Livro Não matem os pardais - Ermano Melo

Page 1

Não matem os pardais

Não matem os pardais

Cartas a Dinorá

e outras reflexões de uma pandemia

Agradecimentos

Agradeço muitíssimo à minha família pela compreensão de todo o tempo que lhes foi roubado. Agradeço do fundo de meu coração o carinho e o apoio de minha amada Verônica, de meus filhos Lucas, Márcio e Juliana (a responsável pelas ilustrações desse livro), que sempre foram compreensivos com meus momentos de isolamento em meu escritório e me estimularam com admiração, comentários e algumas críticas pertinentes. Permitiram com seu amor, paciência e cumplicidade que eu realizasse o desejo que estava dormente na alma há algum tempo: me eternizar pela escrita para que os que ainda estão por nascer possam dialogar com este que veio antes e assim entender o meu modo de ver o mundo; é um pouco de vaidade sim, mas paciência, somos todos pecadores afinal.

Agradeço a meus pais, D. Maria Pia e Dr. Ermano Flávio, que me disponibilizaram um ambiente familiar de amor, paz e dedicação, fundamental na minha formação. O gosto pela leitura e pela escrita certamente germinou pela visão dos inúmeros livros bem arrumados nas estantes de nosso lar e pela observação do familiar gosto pela leitura. Meu pai, um profundo admirador e conhecedor da História e da política e minha mãe, apaixonada pela cultura popular e pela poesia (chegou a publicar seu livro), foram grandes influenciadores dessa minha inquietude literária.

Agradeço demais aos meus inspiradores e provocadores, cada um a seu modo. Falo do meu analista Dr. João Alberto Carvalho, que com sua inteligência, cultura e paciência me impulsionou para níveis de auto entendimento antes inatingíveis. Aos meus orientadores de doutorado Dr. Paulo Schor e Dra. Bianca Arruda, que

com a provocação intelectual que fizeram, descortinaram um caminho totalmente novo para mim e me levaram a leituras improváveis, que tiraram minha imaginação de um repouso profundo de décadas.

Agradeço demasiadamente a minha assessora de comunicação Karlla Barbosa, que ao ver meu primeiro texto sobre a pandemia, interrompeu a divulgação nas redes sociais para que fosse enviado ao JC para uma possível publicação e iniciou essa pequena epopeia literária, além de me apresentar ao editor Laurindo Ferreira, a quem agradeço profundamente por me receber de braços abertos e me apresentar um mundo novo, o mundo da exposição ao público por um forte e tradicional canal de jornalismo. Só tenho gratidão pela oportunidade e confiança em mim depositada.

Agradeço a minha amiga Dinorá Bezerra, coautora da terceira parte, que com sua honestidade, coragem e generosidade, permitiu um debate intelectualmente elevado e me provocou como só pessoas de muita inteligência são capazes.

Agradeço aos sócios e colaboradores da Opty/Oftalmax, meus colegas médicos, meus familiares e amigos que, em conversas privadas ou por inúmeras mensagens, me apoiaram com elogios e críticas construtivas aos diversos textos no decorrer desses dois anos. Seria impossível nomear todos pois certamente cometeria alguma injustiça esquecendo algum nome, mas eles sabem quem são e por favor, sintam-se homenageados e abraçados.

Ermano Melo

Apresentação

Estava chegando na universidade e, numa aula de Filosofia, angustiado, confessei ao professor: desculpe, mas eu não estou entendendo nada. Aí, para minha surpresa, o professor, que aliás não lembro o nome, responde: ótimo, porque filosofia é descoberta, um mergulho no escuro, segurando uma lanterna para tentar clarear ao redor. A partir dali, comecei a gostar de tentar entender filosofia passando, primeiro, a entender que basicamente ela nos faz pensar e, portanto, deve ser pois da natureza humana.

Conto essa historinha para lembrar o primeiro contato que tive com o texto de Ermano Melo, o oftalmologista. O texto chegou ao meu endereço eletrônico pelas mãos da amiga jornalista Karlla Barbosa. Quando li o primeiro artigo, pensei: esse cara é só oftalmologista? Não, claro que não. É um filósofo. E aí eu volto à historinha inicial desse texto: porque filósofo é quem pensa, quem reflete, quem leva os outros a também pensar. E quem disse que oftalmologista tem que escrever só sobre seu ofício profissional?

É tudo que Ermano não faz. Ou se faz, faz pouco. Ou pelo menos não nos artigos que o JC publica. “Ler e escrever é uma arte recente e difícil e, por isso mesmo, poderosa”, diz o nosso autor/filósofo/oftalmologista, num dos textos publicados neste livro. Bom, se escrever é difícil para o nosso autor, tem sido um prazer para mim, como editor, e para os leitores do JC: economia, política, geopolítica, comportamento, saúde, tudo cabe nas reflexões de Ermano e, para quem ainda não conhece, não se iluda: nesses tempos de falas rasas, de opiniões desencontradas, de bobagens transformadas em verdade, os textos de Ermano têm sido um bálsamo. Porque têm,

também, um misto de humor e ironia, sempre com muita inteligência e perspicácia.

Neste livro - o leitor verá - as cartas trocadas entre o nosso oftalmologista/filósofo e sua amiga Dinorá Bezerra, por exemplo, trazem outro elemento em falta nos dias de hoje: a capacidade dialética do verdadeiro diálogo e o saudável confronto de diferentes pontos de vista. Quem ler verá que essa fantástica troca de reflexões entre Dinorá e o nosso autor (filosofia aplicada?) pode nos ensinar muito. E, convenhamos, precisamos todos aprender. Então, vamos todos pensar. Que viva o pensamento livre.

Prefácio

Apresento o livro Não matem os pardais de Ermano de Melo Alves. O autor é um renomado oftalmologista, dono de alta respeitabilidade por todos que o cercam. Conheço Ermano desde os seus tempos de estudante de medicina, fui seu professor. Lá, já se mostrava um homem estudioso, responsável, querido pelos colegas, ético e atento aos pacientes. Anunciava-se assim o médico que é. Agora aparece também como alguém com pendor para a escrita.

Tenho diante de mim uma publicação cuidadosa, esteticamente agradável, com diagramação competente, o que leva a uma leitura facilitada. A publicação tem um diferencial que perpassa toda a obra: os textos são acompanhados de ilustrações. São caprichados desenhos, certamente executados com talento. A desenhista é Juliana Alves, artista jovem e criativa que apresenta trabalhos delicados, espontâneos na pureza do não academicismo. Uma luxuosa colaboração para o livro.

Não matem os pardais é dividido em unidades cujos conteúdos são articulados entre si por meio de textos curtos, próximos de crônicas. A última parte da coletânea se diferencia por ser constituída de uma troca de correspondência entre Ermano e Dinorá Bezerra, também médica. Todo trabalho tem como pano de fundo a pandemia dos últimos anos.

Vivemos tempos ruins. Foi exigido de todos nós uma enorme capacidade de adaptação ao trágico inusitado. Fechamos as portas das nossas casas, procuramos manter a mínima comunicação pessoal fora dos nossos tetos. As casas foram enxarcadas por água sanitária, álcool, desinfetantes de toda ordem, para quem podia comprar. Nossos corpos, bem esfregados por água e sabão além de

muito álcool em nossas mãos. Máscaras quase grudaram nas nossas caras. Tudo, ou perto disso, mudou. Acabou-se o tempo das selfies, entraram em cena as lives. Tempos de enorme desamparo. O mundo conheceu o medo da morte sem fronteiras, de modo universal como não se via desde a gripe espanhola.

A pandemia exigiu a restrição drástica da circulação das pessoas nas cidades. A economia tremeu e continua trêmula. Muitos se insurgiram contra o comércio restrito, sobretudo aqueles cujos lucros foram reduzidos. O valor da vida humana foi relativizado, sobretudo pelos poderosos. Um povo de joelhos.

Desamparo e exílio são palavras bem adequadas para os tempos de Covid. São expressões que revelam medo, tristeza, solidão, dor. Tempos de lutos diversos que pareciam sem fim. O termo desamparo corresponde, exatamente, ao estado em que o ser vivo precisa de cuidados e direcionamentos para manter-se com vida. Isso nos faltou demasiadamente. Exílio referido como o tempo onde somos tirados dos nossos lugares, sem data para uma volta que nem sabíamos se haveria. Luto por tantas mortes acumuladas no mundo, no país, nas cidades, nas ruas, e nas nossas casas. Luto também pela perda de muitos ideais.

Duro o cenário onde os textos de Ermano de Melo Alves foram produzidos. As crônicas permitiram, legitimamente, a emissão de opiniões pessoais do autor. Esse poderia ter sido um dificultador para a minha apresentação do livro. Digo isso por ser um leitor, talvez, tendencioso, buscando fundamentação para temas ligados à medicina. O avanço na leitura, de todo modo, dissiparia qualquer dificuldade. O que poderia ser uma argumentação de autoridade deu lugar à publicação de um autor com gosto pelo debate, comprovado pela inclusão da troca de ideias entre Ermano e a sua coautora. Esse trecho do livro mostrou a possibilidade de diálogo na diferença. Isso não é coisa miúda. O conjunto

de cartas trocadas deve ser entendido como um estímulo à conversação, à atitude plural, à rejeição da polêmica, portanto permitindo o diálogo. Algo que podemos chamar de uma interlocução verdadeira.

Não matem os pardais me remeteu ao poeta Hölderlin na celebração do armistício entre franceses e austríacos em Lunéville, 1801. Uma das estrofes do hino Festa da paz destaca, em um discreto, e essencial verso o fato de que nós, mulheres e homens, erramos, mas também fizemos coisas boas, tivemos conquistas, criamos algumas maravilhas... Tudo isso, porém, só pôde ser feito e usufruído depois que conseguimos escutar uns aos outros.

Boa leitura!

Parte 01...................................................12 Prólogo..............................................................13 Coragem e Verdade............................................17 Covid-19 e Sócrates............................................20 Quanto tempo durou a sua quarentena?..........23 Não matem os pardais!.....................................26 E se Churchill estivesse vivo?..........................29 Miopia, Covid e crianças...................................32 Papa, pandemia e álcool.....................................35 Seu filho não é seu amigo!.................................37 Simples assim!..................................................40 A inveja da Pfizer...............................................43 Divina Comédia Brasileira...............................46 E a Suécia?........................................................49 Parte 02...................................................52 Prólogo..............................................................53 Maradona - Héroi e deus...................................57 A faxineira.........................................................60 Poder feminino...................................................63 Um bom ouvinte................................................66 Meu pai.............................................................69 Julgamento e absolvição.....................................72 Trégua de Natal..................................................75 Parte 03...................................................78 Prólogo..............................................................79 Carta aberta aos jovens que conheço... E também aos que eu não conheço.....................................83 Carta ao meu amigo Ermano.............................89 Querida amiga...................................................95 Carta II ao meu amigo Ermano........................103 Querida Dinorá..................................................111 Carta III ao meu amigo Ermano......................129 Sumário Epílogo...................................................141

Parte

1

Prólogo

Esse livro não foi idealizado primordialmente como tal. Nasceu como um subproduto de uma série de artigos, frutos de uma angústia que existe desde sempre e que foi despertada pela peste chinesa.

Referir-se desse modo à pandemia do Covid-19 já é, por si só, um pequeno ato de rebeldia; não do tipo revolucionária, mas provocadora, inspirada talvez na vida de Sócrates, que foi acusado, julgado e morto pela acusação de corromper os jovens. Por sorte, não tenho nem inteligência e nem retórica minimamente comparável, de modo que serei completamente ignorado pelos juízes atuais. É um alívio, pois não teria nem a clareza de raciocínio e nem a coragem que ele mostrou nos dias e horas que antecederam a ingesta da dose mortal de cicuta.

Os artigos aqui compilados nasceram da observação dos eventos dos últimos dois anos contaminada pela leitura de diversos artigos, colunas e livros dos mais variados temas. O leitor que tiver a disposição de seguir adiante pelas próximas páginas talvez estranhe a diversidade de assuntos; realmente não há lógica nenhuma em

13 Não MateM os Pardais 1

textos que abordam, mesmo que superficialmente, filosofia, história, arte, futebol, medicina, álcool, o Papa, redes sociais etc. O único modo de absolvição do autor é a tolerância com o excesso de curiosidade aliado a um desejo de se expressar, que se não for atendido, o condenará a níveis de ansiedade ainda maiores do que aqueles que já lhe penalizam desde a infância.

