Revista Literária Condoreira #2

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EDIÇÃO #02 - 2020

MANIFESTO PARA O FIM DO MUNDO COMO O CONHECEMOS Reflexões sobre a questão étnico-racial

OS CANCELADOS

Uma distopia da cultura do cancelamento

CARTA ABERTA AOS DISTRAÍDOS

Momentos reflexivos na janela do coletivo

EDIÇÃO ESPECIAL

LITERATURA EM TEMPOS DE PANDEMIA

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REVISTA LITERÁRIA DIGITAL

CONDOREIRA SOBRE A EDIÇÃO APOIO

Curso de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda

IDEALIZAÇÃO Érika Cavalcanti Márcia Lira Joseildo H. Conceição

COORDENAÇÃO Frederico Machado

CORPO EDITORIAL Ester Lyssa Gustavo Nunes Joseildo H. Conceição Márcia Lira Vitória Prazeres Vivian Millena Costa

CAPA E PROJETO GRÁFICO Joseildo H. Conceição

https://www.facho.br/ @facho_olinda revistacondoreira@gmail.com @revistacondoreira

EDIÇÃO DA QUARENTENA PRODUÇÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA

11.

CARTA DO EDITOR

12.

SOBRE A QUESTÃO RACIAL

Manifesto para o fim do mundo como o conhecemos Simão Pedro de Andrade Silva

14.

TEMPO DAS INUTILIDADES

CONTEÚDO

16.

Algumas narrativas precisam ficar vivas e em movimento porque nasceram com essa vocação

Julia Guimarães barbosa

OS CANCELADOS

Danilo Brandão

18.

EM TRÊS ATOS

22.

23 BORBOLETAS NA JANELA

24.

CARTA ABERTA AOS DISTRAÍDOS

Danilo Brandão Suelany Ribeiro

Joseildo H. Conceição

26.

O SUSTENTÁVEL PESO DO SER

Renata Ruffo

28.

TRANSITION

30.

TEM CERTEZA QUE QUER SENTIR O VAZIO DO MEU PEITO?

Josimar Oliveira

Son Farias 6

32.

POESIA DE INSTAGRAM

Uma homenagem às novas

vozes de expressão do poder preto Gustavo Nunes

34.

PRODUZINDO EM TEMPOS DE PANDEMIA?

Vivian Millena Costa

35.

NÃO ESTOU TRISTE NEM FELIZ

Micaela Sá

36.

1967 (T.I. IGARASSU / DANTAS BARRETO)

Joseildo H. Conceição

37.

QUARENTENA

38.

MORTE PÓS-PANDÊMICA

38.

SONETO DE PLENITUDE

39.

PAISAGEM NOTURNA

Josicleia Lima Basílio Basílio

André Santa Rosa

40.

PLAYLIST CONDOREIRA

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Olá, leitor.

Para esta edição, carinhosamente chamada de “Literatura em tempos de pandemia”, fizemos um apanhado de textos, produzidos sobre e/ou durante o período da pandemia da covid19, que dialogam com o literário.

Pegue algo para beber, selecione alguns petiscos e acompanhe nas próximas páginas os contos, crônicas e poemas da edição.

E não esqueça: Use máscara, saia apenas quando for essencial, lave as mãos periodicamente com água e sabão, use alcool em gel, mantenha o distanciamento social e tome cuidado para não ser cancelado na internet.

Boa leitura, Joseildo H. Conceição Editor

CARTA DO EDITOR

Vamos abrir um tubo de alcool em gel, higienizar as mãos e celebrar mais uma edição da Revista Condoreira! Nada de aglomerações. Comemoremos de forma digital a concepção desse novo material.

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Sobre a questão racial

Manifesto para o fim do mundo como o conhecemos Simão Pedro de Andrade Silva

É

preciso que falemos uma vez mais sobre a questão racial, mas falemos bem desta vez. Não há mais formas de fecharmos os olhos para a sofrida realidade presente há muito no nosso país e no mundo, o racismo, e tudo aquilo que dele deriva, a violência policial, o genocídio, a discriminação, o epistemicídio, as baixíssimas possibilidades de ascensão social, a miséria, o estereótipo; enfim, a opressão sistemática de povos inteiros.

contrário, sua raiz está no ser branco. E, mais do que uma constatação, o argumento se constitui numa chamada a luta, a responsabilidade, a transformação social que não pode partir ou se concretizar vinda só do lado que sofre cotidianamente com essa opressão. Já Djamila Ribeiro, em Pequeno Manual Antirracista, indica uma serie de práticas auxiliadoras da luta antirracista, as quais devem ser exercidas por todos aqueles dispostos a combaterem o racismo, isso vai desde o ensino básico, relações familiares, ou ambiente de trabalho. Visando um horizonte no qual a raça (o ser negro/branco/etc) deixem de ser marcadores sociais.

Em Racismo Estrutural, Silvio Almeida estabelece os parâmetros necessários para o entendimento do funcionamento dessa estrutura social: o racismo é uma forma de racionalidade, de se constituir relações sociais, de se naturalizar condições, de promover privilégios a determinados grupos em detrimento de outros. Na obra, o jurista também aponta que não depende necessariamente dos indivíduos racializados dispor ou não das condições impostas pela estrutura social, contudo isso não quer dizer que não devamos nos responsabilizar pelas mesmas condições, tendo em vista as dimensões catastróficas por elas provocadas e que partilhamos todos da mesma sociedade.

Casos como o de George Floyd, em Minneapolis, ou do menino Miguel, em Recife, ou do exponencial número de pessoas não-brancas vítimas do codiv-19 no Brasil e nos Estados Unidos revelam a última consequência do devir negro no mundo, a tragédia.

A raça e o racismo não são apenas um dado da positividade, mas também da negatividade. Isso quer dizer, assim como Frantz Fanon elabora em Peles Negras, Mascará Branca, que a opressão racial constitui patologicamente o inconsciente social. Se manifesta não apenas na discriminação propriamente dita, mas também na indiferença, por exemplo, com as milhares de pessoas negras, sobre tudo jovens, vitimadas pela violência policial anualmente, o que o movimento negro brasileiro vem chamando há anos de genocídio da juventude negra; pois então, vemos que não basta a resistência no plano individual - ela precisa ocorrer incontornavelmente em nível institucional e, sobretudo, político-social.

Bell Hooks já denunciava, em 1984, quando publicou Teoria Feminista: da Margem ao Centro, o fator estrutural das opressões, como a racial, historicamente desenvolvidas e diretamente ligadas ao processo de reprodução das sociedades capitalistas, sendo este um fator constituinte dessas mesmas sociedades.

A escravidão não é algo que está à margem

Sendo assim, os fatos nos colocam em frente de uma situação incontornável - como sarar a mazela secular do racismo na nossa sociedade?

Guerreiro Ramos aponta em Patologia Social do Branco Brasileiro que o racismo no Brasil não é um problema recluso aos negros do país, pelo 12

Dito isso, para além de acusações morais, ou passivas reflexões, proponho aqui estabelecer um ultimato – precisamos promover mudanças radicais agora, com o risco de não termos mais o que mudar no futuro. Essa é a gravidade da atual crise que permeia o mundo, a qual um dos seus principais fatores, o racismo, descrevemos aqui.

da constituição da sociedade brasileira, mas, sim, o que possibilitou sua criação, substituída posteriormente pelo racismo estrutural.

Tal crítica se aproxima do que vemos nos estudos de Achille Mbembe, ao afirmar que os desdobramentos das políticas internacionais na atualidade conduzem ao que ele chama de “Devir negro no mundo”, pois, sobre a lógica do neoliberalismo, da redução dos direitos sociais, do escasseamento das mínimas condições de vida, do ultra-individualismo, da violência como forma de resolução das contradições sociais, até aqueles que hoje se consideram brancos teram seu dia de negro.

Para finalizar, gostaria de afirmar meu total apoio a todas as pessoas negras aflitas e em luto com a presente situação. Agradecer ao movimento negro, a aqueles lutadores e lutadoras que se dispõem diariamente a lutar pela causa, com os quais eu e vários outros temos uma dívida e uma responsabilidade, e dizer ressaltar também a continuidade da luta pela transformação social.

