universo do cordel está em transformação constante, a despeito da vontade de muitos daqueles que insistem em situar a poesia tradicional em um passado supervalorizado e conservador. Mas as mulheres estão enfrentando essas situações e fraturando as definições de cordel situadas no passado. E Jarid Arraes está na vanguarda desse movimento. Falar sobre a poesia de Jarid aciona em mim muitos afetos. Demorei a conhecê-la pessoalmente, ainda que os trabalhos de seu pai e de seu avô eu já conhecesse há cerca de 10 anos, quando comecei a estudar sobre a poesia de cordel. Na segunda metade do mestrado, não sei exatamente de que modo, mas tive acesso às suas produções. Desconfio que tenha sido a partir das redes sociais de seu pai, Hamurabi Batista, que mediava meus contatos com Abraão – pai de Hamurabi, avô de Jarid –poeta cujas produções eu estudava na época.

Jarid publicou em 2017 um livro de cordéis, Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, que somou-se aos seus mais de 60 títulos de folhetos. O livro

Heroínas... conta as histórias de mulheres, que foram escolhidas a partir de uma série de cordéis sobre heroínas negras que a autora já produzia. São

narrativas sobre as vidas de Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba.

A proposta de Jarid é quase que uma meta-historiografia. Está inserida em um contexto combativo, militante. Parte de uma reconstrução das memórias, lançando luz ao que estava deixado no plano do esquecimento. Salete Maria, Fanka Santos, Dalinha Catunda, Arlene Holanda, a recém-conhecida por mim Auritha Tabajara, Bastinha... todas também trazem, aos seus modos, a política, a resistência, a militância em sua poesia.

A marca poética de Jarid está situada no feminismo negro. Ela conta que sempre teve muita dificuldade em conhecer histórias de mulheres e, principalmente, sobre mulheres negras. Por isso, se dedica a pesquisar e conhecer essas mulheres de forma a contribuir com a visibilidade dos trabalhos delas e de tantas outras que ainda devem estar escondidas, mas que iremos encontrá-las.

A poesia de Jarid é potente. É resistência, é questionamento. É rompimento. É a saída dos lugares-comuns do que se pretende – institucionalmente – que a poesia de cordel seja. Ela é o próprio conceito de tradição, que depende de renovações para que permaneça. Assim, ela usa redes sociais, recursos digitais e uma série de elementos contemporâneos

em suas composições. Discussões sobre gênero, sobre sexualidade, sobre corpo, peso, cabelos, autoaceitação são trazidas em seus folhetos de uma forma didática e lúdica, e isso significa transformação.

O que Jarid traz para o cordel são quebras de tabus, tanto nas temáticas quanto na própria definição do “que é cordel”? Um questionamento cujas respostas passam pela forma, pela estrutura, pelos suportes, pelas temáticas. Cuja história aponta para uma ampla diversidade de “origens”. Mas essas definições todas terminam por serem muito mais excludentes do que agregadoras.

Ser mulher, poeta, cordelista e falar sobre feminismo e questões raciais, desafiar a institucionalidade que tenta definir o cordel a partir do conhecimento de um pequeno grupo de homens compõem a desestabilização que Jarid traz a um universo que muitos pretendem congelar. Mais do que fechar um conceito para o cordel, a poesia de Jarid ajuda a pensá-lo em dimensões simbólicas, culturais, históricas e, sobretudo, política.

A existência do cordel é um ato político.

Jornalista e doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisa poesia de cordel desde 2009 e tem interesse nas manifestações e performances contemporâneas dessa prática.  mgisacarvalho@gmail.com

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Está inserida em um contexto combativo, militante. Parte de uma reconstrução das memórias, lançando luz ao que estava deixado no plano do esquecimento

Um livro a ser descoberto*

esmo não levando em conta o restante da sua prolífica obra, Nilto Maciel (1945-2014) teria lugar garantido na melhor literatura brasileira com Os Guerreiros de Monte-Mor

Transcorrendo na virada do século XVIII para o XIX, até os tumultuosos anos da Independência e as décadas do Império, é incrível como o autor cearense não parece fazer qualquer esforço para apresentar uma narrativa “histórica”. E ainda assim, com seus tipos humanos bizarros, exagerados,  Os Guerreiros de Monte-Mor nos transporta convincentemente para uma época arcaica, ainda marcada pela “longa duração”: as quatro gerações do clã Cardoso, através dos seus “varões assinalados”: Antônio, João, Pedro (este, na verdade, destoará nessa continuidade) e José.