Há uma nítida predileção pela História, tanto pelos fatos propriamente ditos como pelo significado destes na evolução da consciência humana e no significado das nossas vidas. Não poderia ser diferente, pois conhecer o que se passou antes de nós é como uma autobiografia; sem a História não sabemos quem somos e consequentemente ficamos sem futuro, condenados à escravidão de satisfazer nossos desejos e instintos primitivos; seríamos indistinguíveis dos animais.

Além dos fatos, de igual ou maior importância, há o abstrato, aquilo que o ser humano é capaz de imaginar e transmitir em diferentes formas de linguagem, como a mitologia, os romances, a música, a poesia, as pinturas, a dança, o teatro etc. Essa não realidade, talvez seja até mais importante do que os fatos propriamente ditos, pois, um verdadeiro artista, condensa diversos aspectos da realidade humana em apenas uma obra. Por isso Dante ainda nos maravilha com A Divina Comédia, Da Vinci nos extasia com A Última Ceia e Homero nos faz sonhar com a mistura de homens e deuses na Ilíada. Essas obras não são menos reais do que os escritos de Churchill sobre a Segunda Guerra, a teoria da relatividade de Einstein, os trabalhos acadêmicos de Freud ou, mais recentemente, os livros e vídeos de Jordan Peterson. Todos tentam explicar a vida humana e a melhor maneira de sobreviver ao caos em que fomos lançados desde que tomamos consciência de nossa vulnerabilidade e da nossa condenação, tão bem representada pela expulsão de Adão e Eva do Paraíso.

O que tentei realizar nesses artigos foi uma conexão entre assuntos aparentemente desconexos,

14 Parte 01

mas que através da imaginação, pode explicar algo ou simplesmente aplacar o medo do desconhecido, que sempre houve, mas que foi agudizado pela emergência da pandemia. Além disso, é uma forma de enaltecer a busca por conhecimentos gerais e se afastar um pouco de temas pequenos e mesquinhos como esses que estamos vivendo atualmente: a discussão política rasa e de baixíssimo nível com que somos bombardeados diariamente. A escrita é, para mim, a melhor forma de linguagem, pois permite o pensamento e a ponderação antes da expressão; a tradição oral, ainda que bem mais antiga, pode ser uma armadilha para aqueles mais viscerais visto que a palavra lançada não volta e, tal qual uma flecha, pode deixar ferimentos graves. Se essa minha aventura servir de estímulo para que alguém também se arrisque e siga o mesmo percurso, justificará essa ousadia, pois muitos têm o que dizer e se retraem por receio do ridículo ou da não aprovação. Esse temor do olhar alheio faz parte do homem e é necessário, mas após os 50 sentimos a necessidade de nos arriscar um pouco.

15 Não MateM os Pardais
Publicado na edição do dia 31.03.2020 do Jornal do Commercio

Coragem e Verdade

Há dois valores que trouxeram a humanidade para onde estamos: a verdade e a coragem. Essa combinação nos brindou com a melhor época da história. A vida pode se apresentar em perfeita ordem ou em um caos total. O seu significado, na opinião de pensadores importantes, se situa na fronteira. Na ordem ficamos acomodados (não há ansiedade); no caos, vamos ao desespero (ansiedade máxima). No limite é que evoluímos (ansiedade leve-precisamos disso); é onde aprendemos valores e descobrimos o sentido de existir; é quando sabemos se somos fortes ou covardes; alguns chegam a doar a própria vida. Esse é um desses raros momentos: o caos está instalado.

O problema que se apresenta exige coragem, e, ao que parece, ela está aparecendo; podemos ver em diversas pessoas, anônimas ou públicas. A raça humana, em sua maioria, enfrenta os perigos que se apresentam. O que está faltando é a verdade. Ninguém sabe exatamente o que fazer. Nem a OMS, nem os líderes mundiais, nem os médicos (haja vista tanta opinião discordante). Essa verdade está próxima de se mostrar, e, quando isso ocorrer, sairemos do caos para a margem, que é onde devemos estar.

Como toda criança, que vai testando os limites para se tornar um adulto saudável, também precisamos romper

17 Não MateM os Pardais

o que nos cerca e crescer. Se algo de positivo pode ser extraído desse momento é isso: a saída do conforto para linha de frente com o desconhecido. Nossos desafios serão outros, e bem mais importantes que os que estávamos debatendo nas conversas, mídia e redes sociais (chega de discussão inútil). Aproveite isso.

A verdade não negocia, a natureza não negocia e os vírus também não. Seguem seu curso e fazem o maior estrago possível. Não há diálogo. Só nos resta conhecer a verdade e ter a coragem de fazer o que é preciso. Um sem o outro não é eficaz, é desperdício de energia e recursos. A coragem nós temos, falta a verdade.

Agradeço a todos que estão na linha de frente: médicos, enfermeiros, auxiliares etc. Se preciso, também estou à disposição.

18 Parte 01
19 NÃO MATEM OS PARDAIS Publicado na edição do dia 16.05.2020 do Jornal do Commercio

Covid-19 e Sócrates

Ovírus nos aproximou do inevitável: a visualização da morte. O Ocidente, de um modo geral, vive como se “ela” não existisse e se espanta quando atinge alguém próximo. Percebo que a religiosidade não tem sido suficiente para evitar o desespero ou histeria de uma boa parte das pessoas. Alguns crentes e ateus (que também são crentes – “creio que não há!”) assemelhamse no comportamento, permitindo que a pulsão pela vida interrompa o pensamento racional, paralisando-os igualmente.

Minha sugestão: além da busca pelo divino, aproveitemos as horas ociosas para conhecer o básico do pensamento dos grandes filósofos. Nada melhor que Sócrates, o maior de todos, que foi condenado à morte pela acusação de corromper os jovens com suas teorias. Sua vida, sua coragem e raciocínio durante seu julgamento, suas reflexões sobre a alma humana e como ele mesmo consola seus amigos até beber o veneno que lhe era devido, faz dele, em minha opinião, o melhor ser humano que já viveu por essas bandas.

A filosofia era a autoajuda. Sem BBB, sem Netflix e sem ZAP, a dialética era o passatempo. Sócrates não tinha uma teoria específica, ele era um provocador, um “perguntador”, que estimulava o raciocínio nos outros em busca da sabedoria, sem arrogância, sem levantar a

20 Parte 01

voz; se relacionava com todos igualmente, desde o mais nobre até o mais simples cidadão. Algumas passagens: Querofonte foi ao oráculo de Delfos perguntar se Sócrates era o mais sábio de todos, a resposta foi positiva. Intrigado, Sócrates perambulou por Atenas perguntando às maiores autoridades se eles tinham sabedoria e todos afirmavam que sim, sabiam muito. Então ele se convenceu: era o mais sábio pois tinha o inestimável conhecimento de que nada sabia. Seria muito mais útil se todos admitissem que nada sabem sobre o Corona, sobre a quarentena, sobre a cloroquina etc. Seria melhor admitir a ignorância e aprender com os erros e acertos aos poucos.

“Uma vida sem exame não merece ser vivida”. Ou seja, todo ser humano tem que encontrar o âmago da sua existência. A busca pela verdade, pela bondade, pela beleza e pela justiça deve ser constante. Explore o máximo de sua potencialidade baseado em nobres propósitos, não importa os sacrifícios pessoais; não espere facilidade, a vida é, segundo Thomas Hobbes, sórdida, brutal e curta. Somos frágeis, mas também somos grandes. Nossa consciência nos aproxima do divino e permite nosso autoexame. Se o resultado for positivo, não teremos desespero quando a extinção se aproximar.

“Os deuses aprovam uma ação porque ela é sagrada, ou ela é sagrada porque eles a aprovam?” Autoexplicativa. Um pouco de Sócrates em nossos altos magistrados e autoridades faria muito bem.

“Críton, devemos um galo a Asclépio. Cuide disso.”foram suas últimas palavras. Asclépio é o deus da cura, o galo é o agradecimento por ter sido curado. Explicou antes com o raciocínio, a existência da alma e a certeza da continuidade da vida, por isso não temia a morte. Pelo contrário, considerava-a um remédio para a doença. Não somos tão evoluídos assim, mas serve para chacoalhar aqueles que estão buscando inspiração para sair do pânico. Coragem.

21 Não MateM os Pardais
22 PARTE 01

Quanto tempo durou a sua quarentena?

“Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada”, essa uma reflexão do tempo de Santo Agostinho. O tempo é um mistério desde a mitologia grega até os filósofos e cientistas de toda a história mundial.

Platão disse que Deus criou o tempo junto com o universo e o movimento; Para Sir Isaac Newton, o tempo era absoluto e fixo. Einstein chega e assombra o mundo revelando que o tempo é conectado ao espaço, formando um bloco gelatinoso móvel que logo cria a ilusão de saltos de épocas.

As leis da física provam que não há um agora absoluto. Um relógio atômico anda mais acelerado no alto do Himalaia e mais devagar no nível do mar. Envelhecemos menos dentro de um trem de alta velocidade do que parados na estação. A gravidade e o movimento desaceleram o tempo.

Mas e nas nossas mentes? Como funciona o fluxo temporal? A neurociência avança e estudos revelam a existência de um hub temporal em nosso cérebro e, adivinhem, está intimamente conectado com as emoções.

Quando estamos vivendo bons momentos ou em

23 Não MateM os Pardais

atividades que exigem nossa atenção, o tempo passa rápido e quando estamos em alguma sala de espera, o tempo não anda. Porém, quando buscamos na memória, aquele período que “passou rápido” se dilata; as emoções e o aprendizado ocupam um espaço grande no hipocampo, enquanto o tempo que parecia longo, se contrai, afinal nada há para lembrar. Esse é o “paradoxo das férias”, descrito pela britânica Cláudia Hammond. É o tempo retrospectivo.

Na quarentena houve tempo de sobra. O modo como o utilizamos é que vai fazer diferença. Haverá distinção entre quem aumentou a atividade elétrica dos neurônios e disparou mais serotonina e aqueles que se entregaram ao tédio e a angústia.

Ainda há tempo disponível, haverá demora no retorno total, então a mensagem é simples, faça esse tempo restante passar rápido com novos desafios e, no futuro, irá parecer que foi um longo período, e melhor, um tempo em que você aprendeu ou realizou algo.

24 Parte 01
25 NÃO MATEM OS PARDAIS Publicado na edição do dia 15.01.2021 do Jornal do Commercio

Não matem os pardais!

Em 1958, Mao Tsé-tung, o timoneiro da China comunista lançou o Grande Salto Adiante, seu plano para desenvolver a China e ter alimentos; lançou a campanha para eliminar pragas: mosquitos, ratos, moscas e pardais. Esses comiam sementes, frutas, grãos e eram os vilões da baixa produção. A população se engajou na matança; havia recompensas, e, só em Pequim, 800 mil foram mortos em três dias. Um ano depois, enxames de gafanhotos e insetos livres dos seus predadores naturais devastaram enormes plantações na China e, para surpresa de ninguém, veio a maior fome de todos os tempos (1958-1962), que exterminou aproximadamente 36 milhões de camponeses; há relatos de canibalismo e é provável que venha dessa época o hábito de comer animais silvestres. Mais uma vez, o comunismo foi derrotado pelo seu maior inimigo: a realidade.

Ao mesmo tempo uma revolução se desenvolvia. A riqueza mundial crescia mais nos últimos 200 anos do que em toda a história. O produto mundial bruto per capita passou de US$1.000 em 1820 para US$2.000 em 1900 e em 2017 chegou a US$16.000. E olhe que a população saltou de 1 bilhão para mais de 7 bilhões. A classe média

26 Parte 01

surgiu da pobreza. O que causou isso? O surgimento do sistema de livres-empresas, a Revolução Industrial e o liberalismo político-econômico. Na África Subsaariana, o consumo calórico médio pulou de 2000, em 1961, para 2400, em 2013. Hoje, a classe média tem um consumo calórico melhor que a nobreza do século XVII. Temos aqui um bom exemplo de fatos e consequências. Mas eis que chega o vírus chinês. A maioria dos países fazem lockdown e poucos optam apenas pelo distanciamento, além de outras medidas. De acordo com o site www.worldometers.info, Bélgica, Itália, Reino Unido e outros países que adotaram o isolamento radical, estão entre os 10 países com maior número de mortes por milhão/hab. A Suécia, que não fez, está em vigésimo quinto lugar. Nos EUA, o estado da Flórida, que não fez lockdown, tem menos mortes por milhão que o estado de Nova Iorque (quase a metade) e com uma população de idosos maior. Os números sugerem que o radicalismo não entrega o que promete. Há uma dissociação causaefeito.