Vocês não estão sós. Umbuntu.

Chegamos, então, diferentemente da percepção majoritariamente veiculada no senso comum, que o que está sendo enfrentado hoje não se limita ao problema moral ou patológico de certos indivíduos, mas uma urgente crise civilizatória, entendo que o racismo, o colonialismo e o imperialismo as fundações do que chamamos de civilização. A verdade é que estamos chegando no limite das possibilidades de reprodução da forma contemporânea de sociabilidade, cujos alicerces integrantes da nossa sociedade, da nossa vida cotidiana, estão prestes a ruir.

...........

Me chamo Simão Pedro de Andrade Silva. Sou mais conhecido como Pedro. Tenho 22 anos e, atualmente, estou matriculado no sétimo período do curso de Letras da FACHO. Me interesso pelas áreas de Filosofia da linguagem e Teoria da Literatura, além de Teoria Social. Sou, também, um jovem negro.

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Tempo das inutilidades Algumas narrativas precisam ficar vivas e em movimento porque nasceram com essa vocação Julia Guimarães Barbosa

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om o tal conforto de comprar tudo e qualquer coisa pela internet, seduzidos pela facilidade de um clique, fomos perdendo a magia de procurar pelos livros nas prateleiras das livrarias e bibliotecas. Sem que sequer soubéssemos, abrimos mão daquela sensação de buscar uma obra “X” e encontrar outra que estava ali nos aguardando silenciosa e discretamente.

bem — enquanto vivia cotidianamente sua vida.

Tanto Mercè quanto Colometa estavam “fora” da história oficial porque eram mulheres.

Na época em que li o livro, assim como a autora e a personagem, eu estava “de fora”, observando de longe a Guerra Civil Espanhola como pano de fundo de uma obra literária... observando Colometa espelhada nas vidas que existiram e que viraram pano de fundo de um acontecimento histórico. A distância cultural que nos separava não impediu minha identificação, muito pelo contrário, algo em Colometa me lembrava Macabéa, personagem de Clarice Lispector, que também vivia sua vida ingenuamente, disfarçando a solidão e o horror de seu destino com certa doçura e encantamento pelas pequenas coisas.

Partindo do princípio de que as livrarias de carne e osso viraram lendas nas grandes cidades, e que sempre foram uma miragem na cidade onde nasci, acabei me associando a um desses clubes de leitura que enviam livros surpresa todos os meses. Alguns li assim que chegaram, outros ainda estão na estante, mas a paixão à primeira vista — dessas arrebatadoras que tiram o nosso fôlego e marcam o nosso espírito — chegou, por fim, no mês do meu aniversário.

A Praça do Diamante é tão bom que não parou na minha prateleira. Emprestei para todo mundo que conheço e para quem não conheço também. Sabe, aquela coisa: existem pessoas que merecem ler boas histórias, mas existem histórias que merecem ser lidas, todos os dias, por boas pessoas.

Desde que a Covid-19 se transformou em uma pandemia, decretando lockdown em todos os continentes, me peguei pensando na obra de Mercè Rodoreda. A experiência do confinamento, como uma cuchillada, me transportou para dentro da narrativa. Agora, era eu mesma a Colometafendida, observando indiretamente os efeitos políticos e sanitários causados pela doença que nos rendeu, ao mesmo tempo em que tentava reequilibrar o meu cotidiano. Foi esta epifania, vivida após longos dias de quarentena, que me fez perceber algo importantíssimo: aquilo que nós somos, verdadeiramente, só pode ser apreendido pela linguagem metafórica porque é a Literatura que nos eterniza, e não a linguagem analítica. O discurso dominante já nasce morto e nós morremos junto com ele.

Apesar de não ser reconhecida pela sua contribuição, a autora catalã Mercè Rodoreda é uma das maiores escritoras dentre escritores de sua língua e de seu tempo, como destaca Gabriel García Márquez. Neste ponto é inevitável compará-la à Colometa, personagem principal de seu livro, que ficou de fora da Guerra Civil Espanhola — observando o conflito nas entrelinhas sem entendê-lo muito 14

Futuramente, quando a Covid-19 entrar para os anais, estarão registrados nos documentos oficiais os avanços tecnológicos, a crise econômica, as decisões políticas de um presidente fascista, as carreatas e manifestações de ódio daqueles que não querem perder seus privilégios e o número de mortos. Nesses documentos, não haverá espaço para os desenhos cheios de ternura que Joana fez para seus avós durante os dias que não pôde abraçá-los, nem para a declaração de amor que Marina fez para sua namorada depois de semanas dividindo as dificuldades do confinamento. Não estará lá a dor que Renata sentiu impedida de velar e enterrar sua amada tia que morreu sozinha no hospital. Ninguém saberá que Zuzuca estava vulnerável e que, por isso, teve uma crise de choro quando lembrou do seu último mergulho no mar, antes da pandemia existir. A conversa aflita, temendo o futuro, que Pedro teve com seus amigos por videoconferência não será registrada, nem as noites terríveis de insônia pelas quais Natália passou após o falecimento de seu pai, que não respeitou a quarentena porque ajudou sua comunidade com campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos.

sabe que o que aconteceu às pessoas dentro de suas casas durante a Guerra Civil Espanhola é um segredo que nos desumanizará se não for contado.

Mesmo que a nossa época seja lembrada na História pela sua brutalidade e mesquinhez, me tranquiliza saber que será possível o recomeço porque aquilo que é genuinamente humano está preservado em livros como A Praça do Diamante. Em períodos onde o conflito e a miséria são hegemônicos, a Literatura é a bússola que nos orienta de volta para as nossas inutilidades. Dito isso, gostaria de terminar esse texto reafirmando aquilo que aprendi com as que vieram antes de mim: Talvez seja essa a vocação das grandes obras literárias ou talvez seja isso que as faça grandes: eternizar as nossas humanidades para que as (re)encontremos sempre que precisarmos…

...........

Na história oficial, nunca houve espaço para as nossas humanidades, porque elas são inúteis.

Enquanto desenho essas linhas, imagino Mercè Rodoreda escrevendo A Praça do Diamante.

Vejo-a perfeitamente. Seus cabelos brancos e curtos estão bem penteados e levemente armados, seu semblante é sereno e talvez esboce um leve sorriso. No pescoço há um lenço de seda cinza e a blusa marrom escuro cobre seus braços até os cotovelos. Em seu pulso esquerdo usa um bracelete dourado com formato de cobra e em sua mão segura confortavelmente um cigarro. Na mesa à sua frente estão sua máquina de escrever, um cinzeiro de vidro, um arranjo de flores brancas e alguns livros e papéis. Ainda é dia e ela está rascunhando seu livro. Uma obra que contará, sob outra perspectiva, o conflito que deixou marcas profundas em seu povo. Mercè

Livro “A praça do diamante’, de Mercê Rodoreda.

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Os cancelados Danilo Brandão

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foi uma das únicos registros de estudos sobre o grupo. Não se sabe muito bem o que ocorreu com a documentação de décadas.

esquisadores e estudiosos não sabem precisar muito bem quando o fenômeno começou. Algo entre a quarta e a quinta década do século conhecido como o vigésimo primeiro depois de cristo. As pessoas viviam submersas. Tudo era a extensão de um eterno mundo exterior. Algo não palpável, irreal. Nada do que ocorria, nenhum evento ou assunto, era sobre o real.

Em seu relato, o professor exemplifica algumas das sessões de cancelamento, como chamavam esses rituais. “Algo tenebroso. Artistas, atores, cantores, influenciadores digitais, políticos, escritores e até escultores sofreram os ditos cancelamentos”, relata. Ocorre que, de tanto criar regras e se debruçarem em seções culturais, passou a ser impossível passar pelo crivo do grupo, cada vez mais rigoroso e padronizado.