O que os une é a utopia separatista: parcialmente descendentes de um povo indígena (Jenipapo), o sonho é expulsar os portugueses e recriar uma grande nação nativa.  Encantando-se com todos os movimentos revoltosos (desde a Inconfidência até a Confederação do Equador), desconfiados do proclamado Império, cada geração se propõe a efetivar a justa rebelião. Antônio estagnará numa existência pacata (com seu hobby de idear armas estrambóticas) e Pedro também optará pela rotina de colono conformado (mais tarde, será malvisto como um “espião” dentro da família). Já João (cujas perambulações e ziguezagues ideológicos da juventude acompanhamos com mais detalhe) e o neto José, mais exaltados, se conluiam a certa

Chapuletadas 9
Chapuletadas 10

Ilustrador e artista gráfico. Nasceu em Fortaleza - CE, no ano de 1976. A maior parte da sua produção é destinada ao público infantil e infantojuvenil.

Seu trabalho tem como base a pesquisa de materiais e estilos, envolvendo estudo de técnicas tradicionais de pintura, desenho, fotografia e colorização digital. Atualmente, trabalha em projetos editoriais de fomento à leitura e de acesso ao livro.

A ilustração “A conversa dos jovens com os clássicos” integra o livro do Programa Círculos de Leitura: a arte do encontro, do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial (2018).

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Gente Ilustrada

Cristaleira

Jáder de Carvalho entre a presença e a ausência

“Às vezes fico tanto no passado/ que, vendo o luar na noite, vejo o leite/ correr do peito de uma escrava negra...” (Jáder de Carvalho)

a revista Maracajá, de abril de 1929, encontramos uma bela e persuasiva carta de Jáder de Carvalho (1901-1985) a Paschoal Carlos Magno, ator, poeta e teatrólogo que estava visitando o Ceará a fim de divulgar os ideais do projeto modernista para o país. Mal sabia Magno que já éramos modernos antes de o Brasil o ser e que Jáder, como poucos, tinha a noção da brasilidade assentada em si e na sua luta social: “Você não avalia o trabalho que nos vem dando o Brasil. É lá brincadeira! Mal a gente acaba o Acre, já está ouvindo o grito de São Paulo chamando a gente! Olhe: até o Peru precisou de nós. Dá-se o suor, o braço, o sangue! E depois? Depois... o cearense se volta de mãos vazias. E, se vem do Amazonas – aquela terra menina, onde mal reportam os seios – é deste jeito: escapando do impaludismo para morrer de beribéri”.

O Jáder que transparece nessa fala representa sua feição mais engajada, a mesma que, dois anos antes, em 1927, havia participado de uma publicação, O canto novo da raça, juntamente com outros três autores, apontada, por Sânzio de Azevedo, como o marco do Modernismo no Ceará. A filiação ao Grupo dos Modernos, entretanto,

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Arquivo Nirez
Foto:

finda rapidamente, pois Jáder, de caráter irreverente e iconoclasta, esquivou-se de ‘escolas’ para criar seu rumo nas letras. Independente, tanto política quanto literariamente, construiu uma carreira que oscila entre o lirismo, a melancolia e o compromisso social. Suas obras mais conhecidas são aquelas cuja ênfase social é dominante (Classe média, Doutor Geraldo e Sua majestade, o Juiz,), assim como o regionalismo (Terra bárbara e Terra de ninguém). No entanto, Jáder tem na poesia autobiográfica um acento literário especial, em livros que tratam da sua infância (Menino só), do envelhecimento e da morte (Cantos da morte, Delírio da solidão e Rua da minha vida). Há que se fazer menção também que foi ganhador do prêmio Olavo Bilac de Poesia, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto poético de Água da fonte.

