Perguntas que nunca foram respondidas

Page 1

Perguntas que nunca foram respondidas Quando era criança eu sempre achei que tínhamos um mundo paralelo habitado somente por pessoas boas, famílias perfeitas e felicidade eterna. Pintava em minha mente todo tipo de utopia para tentar amenizar meu sofrimento, sempre esperava que acontecesse algo de repente e todo o pesadelo que eu vivia tivesse um fim imediato. Todas as tardes eu dormia para que o tempo passasse mais rápido e esse momento tão esperado chegasse. Tudo não passava de devaneios e era despertada pelo cheiro da comida da minha mãe que invadia minhas narinas me convidando para o jantar. O horário era obedecido rigorosamente e o ritual diário levado à risca, meu pai chegava às 18 horas do trabalho e a comida tinha que estar sobre a mesa, com toda a família devidamente aparamentada para o jantar, salvo os finais de semana em que ele amanhecia na rua, nos bares e nas casas de prostituição. Eu sempre presenciava a agonia de minha mãe e as noites em claro, não sei se pela preocupação natural de esposa ou pelo medo das brigas que sempre acabava com as surras que ela levava. Era raro um final de semana em que aquela casa tivesse paz, isso quase não acontecia. Eu e minhas irmãs nos preparávamos psicologicamente, se era que isso era possível, para aquele tormento em nossas vidas. Minha mãe era calma, tranqüila mesmo diante do vendaval que passava em minha casa freqüentemente. Era ela que sempre nos acalmava dizendo que um dia tudo aquilo iria passar e que de uma maneira surpreendente tudo melhoraria, eu ficava ali quieta com medo desejando que meu pai nunca mais voltasse. Não tive tempo nem para admirá-la, hoje vejo que exemplo de mulher ela foi, uma mulher de fibra que colocava sempre a família em primeiro lugar. Meu pai era um ser humano estranho e frio, nunca vi um gesto de carinho com a família, nem mesmo com minha mãe. Quando ele chegava do trabalho todas nos encolhíamos em um canto qualquer sem um pio, porque sabíamos que qualquer barulho era motivo para surras e gritos. Certa feita eu esqueci o horário em que ele chegava e me perdi no tempo olhando pela janela, estava tão absorta que não percebi qualquer movimento. O que me trouxe de volta para a realidade foi uma cintada em minhas costas, aquilo doeu tanto que eu tive o ímpeto de revidar com toda minha força, enquanto eu gritava de dor dizendo que não tinha feito nada, mas ele continuava batendo sem nenhuma pena, dizia que a surra era porque eu estava olhando pela janela e com certeza algo estava me chamando à atenção, hoje eu sei o significado do termo, porque sim, não havia motivo para aquele massacre. Eu não imaginava que aquele ato pudesse despertar em mim tamanho ódio a ponto de eu desejar a morte dele. Minha mãe era impotente diante dessas atitudes, qualquer gesto dela era passível de brigas intermináveis. Eu nunca entendi os gestos dele e as perguntas mais relevantes nunca foram respondidas, eu aceitava aquele destino sem nenhuma resistência e passei a acreditar que eu apanhava porque existia. Nenhum erro meu foi tolerado por ele, nem o mais humano deles como, por exemplo, um atraso de cinco minutos que fosse, deve ser por isso que hoje sou rígida com horários quase uma britânica. Algumas vezes ele me mandava fazer algum serviço na rua e cuspia no chão, ele dizia que se o cuspe secasse e eu não tivesse voltado eu apanharia, como se isso fosse uma novidade em minha vida, mesmo assim eu obedecia cegamente. Minha mãe era muito religiosa, velas eram acessas freqüentemente e orações feitas periodicamente. Eu sentia certo conforto naquelas orações, mas nunca entendi porque Deus não ouvia as suas súplicas. Ela era muito jovem, tão bela, e uma vida tão tumultuada. Eu nunca me esqueci das tormentas vividas por mim, à face dura de meu pai jamais sairão de minha mente. Se fosse necessário várias vidas para que tudo isso fosse limpo do meu cérebro


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.