A sede por algo impalpável matou milhões de jovens em poucos anos. Suas almas foram inundadas e seus corpos asfixiados. Morreram certos de estarem indo para algum lugar.

Os rituais ocorriam por meio das redes sociais, já que os membros mais ativos do grupo, a partir de um determinado momento, passaram a não sair mais de casa para nenhuma atividade.

Inclusive a comida chegava para eles por meio da tecnologia.

Naqueles tempos, os protagonistas eram uma espécie de nova classe social. Distante dos pobres e dos ricos, esses jovens também já não se enquadravam no antigo conceito de classe média. Fato, aliás, que por anos intrigou especialistas e pesquisadores. Sucessivos golpes causados por catástrofes naturais, aliados a lançamentos tecnológicos desenfreados de empresas que surgiam a todo o momento e invenções de redes sociais de maneira não regulamenta pelo estado, tornaram essa geração de homens e mulheres cosmopolitas um grupo social jamais visto por seus pares de gerações anteriores e, de certo modo, até dominante em âmbitos políticos, culturais e econômicos ao redor do mundo ocidental.

Todos os dias, um alvo era escolhido. A comunicação era eficiente. Os perfis agiam com rapidez. E, em poucos minutos, o cancelado tinha sua vida vasculhada do avesso. Sendo, naturalmente, descobertos outras infrações graves de acordo com a regra do grupo.

Como já foi explicitado, porém, nada disso ultrapassava o mundo irreal. Eis, amigo leitor, o que levou essa geração a sua própria ruína. É fato histórico conhecido que os grupos sociais oprimidos por um sistema em algum momento armam contra os seus opressores. Não é preciso se estender muito no raciocínio para compreender que os cancelados passaram a se organizar.

Entre as características que mais chamavam a atenção, estão o sempre questionável gosto por apagar as pessoas que tinham alguma discordância com seus modos de pensar. Era uma espécie de moral às avessas, definiu certa vez um professor de antropologia num congresso de estudos sobre o grupo. O relato do educador

Sem saída, os cancelados partiram para a ação em poucos anos. Organizaram-se em pequenos 16

grupos e atingiram exatamente o calcanhar de aquiles de seus algozes.

testa de líderes dos canceladores. Um grande C. Quem passou a cancelar agora eram eles.

Não houve guerra. A irrealidade do inimigo era tanta que até os mais radicais dos mãos brutas entranharam a dominação tranquila do grupo.

Poucos ataques depois, os cancelamentos foram minguando. Aos poucos, os líderes canceladores desligaram os seus modens e fingiram que nada era com eles. O real voltou a dominar a terra.

O caos se instaurou de tal maneira que esses movimentos rebeldes dos canelados se multiplicaram como células cancerígenas.

Grupos extremistas que, numa tentativa de retomar um passado longínquo, cortaram os seus próprios polegares para viverem como ancestrais desconhecidos. Eram chamados, por conta disso, de mãos brutas. Sujeitos curiosos, uma simples navegada em portais de notícias da época é o bastante para obtermos conhecimento dos seus costumes. Vagavam pelas metrópoles pedindo os celulares dos transeuntes, gritavam contra os algoritmos de grandes corporações e dispensaram a fonéticas dos idiomas latinos, adotando o grunhido como modo de comunicação.

Claro que, com a aparente paz, os mãos brutas foram também desaparecendo do mapa em poucos anos, restando apenas poucas fotos e curiosos videos de 15 segundos com filtros engraçados como documentos.

O mundo nunca mais foi o mesmo. Tudo voltou ao normal. Os pobres em suas casas, a classe média em seus condomínios e os ricos ainda ninguém sabe precisar onde vivem. E nunca mais houve notícias de novos cancelamentos ao redor do planeta.

A cerimônia de iniciação, além do corte em facas luminosos dos polegares de ambos os membros superiores, incluía a queima de roupas em meio aos trânsitos caóticos e a circense dança quadrúpede, cujo conhecimento era considerado básico para os interessados. Esses jovens costumavam se reunir em frente a lojas de fast food (consideradas por eles movimentos pioneiros de contra-cultura) e, depois de uma boa refeição com a promoção do dia, partiam para as chamadas “missões”. Esses atos que incluíam a peregrinação sem fim até a hora de dormir por becos de bairros de classe média alta das cidades, trilhas urbanas que, apesar da aparente desorganização, tinham sempre como destino final a calçada do condomínio de seu fundador mais famoso. Esse, às vezes, aparecia na sacada para saudar os amigos companheiros.

...........

Danilo Brandão é redator e roteirista. Nasceu em São Paulo, enveredou por Londrina, Paraná.Autor do livro de contos “Os minutos que me restam” (Bar Editora).

O grupo partiu para a ação depois de um tempo e começou a praticar crimes. Mataram.

Assassinaram. Esquartejaram. Agrediram.

Em poucos dias, as passeatas deram lugar aos saques aos estabelecimentos de tecnologia. Seus líderes, sem polegares, marcaram os inimigos de outra forma. Cravando com ferro quente a 17

Em três atos Danilo Brandão Prefácio

não seja ridículo. protesta contra o que? apontar um lápis. uma velha apontando um lápis, em um momento como esse. é uma merda.

já reparou? já reparou que engraçado o apontador? ao mesmo tempo que destrói, constrói. em zigue, zague. zigue. zague. o desenho abstrato se forma metodicamente. ponta a ponta. como um bando de soldados alienados. vai um. depois outro. depois outro. o ritmo depende do comandante. daí vai do observador. se decide pela revolta ou pelo legalismo. se olha bem atentamente para uma ponta, verá uma lança. pontiaguda, linda, formando-se meticulosamente numa unidade quase patriótica. mas se volta as suas retinas para a outra ponta, o que verá é a diminuição. a perda da potência. do pior jeito, aos poucos. a desintegração do território.o ato de apontar é também um ato totalitário.

às vezes, se prepara para anotar algo. um diário talvez. a lista do supermercado. a dosagem correta do remédio. Indapamida. 05 mm. Minoxidil. 02 mm. Nifedipina. 10 mm. pode ser uma carta de amor. um bilhete indignado. pode ser poeta. tanta coisa se pode fazer segurando um lápis na mão. até mesmo um bilhete suicida. para todas essas possibilidades, porém, falta-lhe o papel. cadê o seu papel? sua caderneta. alguma superfície onde possa anotar.

por que diz isso agora?

pode estar a procura de um. escrever numa...veja. olhe agora. parece finalmente ter se cansado de apontar. está minúsculo. o seu lápis quase chega ao fim. quase.

olha. aquela velha aponta um lápis sentada na praça. não deveria estar ali. um lápis pode ser apontado dentro de casa. um lápis pode ser apontado de qualquer lugar.

em tempos como esse. que loucura. uma velha numa praça apontando um lápis.

mas você mesmo acaba de exaltar o ato. se ela estivesse dentro de casa, como deveria, não teria essa reflexão. estranho momento, por sinal.

coisa bonita é o apontar de um lápis. você já disse isso. todos os detalhes. coisa bonita é o respeitar os momentos ruins. coisa bonita são as pessoas terem consciência.

veste um vestido estranho. cheio de remendos. as cores não estão uniformes. olha. olha a meia. veste de um lado só. continua apontando o lápis. aponta e aponta.

quero falar com ela. vou descer. vamos. vamos os dois perguntar a ela o que faz apontando um lápis no meio de uma praça. curioso demais. aliás, que protesto mais maluco de uma velha. olhe pra cima. veja as janelas. quantas janelas somos capazes de contar somente se olharmos paralelamente ao asfalto? elas parecem cada vez mais perto umas das outras. não acha? parece que o concreto entre elas diminuem a cada dia. se desgastam. perdem a

aponta com certa frieza. é estranho o que algumas pessoas ainda são capazes de fazer em público. mesmo em um momento como esse. mesmo depois de tudo. não é o que dizem? num momento como esse. todo mundo perdendo o controle de tudo. tudo. e algumas pessoas continuam apontando o lápis. qual o objetivo final. às vezes, faz um protesto.