De braços com o poeta

Para compreender um pouco desse homem de várias faces, olhemos novamente para “Terra bárbara”, poema mais emblemático da vertente telúrica, lírica e regionalista do poeta e sua feição mais conhecida e assentada no imaginário local. Nele encontramos as marcações clássicas do pertencimento e da filiação identitária:

Eu nasci nos tabuleiros mansos do Quixadá

E fui crescer nos canaviais do Cariri, Entre glebas e caboclos belicosos e ágeis.

Filho da gleba, fruto em sazão ao sol dos trópicos, Eu sou o índice do meu povo:

Se o homem é bom – eu o respeito.

Se gosta de mim – morro por ele.

Se, porque é forte, entendesse de humilhar-me, Ai, sertão!

A dramaticidade e a valentia que imprime ao poema serão marcas que distinguirão o poeta, sobretudo em Terra de ninguém e Terra bárbara, nos quais guarda no mesmo embornal súplica e revolta, injustiça e regeneração.

A luz solar, que se expande nos versos, em alguns momentos passa a atormentar o poeta, que busca nos versos mais íntimos uma sombra para uma outra dor: a da solidão. Daí os títulos dos livros que seguem: Delírios da solidão e Menino só Mais próximo da sua morte, publica Rua da minha vida, produção amadurecida, em que o poeta retoma o local de origem, tão presente e cantado em Terra bárbara, mas agora com um tom de nostalgia e despedida e assume-se como um sujeito poético melancólico e entristecido. Sai o vaqueiro errante ou o sertanejo valente e imiscui-se um agricultor de lembranças, cuja lavra é de poemas adormecidos na saudade e na despedida próxima. Por isso, a ausência, na sua conformação geográfica, emocional ou espiritual, é a dor mais sublinhada, constituindo-se o centro de irradiação da sua lírica. Se no poema “Terra bárbara” afirma sua pertença valorosa ao Quixadá, em “Joaquim”, retorna nostalgicamente ao nascedouro, marcado agora pelo silêncio e pela falta:

Não me chamaste, Quixadá. Mas eu vou. [...]

Há quantos anos não nos vemos? [...]

Lembras-te, Quixadá, do primeiro arado Que te rasgou a terra?

O comprometimento de Jáder de Carvalho com os movimentos sociais e políticos do estado acabou retendo-o em Fortaleza, o que ocasionou o abandono de uma carreira no sul do país, como fizeram muitos cearenses em busca de reconhecimento. O fixar-se na terra, entretanto, se conferiu prestígio local, acabou por causar um leve desgosto no poeta. Por isso, ao final do poema, após o reencontro bucólico com a terra natal, muda de tom e rumo e lamenta a escolha que poeticamente também o afastou de si e da possibilidade de se dedicar a outro manejo poético, mais confessional e autobiográfico e, ao mesmo tempo, mais próximo de uma projeção nacional. Assim, a queixa invade o antes bárbaro sertão e deseja outras geografias:

Cristaleira 13

Quixadá, sinto-me desiludido do meu nome. Nome que não anda. Não deixa o Ceará. Parado. Dize ao teu vigário

Que desejo rebatizar-me, agora nas águas do Cedro. O novo nome? Joaquim, Vamos ver se esse não é como Jáder: gosta de andar...

A solução encontrada, ao final da vida, é singela e, ao mesmo tempo, dolorida: mudar de nome. O nome sugerido, Joaquim, é o do bisavô que veio de Portugal e representa o ethos do viajante que Jáder nunca conseguiu incorporar. Percebe-se, portanto, que, com o envelhecimento, é comum o desejo do não feito, do deixado para trás, do sofrimento da ausência e da incompletude. Por isso, busca-se refazer um caminho já sabido impossível. Dessa forma, a dor duplica-se: além dela mesma, a impossibilidade da cura. Bem exemplar dessa feitura é o poema “Outra infância”, que resgata o sentimento do irreversível mediado pela proximidade da morte:

Imagino um Deus, Dono de todos os poderes, capaz de ver através de olhos cegos, de falar muito alto de dentro de toda mudez, para que me devolva a infância: a infância que perdi antes do tempo de perdê-la.

