Quarentena Reversa - O Início

QUARENTENA REVERSA: O INÍCIO O ano é 2099, estamos em Afrika. Após conflitos e colapsos econômicos, o genocídio da raça preta chega em níveis insuportáveis em todo o globo, gerando o surgimento do coletivo global VOLTA (Violências Organizadas Libertadoras à Territorialização Afrika) que, em 2060, viabilizou de forma autônoma o retorno de todos os melanizados ao continente Mãe. Não sabemos bem se nossos bisavós descansaram seus corpos aqui – falaremos deles adiante – mas aqui nos desenvolvemos e nos dispusemos a estudar a história dos que resistiram em tempos de tanta angústia, ódio latente nos olhos do inimigo e sangue nosso derramado. E sentimos isso em nossa viagem no tempo, da qual também falaremos mais adiante. Nosso recorte nesse trabalho é sobre o Brasil e, mais especificamente, o Rio de Janeiro dos anos 20, cenário da histórica pandemia de COVID-19 e governado pela inesquecível (não pelos meios certos) Trinca Maldita, que os historiadores consideram a pior junção de presidente-governadorprefeito em regimes democráticos já registrada. (NOTA: ESQUECEMOS DE BOTAR OS NOMES DOS MEDÍOCRES – NEOGOOGLE PESQUISAR) Escolhemos o recorte brasileiro, pois nossos bisavôs são de lá e estudamos alguns de seus textos na disciplina de Literatura Preta, ministrada pela professora Gabi Pérola Neta. Segundo afirma mestre Sabotage (2003), rap é compromisso e os autores Fabio Emecê e Flávio XL (ordem alfabética) compuseram as trincheiras do movimento conhecido enquanto Rap Underground de Resistência, no início do século. Esse estilo literário constitui o relato mais fiel de um ambiente peculiar a ser analisado porque demonstrava um contexto explícito de genocídio e tentativa de resistência à vida e à saúde mental dos melanizados daquela época. Os autores eram MCs e professores de escolas públicas, observavam a construção e passagem da geração de adolescentes a adultos em periferias. Não eram famosos em vida, mas registros históricos de redes sociais como o Facebook (2004-2058) e registros do YouTube (2005-2071) indicam suas presenças e atividades enquanto poetas-MCs desde 2005 ao menos, bem como o respeito por entre seus pares.

Os estudos iniciados pelos cientistas Stevens Rehen (sobre cérebros em laboratório) aliados ao conhecimento mais aprofundado sobre sonhos das linhas de pesquisa de Sidarta Ribeiro (os dois

primeiros prêmios Nobel desse país), permitiram o surgimento dos mais recentes biochips de mercado: Sonhos dos Antepassados.

Resumidamente, este kit da empresa BLACKLABS (2097 – Nova Penha – Mindelo/Cabo Verde) permite que a partir de alguma amostra do DNA de um antepassado seja construído um mini-cérebro com possibilidade de acesso às informações retidas do ectoplasma emocional registrado até a data vivida pela amostra coletada.

Como os autores faziam suas mídias (compact-disc) à mão, conseguiu-se obter amostras de materiais genéticos oriundos de queratinócitos na biopoeira resgatada. A partir da construção dos respectivos minicérebros, conseguimos identificar a existência abundante de ectoplasma emocional, com perceptivos platôs de crescimento identificados a partir dos anos 10 deste século.

Graças aos respectivos biochips cerebrais em nós implantados conseguimos realizar a conexão e revivemos os sonhos de nossos antepassados durante as duas semanas iniciais da pandemia, mas acreditamos que os textos resultantes remetam mais à já preexistente condição de quarentena eterna vividas pelos melanizados à época.

Muitas coisas nos chamam atenção nos sonhos revivenciados.

Naquela época ainda não havia sido desenvolvido nenhum biochip de interface cérebro-máquina, nem do Estado e nem comercial. A fome vista em paisagens descritas nos sonhos é algo nunca observado desde que nos reunimos novamente em nossa Terra Mãe.

Inacreditável a insensibilidade dos olhos de muitos.

Invisibilidade aos melanizados, espancamentos por sexualidade, o medo dos homens inseguros que eram violentos com suas mulheres.

Eu não sei se chegamos assim em Afrika, somos gratos por não vivermos assim. E como diz o cérebro clonado e perpetuado do Dr. Átomo, professor da disciplina de Lições Infinitas, importante que tenhamos ciência de como os tempos podem ser difíceis para que nunca mais repitamos tais equívocos aqui.

Escolhemos escrever este TCC (Texto de Construção Cognitiva) em conjunto e no formato de EP, uma singela homenagem sobre como esses antigos poetas se expressavam. Ébano realizou seu autoupload no ectoplasma de Fabio Emecê, preto retinto e possuidor de letras complexas. A disciplina obrigatória de Literatura Preta 3 é considerada uma das mais difíceis da graduação por conta de seus textos. A sua voz, porém, fazia com que rapidamente o identificasse nas respectivas avaliações auditivas. Já Kenai teve seu upload no ectoplasma de flávio XL (gostava dessa forma de escrita: “letra minúscula porque sou

comum; já o vulgo é livre, mas tem que sustentar” dizia). Este poeta constantemente registrava o amor pela sua filha em versos e tinha a característica de que seus picos de produção literária ocorriam alinhados às suas crises de existência. Gravava, produzia e masterizava em casa e por isso decidimos reproduzir o mesmo aparato rudimentar para a construção do TCC. Obtivemos acesso aos seus arqueocomputadores com a autorização de seus familiares e descobrimos pastas com instrumentais ainda não usados do maestro Dudu Foxx. Esse artista foi contemporâneo dos autores e anos mais tarde ficaria famoso por seu talento sendo um dos cérebros perpetuados no Hall of Beatmakers da audioteca central, ao lado de J-Dilla, Mazili e Apollo Brown, entre outros.

As letras relatam o que foi existir nesse tempo e lugar tão absurdo como foi a terra de nossos descendentes. Que estes sofrimentos nunca mais estejam em nossa população e que aqui possamos sorrir e gozar do valor que é a vida. Hoje temos biochips, conhecimento democratizado e construído, desde ontem sempre tivemos corações. Enquanto povo, resistimos nos inspirando nas bravuras passadas. Poetas que escrevem pela necessidade de seus ectoplasmas expandirem (ainda não havia sido descoberto este conceito biopsíquico antes dos anos 60). Registros históricos já transmitiam a ideia que vigorava nos seres constituintes do que é o chamado movimento underground: a arte existe porque só a vida não basta. Hoje os ectoplasmas emocionais comprovam a necessidade expressiva e fundamental ao equilíbrio e sobrevivência.

Quarentena Reversa não é somente sobre o advento da pandemia, é sobre as condições desumanas e o fundo do poço. Acreditamos que este trabalho possa ajudar a construir o tapete de relatos que formam a nossa base e solidifica a união de nossa raça.

Ébano e Kenai.