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força. estão se tornando uma unidade. uma unidade de concreto.

como pretende fugir disso?

esse ai já nasceu meio morto. todo quebrado por dentro. claro que sofro. mas isso não é da sua conta. ora essa. vá chamar o médico, por favor. todos já foram, graças a deus todos se foram. doutor, o que preciso fazer agora. a delegacia? por que precisaria fazer uma coisa dessas? assinar uns papéis, claro. problema nenhum. mas em tempos como esses. os médicos já liberaram. não é isso? não é só isso que é necessário para saber a causa da morte, é. os pulmões foram prejudicados. o matuto mesmo falou. está claro a causa da morte. saiu nos jornais: não é pra ficar nas ruas. dando mole pra ele. pra ele mesmo. que dia? hoje. não. ainda não. preciso ir pra casa. as meninas não comem há três dias. filhos? não. são as nossas gatas. quer dizer, são as minhas gatas. agora elas são apenas minhas. enfim. estão em casa. os vizinhos não podem cuidar. não entram em casa. tenho medo. devem ter revirado tudo atrás de comida. da última vez foram fundo no bueiro do quintal. pegaram uns ratos que moscavam por lá. foi sujo. é uma complicação. uma complicação. já vou indo. vou indo. meire há dias que não me liga.

do quê?

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de olhar o mundo por um único ângulo. é impossível fugir. podemos sair por aí por horas. correr por dias inteiros. sem parar. subir e descer os arranha céus. escalar as mais altas montanhas do mundo. nada irá mudar. ainda assim iremos olhar o mundo por um único ângulo. é tudo que nos resta. nada vai mudar. fique em casa. não jogue simplesmente tudo para o alto. a velha está ali. algo me diz que logo saberemos o que faz na praça. são tempos difíceis.

saiu sentindo que não deveria ter tido aquela conversa. homem dos diabos. a faz passar vergonha até depois da morte. morte. o brasil tem escutado muito essa palavra. passaram a fazer a contagem por dias. 455. 677. 801. 920. 1002. engraçado como crescia a cada dia, ela pensava. mas as pessoas morrem todos os dias. engraçado. agora eles contam e passa até na televisão. foi para a casa sem se despedir dos parentes. pessoas que nem deveriam estar ali. mas elas foram. despediram-se do seu marido, colocando os cotovelos em seus ombros. uma de cada vez. não era mais permitido abraços. abolido também foi o encontro mão a mão. o tradicional entrelaces de dedos. ela foi. homem dos infernos. deu os primeiros passos na calçada e olhou para o outro lado da rua. ali costumava ser um ponto de encontro de jovens. vivia abarrotado de gente. aglomerações. agora não havia ninguém. talvez seja engraçado. agora não havia mais ninguém nas ruas. ela que sempre gostou da sensação do fedor da cidade.

você ficou maluco? não podemos simplesmente ir até lá só porque está tendo uma espécie de epifania. principalmente em tempos como esses. há dias não saio. deixo que eles façam isso por mim. são tempos ruins. sim. ficamos aqui. é verdade. mas a velha não. deve saber de algo. algo grande se esconde em seu lápis minúsculo. ele está apontado. parece consciente de seu ato. tranquila na rua. deixe que eles saiam por nós, menino. não perca a esperança dessa maneira. estamos indo bem por aqui. são os nervos. são os tempos. eu já estou cansado. não são apenas mais os tempos. é a nossa vida. há quantos dias? quantos dias não pisamos no asfalto. presos no concretos. olhando o mundo por um ângulo só.

não gosto de pensar em como tem razão. são dias. nada mudou. não temos mais futuro. creio que nunca tivemos. eles saem por nós. fiquemos em casa. vamos. eu preparo um café.

Depois do ato. já fecharam. não. não quero ver. deixa-o descansar. eu não sei bem. e como pode saber de uma coisa dessas? já disse isso. como pode saber que só os pulmões foram prejudicados. matuto dos infernos.

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cruzava as esquinas em busca de engarrafamentos. sempre fazia caminhadas masoquistas pelos bairros, olhando pra baixo, contanto as rachaduras das calçadas, tropeçando nas pedras soltas do concreto, adiando a volta pra casa. agora não havia mais nada. nem ninguém nas ruas. tudo era espaço. em seu rosto, não sentia mais nada. não podia ter sentido. seu marido morreu ontem. e hoje foi o enterro.

tapa. o formato do tapa ainda está na minha cara, não é nada engraçado.desgraçado. mas você ria. caralho. eles não estão mais fazendo os exames. as pessoas estão morrendo. as mortes no país. não tem mais ninguém nas ruas. no fogo. a comida está no fogo. tudo que preciso está no meu bolso. vai, minha filha. anda com isso. puta que pariu, que barulho. que merda de barulho. que merda de homem. que merda de vida. pega, menina. dança. lembro que tinha dança. a gente se conheceu durante uma dança. isso. puxa. puxa. joga na mesa. o filho de meire era ruim na escola, mas bom menino. já foram oito vezes. homem dos infernos. oito vezes, no mesmo lugar, que barulho. as mortes hoje subiram ainda mais. o país já nem existe. como podem não ter atendido com o menino dentro de um hospital. com o menino dentro da porra de um hospital, manifestantes tomaram as ruas nesta quinta-feira pedindo o fim do isolamento. a volta do comércio. a vida normal. manifestantes. não estão mais fazendo exames. as pessoas morrem, mulher. elas morrem e eles agora nem querem mais saber a causa. manda pra cova. perfeito. isso. manda. pega. agora pega o outro. o outro. estou velha. pega o outro. joga na mesa. que barulho é esse? o jornal acabou. ele vai levantar. anda. pega o prato, a colher, o feijão, o chumbinho, o apontador, raspa o chumbinho, joga o arroz, a carne. ele se levanta. aponta o chumbinho, empurra ele. joga mais pra dentro. afunda. afunda no apontador com o lápis. acabou o jornal. lá vem ele. um minuto. acaba de ficar pronto. vou tirar do fogo. agora mesmo. voltou. aponta o chumbinho. larga o lápis. aponta. mistura. da pra ele. volta. aponta o lápis. aponta. homem dos infernos. come tudo. você não passa de um número. agora.

O ato meire ligou e disse: seu filho morreu. pegou ele. pegou a doença. não acreditava nessas coisas. menino novo. ruim de escola, mas bom filho. mais ou menos trabalhador. a televisão era ligada. sempre. mal se podia pensar com todo esse barulho. homem dos infernos. ela mesmo me disse. os hospitais estavam abarrotados. uma cara de fim de festa nas salas dos hospitais do país inteiro. não tinha sobrado nada. e seu filho morreu na esquina. misturando um último suspiro, como se tragasse o resquício do cigarro aceso há muito tempo. era sua derradeira força. a busca pelo último ar. estranho. esse negócio rouba o ar da gente é? como pode uma coisa dessa? já vou. está no fogo. no fogo, homem. como pode uma coisa dessa? um homem desse. meu deus. ela me explicou: o filho tentava ir pra casa depois de ter seu atendimento recusado. era só ter escutado o menino. mas que diabo de hospital. a enfermeira disse que não tinha como. que coisa mais estranha. como um hospital pode não atender? o menino se irritou. puxou meire pelos braços e atravessou a sala de atendimento com ódio. bravo demais. passou pelos corredores sujos. foi em direção às ruas. antes de colocar o pé na recepção, o ar acabou. teve sorte de andar mais alguns passos até a esquina. caiu. isso meire contando. achei uma coisa esquisita. meire não ia inventar uma história dessa. os mortos. eles não estão mais fazendo exames para saber a causa da morte. a morte. o que seria mais uma morte? todos estão indo. meire me disse mais uma coisa. mas essa televisão não me deixa pesar. meu deus. homem dos infernos. ela não me deixa pensar em mais nada. é enlouquecedor. ainda dói. homem dos infernos. ainda dói aquele da última vez. no banho, quando a água bateu no meu rosto, ainda senti o formato do

aponta. aponta. aponta o lápis. assiste a derrota do país.acalme-se: a novela já vai começar.