O Deus que invoca tem algo de mórbido e vidente, cego como Tirésias e poderoso como um oráculo:

Repito:

Devolve-me a infância

Ó Deus que enxerga pelos olhos dos cegos, Escutas o mundo

Pelos ouvidos mortos

E falas, com clareza, Nas línguas paralíticas.

Assim, no princípio e no fim, as angústias se instalam e se tocam. Como dar sustentação à velhice e aliviar o futuro, com a morte à porta? Resta ao poeta, em seu isolamento, físico e psicológico, reclamar essa falta. Entre presença e ausência, o ato poético se faz.

Sarah Diva Ipiranga

Professora Adjunta de Literatura Comparada do curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Pós-doutora em Literatura Brasileira pelo Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Estudos AMI (Autobiografia, memória e identidade) e autora do livro O sol na palavra: a literatura cearense sob o signo solar sarahdiva31@gmail.com

Para conhecer Jáder de Carvalho

Nascido em Quixadá, Ceará (29 de dezembro de 1901) e falecido em Fortaleza (7 de agosto de 1985), é um dos nomes mais representativos da literatura produzida no Ceará. Com 16 anos, em Iguatu, por meio de uma tipografia, iniciou a publicação de seus escritos, além de sonetos de Olavo Bilac. Em 1928, fundou o jornal A Esquerda. Mais tarde, em 1947, o Diário do Povo e, nos anos de 1960, a convite de Paulo Sarasate, passou a publicar em O POVO. Entre 1943 e 1945 esteve preso, acusado de comunista e por criticar o governo de Getúlio Vargas. Foi membro da Academia Cearense de Letras e, em 1974, foi eleito Príncipe dos Poetas Cearenses. Para saber mais sobre o poeta, acesse o documentário “PERFIL: Jáder de Carvalho”, da TV Assembleia do Ceará.

Cristaleira 14

Radiadora

A Capa de Chuva

Era tempo de chuva. Um rapaz que gostava de festas e tinha fama de namorador encontrou, num baile de clube suburbano, uma jovem que lhe chamou a atenção pela beleza: alva, loura e de olhar tristonho. Tirou-a para dançar, e tão bem se entenderam que, naquela noite, nenhum outro rapaz dançou com ela, nem ele dançou com outra moça.

Tarde da noite, quando ela se despediu, revelando que prometera à mãe não se demorar muito no baile, pediu-lhe que não procurasse segui-la.

No momento em que a jovem ia saindo, começou a chover. O rapaz, por gentileza ou por vontade de revê-la, emprestou-lhe sua capa de chuva, ao mesmo tempo em que, rindo, perguntava como a receberia de volta e qual o seu nome.

— Meu nome é Alzira. Anote meu endereço.

Dois dias depois, numa tarde de céu nublado ameaçando chuva, foi ele à rua indicada e, chegando à casa cujo número havia anotado, bateu palmas. Ao ser atendido por uma senhora de cabelos grisalhos, indagou se ali morava a senhorita Alzira.

A mulher esboçou um gesto de espanto e perguntou de onde ele a conhecia. Ao saber que jovem havia dançado

naquela mesma semana em um clube do bairro, olhou-o fixamente e disse, a voz trêmula:

— Tive apenas uma filha, e se chamava Alzira... Mas ela morreu. Morreu há mais de cinco anos. Entre, por favor.

Como ele insistisse na história, com o forte argumento de que a moça lhe havia dado nome e endereço, a senhora foi buscar um álbum de retratos e, passando as páginas, pediu que ele apontasse a moça com a qual havia dançado.

— É esta aqui!

