:ESTÚDIO 3

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Cyprien Gaillard interessa-se pelo processo de degenerescência que modifica a natureza e as cidades (transfigurando-se a primeira nas segundas, e tendendo o processo para se reverter – Gaillard refere como exemplo a cidade de Pripyat, onde se deu o acidente de Chernobyl, hoje invadida por vegetação, que pouco a pouco vai tornando o local irreconhecível (Griffin, 2010: 85). De facto, manter

Revista :Estúdio. ISSN 1647-6158. Vol.2 (3): 178-183.

2. Degenerescência e espectáculo

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estacionamento onde pudesse andar de skate. Na segunda, alude aos campos de golfe, que considera serem as novas paisagens com potencial romântico, silenciosas e introspectivas, mas mantidas desta forma através de um exercício de violência (Griffin, 2010: 85). É esta mesma violência a do urbanismo que, confinando a natureza, a mantém num estado de calma paralisia (até ao momento em que a natureza se torna de novo sujeito e reclama para si o espaço, revelando o inexorável processo entrópico que conduz o mundo ao caos). A sua percepção da paisagem é fortemente influenciada pela noção de pitoresco. Nos séculos XVIII e XIX, esta ideia prendia-se com paisagens de céu revolto, povoadas por ruínas clássicas, vazias de presença humana. Após a conclusão da construção do Bank of England, o seu arquitecto, Sir John Soane, pediu a Joseph Michael Gandy que o pintasse já destruído, num momento futuro de hipotética catástrofe. O que se obtém é a arqueologia de um futuro em potência, a visão de um degenerar do mundo que não se sabe verificável, mas que paira na consciência colectiva. Se na altura a suspeita da eminência da devastação derivava do então recente terramoto de Lisboa em 1755, hoje ela aparece transversal à história e à ficção (que, cada vez mais, se imiscuem). A consciência de Gaillard da natureza funda-se em ambas as realidades: num forte enraizamento na história da arte (do séc. XVII até à land art), já informado pela experiência incerta da contemporaneidade. Tendo nascido em 1980, Gaillard pertence a uma geração em que entretenimento e alienação se tocam, em que a experiência do mundo é esvaziada de realidade, tornando-se cada vez mais mediada por imagens. É este um tempo em que, apesar da eminente urgência da acção, a criação parte muitas vezes do aborrecimento, de um estado de letargia colectiva, que se procura quebrar na busca da realidade. Este paradigma está bem patente em Real remnants of fictive wars (2004). Neste conjunto de performances documentadas através do vídeo, Gaillard lança na paisagem nuvens de fumo de extintor, num acto poético que evoca visualmente o sublime captado por Friedrich, ao mesmo tempo que figura no campo do vandalismo e da cultura urbana (dos skaters e graffiters que fruem ilegalmente e de forma criativa os espaços). As nuvens de fumo evocam explosões (de origens reais ou simuladas), mas também o mistério da natureza avassaladora, criando um espaço de ambiguidade interpretativa em que o sublime e o profano se tocam.


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