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Danilo Brandão é redator e roteirista. Nasceu em São Paulo, enveredou por Londrina, Paraná. Autor do livro de contos “Os minutos que me restam” (Bar Editora).

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23 borboletas na janela Suelany Ribeiro

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entre os homens e a Mãe Natureza foi perdida, e isso desequilibrava a reprodução dos seres mais frágeis. Muitas borboletas nem conseguiam sair do casulo, morriam dentro dele ou nasciam com deformações, devido à poluição e ao barulho dos veículos. Eram seres mutantes, frutos do gás carbônico.

las foram extintas na última estação.

Voavam pelos parques, timidamente, entre as árvores robustas e as plantas rasteiras. Pousavam com delicadeza nas rosas que perfumavam as praças aos domingos. Tardes escaldantes, crianças aproveitando as últimas horas do descanso semanal para renascerem nas brincadeiras, abafadas pelas luzes brancas dos tablets e smartphones.

Até o dia em que nosso bem mais precioso, a saúde, foi embora. A existência dos seres humanos ficou comprometida. Aos poucos o mal, invisível aos olhos nus, tomou conta das casas, das ruas, dos parques, de todas as áreas de convivência.

Ninguém sabia ao certo explicar o que se passava, por isso a melhor decisão era permanecer em casa para não se expor ao perigo.

A natureza respirava com dificuldade, vegetando entre as fumaças enegrecidas dos carros e coletivos que nunca paravam. O tempo não tinha fim e as coisas mais simples sempre ficavam para depois de amanhã. Não havia pausa para lembrar do aniversário do amigo, porque os aplicativos de celulares, aos poucos, foram substituindo a nossa memória pela artificialidade dos parabéns online.

Os mais destemidos saíam, achavam que era uma grande peça do destino e que aquilo estava sob controle. Foram vítimas da sua própria ignorância.

Não voltavam mais. Morriam pelo caminho. O caos se instaurava diante da vida humana.

Estamos próximos, porém distantes, separados pelos mundos paralelos das notícias mais quentes ou pela atualização das últimas curtidas. Foi neste cenário da falta de cuidado, da pressa, do efêmero que as borboletas deixaram de nascer. Já não importava o colorido, pois as pessoas preferiam o mundo cinzento.

Os animais aproveitaram a nossa ausência e passaram a dominar os territórios. Os gatos cantavam a noite inteira e se reproduziam rapidamente, os cachorros não morriam mais atropelados nas vias, pois quem os abandonava não podia sair de casa.

As galinhas comemoravam a existência do sol, fugiam das fábricas que as obrigavam pôr ovos a semana inteira. Na euforia dos bichos, vacas davam de mamar aos seus bezerros sem temer a presença que lhe apalpava os peitos, pelas manhãs. Não cabe nomear aqui todas as formas de vida que foram ressignificadas depois da doença invisível que acometeu a modernidade. O que mais me despertou no canto dos meus olhos foi a reexistência das borboletas amarelas, que rodopiavam pelas janelas das casas vazias, lançavam olhares para os jardins cobertos de folhas secas.

O laranja, o amarelo, o azul anil daquelas asas ligeiras misturavam-se entre as folhas verdes, formando aquarelas à luz do dia. Os olhos dos adultos sequer avistavam a magia das cores que os rodeavam. Já as crianças mais curiosas as enxergavam sem dificuldade, percebiam a dança rápida que faziam para se manterem vivas, numa valsa sem fim, entrelaçando-se com a suave brisa do final da tarde. Vidas que seguiam caminhos diferentes, sem aproximações.

A deusa criadora da nossa mátria, a Pachamama, estava muito decepcionada com a forma que encontramos para nos comunicar. A harmonia 22

À medida que elas foram se reproduzindo, os beija-flores também surgiam em meio ao vazio, costurando silêncios intermináveis nas rosas desfalecidas. Não tardou para as abelhas, dizimadas pelos inseticidas, reaparecem à procura do pólen. A cura da nossa terra se aproximava e enfim compreendíamos, da maneira mais inusitada, que o inóspito também liberta. A natureza se recuperava dos males que insistimos em repetir ao longo da nossa curta história. Ela era a única esperança que tínhamos para nos libertar do medo.

A dança entre a fauna e a flora enchia de alegria o coração da grande Pachamama, que agora já nutria compaixão pelos nossos erros e tentativas de acertos. Ela decidiu nos dar a última oportunidade de crescermos em conjunto.

As borboletas amarelas anunciavam em cada porta que o nosso renascimento estava apenas começando. Em breve estaríamos juntos, mas para isso precisávamos compreender que carecemos uns dos outros, formamos, muitas vezes sem perceber, as pequenas gotículas do oceano que preenchem o orgulho e a individualidade. Decidimos enxergar nas pequenas coisas que o esvaziamento de nós mesmos era o trajeto mais seguro para sermos pessoas melhores.

Da minha janela, li o movimento dos animais, linguagem traduzida em olhares de empatia. Era tempo de abrir as portas e sentir o ar puro da esperança.

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Suelany Ribeiro é pernambucana, doutora em teoria da literatura e professora. Passou a quarentena de 2020 no Janga em Paulista, com seus gatos, livros, plantas e a filha Clarice. É autora do livro “Os cachinhos de Cecília” , “À sombra do Imbondeiro” e “Fruta verde: poemas para 40 semanas”.

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Carta aberta aos distraídos Joseildo H. Conceição

U

ma brisa suave bate na janela do último ônibus que pego antes de entrar em isolamento social e passa por uma fresta, acariciando as maçãs do meu rosto e soprando levemente alguns fios do meu cabelo já grande, mas estou absorto demais para notar essa singela demonstração de amor da natureza.

Também não notei que havia sentado no lado do sol, agora, tentando olhar meu reflexo no vidro sujo do coletivo, noto que tenho o rosto parcialmente bronzeado.

onde vieram, cada uma com um grão de açúcar nas costas.

É que coisas simples passam despercebidas para quem é distraído…

Na minha vida, as coisas passam tão rápidas que não percebo, ficando apenas o rastro de cometa e o cheiro de coisa passada. Eu poderia escrever textos e mais textos por a culpa no signo, – ai, ai, esse signo, mas não o faço. Já o fiz, mas não o faço.

— Motorista, tem formigas nesse ônibus?

Pelo olhar dele, parece que não. Ele ouviu como um insulto.

Mais uma olhada pela janela e penso que já passei por esse prédio antes… Com certeza eu já passei por esse prédio antes. Perdi a minha parada.

Motorista, qual o lado do sol? Não sei, alguém já te perguntou qual o seu lado? Quem saberia responder!? Ele me deixou encucado. Sentei, em modo automático, no primeiro banco que que minha vista alcança e cá estou eu com a cara no sol.

Sabe quando a gente perde a parada do ônibus porque estava ocupado demais pensando em vários nadas? Ser distraído é isso. Como eu consegui perder a parada se eu estava o tempo inteiro olhando pela janela? Como eu não percebi que a água do macarrão ferveu até secar?

Onde eu estava com a cabeça para subir nessa corda bamba? E esse leite, como ele esborrou tão rápido?

Seria uma boa ideia bronzear o outro lado?

Enquanto me pergunto, os raios queimam ainda mais minha pele caramelo. Mais alguns minutos e eu voltaria ao estado de açúcar: moscas surgiriam e voariam ao redor do montinho mascavo açucarado dando curtos rasantes e fazendo aquele peculiar movimento que fazem com as patas, esfregando uma na outra; eu não ficaria intacto pois as vias desse bairro são esburacadas, cairia açúcar para todo lado; formigas sentiriam o aroma doce e fariam fila, guiando umas às outras até chegar no doce oásis e, em movimento reverso, voltariam para de

A vida é um slackline e parece que o leite só ferve quando não estamos olhando: não adianta subir na corda depois do leite derramado, mas a gente não entende assim tão fácil e a corda bamba do slackline jogará nosso corpo várias vezes para um dos lados até que a gente entenda. Óbvio, com a cara estatelada no chão e a grama 24

rala marcando o rosto, a gente sempre entende.

sei que você se distraiu na metade do texto e não chegou ao meu final.