— Impossível. Esta é a Alzira, mas ela morreu, como eu lhe disse. Vamos ao cemitério, que não fica longe, para que o senhor se convença de uma vez por todas.

Tomaram um ônibus e já caíam os primeiros pingos de chuva quando entraram no campo-santo. Com a força do vento, os ciprestes farfalhavam. Mas antes que a mulher de cabelos grisalhos mostrasse ao rapaz o jazigo da filha, ele recuou, lívido. Sobre um dos túmulos estava estendida a sua capa de chuva...

Sânzio de Azevedo sanziodeazevedo@gmail.com

Asas para Rute

Rute, 15 anos, entrou em casa com o olhar diferente e cor indecifrável nas faces salientes. O pai, um rude homem do campo, não conseguia decifrar o que ali se passava. Nem queria. Na sua ignorância ruminava como a vaca magra que lá longe cortava o mato: “conheço essa inquietação. Mas se essa menina está pensando que vai ser como a danada da mãe e a sem-vergonha da irmã... não vai mermo”.

Caminhou decidido até o único cômodo com porta no casebre quente, mas limpinho, como a mulher tinha ensinado.

Rute sentia saudade da mãe, morena com o rosto sempre em brasa, como gritava o pai nas horríveis discussões motivadas pelo demônio verde – era assim que a vizinha Damiana tinha explicado o ciúme do seu pai – quando a mãe criou asas e partiu.

A mãe voara após a surra que lhe deixou marcas pelo corpo bonito. Rute ainda guardava o calor dos lábios da mãe ao se despedir dela e da irmã naquela maldita noite. O pai bêbado e inerte na cozinha. A mãe juntou seus molambos e seguiu a vida. Rute tinha então 10 anos.

Sua irmã, Sula, estava à época com 16. Assumiu a casa, mas não os carinhos da mãe, nem o colo, nem os cafunés. Sula partira com um motorista dois anos depois da mãe. Rute ficara com a casa e o pai – carcereiro e catapulta!

Um pouco de paz Rute só encontrava na casa de Damiana. E era lá que, dia após dia, entre o feijão no fogo e as panelas espelhadas ou uma troca de mantimento, que Rute tecia suas asas para a acalentada liberdade.

– Abra, Rute! – vociferou o homem!

– Está aberta, pai – tratou de responder a menina para não piorar sua situação.

O pai trazia na mão o açoite e seu olhar escaneou o quarto e parou na cesta de vime em que repousavam tubos de linhas coloridas recém-comprados, agulha e tesoura sobre a humilde mesa. Ao lado uma camisa do patriarca. Envergonhado, o homem olhou para a menina, fez que enfiava o tal cinto no cós da calça e por nada beijou-lhe a testa e saiu.

Recuperada do susto, a menina esticou a mão e retirou de sob a toalha da dita mesa um papel bem dobrado. Seus olhos correram ligeiros e alegres as linhas em que se lia: “Ficha de Inscrição para o EJA Ensino Fundamental” – sorriu. Mais uma etapa de suas asas estava concluída e as suas não eram de cera.

Rejane Nascimento rejanasc@gmail.com

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Ela não portava o objeto que poderia transportá-la para o universo onde estavam seus possíveis interlocutores. Por isso não teria como interagir, embora desejasse tanto. Não que ela não pudesse conseguir um artefato daqueles. Podia. Mas não queria possuir algo tão viciante. Restava aguardar. Quem sabe um par de olhos qualquer iria, em dado momento, cansar de olhar para baixo e virar em sua direção. Ela esperou pacientemente. Até que perdeu a esperança; todos permaneceram surdos, completamente alheios à sua presença. Nem mesmo notaram quando ela, resignada, se levantou e tomou o rumo de casa. O dia chegou em que ela já não se sentia reconhecida por ninguém. Estava presente, perto de todos, mas vivia desterrada, isolada do mundo, com seu celular de abrir e fechar, modelo antigo, que apenas ligava e atendia chamadas. Foi quando se deu por vencida e pediu para o cunhado trazer de Miami o mais moderno que pudesse encontrar, lindo, completo, ostensivo. Criou perfil numa rede social, numa segunda, numa terceira — marcou presença em todas as redes relevantes. Os amigos se regozijaram e disseram “que bom te ver por aqui”, mas em pouco tempo ficaram entediados e fizeram de novo ouvidos moucos, pois ela passou a lhes dar bom dia diariamente às sete da manhã com fotos de gatinhos fofos.

