O Corpo - edição 3

Page 1


O Corpo

O Corpo

UM JORNAL DO SINDICATO DA PERFROMANCE

Ceará | Cariri, 30 de setembro a 5 de outubro de 2024 ano 4 ¬ edição 3 ¬ distribuição gratuita

Nessa edição vamos refletir sobre os conflitos no corpo. Focando em trabalhos que apresentem reflexões sobre o corpo e suas construções soci ais, as contradições inerentes ao sujeito, os conflitos internos e externos que cada um enfren ta. Pensar as rachaduras que a arte faz ou as artes que surgem das rachaduras que o próprio corpo gera no processo social de confecção da identidade. Que corpo é esse que habita mos? Nós fazemos o corpo ou ele nos faz? Olhamos para o corpo, esse território individual, mas que necessita da coletivi dade para sua manutenção, inspirados na frase da Simone de Beauvoir – de que não se nasce mulher, mas torna-se; olhamos para o corpo como esse território da construção do eu, onde nos tornamos quem somos, onde nos fazemos, processo a processo, experiên cia a experiência. Somos todos resultado de uma construção permeada de nossas vivências diretas e da construção socio cultural e histórica da qual so mos contemporâneos. Quais corpos podem viver livremente na sociedade? Com que corpo enfrentamos o mundo?

Lívio Pereira é agrônomo urbano que passou à artista sertanejo, mexe um bucado com palavra e corpo, principalmente em performance, vídeo e fotografia. Tem pesquisado branquitude e masculinidade hegemônica. Diretor da Fatozero Produções Culturais. É idealizador, coordenador geral e curador do Sindicato da Performance.

soupixo foi desenhista profissional e bordadeira comercial na infância. Formada sem diploma em Artes Visuais pela URCA (2019). Trabalha como artista multilinguagem, tendo como força geradora de sua poética reflexões sobre corpo, memória, gênero e raça. Diretora da Fatozero Produções Culturais. É diretora artística, designer e curadora do Sindicato da Performance. Helionio é ume artista caririense formade em Teatro pela URCA.Atuou nos espetáculos "Que Horas Ela Vem Para O Chá?"(2016) do Coletivo Dama Vermelha e "GRAVE"(2019) da Rizoma Produções Artísticas. Vem trabalhando com performance drag como Coral e formações em cena expandida. É assistente de produção no Sindicato da Performance.

Lara Alencar, natural de Crato-CE. É jornalista, formada pela UFCA, trabalha com assessoria de imprensa de projetos culturais e como produtora cultural do Projeto Cultural Edite Mariano – PROCEM/Casa Luz e do Mestre Aécio de Zaira. É assessora de imprensa no Sindicato da Performance.

Expediente

O Jornal O Corpo, do Sindicato da Performance, festival de articulação e festejo entre artistas do corpo, circula pela região do Cariri com edição anual, com uma visão da linguagem no eixo Norte-Nordeste, ensaiando sempre um olhar para o que está correndo por fora do mercado da arte, em estado de resistência e teimosia. | @fatozero @sind.perfor.art

Edição: Lívio Pereira | Textos: Marie Auip e Lívio Pereira

ORGANIZAÇÃO POPULAR ORGANIZAÇÃO POPULAR

Artistas da aparição, fuleragem, arte de ação, happening, arte não objetual, mandinga, arte contextual, modificação e/ou suspensão corporal, fotoperformance, body art, registro de performance, videoperformance, teleperformance, live art, fação, performance urbana, performação, performance duracional, arte relacional, performance sonora, site specif, performance instalativa, land art, deriva e tantas outras possibilidades ainda nomináveis se organizem!

Por que questionar arquivos coloniaispatriarcais a partir da performance?

As ausências das mulheres nos arquivos têm movido minha pes-quisa artística e acadê-mica.

Ausências, tanto no sentido do apagamento em expressões arquivais, como em narrativas que as diminuem em detrimento dos sujeitos masculinos.

Como artista da performance que sou, escolhi essa linguagem para criar contranarrativas a este apagamento, por seu caráter subversivo, presença corporal e uso da autobiografia como dispositivo de criação – já que mulheres, durante séculos, foram des-tituídas de contar sobre si. Até o momento, tenho dialo-gado com o romance Iracema, a história da beata Maria de Araújo e a figura bíblica Eva.