Tenho culpa por ser distraído? Não. Mas deixa eu te contar um segredo: eu já não sei onde estou e talvez eu devesse esperar o ônibus voltar para o terminal porque é mais seguro pedir parada no final da linha.

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Joseildo H. Conceição, pernambucano, igaraçuara.

Autor do livro de poemas “Amor e outras queixas” (independente), editor na Condoreira e na revista Ano I: Ensaio.

Cuidado com as palavras. Eu disse que é mais seguro, não a melhor opção, mas tanto faz, eu

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O sustentável peso do ser Renata Ruffo

A

ntes de abrir os olhos e poder ver o mundo que me pertence, sinto uma fisgada de dor no pescoço. Torcicolo, constato, bufando. Era só o que me faltava.

Mexo-me e mudo a posição com que minha nuca encosta no travesseiro. Ainda dor. Sinto a coberta que me cobre tocando cada pedaço de minha pele, causando um choque térmico entre meu corpo, quente, e a coberta, de algum modo, gelada. Me espreguiço e vejo minhas pernas acordarem, doloridas. Por que nos levantar para esse mundo inútil, elas parecem me perguntar.

Quase se recusam a se mexer.

dia de trabalho — ou me infernizar enquanto eu insisto em trabalhar mesmo doente. Que corpo burro, inconveniente e tosco nós temos, não é mesmo?

Enfio um pé para fora da cama. Choque de frio.

Amo essa sensação: ver que meu corpo consegue sentir as coisas me dá um prazer inexplicável.

Odeio o frio, mas amo senti-lo quando sei que logo mais ele será substituído pelo aconchego e calor das tais cobertas.

Eu não me alivio quando marca 17h30. Na verdade, me dá angústia, porque eu finalmente tenho uma falsa liberdade para viver. E, que merda, o que dá para fazer com isso? Enquanto eu sento a bunda na frente do computador, minha vida é mais ou menos alinhada, tem um propósito — por mais besta que seja. Digitar números, ligar para os números, oferecer ofertas para serem compradas por mais números, concentrar-se para não mandar os números irem se foder. Eu sei o que fazer. Não que seja um grande prazer, mas não é um desprazer. É automático, fácil, comum. Não me incomoda.

Me incomoda quando o relógio do computador marca 17h32 e eu tenho que tomar um outro rumo não-ditado e não-automático na minha vida. Me deixa trabalhar mais, eu quase imploro para a tela do notebook. Me deixa esquecer de viver.

Depois das 17h30 a situação não melhora. O que fazer com a mente — e junto, com o corpo — enfurnada nessa merda de casa? Enfiar a cabeça para fora da janela e fingir que dá para sentir alguma coisa do mundo através dela? Dizer uau, que brisa gostosa! e depois passar as próximas 72h dentro da umidade infernal desse clima de bosta do Rio Grande do Sul? Grande merda.

Preciso levantar, fazer xixi, preparar um café e sentar na frente do maldito computador. Solto um suspiro e sinto novamente o torcicolo. Passar 8h sentada na mesma posição deve ter causado a revolta dos meus músculos e nervos costais — essa palavra sequer existe? É inevitável que meu corpo se rebele e me inflija dor, como se dizendo olha aqui, eu existo! Eu devo me esquecer disso na maior parte do tempo. Mas ele não me serve para nada aqui, dentro da minha casa. Que diferença faz ter ou não ter um corpo? Eu podia ser só um espírito, afinal. Um espírito que senta na frente do computador às 8h, que não precisa parar para almoçar — as vantagens de ser um espírito, veja só! — e sair de seu lugar marcado às 17h30. E aí, ah, e aí o corpo também não serve para nada. No máximo, para me obrigar a tomar um banho; a comer um sanduíche; a me dar febre e me fazer perder um

Mas eu sou orgulhosa demais para trabalhar de graça, e meu chefe irredutivelmente impediu horas extras em tempos de pandemia — contingenciamento de gastos ou alguma outra merda desse tipo. Será que orgulhosa é a palavra? Mas eu jamais deixaria um filho da 26

da minha vida.

puta mais rico sem ganhar nada em troca, por mais vazia que eu me sinta sem esse emprego desgraçado.

Talvez sair pelo mundo não resolvesse nada do que sinto. Ficar presa em casa só deve ter trazido à tona coisas que já me eram bastante basilares, mas que tomaram uma proporção insuportável quando sussurradas aos espelhos, ao meu próprio rosto julgador e apático.

Tentei criar uma rotina para fingir que minha vida tinha algum sentido depois das 17h30.

Telefonar para minha mãe, depois assistir a novela das seis — que eu já havia visto antes, já que nem a merda das novelas eram mais novidade —, fazer um café para me impedir de dormir tão cedo, lavar a louça, colocar as roupas para lavar, assistir um filme ou ler um livro e, finalmente, dormir.

Meu maior momento de prazer é deitar. Tirar toda a roupa, sofrer de frio por um nanosegundo e, em seguida, aconchegar-me sob as cobertas.

Um conforto que eu não sinto em mais nenhum outro instante do dia. Um prazer de lembrar que meu maldito corpo existe e que, por mais sexualmente frustrado ele esteja, ele ainda pode me dar prazer de outras formas. Frio-calor.

Calor-frio. Arrepio. Prender a respiração e, de repente, soltar. É meu orgasmo, voilà.

E me diz, no que o corpo surge? Quando?

Completamente inútil. Nem prazer mais ele me dá, apesar de conseguir gozar. É um gozo insosso, sem graça, sem sentido. Tudo que eu gostava de fazer antes se perdeu no limbo das paredes da minha casa. Eu não aguento mais olhar essas paredes, odeio todos os quadros espalhados nelas, odeio o chão, a cor dele e o quanto ele suja ridiculamente fácil. Tudo. Tudo me causa um enorme desprazer ou, no mínimo, um desconforto. Não aguento mais viver sob esse mesmo teto.

Mas a noite nunca dura tanto quanto eu quero — o infinito, o não-tempo. Sempre raia o sol, sempre surge o dia, sempre vai embora o sono.

E então, com a dor em minha lombar e com meu torcicolo dizendo-me bom dia, eu sinto meu corpo, que eu esqueço nas outras vinte-e-três horas e tantos minutos do dia. Acho que aprendi a cultivar e gostar das dores, afinal. Sentir qualquer coisa e saber que meu corpo não se evaporou, que não sou ainda uma alma penada que não percebeu que vaga pelo mundo — pelo meu apartamento. Saber que alguma coisa em mim reage ao vácuo e ao cotidianismo, grita-me para ainda existir. Reaja, inferno. Reaja!

Ah, mas tem coisas boas em ficar em casa. Eu sei, mas quero que as coisas boas se explodam.

Não as aguento mais. Tudo que era minimamente bom se frustrou e ficou azedo. Não dá mais para engolir. Trava como esperma seco na garganta.

Não desce.

Meu maior momento de prazer é deitar. Ando tão desanimada que nem arrumo mais minha cama, então ela me chama constantemente.

Acho que, se pudesse, iria direto para ela depois do trabalho. Fugir desse mundo besta e bosta em que eu me sinto afundando. Entrar no mundo onírico e viajar por entre fantasias em que eu podia correr, dançar, sair, beber, fuder, morrer. Acho que nem morrer eu conseguiria agora, vista a falta de ânimo que me domina; até a morte pede um breve êxtase, um impulso, um desejo. Eu só queria sumir ou talvez ser teletransportada para um espaço-tempo em que eu pudesse recuperar alguma coisa significativa

Alongo as pernas, enfio os pés para fora das cobertas e sinto o frio arrepiar-me.

Ah, o começo e o fim do meu dia.