Porém, o trancamento irrestrito mata os pardais (empreendedores, autônomos e trabalhadores). Então, sempre que um aspirante a ditador disser que vai tirar sua liberdade para salvar o mundo, desconfie. Você pode ser apenas um pardal.

27 Não MateM os Pardais
ARTE

E se Churchill estivesse vivo?

Sempre que a ausência de um estadista é sentida, nada mais natural buscar no passado. O primeiroministro britânico atual é autor de uma bela biografia de Churchill, mas ele mesmo parece não entender o que escreveu. Merkel também já mostra desânimo e não sabe o que fazer. Todos parecem paralisados, aguardando o milagre da vacina para vencer o inimigo. Nos EUA e Europa não há um líder sequer que soube se portar com altivez e dignidade; melhor nem citar os exemplos brasileiros.

Imagine se Churchill tivesse negociado e se rendido ao inimigo porque não tinha a “vacina” (a entrada dos EUA na guerra)? Certamente sem sua coragem a Europa hoje seria o III Reich. Ao assumir, ele falou: “nada tenho a oferecer, senão suor, sangue, trabalho e lágrimas” (sempre esquecem de citar o trabalho). Ou seja, não tinha a menor ideia de como aquilo iria terminar, mas prometeu lutar nos campos, nos ares, nos mares e nunca se render. Talvez seja isso que nós desejamos ouvir. Coragem e dignidade e não rendição.

O trancamento irrestrito é um recuo perante o inimigo desconhecido, em um primeiro momento é aceitável. Quando o exército britânico estava encurralado

29 NÃO MATEM OS PARDAIS

em Dunkirk, a evacuação milagrosa pelo Canal da Mancha foi possível graças à coragem da frota civil e seus pequenos barcos, mas quando a imprensa e a população saudaram o sucesso da operação, Churchill disse: “não se ganha uma guerra com retiradas”. Perante a iminente invasão alemã, só a coragem de jovens pilotos da recémcriada RAF e a bravura de uma população bombardeada diariamente (e que se recusou a ficar escondida no subsolo) é que foi determinante para salvar aquela ilha do inimigo.

Por aqui, até férias alguns se acham merecedores; mas estadistas não tiram férias. Sir Winston Churchill dormia quatro horas por noite durante todos os anos do conflito, inúmeras viagens de alto risco, sofreu um infarto e mesmo assim não descansou.

Na expectativa do desembarque na Normandia, o grande general alemão, Rommel (a raposa do deserto), que era responsável pela defesa do continente, resolveu ir festejar o aniversário da esposa em Berlim pouco antes do dia D, achava que podia se dar ao luxo do descanso. Melhor não atender a caprichos de cônjuges durante uma guerra.

30 Parte 01
31 NÃO MATEM OS PARDAIS Publicado na edição do dia 17.04.2021 do Jornal do Commercio

Miopia, Covid e crianças

As crianças são vítimas silenciosas. Como não estão no grupo de risco, não chamam a atenção. Já alertamos sobre os transtornos mentais e aumento de suicídios em crianças e adolescentes, mas o tema agora é outro.

Estudo com 123.000 crianças, recentemente publicado na China, assustou os oftalmologistas pelo aumento da miopia durante o confinamento. Há uma triagem anual feita desde 2015 em Feicheng para controle da miopia; essa preocupação é justificada pelo alto índice nos asiáticos (80% de miopia aos 13 anos, contra 25% nessa mesma idade na Europa). O alerta atingiu principalmente as crianças entre 6 e 8 anos; houve aumento da prevalência de miopia de 40% nas crianças de 8 anos, de 200% nas de 7 anos e um aumento incrível de 400% nas de 6 anos de idade (parece que há uma “janela” de risco nessa idade). Entre 9 e 13 anos o aumento não foi significativo. Entre 2015 e 2019, nessa mesma faixa etária, houve estabilidade da prevalência, mas em 2020, após o fechamento das escolas entre janeiro e maio, ocorreu essa explosão. Os dados foram coletados em junho, logo após a volta às aulas.

32 Parte 01

Há um consenso que atividades outdoors são protetivas para o surgimento e aumento da miopia e, pelo contrário, atividades indoors e excesso da visão de perto (telas e smartphones) estimulam o aumento do comprimento axial do olho e, consequentemente, a miopia. Um estudo canadense de 2020 relatou que crianças de 8 anos de idade gastam em média 5,24h/dia em telas, bem acima do recomendado (2h/dia). As meninas são mais afetadas que os meninos, que gastam mais tempo em atividades esportivas ao ar livre e menos em redes sociais que as garotas, mas esses também estão diminuindo essa prática.

Não é apenas o “usar óculos” (que já afeta bastante), mas riscos futuros. Quanto mais cedo a miopia aparece, maior a chance de termos um alto míope na idade adulta e com isso, riscos de complicações graves. Catarata, glaucoma, descolamento de retina, maculopatia e visão subnormal são bem mais frequentes em míopes que em não míopes. As crianças não são os transmissores da Covid; elas são verdadeiras usinas de interferon, que matam os vírus. Abram as escolas, as praias e os parques para essas vítimas silenciosas. O preço a pagar pode ser alto.

33 Não MateM os Pardais
34 PARTE 01

Papa, pandemia e álcool

OPapa brincou conosco, disse que bebemos demais e oramos de menos. Pela autoridade de quem fala, desperta no mínimo curiosidade. Artigo recente no The Atlantic, de Kate Julian, ilumina um pouco essa relação conflituosa desde que uma mutação, há 10 milhões de anos, permitiu-nos metabolizar o álcool 10 vezes mais que outros mamíferos. Enzimas especiais salvaram primatas pela ingestão de frutas fermentadas na escassez; a sopa batizada deixou os hominídeos mais alegres, cooperativos e sociáveis, criando vantagem sobre tribos sóbrias e garantindo que seus genes chegassem até nós, permitindo a happy hour e a eucaristia com vinho. Uma benção divina.

A religião foi fundamental na construção da civilização, pois pela crença nos tornamos mais solidários, cooperativos e menos agressivos. Ironicamente, esse também foi o papel do consumo moderado de álcool, segundo a autora. Através de bebidas, ao longo dos séculos, houve bem mais diálogos, risos, abraços, amizades e criatividade, deixando povos abstêmios em desvantagem.

A chegada da bebida destilada na China no séc. XII e na Europa, no XVI, aumentou os problemas. A mutação

35 Não MateM os Pardais

não foi para tanta concentração alcoólica e povos que preferem essa opção tem mais riscos, vide os russos e a vodca (quem lembra de Boris Iéltsin?). Os italianos bebem mais vinho e em refeições, não a toa apresentam o menor índice de alcoolismo do mundo. Americanos têm uma relação bipolar, ora bebem muito, ora criam a lei seca. Com a pandemia, estão em alta. Aqui em Pernambuco há a perigosa cultura do uísque, legado dos usineiros e do famoso Bar 28; bebemos scotch até na praia, é status. Pernambucano é um caso a ser estudado.

Churchill garantiu a cerveja de suas tropas tanto na Primeira como na Segunda Guerra (claro que tinha a sua Pol Roger); Ele, aliás, foi quem afirmou que há dois tipos de bebedores ruins: os que bebem demais e os que bebem de menos. Kate Julian assim sintetiza: Destilados em bebedores solitários é o maior risco, enquanto bebidas fermentadas durante as refeições com a família tem efeitos positivos. Dois extremos.

O Covid fechou bares e restaurantes e com isso tirou o melhor da bebida: a roda de amigos e familiares. Não é o álcool que traz vantagem aos humanos e sim a amizade, a fraternidade e o diálogo. O uso moderado de vinho, cerveja e uísque apenas facilita. Cheers!

36 Parte 01

Seu filho não é seu amigo!

Opsicólogo canadense Jordan Peterson, em sua densa obra MapasdoSignificado, nos alerta sobre a transição da infância para a vida adulta. Há nesse momento a “perda do paraíso” da inocência infantil e o enfrentamento de uma realidade ainda não conhecida que é assustadora. Aqui entram as amizades e a formação dos grupos, fundamental nessa transição. Suas palavras:

... O grupo é o abrigo protetor para a criança velha demais para a mãe, mas não o suficiente para ficar sozinha... o grupo é a estrutura histórica que a humanidade ergueu entre o indivíduo e o desconhecido... o desafio é ainda maior para meninos, com rituais mais complexos e mais facilmente desorientados que as meninas, que têm suas mudanças catalisadas pela natureza (menarca).

O fechamento das escolas afastou os grupos, e os efeitos estão surgindo com uma força descomunal. Artigo do The New York Times (Surge of Students Suicides Pushes Las Vegas Schools to Reopen) alerta para o aumento dramático dos casos de doenças mentais em jovens, relacionados ao isolamento. No Condado de Clark, Nevada, cuja sede é Las Vegas, houve 18 suicídios de jovens em nove meses (março a dezembro 2020), o dobro de todo o ano de 2019. Um adolescente deixou uma carta

37 Não MateM os Pardais

dizendo que não tinha mais esperanças e uma criança de nove anos foi o mais jovem a tirar sua própria vida. O pai de um jovem de 12 anos relatou: “meu filho morreu de coronavírus, mas não do modo que vocês imaginam”. As autoridades estão em alerta e correm para corrigir o erro de fechar as escolas por um tempo tão longo, pois sabem que os efeitos se estendem mesmo após a reabertura. Não temos esses dados evidentes aqui no Brasil, mas há de se imaginar que não devem ser muito diferentes; a natureza humana é uma só e a iniciação para a vida adulta apresenta os mesmos temores e necessidades em todo o mundo.

Mesmo sendo um bom pai/mãe isso não é amizade, que nessa idade requer simetria na relação, enfrentar os mesmos problemas, os mesmos medos e descobertas, e isso nenhum genitor pode ser. Ele não vai e não deve lhe contar tudo, assim como você também não vai perturbálo com os seus problemas. Ele precisa do grupo para virar adulto. Nós temos que ser os melhores pais que pudermos, mas não diga que ele é seu amigo(a); ele é o seu filho(a).

38 PARTE 01
39 NÃO MATEM OS PARDAIS

Simples assim!

Essas duas palavras inundam as redes sociais. Significam que você sofre por sua culpa, pois nada é complicado. Parece que voltamos no tempo. Na transição entre os séculos XIX e XX, Darwin tinha explicado a origem das espécies, Marx o sistema social, Freud a psique humana e Einstein o espaço-tempo, Nietzsche já tinha decretado a morte de Deus e a religião era superstição. Foi sugerido a extinção do escritório de patentes britânico pois nada havia mais para ser inventado. A vida era simples assim.

Mas a História resolveu complicar: guerras, gripe espanhola, revoluções, bomba atômica, guerra fria e inúmeras tragédias ignoraram a nossa arrogância e nos humilharam impiedosamente. Não fosse por três grandes líderes mundiais- Ronald Reagan, Margaret Thatcher e João Paulo II – poderíamos ter atingido uma hecatombe nuclear. Vieram tempos mais calmos e a vida ficou simples novamente. Mas não aprendemos e o nosso reducionismo não funcionou de novo.

A célula não é a menor parte do ser vivo, o átomo não é indivisível, as cadeias helicoidais de DNA não explicam nada, o sequenciamento do genoma não nos livrou de doenças, a liberação sexual não libertou ninguém e a angústia humana continua apesar do Rivotril.

40 Parte 01

Os influencers digitais e coachs deveriam explicar por que a vida de uma criança desaba após um divórcio traumático, a de um jovem complica com gravidez indesejada, um adulto vai ao abismo após um acidente fatal ou doença grave em uma pessoa amada. Uma depressão sem motivo leva a um suicídio, mas essa vítima era para estar feliz, afinal, a vida é simples, somos nós que complicamos, dizem os filósofos de fim de semana com fotos em academias ou entre taças de vinhos e pratos gourmets.

