Entre o Chiado, o Carmo e Paris

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Guilherme d’Oliveira Martins

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Artes na Esfera Pública

perspetivas crescem não sei que vultos animados… Mas estaremos nós, pela imaginação, perscrutando a boceta de Pandora ou descobrindo a Comédia? O pano correu. Ora projetados, ora engolidos por espaços irreais, vestidos de mil maneiras, passam entes que lembram realizações plásticas de caprichoso demiurgo: irrompem do centro da terra, tombam dos astros, saltam fora do tempo». E quem nos trazia Fernando Amado em 1946 para representar o mundo? Clitemnestra, a Gata Borralheira, Mofina, Desdémona, Tamerlão, D. João, Shelley, Polichinelo, o público, o autor, o crítico, o empresário. E a quem dedicava? A António Dacosta e ao poeta Rui Cinatti. Era assim o Centro das origens: António José Seabra, Afonso Botelho, Gastão da Cunha Ferreira; e ainda Francisco de Sousa Tavares, Sophia de Mello Breyner Andresen, Gonçalo Ribeiro Telles, Henrique Barrilaro Ruas, António Alçada Baptista, João Bénard da Costa, José-Augusto França, Helena e Alberto Vaz da Silva… Os nomes não devem ser esquecidos. Aqui falou Gabriel Marcel do «Homo viator» e o muito jovem Eduardo Lourenço, vindo das margens do Mondego fez a sua primeira conferência em Lisboa, nos idos de 1956, sem que sonhasse que o mais atento dos seus ouvintes era exatamente José de Almada Negreiros… E continuamos a ouvir Fernando Amado: «Ali chegaram: donde vieram? Desaparecem: para onde vão? Se os perdermos de vista é que pela tampa da caixa entreaberta subtis emanações das suas naturezas passaram — e foram animar outras personagens sujeitas a idênticos destinos. Deste jeito os males que hão de espalhar-se pelo mundo saem pela boca aberta do Teatro…» («Peças de Teatro», pp. 596-597). Mas se falamos de moda, de representação, de cavaqueira, temos de chegar à Havaneza, onde se encontravam os melhores puros de Lisboa. A lista de quem aí se encontrava é digna de nota. Tinop chamou-lhe «a última praça-forte dos cavaqueadores do Chiado»: Teixeira de Vasconcelos, Tomás de Carvalho, Bulhão Pato, Eça, Ramalho, Junqueiro, Guilherme de Azevedo, Casal Ribeiro, Ficalho, Pinheiro Chagas, António Cândido, Oliveira Martins, Carlinhos Lobo d’Ávila, Eduardo de Noronha. Muitos esperavam aos domingos o final da missa da uma dos Mártires. E ali mesmo alguém, vendo passar Cesário, lhe terá lançado: «Adeus Cesário Azul!», a que o poeta pronto retorquiu: «Adeus seu troca-tintas»… O teatro sempre. A caixa de Pandora inevitável. De porta em porta, o Chiado ainda hoje é uma encruzilhada de recordações: logo em frente dos Armazéns do Chiado fica a memória da velha «Ática» e de Luís de Montalvor, e a recordação do «quinquilheiro» José Alexandre, que começou a vender hortaliça e flores em caixinhas e acabou a vender as melhores loiças e cristais. Façamos a lista, a eito: Chapelaria da Moda, Casa Pereira, Leitaria Garrett, o cabeleireiro Godefroy, a Farmácia Durão, o Hotel Borges, a casa David — e do


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