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Renata Ruffo é estudante de Letras na UFRGS, professora de Língua Portuguesa desde 2018 e, em 2020, publicou “Boias, raias e salva-vidas”, seu primeiro livro de poesias, pela Editora Patuá. Também compartilha seus escritos com o mundo através da Litural (@lituralmente).

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Transition Josimar Oliveira

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ntro no supermercado. Na porta agora tem um funcionário derramando gotas de álcool em gel na mão de todos que passam pela única entradinha que sobrou entre os cones e fitas. Eu já até me acostumei a procurar o álcool em gel nos lugares em que entro. O hábito faz o monge.

cansados eram o espelho de minha alma, e o medo, maior que a saudade. Eu sabia que ele não iria.

Cheguei em casa e coloquei qualquer coisa para tocar no YouTube enquanto fazia a janta.

A playlist tocou os Smashing Pumpkins, porque mais cedo eu já tinha ouvido. Maldito algoritmo, acha que me conhece mais do que eu. Me deu uma coisa estranha, um sentimento que eu não sentia desde da adolescência de quando me sentia o ser mais fraco e feio do mundo, e queria me esconder debaixo da cama. Mas uma coisa que não contaram a essa inteligência artificial é a nossa capacidade de resistir e continuar a viver. Não, dessa vez não, YouTube. Larguei a faca em cima da tábua de cortar carne. Fui ao PC e meti um Tim Maia boladão, mesmo sem clima. A voz forte e potente do rei do soul entrou na minha alma e eu senti toda a força de minha cor, dos meus pais, dos meus avós e bisavós.

Abri a janela. A noite era como brilhantina no escuro azul. Tive a impressão de ouvir o som de um atabaque ao longe e a vontade de dizer laroiê, Exu.

Agora todos são obrigados a ficar de máscara, e o que sobra para o contato são apenas os olhos e o volume da nossa voz crescente por trás do pano em nossa boca. Mas os olhos, eles sim dizem tudo. Presto atenção naqueles olhos azuis que sempre me atendiam na padaria.

Estão cansados como os meus. Espelho da água no meu inconsciente, meus amigos estão tristes e cansados. Ah, quanto tempo não ouvia Smashing Pumpkins e Radiohead. Eu tento fugir da tristeza, mas a linha do tempo é brutal, a linha do tempo é surreal. E a realidade dentro do busão lotado massacra nossas esperanças.

Eu não condeno quem foge dessa vibe. De conversas da quarentena e do Átila Iamarino.

Eu não condeno ninguém. Já estamos todos condenados.

...........

No hortifruti do mercado eu viajava profundamente ouvindo podcast enquanto escolhia maçãs. Sinto alguém tocar minhas costas e quando me viro encontro um amigo de longa data. Que felicidade encontrar alguém querido. Na conversa, por costume o chamei para fazer um som lá em casa. Não ouvi direito sua resposta por trás da máscara, mas seus olhos

Josimar Oliveira é estudante de Letras pela UNESP/ Assis. No Medium, escreveu contos sob diversos pseudonimos como jwachowski, luvdeluxe, Pretice Lispector e Amor nos Tempos de Quarentena.

Com forte influencia da música em sua escrita, experimentalmente designa seu estilo como lo-fi.txt.

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Tem certeza que quer sentir comigo o enterro do meu peito?

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Son Farias

orpo é tudo aquilo que contém massa e ocupa um lugar no espaço. Que massa? Que espaço? Meu espaço tem sido o vazio e preenchimento incerto... te pergunto novamente, quer realmente sentir o espaço de enterro fúnebre comigo? Isso porque meu peito estar enterrado em chamas e dói muito enterrar o já enterrado vai entender... Não sou uma Covid-19, todavia minha biologia instável, mortífera e invisível insiste em me causar enterros cujo o outro pode evitar. Para tanto, não toque de qualquer jeito essa casa de extensão.

Ao enterrar teu corpo, ele incha... tua matéria entra em decomposição, tua carne fede e tua covid é intocável homem, mulher, na verdade trans, negro, pobre, viado, prostituta. Isso porque fazemos parte da margem da sociedade. Ora como escolhe o Amor que acredita merecer, é muita audácia! (pensou orgulhoso).

Nessa perspectiva, onde jogar o enterro que quero distribuir?

Novamente insisto em questionar, tem certeza de quer somar minha dor?

Então vem comigo porque o humor mudou mesmo com chuva lá fora caindo e sentir que as substâncias deslizam e tentam reorganizar meu cérebro com a sua Fluoxetina, o seu Rispedona e pior seu Clonazepam. Finalmente, vamos fingir que a culpa é minha por doer, onde e como sem saber... Olha vai embora, estou chorando por fora e rindo por dentro sob uma contração involuntária eu não anormal, sou apenas um humano PONTO>>>

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Son Farias, natural de Maceió, acadêmico de psicologia (UFAL) com ênfase na psicanálise e neurociência com projeto intercalar as áreas com as linguagens mundo artístico com foco no teatro.

No processo de pandemia da Covid-19, que tive maior encontro filosófico com estilo artístico do poema.

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Poesia de instagram Uma homenagem às novas vozes de expressão do poder preto Gustavo Nunes um caráter agressivo e uma personalidade forte, uma combinação que se torna extremamente vantajosa na produção de seus textos, que muitas vezes são críticas sociopolíticas e atingem diversos segmentos condescendentes de esquerda. A senhorita Mello, além de poeta, também é atriz e usualmente faz apresentações ao vivo (em suas redes sociais ou eventos voltados para o público artístico) ou na escola de teatro João Teimoso, localizada no Recife Antigo.

Além do aspecto sociopolítico de seus escritos, a poeta traz uma perspectiva generalizadamente sensível quanto aos corpos pretos, trabalhando a autoestima através da ancestralidade africana, expressões culturais diaspóricas e metáforas que associam a fisionomia africana às relações interdependentes de revolução e luta.

Recentemente temos vivido épocas desastrosas em relação às manifestações culturais, devido à falta de mobilidade por conta do novo COVID-19. Artistas estão perdendo shows, poetas perdendo recitais, dançarinos, as suas apresentações, e tudo isto se deve à perda de espaços que estão sendo fechados ou cerceados para a segurança coletiva da população brasileira.

No entanto, mecanismos alternativos estão sendo criados ou redescobertos para a expressão de toda a potencialidade criativa daqueles que são (ou estão tentando ser) porta-vozes da cultura brasileira, esteja ela em qualquer nuance em que possa manifestar-se. Um dos meios mais utilizados para a exteriorização da criatividade artística é o Instagram, rede social que viabiliza a postagem de fotos ilustrativas de maneira consecutiva e escritos logo abaixo, o que muitas vezes já são o suficiente para suprir as necessidades artísticas de cada ser criativo.

Mais adiante, temos a Chimamanda NgoziAdiche do Brasil, a Mayra Luiz (@palavrasretintas), mulher preta escura que possui um caráter que parece pacífico, mas que através dos poemas torna-se veemente, cirúrgico e categoricamente incisivo. A artista possui um diferencial ótimo para quem ama ler: possui um livro físico que pode ser encontrado na Amazon sob o título de “Palavras não ditas”, onde a autora fala com todo o coração, alma e orgulho sobre suas experiências enquanto uma mulher preta que busca incessantemente pelo sagrado africano posto em ameaça durante séculos. A escritora, após uma entrevista, destaca um poema que lhe é mais bem-quisto: “Sorrio, sou rei”, onde ela nos mostra, através da perspectiva de um homem preto, sua ligação com sua ancestralidade

Dentro desse novo meio de expressão poética, há diversas vertentes e linhas de pensamento, como, por exemplo, poetas e escritores voltados para a conscientização racial-negra de maneira coletiva, emancipacionista, sensível, política e afetiva.

Selecionamos três perfis específicos de pessoas negras que usam seus poderes de criação para a construção do que contemporaneamente pode ser considerado “a nova expressão”.