Isso não é uma apologia ao pessimismo. Apenas a angústia da existência não pode ser apagada com frases simplórias. Precisamos ainda da metafísica, da filosofia, da teologia e talvez até dos confessionários. O vírus mostrou que viver ou morrer é mais aleatório do que gostaríamos e a ciência não explica tudo, aliás, em relação ao Covid ainda não explicou nada. Então não ache que você é o náufrago em um mar de felicidade e desconfie sempre dos que dizem salvar o mundo porque andam de bicicleta, não usam sacolas de plástico e não comem carne vermelha. A vida é bem mais complexa. Simples assim!

41 Não MateM os Pardais

A inveja da Pfizer

Você tomou a Pfizer? A resposta define o seu status. Seria algo como perguntar se já foi à Disney na década de 80 ou se tratou o seu câncer em Houston.

O motivo muda, mas a inveja continua a mesma. É justo, mas está mais do que na hora de entendermos o fracasso latino-americano em comparação aos EUA.

Não somos subdesenvolvidos porque eles são desenvolvidos e eles não são poderosos porque nos exploraram, como nos ensinam os mitos revolucionários. Em 1700, o império espanhol da América era mais rico e mais poderoso que as 13 colônias inglesas que ocupavam apenas a costa leste e eram meros exportadores de matérias-primas; Boston e Nova Iorque eram vilarejos se comparados a Caracas. Como tudo mudou tão rápido?

Carlos Rangel (1929-1988) é certeiro. Relata que a descoberta da América despertou nos europeus o mito do bom selvagem; os nativos seriam uma espécie de Adão antes da expulsão, que não valorizavam metais preciosos, propriedade privada e andavam sem roupas. Era possível então construir um novo mundo, bondoso e solidário. Mas a natureza humana é uma só e logo poucos espanhóis dominaram e dizimaram os impérios que aqui habitavam. Os índios foram escravizados, as índias estupradas e criou-se a cultura dos filhos sem pai, tão presente ainda hoje. Ao contrário, os anglo-saxões foram

43 Não MateM os Pardais

para o norte em busca de liberdade religiosa e econômica e não escravizaram os índios, que foram empurrados para o oeste ou mortos em disputas por terras. Filhos bastardos eram criados e educados. Foram fundar um país em vez de saquear.

Bolívar, herói latino, escreveu em 1830: a América é ingovernável, este país (Grã-Colômbia) cairá em mãos de multidão desenfreada e depois passará para os tiranetes. Francisco de Miranda, venezuelano nascido em 1750, relatou em sua passagem por Massachusetts: “... tal é a destreza e o espírito de liberdade... que de uma pequena porção de terra, tiram o necessário para suas grandes famílias... mil vezes mais felizes que os donos de escravos das ricas minas e terras de toda a américa espanhola...” Com o fracasso do bom selvagem, criaram o mito do bom revolucionário; Perón, Fidel e Che são heróis e os ianques culpados pela nossa pobreza. Esquecem que os EUA só intervieram na América Latina politicamente a partir da construção do canal do Panamá, no início do Séc. XX, quando já eram ricos e gigantes. A América Espanhola tinha se subdividido em diversos países, cada um com várias revoluções e golpes. O Brasil foi menos ruim, D. João VI por aqui manteve um único país. Então temos inveja sim, inveja de John Adams, de George Washington, de Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, que fundaram um país cujo alicerce era a família, o trabalho, a liberdade e o respeito às leis. A inveja da Disney, de Houston e da Pfizer é só um lembrete.

44 Parte 01
45 NÃO MATEM OS PARDAIS

Divina Comédia Brasileira

Convém fazeres nova viagem ... E escaparás desse lugarselvagem.

O grande poeta romano Virgílio (70 a.C. - 19 a.C.) descreve na Eneida a visita de Eneias, o fundador da Itália, ao mundo dos mortos – Hades – para ver seu pai Anquises mais uma vez. Dante (1265 – 1321), em sua Commedia, está em desespero e seu amor Beatrice, já morta, recorre a Virgílio, que conhecia os atalhos, para que este guie o poeta florentino no inferno e purgatório antes da entrada no Paraíso.

Virgílio repousava há 1319 anos no primeiro círculo do inferno, o limbo, livre das dores de círculos inferiores, mas sem poder encontrar Deus, afinal era pagão:

E vindos antes do cristianismo/ não prestam a Deus devido rito/ E eu mesmo sou um deles neste abismo. Caronte, o barqueiro infernal, se apresenta aos dois para a travessia – Por mim se vai das dores à morada/... ao padecer eterno/... à gente condenada - mas não sem antes avisar: Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança.

No fim do purgatório, por não ser batizado, Virgílio entrega Dante à sua amada e retorna ao limbo. Beatrice agora o guiará no Empíreo.

46 Parte 01

Os poetas sempre se antecipam e nos revelam o que está por vir. Dante parece falar aos brasileiros pois estamos condenados a não entrar no paraíso. Somos o país do quase: quase um EUA ou quase uma Venezuela. Não vamos ao inferno, mas também não entramos no paraíso; sempre desperdiçamos as oportunidades de expiar nossos pecados e, o purgatório, que deveria ser temporário, torna-se eterno. Não nos é permitida nem uma visita, pois não cumprimos os ritos sagrados; nossa vacina principal não serve de batismo para o mundo civilizado, somos pagãos sem salvação. Quem dera fôssemos como Virgílio, a quem pelo menos o limbo foi permitido, pois tinha as 7 virtudes morais: prudência, justiça, fortaleza, temperança, inteligência, ciência e sapiência, faltou-lhe apenas as teologais para entrar no Paraíso: fé, esperança e caridade. Beatrice ouviu Dante:

Da nossa vida, em meio da jornada/Achei-me numa selva tenebrosa/Tendo perdido a verdadeira estrada – mas quem nos ouvirá? Que nos poupem ao menos do pior, do inferno mesmo, e mais especificamente, do oitavo círculo onde habita Vanni Fucci, florentino que desviou dinheiro público e foi enlaçado por serpentes – Abraçam-lhe os do meio rijamente/O ventre; aos braços de cima rendem/ Ambas as faces morde-lhe furente.

47 Não MateM os Pardais

E a Suécia?

Há 100 anos, um nobre experimento social teve início nos EUA: a lei seca, que vigorou entre 1920 e 1933. Contra o álcool, as autoridades esqueceram suas bases libertárias e tentaram controlar a vida dos cidadãos. Al Capone, que conhecia bem a natureza humana, auferiu lucros excepcionais, pois as pessoas não pararam de beber. Um século depois, a história se repete no mundo todo, com uma exceção: a Suécia.

Segundo Jeffrey Tucker, o lockdown, nunca testado, foi idealizado por uma garota para uma pesquisa do ensino médio e foi abraçado por George W. Bush para futuras epidemias, apesar da descrença de vários cientistas. Em 2006, Laura M. Glass, de 15 anos, através de um modelo de computador, previu que em uma cidade com 10 mil habitantes, um vírus atingiria 5 mil pessoas com escolas abertas contra 500 com escolas fechadas. Mecher e Hatchett apresentaram a medida ao presidente que deu o aval caso preciso. Donald Henderson, responsável pela erradicação da varíola, classificou a medida absurda e ineficaz. Catorze anos depois, chega o vírus chinês.

O mundo obedece à menina e o trancamento é geral. Mas, Anders Tegnell, epidemiologista sueco responsável pelo combate, respeita a constituição que proíbe restrição às liberdades em tempo de paz. Faz as recomendações

49 NÃO MATEM OS PARDAIS

necessárias, mas deixa o indivíduo tomar suas decisões. Escolas e negócios ficam abertos e máscaras não são obrigatórias. Todo o mundo o acusa de irresponsável, inclusive o Rei da Suécia; dizem que é um experimento - como se o fechamento total também não fosse. Após quase dois anos, a curiosidade é grande. A população foi dizimada?

Johan Anderberg (https://unherd.com/2021/11/howsweden-swerved-covid-disaster/) apresenta seus dados. Após um péssimo início, a mortalidade/milhão foi inferior à da Inglaterra, EUA, França, Polônia, Portugal, República Tcheca, Hungria, Espanha, Argentina, Bélgica e outros. Mais de 50 países tiveram um pior resultado. Se fosse um estado americano, sua taxa estaria na posição 43 entre 50.

Em relação aos vizinhos não se saiu bem, mas Anderberg diz que a Suécia é, entre esses, o país com maior número de estrangeiros, além de ser bem mais populoso. Nada é conclusivo, mas vale lembrar que ciência é dúvida, não certeza.

Na mitologia nórdica, um guerreiro que morre com honra é levado pelas Valquírias para Valhala, onde estão os mais valorosos. Odin e Thor devem estar orgulhosos de seus descendentes que, certos ou errados, mostraram coragem e honra.

50 Parte 01
51 Não MateM os Pardais

Parte

52 Parte 01 2

Prólogo

Os artigos a seguir foram inspirados por acontecimentos que, de uma forma ou de outra, despertaram sentimentos inesperados e que escorreram para o teclado. A morte de Maradona, o maior jogador de futebol que vi jogar, a morte lenta e sofrida de meu pai, o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres, a falta de diálogos honestos entre pessoas comuns, um novo julgamento de Dante, um seriado que aborda a realidade da vida humana e, finalmente, um artigo sobre o nascimento de Jesus Cristo.

Não há justificativa racional para a escolha do que vira artigo ou o que simplesmente se esconde no hipocampo e é desprezado pela consciência. Podemos extrapolar para a filosofia e dizer que o livre arbítrio, enaltecido pela teologia cristã, talvez não seja tão livre assim. Será que somos realmente responsáveis por nossas escolhas? Caso isso fosse verdade, não faríamos escolhas ruins e que sabemos estarem erradas apenas para nos arrepender depois. Há algo escondido na alma humana que às vezes nos impele para um determinado caminho mesmo que a

53 Não MateM os Pardais 2

mente racional grite que não. Basta observar alcoólatras que sabem que não podem beber e bebem; o jogador que não pode jogar e joga; cônjuges que destroem uma família em troca de prazeres efêmeros; aquele momento de ira que nos arrependemos às vezes por toda a vida; o diabético que tem o pé amputado ou a perda da visão em troca do chocolate ou o obeso que tem um AVC por não resistir a uma boa mesa.

Maradona é a síntese do que acabo de abordar e a única explicação que encontrei foi na leitura dos arquétipos de Jung; provavelmente serei acusado de fantasiar e absolver um viciado em drogas que se envolveu em inúmeros delitos ao longo da vida. É justo, mas estou disposto a me arriscar, simplesmente porque foi a melhor justificativa que encontrei para o suicídio deliberado não só dele, mas de inúmeros artistas ao longo da história.

Em oposição às escolhas ruins de várias pessoas ao longo da vida, enalteci as escolhas certas de uma faxineira em uma série da Netflix. Além de demonstrar a capacidade de alguns seres humanos de enfrentar a vida com coragem, o fato dessa história ser uma mistura de fatos e ficção me despertou para o valor da sensibilidade de autores e diretores que utilizam a imaginação para catalisar a mensagem que precisa ser espalhada, derrubando em mim um certo preconceito sobre histórias não totalmente verídicas.

Abordei também a força feminina e a covardia de agressores sob uma perspectiva evolucionária, não para perdoar o imperdoável, mas para entendermos a sujeição do homem à atenção da mulher. Se conseguir com que os jovens entendam e aceitem que quem seleciona é a mulher, já terei cumprido meu objetivo.

Um bom ouvinte nasceu da gritaria política nas redes sociais; o fato de que em certos momentos eu também me comporto do mesmo modo que eu critico não torna a assertiva falsa, pelo contrário, meu reconhecimento de que às vezes também sou um idiota fortalece o apelo que

54 Parte 02

faço. Provavelmente muitos também vão se reconhecer como péssimos ouvintes e esse é o primeiro passo para deixar de sê-lo.

O texto sobre meu pai nasceu sob forte emoção para a sua missa de sétimo dia e resolvi juntar no livro para que as pessoas o vejam com meus olhos; me permiti essa homenagem, mas não vou me alongar muito, corro o risco de me emocionar além do que um prólogo permite.

Dante Alighieri dispensa apresentações; um dos maiores poetas da humanidade e o fundador da língua italiana desperta paixões mesmo para quem é um iniciante nos estudos como eu. A notícia de que ele seria julgado novamente é tão extraordinária que não pude deixar de comentar.

O último é sobre uma história fascinante, um milagre natalino que ocorreu em 1914 e que revela o espírito de Deus presente em almas expostas aos limites do horror de uma verdadeira carnificina, uma bela passagem da humanidade.

