O lado obscuro da noite Já se passaram alguns anos e esse lado negro da noite ainda me assusta um pouco. Era sempre perto das 19 horas quando meu pai chegava do trabalho e o simples fato da proximidade da hora já dava calafrios na espinha, até o cachorro que farejava sua chegada de longe se encolhia em um canto e ficava quietinho. A presença dele não trazia só medo, mas sim um misto de enigma, suspense de que algo de ruim sempre fosse acontecer. A televisão era desligada às 20 horas e éramos obrigadas a ir para a cama imediatamente e quando ele determinava que tínhamos que ir antes das 20 essa ordem tinha que ser seguida a risca. De vez em quando ele ia até nosso quarto para se certificar se estávamos dormindo, como se fossemos obrigadas a fechar os olhos e adormecer. A noite era um verdadeiro tormento já que eu não entendia como um homem detinha tanto poder apenas por ser meu genitor, me sentia escrava até mesmo dos meus sentimentos, porque não podia expressar nem o amor e nem o ódio. Por ser a filha mais velha eu achava que tinha o dever de proteger minha mãe das investidas malignas dele sempre usando da força e da violência, mas eu acabava apanhando junto, isso me trazia até um pouco de alento por saber que ela não sofria sozinha, quando ele decidia que ela tinha que apanhar na madrugada isso era consumado. As noites de minha vida foram sempre uma sucessão de horror, certa época eu fiquei dois anos sem dormir porque me acostumei a ser vigilante, muitas vezes em vão. Todos os monstros e fantasmas adoravam me assombrar, tinha uma bolinha que girava em cima do meu telhado me deixando quase louca com tanto barulho, cheguei ao ponto de subir em cima do telhado para procurar a tal bolinha que me perturbava, tentativas em vão e a única coisa que ganhei foi uma queda de quatro metros de altura e um mês na cama, isso me levou a acostumar com o barulho porque sabia que estava impotente diante do fato, até hoje eu não entendo de onde vinha aquilo, se era do meu cérebro atormentado ou se o inferno curtia o meu pavor noturno iniciando ali a tal teoria da conspiração, qualquer coisa que eu me propunha a fazer era carregada de incertezas e obstáculos. O breu da noite me amedrontava fazendo parceria com a noite escura da minha alma. Eu fui testada de todas as formas, parece que o inferno não se preocupava muito com a minha aparência franzina e frágil, me colocando a prova de todas as formas e claro sempre me vencendo pelo medo. Esse período obscuro e de tempestades durou muitos anos, com o passar do tempo ele só piorava, como se fosse um game de terror onde eu tivesse apenas de mudar de fase, a cada etapa vencida ficava mais complicada e mais difícil. Quase todos os episódios ruins de minha vida aconteceram no ambiente familiar, hoje eu sei que não posso apenas ignorar todos esses acontecimentos pois fiquei muito tempo presa a um passado de terror. Tudo que escondi consciente e até inconscientemente talvez fosse para ser aceita, amada e sociável. De acordo com aquilo que idealizei, todo o nosso ser tinha que ser perfeito,as famílias tinham que ser exemplos, tudo isso que para mim era sombra me envergonhava. Hoje eu consigo enxergar essa sombra e confrontar com ela, o medo foi embora, e o que era treva se transformou em luz.. Eu consigo desenterrar todo esse horror do fundo da minha alma e lançá-lo para fora, toda dor e emoção contida consegue fruir com facilidade mesmo que seja através da escrita. Falar no assunto ainda me constrange, mas sei que não adianta reprimir todas essas emoções, porque estarei apenas tirando ela de um lugar e colocando em outro. Hoje eu vejo que a felicidade que tanto procurei estava armazenada dentro dessa obscuridade. Minha vida ainda continua um labirinto sem fim, mas já consigo passear por esse lugar complexo sem me desesperar e sem me perder nas noites escuras de minha vida. Já não me oculto mais atrás dos sentimentos, as muralhas interiores foram derrubadas e as sombras se aclararam.