O primeiro perfil é o da Laís Mello (@preta. poeta), mulher preta pernambucana, mãe, poliamorosa e autodeterminista. Laís possui 32

da história africana, para contextualizar seus poemas, o que nos faz aprender um pouco sobre diversas expressões de agência e autonomia.

africana por meio de danças que foram trazidas na diáspora por seus antepassados, e que dão conta da expressão corpórea que, segundo a poeta, toda pessoa preta possui e deve redescobrir. “[...]

E adentro cada vez mais a terras estrangeiras a minha carne, mas familiares ao meu espírito”.

Mayra Luiz é, sem dúvidas, um componente essencial para a poesia de Instagram.

As novas expressões do poder preto tratam da busca pela própria voz de um povo que é sistematicamente marginalizado e que mesmo assim detém um dos maiores poderes criativos que esse mundo já viu. A poesia de Instagram segue viva e vibrando, viçosa e a cada dia mais abrangente e específica de maneira concomitante. Pessoas conseguem se expressar, conseguem alcançar público e conseguem realizar sonhos, o mesmo sonho de Carolina Maria de Jesus: o sonho de escrever.

Por último, temos Heros Silva (@srheros), homem preto politicamente ativo, racialmente consciente e que luta pela melhoria da educação em escala nacional e, ao mesmo tempo, por uma educação que torne pessoas negras donas de suas narrativas educacionais e, consequentemente, de outras esferas existenciais. Heros, como o próprio nome já diz (deus do amor), é um amante irrecuperável de mulheres pretas e as usa como musas inspiradoras de seus poemas. Sua poética se baseia na exaltação do amor preto, a consolidação e a preservação de famílias pretas e a negação de estereótipos raciais impostos e cultivados atualmente em relação aos homens pretos. O poeta também é um historiador e usa diversos momentos históricos ao longo de antes e depois da escravatura, interrupção

@preta.poeta

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Gustavo Nunes é natural de Pernambuco, mais especificamente da cidade Itapissuma. Discente em Letras - Inglês pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, suas aspirações são o adquirimento da maior quantidade de línguas possível e trabalhar com tradução e no ramo editorial.

@palavrasretintas

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@srheros

Produzindo em tempos de pandemia?

Vivian Millena Costa

N

ietzsche afirmou que “A arte existe para que a realidade não nos destrua”, mas como prosseguir com essa afirmação se toda a nossa realidade se mostra num completo caos e desespero? Como seguir sendo artista? Pensando sobre esta questão, a Condoreira perguntou a alguns artistas como eles estão dando continuidade às suas expressões artísticas nos tempos de pandemia.

trás da máscara, e que isso com certeza irá agregar ao seu crescimento e à sua escrita.

A poetisa e ativista, Emele Vitória, também nos contou um pouco sobre sua experiência na pandemia em relação à sua arte.

Emele disse que sempre escreveu, mas apenas durante a pandemia ela voltou a publicar.

Para iniciar essa exposição de seu trabalho em um tempo tão difícil e mudar a realidade das pessoas, ela elaborou que os artistas estão sendo de suma importância como suporte para a sanidade mental do público. Sua conexão com a arte é uma forma de falar sobre situações ruins de forma prazerosa e artística. A arte para ela vem com o objetivo de trazer educação para pessoas negras que não tiveram o mesmo acesso que ela, e de protesto à sociedade genocida, retificando, assim, tudo isso de forma artística.

A poetisa Ágatha Suellen contou um pouco sobre seu processo nesse período. Suas dificuldades maiores foram de não conseguir desenvolver seus textos, já que ela reflete muito sobre os detalhes ao seu redor, e isso a afeta ao ponto de não conseguir se conectar consigo mesma. Ágatha trouxe sua relação com a arte como forma de resiliência, algo que a acolhe e acalma, e, apesar de todas as dificuldades, ela disse que esse período a ajudou a crescer, pensar sobre novos projetos e a auxiliou no processo de espera pelo seu próprio tempo.

Podemos ver que mesmo com o desafio de sobrevivência na pandemia e também de outros meios, a arte sobrevive e é vívida em cada um. O objetivo não é parar, mas evoluir e ganhar força em semelhantes para continuar todo processo.

Ester Lyssa, estudante de letras e uma das escritoras da antologia “Despertar de Outrora”, publicado durante a pandemia, também nos contou um pouco sobre seu processo durante o isolamento. Ester disse que a cobrança de “ser artista” foi sua maior dificuldade durante esse tempo. A comparação aos outros, e também crises que aconteceram, a afetaram durante todo o processo, mas, apesar de tudo, encontrou um conforto na criação de outras pessoas e viu um crescimento em si própria, como a necessidade de ousar mais. Ela também acredita que essa experiência inusitada, da ausência e carência, revela à sociedade parte dos mistérios que cada um esconde por

Você pode encontrar as 3 artistas no Instagram: @_agathasuellen @palmellaram0s @ixterlyssa.

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não estou triste ou infeliz estou cansada cansada das expectativas cansada dos incentivos cansada de conselhos me deixe apenas deixar ir me deixar sentar, olhar para o nada e tentar sentir sentir algo que não seja medo misturado com vazio e frustração me deixe quieta em mim eu gostaria de ser a antiga eu novamente eu a perdi na tradução e me sinto sem legendas

Micaela Sá

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1967 (T.I. Igarassu / Dantas Barreto Joseildo H. Conceição

Quatro Cinco Oito Dez centímetro acima do chão.

Pensamento a vários palmos Acima da cabeça. Mão no corrimão.

Intuito animalesco que fere o bem estar social e qualquer limite de bom-senso e das leis da física que regem o real.

Talvez deixar o amontoado de massas à deriva no caminho do inferno não seja uma má ideia, melhor manter distância desse furor enérgico.

Alguns segundos são eternos e há louco em pele de respeito, mas é tudo momentâneo e tudo volta ao seu devido eixo.

Por enquanto.

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Quarentena Josicleia Lima

Presos em celas de concreto sem direito a julgamentos, todos são culpados e pagam o mesmo preço e os dias permanecem passando e várias mortes estão anunciando.

Nas folhas de jornais só existe morte e nada mais, o abraço já não se vê e os encontros destruídos, já não existe as tardes de domingo.

E a vida se resume em um convite inoportuno (covid-me) a adentrar em teus pulmões e roubar teu ar sem ao menos te avisar que o amanhã pode pra ti pode não chegar.

E os meses vão passando e os buracos se preenchem com Ana(s), Maria (s) , José e tantos outros nomes que desconhecidos é.

Os números continuam subindo e as portas continuam se abrindo, nem o concreto segura aqueles que não querem um abraço amigo.

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Morte pós-pandêmica Soneto de plenitude Basílio Basílio

Guardo na parede da sala meu crachá de paciente voluntário nos teste da vacina anti-covid mais um objeto para o meu relicário

A vida é um fluxo constante: Tristezas e alegrias rodopiam, Conforme a brisa, e pairam Sobre a vida num pouso instigante.

levanto minha teoria de que pandemias moldam o pensamento humano hoje ninguém mais se abraça e todo mundo parece neurótico

O céu azul cogita desabar Enquanto o mar de incertezas Traga o corpo com fortes correntezas...

Deixa cair, eu sei viver, eu sei nadar.

sociedade pós-pandêmica Eu sei manter a mente no lugar, população hipocondríaca Eu sei abstrair momentos ruins, tenho consulta todas terças e quintas Eu sei assumir o controle e pausar. tenho dó das próximas gerações Adversidades sempre existirão, passar por uma vida sem demonstrações Compete a mim viver plenamente de afeto ou de qualquer emoção Preenchendo cada erro, cada vão.

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Paisagem noturna André Santa Rosa

as janelas dos prédios e seus muitos olhos observam um mundo sem nós se estilhaça no céu a eletricidade das estrelas frias do medo dos homens as luzes das farmácias ascendem o caminho são marcas pálidas resquícios de uma civilização há um silêncio de romper os tímpanos

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PLAYLIST CONDOREIRA Acesse a playlist da Revista Condoreira no Spotify e confira uma seleção de músicas escolhidas a dedo pela equipe editorial. Basta clicar no botãozinho do spotify acima ou usar a câmera do celular para ler o código da playlist!

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