Enfim, espero que possa inspirar alguma alma com as palavras a seguir.

55 Não MateM os Pardais

Maradona - Héroi e deus

Em relação aos ídolos, os brasileiros e argentinos são muito diferentes. Pelé e Roberto Carlos são reis e não há uma igreja adoradora de Ayrton Senna. Na Argentina, Evita Peron e Carlos Gardel são deuses, assim como a igreja Maradoniana não deixa dúvidas sobre quem é o “Zeus” da mitologia portenha.

Carl Jung, psiquiatra suíço, discípulo e posteriormente desafeto de Freud, descreveu a vida humana em fases e cada uma tinha o seu arquétipo (modelo) que seriam universais, ou seja, repetem-se em todas as culturas e em todos os tempos da história. Segundo Jung, após a adolescência, vivenciamos o arquétipo do “herói”, aquele que precisa amadurecer, se distanciar dos pais e vencer a batalha da vida. Isso significa o desenvolvimento profissional, social e familiar. Vencida essa batalha, entramos na meia idade e o herói tem que morrer para dar lugar à busca pela transcendência (“velho sábio”).

Significa a interiorização, o crescimento cultural e a busca pelo divino que é uma longa preparação para o inevitável fim.

Isso para as pessoas normais. Alguns seres especiais atingem a divindade precocemente e misturam as duas fases, tornando desnecessário viver por mais tempo.

Além de Maradona, temos Elvis Presley, Michael Jackson e tantos outros. O argentino afirmou claramente: “dei

57 NÃO MATEM OS PARDAIS

alegria às pessoas e isso me basta” e ainda: “se pudesse viver novamente, gostaria de ser Diego Armando Maradona”. Aparentemente, nunca houve arrependimento do seu lento suicídio. Simplesmente não havia mais motivo para continuar vivendo uma vida terrena, pois já atingira a transcendência há muito tempo. O Herói dos campos, já morto, precisava atingir a imortalidade dos deuses, que, paradoxalmente, só é alcançada com a morte física.

Para nós, simples mortais, ficam as lembranças de seus milagres e o desejo que la mano de Dios se estenda para o mais humano dos deuses.

58 PARTE 02
59 NÃO MATEM OS PARDAIS

A faxineira

Ouniverso não conspira a seu favor; você não merece nada; provavelmente não vai trabalhar no que gosta e esse é um texto de autoajuda. O universo o tenta destruir e no fim consegue; não merecemos nada desde que Adão e Eva comeram o fruto proibido; você tem que trabalhar no que conseguir e - se for inteligenteaprender a gostar do que faz.

Maid - faxineira- é uma série da Netflix que retrata a realidade de modo espantoso. A protagonista foge do seu marido abusivo com a filha no meio da noite, sem ter onde morar, sem emprego e sem ninguém para ajudar. Tudo que lhe resta é sobreviver limpando privadas imundas e cuidar da filha. Ela quebra algumas regras que, se for eticamente justificável, pode ser certo, caso contrário pagará o preço. Descobre que culpar os pais não resolve, que só disciplina e trabalho duro funcionam e viver uma fantasia eventualmente é permitido. Há momentos de tristeza profunda, mas é preciso se levantar. Alex não pode se dar ao luxo de buscar a felicidade ou autoestima pois há uma vida real bem na sua frente e seus sonhos precisam submergir.

60 Parte 02

O que se vê é a busca do sentido da vida sem se entregar ao niilismo ou depressão. Encontra no amor à filha o motivo para viver. Jordan Peterson ensina que é preciso almejar algo que justifique sua existência. Ser feliz e ter autoestima - que hoje nada mais é que narcisismo patológico – é consequência de uma vida com um objetivo valoroso. É preciso afogar o ego comumente hipertrofiado e despertar o que, segundo Sócrates, normalmente já está dormente em nossa alma. A pandemia pode ser essa faísca, aproveite que não morreu e mire o seu alvo. É preciso que este tenha a centelha do divino; que seja nobre como um filho ou algum tipo de arte; uma causa justa ou uma pergunta a ser respondida; pode ser até a beleza de um jardim ou a devoção a um animal, contanto que seja elevado e venha da alma. No ziguezaguear dessa caminhada, algo inesperado pode surgir e mudar o ponto B da chegada que nunca será alcançado, pois é impossível, sempre há algo mais a ser feito. A busca é que traz sentido e adormece a dor, pois assim é o espírito humano, que necessita do transcendente para sobreviver ao caos e enfrentar o fim com dignidade.

61 Não MateM os Pardais

Poder feminino

Anatureza sempre foi associada à mulher em todas as culturas. Falamos mãe natureza e não pai. A primeira ideia é a geração da vida; a mulher gera filhos assim como a vida brota da terra, é belo e justo. Porém, há algo mais poderoso. A natureza seleciona espécies e a mulher faz a mesma coisa. É a responsável pela seleção de quem merece ter seus genes perpetuados. Com número limitado de óvulos, poucos dias férteis e com o desafio dos filhos, é preciso escolher alguém adequado.

De uma perspectiva evolucionária, a seleção feminina por companheiros com vantagens competitivas foi a principal causa de evolução dos hominídeos, diferenciando-nos dos chimpanzés – onde as fêmeas não discriminam os parceiros - há 6 milhões de anos.

Temos duas vezes mais ancestrais femininos que masculinos, difícil entender, mas imagine que ao longo da história a grande maioria das mulheres teve pelo menos um filho enquanto aproximadamente 50% dos homens não tiveram nenhum, ou seja, os selecionados tiveram em média dois filhos para zero dos outros 50%. O pool genético da mulher é bem maior.

63 Não MateM os Pardais

Semelhante à natureza, uma linda mulher assusta os homens tal qual uma bela visão à beira de um abismo. A fascinação compete com o medo de cair, assim como um adolescente congela ao tentar se aproximar de uma garota pela primeira vez; a rejeição é como despencar em um vazio paralisante. Por isso algumas belas mulheres se queixam que alguns homens as evitam; beleza em excesso pode ser uma maldição.

Quando ela diz a alguém que ele pode ser um amigo, mas sua carga genética não é tão valiosa assim, o pobre rejeitado sabe que precisa melhorar, que precisa escalar uma pirâmide hierárquica para ter melhores chances, porém, semelhante aos gorilas, bonobos ou orangotangos, não haverá feminicídio. Essa é uma exclusividade de primatas descerebrados, cuja frustração e complexo o transformam no pior dos seres. Há que ter cuidado, pois o medo às vezes camufla uma rejeição e encoraja um covarde cujo DNA merece ser jogado no lixo.

Devemos às escolhas de nossas ascendentes femininas estarmos na melhor época para estar vivo e, desse imenso poder vieram todos os outros, que somados mostram que no cosmos somos apenas satélites, eternos suplicantes da atenção e seleção da estrela principal.

64 PARTE 02
65 NÃO MATEM OS PARDAIS

Um bom ouvinte

Ler e escrever é uma arte recente e difícil e, por isso mesmo, poderosa. Quem as domina é capaz de exercer enorme influência por várias gerações.

Falar e ouvir antecede a escrita e sempre foi a base do aprendizado moral e intelectual. Sócrates não se preocupou em escrever, não confiava na escrita. Os diálogos platônicos foram feitos para serem lidos em voz alta assim como toda a sua obra. Os versos de Dante, se não forem cantados em seu idioma natural perdem muito de sua beleza. Ilíada e Odisseia, de Homero, também eram memorizadas e cantadas, assim como as peças de Shakespeare. Churchill, um grande escritor, era capaz de declamar várias poesias impregnadas em sua memória. Estamos perdendo essa capacidade; a facilidade da informação no celular nos tornou preguiçosos. Tudo bem, faz parte da modernidade, mas há efeitos colaterais.

Falar é uma necessidade humana pois é terapêutico, cicatriza feridas, porém é preciso um bom ouvinte; alguém que ouça de verdade e saiba interceder, nos provocar em busca da verdade. Era o que Sócrates fazia

66 Parte 02

na Ágora, os padres nos confessionários e o que Freud descobriu com sua genialidade. Provocar o falante em busca da verdade dos seus males e fonte de suas angústias que, ao ser verbalizado, alivia a alma. Hoje, ninguém ouve ninguém; em qualquer roda de amigos, quando não falam ao mesmo tempo, fazem de conta que estão ouvindo, mas na verdade estão esperando a sua vez de falar, pensando em que argumentos usar para provar a sua opinião, que não muda em nenhuma hipótese. Não há a busca da verdade, do conhecimento. Esse é o cenário no ocidente hoje, todos gritam e ninguém ouve. Estamos voltando ao tribalismo e nos entrincheirando em torno dos que dizem o mesmo que nós; isso é natural, temos essa tendência. Mas foi domando a natureza humana que chegamos à civilidade e à cooperação mútua para enfrentarmos a árdua missão de viver. Não podemos retroceder. Não desista na busca por um bom ouvinte, se preciso pague um, é o que os analistas fazem. Mas, além do individual, é preciso uma busca coletiva; qual líder é capaz de ouvir realmente? Quem é capaz de abandonar sua tribo e aceitar o contraditório? Quem é capaz de mediar ideias de um bairro, uma cidade, um estado ou um país?

Só não podemos desistir, senão tudo o que teremos é a volta da barbárie.

67 Não MateM os Pardais
68 PARTE 02

Meu pai

“Aquele que anda em sinceridade, e pratica a justiça, e fala verazmente segundo o seu coração; aquele que não difama com a sua língua, nem faz mal ao seu próximo, nem aceita nenhuma afronta contra o seu próximo” Salmos 15:2-3.

Esse salmo representa bem meu pai; de sentimentos facilmente reconhecíveis, deixava logo claro o que se passava no seu coração. De sinceridade quase ingênua, conquistou o respeito e a admiração de todos. Leal aos que amava e intransigente em sua defesa (certos ou errados, não importava), era um gigante nos protegendo. Seu grande amor estava sempre com razão; se Maria Pia falou, está falado e ela podia contar com ele, em qualquer situação. Conheci poucas histórias de amor assim e agradeço ser testemunha de mais de 50 anos de rara cumplicidade, devoção e respeito.

Um pensador disse: “não busque a felicidade, basta assumir a responsabilidade de sua vida”. Em tempos que pregam “ser feliz acima de tudo”, Dr. Ermano Flávio nunca parou para pensar nisso. Simplesmente formou

69 NÃO MATEM OS PARDAIS

uma família, acordou cedo todos os dias durante mais de 50 anos, trabalhou das 7 às 7 e voltava ao lar. Exerceu a medicina com honestidade no consultório do Edf. Santo Albino; mais do que palavras, ensinou com o exemplo. E a felicidade?

Nunca perguntei, mas quando junto aos familiares e amigos, bastava um bom uísque, uma música americana e a felicidade irradiava. Vaidoso (sabia que era bonito), caprichava no terno e nas gravatas e bastava a orquestra começar que era o primeiro a ir para o salão (se lhe tomassem o privilégio, não se perdoava). Não se pergunta o óbvio.

Mas faltava algo e o criador lhe deu o tempo necessário. Agradeceu à companheira por ter lhe ensinado a rezar e aumentou a fé em Maria, mãe de Deus, que lhe acompanhou durante toda a vida. Na doença, disse ter visto Nossa Senhora; os médicos dizem que foram delírios, mas creio que até a mãe de Jesus fora seduzida por aqueles belos olhos verdes que fitavam algo desconhecido e que teimavam em não fechar.

Viveu cercado de mulheres maravilhosas: esposa, filhas, nora, afilhada, sobrinhas, netas e até uma bisneta que a ele se dedicaram; era mal-acostumado com esses dengos todos (devia ser mesmo por conta dos olhos verdes). Nada a reclamar, só agradecer, era justo e belo. Tive meus privilégios junto a ele (depois eu conto).

Então sua mensagem foi: assuma sua vida e responsabilidades, seja leal, forme uma família, estude, seja honesto, diga a verdade, acorde cedo e trabalhe muito. Pode ser que depois de algum tempo você se veja abrindo o salão de algum baile ao som de “New York, New York” com o amor de sua vida, sendo feliz sem perceber e abençoado por Deus.