Por que questionar arquivos que foram produzidos há tanto tempo, através da performance? Me guio pelos estudos sobre performance e memória nas Américas rea-lizado pela pesquisadora Diana Taylor.

A autora aponta para dois sistemas que produzem e transmitem conhecimento nas sociedades: o arquivo e o repertório. O primeiro funciona acima da distância tempo-espacial e é mais resistente à mudança. Já o repertório encena uma cultura incorporada, que requer presença. Ambos são fontes de informação e a autora é enfática ao se opor a leituras binárias, pois, em geral, eles trabalham em conjunto.

Porém, a problematização se dá em relação ao grau de legitimação que a epistemologia ocidental investiu nos arquivos para constituição e manutenção das identidades culturais, desde o colonialismo. Pela facilidade de controle, as sociedades ocidentais investem e consideram mais confiável o arquivo, estabelecendo uma subserviência da cultura incorporada às leis, códigos, cânones, etc. Somada a perspectiva colonial, a dinâmica patriarcal é denunciada por autoras feministas, ao apontarem que os vestígios arquivais muitas vezes não provêm das mulheres, mas do olhar dos homens que detém o poder social. Por isso, questionar o que os arquivos normalizam em nossos modos de viver, através do corpo em performance, pode nos auxiliar a tornar outras histórias e memórias visíveis.

AÇÕES PRESENCIAIS

Na performance “o que é um corpo?” o artista Céu Vasconcelos, que é uma bixa com deficiência física catalogada pela medicina como Hipolapsia congênita, busca diluir as noções rígidas de corpo sustentadas pela corpornormatividade. Se o corpo é uma ficção, é preciso derrubá-lo e edificá-lo novamente. Como se libertar da hegemonia do corpo? Como aleijar um corpo? Como derrubar um corpo? Como se transformar em um altar? Como construir o próprio corpo? Nesta performance, Céu exercita construir um novo corpo, um corpo efêmero, transmutado e aleijado. Um corpo-altar. A partir de um vestível com diversas velas vermelhas acopladas e acesas, a coreografia dos corpos (im)possíveis é atualizada. Um corpo def que dança e transmuta-se. Parafina e movimentos que geram desenhos, inscrições, borrões, mistérios, rastros e memórias. Pistas de um corpo que não aceita a morte, mas que insiste no fogo e na vida.

Na performance "Desbatismo", a artista Indja realiza um ato simbólico em frente à Igreja da cidade do Crato. Ele cospe uma hóstia com sangue, questionando as imposições religiosas trazidas pela colonização. O gesto representa uma crítica ao batismo e ao apagamento da cultura indígena. A performance convida o público a refletir sobre o impacto do colonialismo na identidade indígena e nas tradições.

Defumação para Afastar o Alzheimer Colonial de Pedra Silva é um gesto ancestral que faz um convite ao ato de cura, como diria a artista sul-africana, Lhola Amira. Esta aparição é um contra-feitiço ao que a colonização produziu os corpos racializados. A fumaça é usada dentro de rituais afro-pindorâmicas milenarmente para purificar, limpar e equilibrar o ambiente. A fumaça também é um chamado para a fuga. Não há o que prenda o que já nasce incapturável. Esta aparição é uma convocação a sermos presença-fumaça, a sermos corpos que densifi-

cam o ambiente e transmutam o espaço. O programa performático produz um ritual que acontece no tempo da queima do incenso. São despachados cinco ebós de fumaça e sal grosso ao redor do equipamento cultural que o projeto foi selecionado, criando um círculo de proteção e de quebra-de-demanda. Os ebós são colocados enquanto uma caixa de som, acoplada ao corpo da performer, ecoa pontos de Exu. Uma coreografia de desmantelo da colonização é produzida, evocando a vida, a transmutação e o fim do cárcere. Corpo

É possível pensar práticas do fim deste mundo, a partir da normalização do fim dos óvulos de uma mulher cisgênero? A ação “Eva do Gelo” de Marie Auip é uma tentativa de verticalizar e entrelaçar discussões sobre a normalidade farmacopornográfica (PRECIADO, 2018) de manipulação dos corpos e tempos que geram óvulos e carregam fetos, com a geração de um certo tipo de “vida” recortada por gênero, raça e classe que perpetua a invenção de humanidade amalgamada na cisgeneridade branca, colonial e capitalista. Ao som de propagandas de clínicas de reprodução e falas de mulheres famosas, a performer espera o descongelamento de ovos de codorna. Guardá-los ou comê-los?