josecdefreitasjr@yahoo.com

Mortança em Saboeiro

Aquele galo esperava o amigo gato todas as manhãs. Ele vinha com seu andar macio pelo muro, até a cerca no fundo do quintal. Trazia as notícias mais recentes da casa. Foi ele que alertou ao amigo que a galinha Joaninha seria o prato do aniversário do membro mais novo dos Braga.

Não deu outra, foi muita correria, mas o galo não conseguiu fazer nada. Agora tem de passar horas agradando as galinhas restantes, dizendo coisas, como “Você está magra, fique tranquila!”

Em Saboeiro uma casa com visitas tem sempre um almoço de galinha à cabidela, ou cabrito guisado. E falando na peste, o cabrito – só berra bobagens – não deu as caras.

O galo procurava saber alguma coisa sobre o próximo a ir à panela para fazer um trabalho de conscientização no galinheiro. Ele não se importava com o peru, aquele que serviu ao Natal da família. Achou foi bem feito, que o bicho era metido.

Mas o gato não tinha novidade, só sabia que os bichos podiam ficar sossegados: “Estão fartos de tantas ceias nesses dias de fim de ano.”

quando estava com fome mandava logo vir buscar umas duas das suas galinhas”.

– Não me fale naquele homem. Perdi muitas para matar a fome dele. – lamentou o galo.

– Pois é melhor que venha muita chuva e que tenhamos muitos peixes, que, aliás, eu gosto muito, senão você vai ficar, amigo galo, só administrando ovos.

Era janeiro e o galo imaginava que o gato estava certo: não haveria mortança no galinheiro e logo iriam se lembrar daquele bode velho que já estava passando da hora. O gato assim também pensava, pois o bode não era da família, tinha chegado há poucos meses, devia ter alguma serventia. “Ainda bem que este povo não come gato”, imaginava, e ria-se por dentro como sempre fazia sobre o destino dos outros bichos do quintal, enquanto, por fora, ele se condoía todo, achava uma injustiça.

O papo se esticava, já quase sete da amanhã, e o gato tinha seus afazeres, como acordar as crianças em férias e ganhar torresmo do café da manhã do senhor da casa.

Radiadora

Radiadora

bairro

antes das seis quando o céu indeciso não mostra luz nem trevas  paradas de ônibus enchem-se de pessoas sonolentas

bocejos e bom dias tímidos dinheiro trocado para não atrapalhar o tráfego de pessoas nas catracas portões de rolar janelas grandes de ferro deslizam para abrir cheiro de café cheiro de pão

a vida está assando nos fornos industriais das padarias

a rua não fica limpa num passe de mágica são senhoras gordas pretas magras brancas que sacam piaçabas limpam calçadas enquanto os homens do caminhão do lixo  rebolam no meio da rua os tambores  para raiva e resmungo das senhoras

logo tudo parado se move

carros bicicletas adolescentes raivosos indo pra escola as principais notícias vencidas de ontem cruzam nas esquinas de sacolas nas mãos

todo dia é único

Talles Azigon

tallesazigon@gmail.com

Mendigos

ACORDASTE!

Debaixo da ponte... sem destino!

ACORDEI!

Sob o teto que dormi, a solidão de menino!

Teu frio de cobertor, meu frio de amor... raios solares, em todas as pontes... em todos os lares...

ACORDEI!

Contas a pagar, frutas e solidão, leite e pão...

ACORDASTE!

Lixos fedidos, sobras de pães dormidos...

Amanhã, quem sabe, tua alegria nas contas a pagar e na solidão a amar... Serás bem mais feliz do que o destino me quis?