70 Parte 02
71 NÃO MATEM OS PARDAIS

Julgamento e absolvição

Foi condenado por corrupção e apropriação indébita e está prestes a ser absolvido. Sinto decepcioná-los, mas estou falando de Dante Alighieri. Setecentos anos após a sua morte, um tribunal vai julgar novamente o caso e ao que tudo indica vai reabilitar o pai da língua italiana. Como Prior de Florença por 2 meses em 1300, o autor da Commedia (rebatizada A Divina Comédia por Boccaccio), foi condenado ao exílio e não mais voltou à Florença, tendo vagado por Sarzanna, Lucca e Verona, onde morreu em 1321.

Ao lado dos guelfos brancos (que queriam limitar os poderes papais) contra os guelfos negros (a favor da interferência papal), o poeta supremo nada pode fazer quando o Papa Bonifácio VIII enviou Charles de Valois (irmão de Filipe, o Belo) para derrotar os brancos. O juiz Cante de Gabrielli foi o responsável pela sentença de exílio e pesada multa para Dante, que estava em Roma e foi impedido de voltar.

Hoje, Antoine de Gabrielli e Sperello di Serego Alighieri, descendentes diretos do juiz e do poeta vão reviver essa contenda. Diferente do passado, são amigos e o veredicto deve reabilitar esse gênio da poesia.

Olhou para o seu grande amor pela primeira vez aos nove anos (ela com oito), na pequena Igreja Santa Margherita dei Cerchi, perto da casa de Dante (uma bela

72 Parte 02

visita! Onde há o suposto túmulo de Beatrice). Dizem que nunca trocaram uma única palavra, mas apesar disso, esse amor somado à dor do exílio inspirou uma das mais belas obras da humanidade.

Damos graças por esse exílio, pois foi nesse período que essa obra prima foi concebida. Guiado por Virgílio e inspirado pelo amor à Beatrice, o autor descreve na primeira parte, a sua visão do inferno, mas não sem antes avisar nos portões: “Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança”. Em dado momento, ao se deparar com gritos e lamentos horrorosos em um dos círculos, pergunta o que fizeram aqueles terrivelmente desafortunados e recebe a seguinte resposta: “Não fizeram o bem divino, mas também não buscaram fazer o mal, não tem esperança de morte e nem de salvação, o mundo não se lembrará deles”.

Ainda não estamos nos portões do inferno, então a esperança deve nos acompanhar, mas, se Dante estiver correto, apenas não fazer o mal não garante a salvação, melhor buscar o bem divino, e lembrem-se, só vale a pena acompanhar julgamento de pessoas que serão lembradas daqui a 700 anos.

73 Não MateM os Pardais
74 PARTE 02

Trégua de Natal

ASra. Packer recebeu uma carta surpreendente de seu marido que estava no front da Primeira Guerra, em dezembro de 1914; o cabo inglês Packer que estava em Flandres, trocou presentes de Natal com os alemães e andou em paz na “terra de ninguém” por algumas horas. O soldado britânico G.A. Farmer incluiu em sua carta para Leicester: “Foi realmente um Natal dos mais maravilhosos que já passei”. Edward Hulse, da guarda escocesa escreveu: “absolutamente espantoso, se tivesse visto em um filme teria jurado que era falso”.

Foi um milagre natalino as histórias de camaradagem e cordialidade entre inimigos em uma terra devastada por crateras, lama, cadáveres putrefatos, infestada de pulgas, ratos e piolhos, naquela trégua de 1914.

Soldados cantaram canções de Natal, leram salmos, rezaram o Pai Nosso, trocaram alimentos, cigarros, jaquetas e jogaram até uma partida de futebol. Após 5 meses de guerra sangrenta, o espírito do homem do

75 Não MateM os Pardais
“... os homens de ambos os lados se encheram do verdadeirosentidodafesta...eficamosempaz...”

século XIX ainda não estava quebrado; valores como honra, família, solidariedade, civilidade, religiosidade, dignidade e justiça ainda não tinham sido substituídos pelo narcisismo, pela fantasia ideológica, pelo cinismo e totalitarismo que floresceu no século XX e que formou o homem contemporâneo após a Grande Guerra.

A unificação da Alemanha, em 1870, sob liderança da Prússia, com seu espírito guerreiro e seus ideais de quebrar a velha ordem mundial, representada principalmente pela Inglaterra, é apontada por Modris Eksteins, no livro Sagração da Primavera, como responsável pela guerra sangrenta do início do séc. XX, de onde também retiramos os relatos acima.

Se o passado serve para nos orientar, nada melhor que esse exemplo. Apesar de vivermos um período menos sanguíneo, estamos fartos de batalhas de narrativas, de acusações e de intolerância; necessitamos de uma trégua natalina, um regresso aos valores do séc. XIX. Não é possível restabelecer o império Austro-Húngaro, mas é possível recriarmos o sentimento dos soldados em nossas próprias trincheiras emocionais, inspirados no nascimento do filho de Deus.

Para os que não creem, temos a jovem filósofa Natália Sulman: “alguém que se diz filho de Deus, ou é louco, ou charlatão ou diz a verdade. Se fosse louco, não seria capaz de falar o que Cristo falou, se fosse charlatão, teria fugido da morte certa, portanto ele dizia a verdade”. Ou ainda, Ariano Suassuna: “Cristo não pode ter sido inventado, nenhum escritor no mundo teria imaginação para uma coisa dessa”. Feliz Natal!

76 Parte 02
77
MateM
Não
os Pardais

Parte

78 Parte 03 3

Prólogo

Nessa terceira parte adicionei uma troca de cartas com uma amiga e colega de turma da faculdade de medicina que eu admiro e estimo muito. A origem desse diálogo foi uma carta aberta que soltei nas redes sociais ainda antes da pandemia e era endereçada aos jovens de um modo geral. O teor das correspondências é político, mais especificamente a visão dos autores sobre os sistemas socialista e capitalista. Parece uma regressão às décadas de 50 e 60 e, realmente, essa discussão não deveria existir mais, visto que o socialismo se revelou um fracasso total em todas as suas experiências ao longo da história. Porém, a retórica socialista venceu a guerra cultural e continua a alimentar os sonhos utópicos de acadêmicos, professores, historiadores, jornalistas e, principalmente, de crianças e adolescentes. Um vídeo que circulou recentemente (novembro/2021) mostra uma comemoração de encerramento do ensino médio, na região sul do país, onde os jovens posam para fotos segurando uma enorme bandeira do Partido Comunista Brasileiro; fatos como esse são a regra e simbolizam para mim a necessidade da discussão.

79 Não MateM os Pardais 3

Como esses jovens imaginam que estão lutando por um mundo melhor, que são “progressistas”, que representam o novo se estão macaqueando o que os bolcheviques fizeram há mais de 100 anos? E com os desastrosos resultados que obtiveram esses experimentos humanos impostos por diversas tiranias ao redor do mundo? Seriam mais inovadores e mais corajosos se empunhassem a bandeira de uma monarquia ou república parlamentarista, espelhando-se nos países europeus que deram certo.

Não entendem que o que deveríamos discutir não é capitalismo versus socialismo e sim o preocupante monopólio das chamadas bigtechs, ou seja, o capitalismo que caminha perigosamente para uma concentração de poder em poucas empresas ao redor do mundo, tornando desnecessário o tradicional controle do Estado. Estão com um século de atraso.

O tema nasceu como um apelo para que os jovens dessem uma chance para ouvir o que o professor na sala de aula não fala, evoluiu para um aprofundamento teórico e histórico sobre a vida humana e suas relações sociais e econômicas.

Há um debate sério e honesto entre duas pessoas amigas, que se respeitam e dispostas a ouvir o outro lado, o que por si só já valeria a leitura, mas foi enriquecida pelas pesquisas que ambos os lados tiveram que fazer para embasar seus argumentos. Como não poderia deixar de ser, a China emerge como o principal tema, visto que deixa a maioria das pessoas desnorteadas pelo seu crescimento avassalador na economia nas últimas décadas. Como é possível uma ditadura comunista enfrentar o poderio norte americano e ser apontada como a próxima nação mais rica do planeta? Óbvio que não há uma resposta simples, mas o que os autores oferecem é ao menos uma tentativa de compreensão lastreada por fatos históricos, reportagens e analistas políticos e econômicos sérios. A China é e sempre será incompreensível para a maioria

80 Parte 03

dos ocidentais, porém, podemos e devemos nos esforçar ao máximo para entendermos o mínimo possível e essa foi a nossa intenção.

O pensamento dos jovens sempre me intrigou (já fui um deles...) e o modo como os atuais vêem a vida é para mim, um tema de profundo interesse, pois essa é a lacuna de tempo que ainda permite mudanças. Me assombro quando observo que alguns deles dizem ter certeza sobre temas que a humanidade levou milhares de anos para entender e que ainda não tem resposta. Como eles podem saber mais sobre a existência de Deus do que Agostinho, Tomás de Aquino ou descrentes como Nietzsche? Como podem entender a natureza humana e saber que somos capazes de fazer o mal, e que esse mal nos modifica eternamente se nunca leram Crime e Castigo de Dostoievsky? Como podem saber sobre cristianismo se não entendem o que Nietzsche quis dizer quando falou que Deus está morto? Se nunca leram C. S. Lewis? Como saber o valor da mitologia em nosso imaginário se nunca leram Homero, Hesíodo ou Jung? Como entender os séculos XX e XXI sem entender a Primeira Guerra Mundial? Como podem opinar sobre palestinos e judeus sem saber que antes da Segunda Guerra havia judeus palestinos, pois a Palestina é uma região e não um povo?

Se os jovens buscam a liberdade precisam primeiro, como disse Jordan Peterson, serem escravos voluntários. Tem que se ajoelhar diante da história, das tradições, dos grandes filósofos, dos grandes artistas e de toda a cultura judaico-cristã ocidental, pois foi isso que construiu esse tempo fabuloso, rico e miraculoso que eles herdaram. Não é vivendo um mundo ideológico que eles vão encontrar a tal felicidade, que aliás, não deve ser buscada como um objetivo final, mas sim, surgirá ao longo de toda uma vida de busca por algum objetivo moralmente valoroso através de sacrifícios, trabalho duro e disciplina. Escrevo esse livro porque me arrependo de ter desperdiçado boa parte de minha juventude com bobagens quando poderia ter lido os grandes clássicos,

81 Não MateM os Pardais

autores e histórias que são atemporais, que revelam a realidade da humanidade e ajudam a formar o imaginário que necessitamos para não viver uma vida falsa. Acho urgente que os jovens enxerguem o mundo real e não o fantasioso, que leva inevitavelmente à frustração, fracasso, ressentimento e depressão.

É preciso que o acesso à informação e à história seja honesto; que seja permitido às crianças e jovens uma certa autoeducação e não aceitar passivamente a ideologia dos professores. O único meio é o desenvolvimento intelectual com liberdade e isso dificilmente será realidade nas escolas. A família precisa ser um dos agentes dessa transformação, sob pena de termos mais uma geração escrava de narrativas falsas, amplamente divulgadas, mas que não possui o alicerce dos fatos históricos.

No fim das contas, esse é o objetivo final. Tentar estimular as mentes brilhantes desses nossos valorosos jovens que são muito melhores do que os da minha geração. E assim que tem de ser; os filhos devem ser melhores que os pais e assim os vejo, pois eles já são. A minha esperança é que minha modesta contribuição possa, enfim, torná-los ainda melhores.

Um pensador disse recentemente que a Terceira Guerra Mundial vai começar devido a uma briga em algum grupo de família no Zap; uma discussão entres os sobrinhos e o tio conservador será o estopim. Bom, eu pretendo com essa discussão, ser esse tio do Zap, não para fazer a guerra, mas para evitá-la. Boa leitura.

82 Parte 03

Em tempos de Instagram, Zap, Netflix etc, fazer com que um jovem pare alguns minutos para ler algo de um cinquentão é um desafio e tanto, mas, escrevo porque gostaria de ter recebido algo parecido quando era jovem (dos adultos já desisti, nós só pioramos com o tempo).

Na verdade, isso é um apelo para que vocês tenham um pouco de compaixão com o “outro lado”. Explico: peço encarecidamente que conheçam a outra versão (por menor que seja) de tudo o que lhes foi ensinado na escola e nas faculdades em relação à formação ideológica. Tentarei ser breve. Não gosto de irritar os jovens (com exceção, claro, dos meus filhos).