Quanto vale um corpo def? de João Paulo é um manifesto sobre as capturas de um sistema historicamente hegemônico e os direitos de pessoas defs.

“Quem sustenta? Edificações desobedientes” de Wandeályson Landim, é uma ação-manifesto que busca trazer uma reflexão sobre as estruturas de poder, violência e morte, e como se alimentam e estruturam os dados e estatísticas de violências e assassinatos LGBTQIAPN+ no Cariri-Ceará-Brasil-Mundo. Quem sustenta? A performance questiona quem nutre essa violência? Provoca diálogos sobre morte, corporeidades, identidades, liberdades e resistências, abordando as relações de poder entre corpos e identidades, ao mesmo tempo em que afirma a existência de identidades e corpos desobedientes-dissidentes. Estes sujeitos/as possuem a capacidade de resistir às estruturas de poder, recusando-se a ser subjugadas, apagadas, marginalizadas, e esquecidas O trabalho é uma reflexão importante e urgente sobre as violências LGBTQIAPN+ e sobre os dados que alimentam essas violências. É uma oportunidade para o público refletir sobre como se estrutura a LGBTQIAPN+fobia. E como (re)criar uma nova estrutura e possibilidades de existência. Não vão nos matar agora, porque ainda estamos aqui!

Corpo vivo, desejo em movimento.

Por que fazer um festival no Ceará profundo, longe do centro do poder econômico e político do estado, sua capital? Por que fazer um evento em performance, essa linguagem ainda tão marginal? Essas são perguntas que me faço todo dia desde que decidi criar o Sindicato da Performance e sigo me fazendo enquanto continuar optando por realizar o festival. Acho importante me fazer essas perguntas, para ir avaliando comigo mesmo se ainda faz sentido realizar o Sindicato, afinal para dar vida a uma edição é necessário muito trabalho, inclusive parte significativa dele não remunerado, pois como é uma linguagem muito fora do mercado dependemos integralmente (pelo menos até o momento) dos recursos advindos dos editais públicos, principalmente o Ceará das Artes, que inclusive em sua 13ª edição (segunda na qual a performance foi reconhecida) financia a nossa 4ª edição. Em segundo lugar, contamos com o apoio de equipamentos públicos que topam fortalecer a linguagem da performance, aqui no Cariri, é importante dizer, já tivemos o apoio do CCBNB Cariri em muitos momentos e na terceira edição do Centro Cultural do Cariri e do Teleférico do Horto. Um terceiro conjunto de parceiros seriam as universidades públicas, como a UFCA e a URCA que colaboram na medida de suas limitações com espaços e mobilização de público, ponto esse que muito nos interessa.

Mas a nossa maior parceria desde o início tem sido os pontos de cultura e coletivos culturais independentes da região, que abrem suas portas, que mobilizam público, que emprestam equipamentos, enfim, que somam com toda sua energia na realização do festival, sem eles possivelmente o Sindicato da Performance não teria resistido tudo isso. Então o meu mais sincero agradecimento a todas as trabalhadoras e os trabalhadores da cultura que animam o Coletivo Camaradas, a Quebrada Cultural, a Casa UCÁ e a Plataforma Imaginários. Agora voltando as perguntas do início. Mobilizo toda essa energia na construção desse festival, pois acredito que a arte é um grande indutor de formação social, política e cultural, que em síntese, podemos dizer que é um catalisador na formação de autonomia e soberania, essencial na construção de um mundo novo, que é algo que me movimenta e me dá vontade de continuar. Então, como diria dona Ana, militante Sem Terra, “é pesado, é difícil, mas não é impossível”, então eu continuo acreditando, sonhando e construindo. E você, o que tem feito dos seus sonhos?

Mostra Pedras, Noites e Poemas

Gracias por su compra (Bolívia)

Alejandra Del Carpio

Selibaration #2 (SP/BR)

Estela Lapponi

Fotos divulgação/acervo das e dos artistas.

Aparelho v i v o feminino (CE/BR)

Williana Silva

Alimento (Honduras)

Jorge Oquelí

Engula (PE/CE/BR)

Nayra Mayara

Mixaria no sertão, ouro no sertão (CE/BR) – FelipeAlves

Realização Integrante

Parceria
Apoio

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.
O Corpo - edição 3 by Lívio Pereira - Issuu