Amanhã, meu olhar de ponte sobre os olhos das amantes ... sobre os olhos das mães e a partilha dos dormidos pães!

Serei bem mais feliz do que o destino te quis!

ACORDASTE! ACORDEI!

Silêncio... Dorme o companheiro, o mendigo herdeiro das lágrimas de meu verso rotineiro:

Tu ficaste sem comer

E chamas isto de fome.

Eu fiquei sem amar e, para isso, não tem nome!!!

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luanamenezesbraga@gmail.com

ipumirim soberbo (o poema)

I

mas e agora que o poema silencia? o que resta além do devaneio feito de passado e trevas? – o que resta, alencar? a baunilha que recendia do campo agora é a fumaça feita de verdes árvores e vermelhos bichos; a relva que mal roçava o pé hoje é a bruta mata seca queimada ao relento e embebida de fuligem. a ará que não canta mais a predestinação da raça daqueles que partem rasgando sertões sem que voltem – o poema silencia.

II

sob a jaci nua e o vento cadente do juripari, corre a caapora torpe do cauim, lançando notas perdidas na argêntea noite com seu toró melindroso; a melodia é aquela que devolve o espírito das pessoas porque onde havia melodia, havia a lenda que o vinho da jurema guardava em virgindade – mas a lenda virou um verbo sem volta, virou o avesso da verdade que serviu de padrão pra cidade dormente sob essa jaci nua prateada, virou o desatino de quem o passado corre – grita caapora.

III

era o teu testamento, mel-redondo, por quem foi sem volta e quem voltou sem ida; o bélico deus latino vindo de ignota arma tirou-te da terra pra embranquecer osso perto do mar; tua virgem velada pela canto poente deixou a semente da dor varar oceanos pela nau daquele pai de sangue na mão e fronte branca; ficou na língua lusíada o destino do teu povo; e nesta lenda absurda – tua raça silencia.

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Gosto Fundamental

fundamental é o imenso prazer de estar vivo

fazer amor com a mulher querida e embrulhar em cheiros púbicos o sono lasso

correr a mais de cem pela manhã recém-lavada através da chuva fria da chuva friíssima e criadora

não necessariamente resolver mas existir em meio ao fascinante jogo dos conflitos

fundamental é o gosto de mel na boca por estar vivo

já sei que não serei jamais o grande poeta que minha adolescência alucinou mas a melhor parte de mim é a poesia

é esta parte que me nutre de ritmo e de esperança

– se –

e se eu criasse a rua, a calçada, as casas numeradas com as inverdades tão próprias delas se os segredos que dividem a porta da frente e as poeiras das famílias tudo criado num ouvi dizer inventado e se na rua que liga a igreja ao cemitério houvesse vidas

e se o padre largasse do capeta e os políticos das tetas do profano santificado e se a máquina-mostro parasse de asfaltar as ruas, as árvores e os pés e a saudade morresse esquecida numa esquina da infância

e se a poesia servisse de alguma coisa...

Alan Mendonça radiadora@gmail.com

Radiadora

Tiragostos

artista da capa

Audifax nasceu em 17 de abril de 1946. Iniciou-se nas artes com a irmã e professora de desenho Diana Rios. Garoto, já era convidado a pintar panos de lapinhas de Natal. Vindo morar em Fortaleza, ingressaria na TV Ceará como cenógrafo e desenhista. Participou e foi premiado em diversas exposições individuais, coletivas e salões no país e no exterior. É autor de vários murais, aberturas de filmes e novelas, ilustrações, capas, álbuns, crônicas, artigos, ensaios, cordéis, infanto-juvenis, romances, entre outros. Faleceu em 25 de abril de 2015, publicando o almanaque DE UM TUDO, com livros no prelo e muita vontade de conquistar o mundo, como já nos havia conquistado “a priscas eras”..

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Os FitoManos de Raymundo Netto Audifax Rios Chegada de Audifax no Céu de Alexandre Henrique Publicado originalmente no Almanaque DE UM TUDO
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