Já ouviram falar de Antonio Gramsci (1891-1937)? Lhes apresento. Italiano, socialista e cofundador do PCI (Partido Comunista da Itália), preso durante a ditadura de Mussolini, escreveu Cadernos do Cárcere e disseminou a teoria da hegemonia cultural. Resumidamente, descreveu que as armas eram inúteis para se manter uma dominação duradoura, pois se as pessoas não acreditassem no que lhes era dito, cedo ou tarde, o regime cairia. O caminho era a hegemonia cultural, ou seja, ensinar desde cedo e de todas as formas, o caminho a seguir, de maneira que, mesmo sem saber, todos estariam trabalhando a favor de um pensamento único. O melhor era dominar o sistema educacional, as instituições religiosas, toda forma de imprensa, sistema

83 Não MateM os Pardais
Carta aberta aos jovens que conheço... E também aos que não conheço...

judiciário etc. Após alguns anos ou décadas, a maioria estaria impregnada e ajudando a disseminar a “verdade”. Péssima notícia: ele estava certo! Isso de fato aconteceu e é uma realidade. Ganharam a batalha ideológica em boa parte do mundo (principalmente na América Latina e Brasil).

Recentemente vi um desenho do livro da escola de minha filha, na época, no ensino fundamental: Capitalismo (patrão gordo, de cartola, sorrindo e fumando charuto, operários magros, tristes, suados e trabalhando pesado - lucro do empresário) x Socialismo (sem patrão, operários felizes, trabalhando alegremente - lucro dos trabalhadores). Exatamente a mesma figura dos meus tempos de criança. Nada mudou. Pergunto: diante disso, qual criança não será socialista?? Afinal, quem quer ser do mal?? Todos querem ser do bem!! O problema é que isso se estende por todo o ensino médio, faculdade etc. No Brasil, com raras exceções, todo jovem é socialista, impossível não ser. A desonestidade é que se apresentam narrativas e não fatos. Só apresentam uma teoria (que nunca funcionou na prática), não há o contraditório. O jovem tem que buscar sozinho o restante das informações e é bastante difícil, pois corre o risco de ser afastado do grupo, de ser ridicularizado, escrachado mesmo, pois assim acontece. Então, vamos ficar com os fatos: todo jovem saudável é socialista e assim vai permanecer bastante tempo. O que fazer?

Desafio os que são curiosos, ou que são interessados no tema, que busquem outras fontes de informações e, após suas próprias análises, tirem suas conclusões. Em tempos de smartphones, sugiro ler algumas personalidades e autores que estão disponíveis no Twitter, Instagram etc. Não citarei os clássicos, pois muito difícil de ler, mas apenas os que eu mesmo sigo e leio, às vezes concordando, outras não. Lá vai: se lembram de Ana Paula do vôlei?

Ana Paula Henkel? Campeã olímpica? Pois é, mora nos EUA e estuda ciências políticas, tem vários artigos

84 Parte 03

e está lá, free of charge, para quem quiser. Sabem Ricardo Amorim, do Manhattan Connection? Insta e twitter disponíveis; Alexandre Garcia, grande nome do jornalismo brasileiro; JR Guzzo - ícone do jornalismo; Guilherme Fiúza, Rodrigo Constantino, Felipe Moura Brasil e isso só para citar os moderados, equilibrados e que não apelam para a baixaria e guerra cultural. Tem um grande pensador, que poderia, mas não se curva ao vitimismo exagerado, Paulo Cruz, inteligência acima da média. Se quiser, temos um pessoal mais incisivo, o site Senso Incomum (Flávio Morgenstern), o Leandro Ruschel e outros. Na esfera internacional, destaco o psicólogo canadense Jordan Peterson, autor de 13 regras para a vida (esse vale a pena ler).

Vá conhecendo um pouco do outro lado, pode ser que daqui a um tempo você perceba que: o socialismo tem 100 anos de existência, matou mais do que qualquer guerra, do que qualquer outra ideologia - 100 milhões de pessoas e ainda contando; não funciona e nunca irá funcionar, pois se baseia em falsas premissas acerca da natureza humana; só se mantém por conta da força tirânica e da extinção dos contrários. Para ter uma ideia, imagine que o mais odiado dos regimes, o nazismo, durou no máximo 10 a 12 anos e matou em torno de 8 a 10 milhões. Compare com o socialismo! Imagine que é proibido (com razão) a existência de um partido nazista na maior parte do mundo, mas partidos socialistas proliferam no mundo todo, como pode??

Após a queda do Muro de Berlim, onde se evidenciou o fracasso da teoria econômica socialista, imaginei que era o fim. Estava enganado. A esquerda se reinventou e se apoderou de pautas que não são e nunca foram suas como por exemplo: racismo, feminismo, homofobia, ideologia de gênero e por aí vai. Mas quem disse que isso é teoria político-econômica? Trata-se de humanismo! Quem, sendo uma pessoa justa, de caráter e honesta, vai discriminar alguém por cor de pele, religião, opção sexual,

85 Não MateM os Pardais

gênero etc?? Quem faz isso é um ser humano inferior em todos os aspectos, independente de esquerda e direita. Não se trata disso. Jesus já nos ensinou há bastante tempo: protegeu a adúltera, respeitou as mulheres e as minorias, mandou amar a todos como a si mesmo, sentou-se e comungou com o coletor de impostos, deu a César o que era de César, cuidou dos desprotegidos e por aí vai. Não precisamos de socialismo para respeitar as pessoas. O que esses pensadores que citei pregam é o liberalismo, ou seja, o Estado não pode controlar tudo, precisa ser o menor possível, é preciso um equilíbrio entre a iniciativa privada e o papel do Estado. O que gera riqueza e consequentemente redução da pobreza e diminuição da desigualdade é a criação de empresas, geração de empregos, estímulo à meritocracia etc. Não vou me detalhar, não é meu papel. Tampouco vou falar em nomes de políticos ou eleições. Isso é secundário. Estou falando de conhecimento, abrir o pensamento, julgar e escolher por mérito próprio, enfim, falo dos seus próximos 20, 30 anos, do futuro… mas vamos adiante… Saindo da política, vamos à vida real. Costumo dizer algumas bobagens, e uma das que gosto mais é que podemos culpar nossos pais por nossas mazelas até mais ou menos 20, 25 anos. Depois disso, acabou. Você é um adulto e seu futuro só depende de ti. Com exceção de casos trágicos e dramáticos, é possível superar os supostos erros de nossos pais e seguir em frente. Eles fizeram o melhor que podiam. Todos temos que agradecer o que recebemos de bom, perdoar o que tivemos de ruim e assumir nossas vidas, pois iremos nós mesmos implorar pelo perdão de nossos filhos mais adiante. Dito isso, suplico que vossas senhorias estudem bastante, leiam tudo que puderem e acordem cedo (se puderem arrumar o quarto, melhor ainda). Busquem inspiração em grandes personagens, leiam biografias e aprendam com Winston Churchill, com Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Sócrates, Platão, com Steve Jobs, Bill Gates, com Einstein, com Warren Buffett

86 Parte 03

etc. Leiam sobre vários temas, pois é bem provável que vocês trabalhem em duas ou três atividades diferentes ao longo da vida e conhecimentos variados serão úteis. Mas cuidado, não façam tudo que esses caras fizeram; filtrem o que lhes serve. Por exemplo, Churchill salvou o mundo ocidental do nazismo, mas não beba e fume charuto diariamente por 60 anos como ele fez; morreu aos 90 de causas naturais, não será o seu caso. Steve Jobs atribuiu uma parte do seu sucesso como empresário ao uso de LSD no início dos anos 70 - se lembre que ele era um gênio e você não é (muito pelo contrário em alguns casos) - provavelmente seu cérebro irá derreter. Não procrastine por tempo indeterminado as suas obrigações e nem deixe trabalhos incompletos como Da Vinci fez, apenas seja incansável na busca pela perfeição, tenha o prazer do conhecimento como ele tinha e seja curioso como ele o foi (ex: uma pergunta que não saía da cabeça dele - como funciona a língua do Pica-Pau??

É mole?).

Não seja briguento e ranzinza como Michelangelo foi, mas se preciso, estude dissecando inúmeros cadáveres como ele e Da Vinci fizeram para criar uma obra de arte. Não precisa morar na mesma casa a vida toda, nem tomar café na McDonald todos os dias (gastando poucos dólares) como Warren Buffet faz, mas aprenda com ele o valor da disciplina, do estudo, da honestidade, da simplicidade e da caridade… enfim, busque seus próprios valores.

Finalizando, aproveite seu cérebro de jovem. Tratase de uma esponja de absorver conhecimentos. Me arrependo profundamente de não ter lido mais nessa idade, deixei de ler os clássicos que deveria. Lembremse que a vida humana, como disse Thomas Hobbes, é sórdida, brutal e curta e precisamos encarar isso de frente para desenvolver todas as nossas potencialidades. Jordan Peterson disse no Twitter essa semana que, o que trouxe significado para a vida de muitas pessoas NÃO

FOI a busca dos seus direitos, a busca da felicidade ou

87 Não MateM os Pardais

o desenvolvimento da autoestima, mas sim, a adoção de responsabilidade pela própria vida (leiam Jordan Peterson, repito). O resto é consequência. A humanidade não chegou ao século XXI saindo da barbárie das savanas africanas há mais de 6 milhões de anos, tentando ser mais belo, mais rico, mais lacrador ou mais empoderado e sim, através do aprendizado das leis da vida e da natureza, da cooperação inter-humanos, respeitando as hierarquias naturais, assumindo as suas responsabilidades, trabalhando em conjunto, rezando para seus deuses e respeitando suas crenças, vivendo em família e protegendo os idosos e crianças, criando e respeitando leis humanas. Devemos evoluir, ir além, mas se destruirmos o que tão dificilmente construímos, o resultado será o fracasso retumbante. Não caiam no discurso vazio e no falso caminho para a felicidade e sucesso. É mentira. O caminho é árduo e exige que você assuma seu papel, sem colocar a culpa em ninguém. Boa sorte.

PS - Satisfazendo os curiosos: a língua do pica-pau pode se estender por mais que o triplo do comprimento do seu bico… Além de servir para pegar larvas dentro de árvores, a língua comprida protege seu cérebro… quando o pássaro bate o bico repetidamente contra a casca de uma árvore, a força exercida equivale a dez vezes aquela necessária para matar um ser humano. Funciona como uma espécie de amortecedor, protegendo o cérebro do choque (extraído do livro: Leonardo Da Vinci, de Walter Isaacson).

Ermano Melo, médico e um pai supostamente normal de três jovens.

Recife, 23 de novembro de 2019.

88 Parte 03

Carta ao meu amigo Ermano

Preciso começar lhe dizendo que esta nossa comunicação deverá nos servir ao acréscimo existencial das nossas vidas. Não tenho pretensão de mudar os seus conceitos, embora já me sentiria satisfeita se pudesse, nem que por um instante, ter o seu olhar complacente sobre as minhas ideias e o que vem do meu pensar. Mas sei que, aos 50 anos, nossa chance de mudar de opinião é remota.

Nestes últimos anos assisti a um momento duro de suportar na vida política brasileira e só me restou calar.

Quase todos os meus amigos (com algumas exceções, felizmente), quase todas as pessoas com quem convivo socialmente, no meu ambiente de trabalho, apoderaramse de um furor, de uma ira, de um desprender de rédeas e passaram a manifestar opiniões que para mim soaram assustadoras. De repente, um processo de justiça tornouse a força motriz da sociedade, o apeio da primeira mulher presidente do Brasil revestiu-se de um discurso de ódio, de achincalhe a uma mulher solitária, separada, em declarações francamente misóginas. A eleição do atual presidente tornou-se uma saga de fakes, ódio em redes

89 Não MateM os Pardais

sociais e declarações virulentas, que para mim seriam impensáveis em outros tempos. Restou-me o silêncio. Já não era possível mais qualquer debate de ideias. O contraditório era rapidamente classificado como: - Você é petista? Turvou-se meu horizonte! Continuo sem vocação para o debate, minhas poucas experiências foram traumáticas! Mas sempre me pego a pensar e dizer a mim mesma: - Você é covarde?

