CAPITAL

Page 65

Assim, os novos peregrinos, deslocam-se em hordas para visitar os locais onde imaginam poder encontram objectos mágicos, reveladores, onde esperam descobrir a essência do se Ser. Coisas que integram um conceito lato, o de Cultura… exactamente como a descrição do tesouro da Basílica de Santa Tecla da Magna Ilha do Solstício, descoberto e narrado pelo monge Trezenzónio na sua viagem, nos inícios do segundo Milénio. Apenas com a diferença que, ao monge, não foi permitido retornar ao mundo com testemunhos da sua viagem, enquanto ao viajante actual lhe é permitido arrecadar pequenas lembranças, genericamente ícones da paisagem e das coisas, marcos de um mapeamento, arquétipos de incertas epifanias, mas, igualmente, de mãos vazias de significantes. As viagens são compostas por paisagens mutantes, maleáveis, com diversos pontos de vista num crescendo valorativo. Podem ser observadas com os olhos, com a razão e com a emoção. São viagens ao mesmo tempo concretas e irreais, mas sempre verdadeiras. Quando se lhes atribui valor simbólico e espiritual, cultural, a viagem é paradigma estruturante do pensamento conceptual artístico, tão actuais hoje como há mil anos, daí o interesse que nos despertou para iniciar um pensamento sobre arte, capital e cultura.

3. As mudanças de Milénio, perspectivas Antropocénicas A procura desesperada de transcendência que o Homem dos milénios anteriores encetou, tentando dar um sentido à sua própria vida e ao mundo que, ou se proclamava ruir sendo o seu total fim, ou ruía mesmo defronte dos seus olhos, transparece na narrativa de Trezenzónio3. Embora se acentue nas passagens de ciclo, nomeadamente nos Milénios, este tipo de modelo psicossocial atravessa todos os tempos e todas as culturas, sendo por isso fácil reconhecê-lo na narrativa de Trezenzónio. Datada do século XI ou XII vem sorver todos os medos milenaristas que assombravam a mentalidade destes primeiros séculos, agravados na Península Ibérica pelas invasões dos mouros que assoberbavam os povos cristãos. Os medos milenares de hoje são semelhantes, com ameaças ideológicas ou pandémicas, guerras facciosas e respetivas migrações de despojados, desconfianças do diferente, desigualdades e radicalismos (Gusmão, 1992; Duby, 1988)4. Tal como os Cruzados do ano mil, que avançam por terras alheias tentando libertá-las ou proteger os seus povos, existem organismos coletivos internacionais, alinhados por objetivos e missões semelhantes. As migrações, em fugas arriscadas para resgatar a paz ou em busca de maior abundância, os genocídios religiosos ou ideológicos, e, fundamentalmente, o medo atávico da vertigem da queda do mundo, através de variadas possíveis catástrofes colectivas, como o aquecimento global, as mudanças climáticas e as crises

3

Trezenzónio, na sua narrativa, afirma que não encontrava gente galaica quando enveredou por uma Galiza deserta devido às invasões dos infiéis em nome de um outro deus. 4 GUSMÃO, Artur Nobre de, 1992. Românico Português do Noroeste: alguns motivos geométricos na escultura decorativa. Lisboa, Veja. DUBY, Georges, 1988. El Año Mil: Una Nueva y Diferente Visión de un Momento Crucial de la História. Barcelona, Editorial Gedisa. (DUBY, Georges, 2002. O Ano Mil. Lisboa, Edições 70. ISBN 9789724400266)

65 DORA-IVA RITA


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.