Voltemos à sua carta. Quero dizer-lhe que não tema, os jovens não estão socialistas. Os jovens estão onde sempre estiveram. São forças motrizes, em ventos que sopram com a vitalidade que lhes é própria, de tempos em tempos. Foram as vozes dos jovens que nos permitiram enxergar que precisávamos ter eleições diretas no Brasil novamente, lembra dos caras pintadas? Movimento de jovens estudantes que mobilizou o país no impeachment de Collor. Foram os jovens que foram às ruas e que ainda estão nelas, lutando pelos direitos das mulheres, chamando a atenção da sociedade para o fato de que as mulheres teriam o direito de votar, de concorrer a cargos eletivos, são os jovens que se mobilizaram para mostrar ao mundo que se nada mudar no tocante às mudanças climáticas, talvez o futuro deles não esteja garantido. São os jovens que nos chamam a atenção para os direitos dos animais. Aos professores devemos a reverência. É deles o legado da educação, tão fundamental à melhora da nossa sociedade. Sou contra qualquer tutela a professores, seja de história, filosofia ou sociologia, pois um dos pilares da democracia é a garantia da liberdade. O liberalismo em todo o mundo sempre esteve aliado à democracia. Liberdade é bandeira defendida pelos liberais, não é mesmo?

Mas vamos ao tão famigerado comunismo, esse que não deu certo, nem mesmo existiu! Isso mesmo, não existiu em seu sentido literal. O comunismo prescinde da existência do Estado. Seria uma sociedade sem Estado, sem classes, na qual a maioria teria inclusive

90 Parte 03

se libertado do trabalho assalariado. Percebe-se que isso não existiu em nenhum lugar, exceto em grupos hippies dos anos 60. Não tivemos nenhuma Nação onde o Estado não existiu, muito pelo contrário, onde o regime foi totalitário e assumiu a alcunha de Comunista, o Estado se agigantou, composto com mão de ferro. Sim, esse Estado foi totalitário, violento e matou milhares e milhares de pessoas. Tenho certeza absoluta de que pessoas democráticas, de bom senso, com um mínimo de olhar crítico sobre a realidade, têm perfeita clareza disto. Não me interprete mal, não estou fazendo apologia aos horrores do stalinismo ou mesmo ao movimento maoísta, mas quero tecer algumas observações sobre a revolução chamada comunista na China, que teve seu regime político dominado a mão de ferro e controlado por um Estado forte e que detinha o controle sobre os meios de produção. Em meados do século XX a China e a Índia tinham a mesma expectativa de vida, cerca de 40 anos. Depois da Revolução Chinesa, este número mudou drasticamente. Em 1979, a China tinha chegado a uma expectativa de vida de 68 anos, enquanto a Índia capitalista se mantinha em 54 anos. Este é um relato de Amartya Sen, ganhador do prêmio Nobel de Economia, em um artigo escrito em 2006. O excesso de mortalidade na Índia capitalista em relação à China comunista foi estimado na terrível cifra de 4 milhões de vidas por ano. Pergunta-se: por que a Índia não foi estudada como um caso da natureza homicida do capitalismo? Mesmo após deixar de ser colônia inglesa, a Índia continuou sua saga de mortes. Mike Davis, em seu livro Holocaustos Coloniais, relata que 35 milhões de indianos morreram de fome evitável, enquanto o Reino Unido levava do país milhões de toneladas de trigo. A Índia foi a galinha dos ovos de ouro do capitalismo britânico, convertendo-se na maior fonte de lucros do país no final do século XIX, a um custo humano imenso para os indianos.

91 Não MateM os Pardais

Vamos a Marx e Engels e o Manifesto Comunista (1848)! Eles foram os responsáveis por fundamentar econômica e sociologicamente as ideias socialistas que já existiam na Europa no século XIX, oriundas de teorias políticas anticapitalistas que pregavam a necessidade de uma sociedade igualitária. Foi uma doutrina sociológica, filosófica e política baseada no materialismo históricodialético e no pensamento socialista científico. Essas idéias difundiram-se pela Europa no início do século XX, principalmente por conta dos sindicatos e de partidos políticos de orientação socialista, e foi a base da ditadura do proletariado, que assumiria o Estado em detrimento da burguesia. Foi o lastro político do principal regime totalitário do mundo, a antiga URSS. Apregoava a eliminação da propriedade privada, a burguesia e o capitalismo. Foi bom? Não. Deu certo? Não, redondamente e em uníssono: NÃO.

Você citou Antonio Gramsci em sua carta. De fato, ele morreu no cárcere, preso por fascistas. Escreveu até a morte e enfatizou a crítica ao dogmatismo do marxismo oficial, que ao petrificar a teoria, impedia a prática revolucionária. Mas ele foi de uma corrente do marxismo contemporâneo.

Podemos dizer que todas as ideias de Marx estão obsoletas? Algumas são vigentes até hoje como: 1- O ativismo político; 2- A recorrência de crises econômicas;

3- Ganhos desmedidos e monopólios; 4- A globalização e a desigualdade. Não vou me deter sobre todas elas, porque se fosse, essa carta não teria fim!

Voltemos ao capitalismo, regime que deu certo, que vigora na quase totalidade do planeta e por enquanto o que temos de viável, talvez de melhor, ou diria, o que não temos uma contraproposta para apresentar. Desde o começo, o capitalismo foi construído sobre os cadáveres de milhões de pessoas. Desde o século XVII em diante, o tráfico de escravos através do Atlântico converteu-se num pilar do capitalismo emergente.

92 Parte 03

Muito da riqueza de Londres, Bristol e Liverpool, que foi em algum momento o maior porto de escravos da Europa, nasceu do trabalho dos africanos escravizados. O capital acumulado pela escravidão deu os bens para a Revolução Industrial em Manchester e Lancashire, e muitos bancos podem atualmente rastrear na escravidão a origem de suas fortunas. Chamemos Yuval Harari para ‘falar’ sobre o assunto em: Sapiens: Uma breve história da humanidade, ele diz:

Essa é a pedra no sapato do capitalismo de livre mercado. Não há como garantir que os lucros sejam ganhos de forma justa, ou distribuídos de maneira justa. Ao contrário, a ânsia por aumentar os lucros e a produção cega as pessoas para qualquer coisa que possa estar no caminho. Quando o crescimento se torna um bem supremo, irrestrito por qualquer outra consideração ética, pode facilmente levar à catástrofe. Algumas religiões, como o cristianismo e o nazismo, mataram milhões de pessoas por ódio fervoroso. O capitalismo matou milhões por pura indiferença unida à ganância. O comércio de escravos no Atlântico não derivou do ódio racista para com os africanos. Os indivíduos que compraram as ações, os corretores que as venderam e os administradores das empresas de comércio de escravos raramente pensavam nos africanos. O mesmo pode ser dito dos proprietários das plantações de açúcar: muitos deles viviam longe das plantações e a única informação que exigiam eram livros contábeis com registros precisos de lucros e perdas.

Como se vê, há horror em ambos os lados! Mas você é um liberal, faz questão de externar isso com frequência. Não tenho nada contra o liberalismo econômico, desde que ele não queira destruir o Estado, pois o hoje demonizado Estado tem uma característica que enxergo peculiar nas elites econômicas. Elas desejam um Estado mínimo no tocante aos direitos da maioria pobre e excluída, mas querem um Estado máximo na proteção à propriedade privada, aos ganhos de capital, ao perdão das suas dívidas astronômicas com os bancos estatais e à concessão de subsídios aos seus produtos e

93 Não MateM os Pardais

serviços. Esse é o paradoxo! Sou a favor do Estado no tamanho certo, como também sou a favor da liberdade econômica, do livre comércio, da liberdade de imprensa, da justiça isenta e imparcial, do empreendedorismo, da atividade econômica privada, do lucro do trabalho e do investimento e por aí vai...

Não tenho como fonte de inspiração os seus autores! Desculpe dizer isto de forma seca, mas essa é uma conversa de amigos, honesta e clara. Os autores que leio e admiro são: Eliane Brun, Vladmir Safatle, Christian Dunker, Jesse de Souza, Luiz Nassif e muitas outras mentes brilhantes que por hora não me vêm à memória. Assim como você, também não li a maioria dos clássicos, mas pretendo lê-los antes de morrer. Tenho a lista do José Mindlin guardada comigo.

Quanto à escolha do nosso atual presidente... Nem lhe falo! Foi um desastre retumbante! Mas o importante era tirar o PT, não era mesmo?

Querido amigo, não me leve a mal, gosto de você do mesmo jeito, mas ao contrário do que tenho feito à maioria, quis lhe escrever esta carta. Beijos e meu bem querer de sempre.

94 Parte 03

Querida amiga,

Écom muito prazer que dou continuidade a essa discussão à moda antiga... cartas! Estou me sentindo Freud e suas incontáveis correspondências ... Que bom! Acho que devemos fazer várias e depois publicar um livro, que tal?? Mas vamos lá... tentarei contraargumentar, e se esquecer algo, me cobre!!

Em primeiro lugar quero lhe dizer que você não foi covarde. Eram momentos difíceis e um debate racional naquele momento era perda de tempo e energia. Você foi sensata e prudente. O clima já vem pesado há muito tempo, começou com o discurso de Lula de nós contra eles e os Bolsonaristas também radicalizaram. Enfim, impossível qualquer discussão séria.

Em relação aos jovens, o meu apelo é que eles recebam informações imparciais ao longo de sua formação educacional e possam eles mesmos tirarem suas conclusões. Desde o nosso tempo até hoje, isso é impossível. O viés esquerdista desde a alfabetização até a universidade é inquestionável. Você lembra de algum professor seu falar bem do capitalismo em algum momento da sua vida? Eu não. Isso não é

95 Não MateM os Pardais

intelectualmente honesto. A força da juventude é praticamente toda manipulada para uma causa ideológica desde a mais tenra infância. Essa é uma parte da teoria Gramsciana que falei e que deu certo. Então, em relação aos jovens vou parafrasear Nelson Rodrigues: “Só tenho um conselho, envelheçam rápido!”.

As causas que você citou (feminismo, clima, animais, homofobia etc.) não têm nada a ver com socialismo ou capitalismo. São causas do humanismo e foram sequestradas pela esquerda para se manter viva politicamente, principalmente após a queda do Muro de Berlim, não deveriam entrar nesse debate (pertencem às ciências naturais e à sociologia). Ficarei no debate político-econômico.

Liberalismo econômico, que é o que defendo, pode, infelizmente, vir associado a regimes totalitários. O Chile é um exemplo. Pinochet foi um ditador cruel, mas em política econômica ele delegou a um grupo liberal da Escola de Chicago e teve sucesso. No fim do ciclo de regimes militares da América do Sul, o Chile estava anos-luz à frente de seus vizinhos e ainda colhe os frutos disso. Vamos adiante.

Você afirma que comunismo prescinde da existência do Estado. Com isso, você repete os que afirmam que o “verdadeiro comunismo“ nunca existiu, que todas as tentativas foram malsucedidas porque sucumbiram ao totalitarismo. Perdoe-me, mas discordaremos frontalmente. O comunismo, tal qual sonhado e idealizado, é totalmente incompatível com a natureza humana. Se assim não fosse, talvez nos primórdios, nos homens das cavernas, teríamos vivido essa harmonia perfeita. Mas nem nessa época (sem Capital, sem Estados, sem Nações) não existia igualdade. Porque os seres humanos são desiguais. Temos habilidades diferentes, desejos diferentes, ambições diferentes, objetivos diferentes, dosagens hormonais diferentes, neurotransmissores cerebrais em equilíbrio diferentes, fisicamente somos diferentes, psicologicamente somos

96 Parte 03

diferentes. Nunca haverá igualdade. E isso é bom. Sem isso não teríamos os grandes gênios da humanidade, que tanto criaram para nós. Os mais talentosos criam produtos, obras de arte, empresas, entretenimento etc. em um nível que a maioria de nós não é capaz. Se você observar, menos de 5% das pessoas possuem essas extraordinárias habilidades e, direta ou indiretamente, beneficiam toda a humanidade, exemplos: Shakespeare, Benjamin Franklin, Isaac Newton, Leonardo da Vinci, Michelangelo, Einstein, Steve Jobs, Elon Musk, Winston Churchill, Beatles, Warren Buffet, Bill Gates, Beethoven etc. Esses talentos só produziram o que puderam porque tinham liberdade, e tinham interesses pessoais em suas conquistas também. Da Vinci e Michelangelo tinham seus patronos, puderam viver da arte. No comunismo não teria existido nenhum deles. O que temos que perseguir é a IGUALDADE DE OPORTUNIDADES, isso sim, é o justo e o ideal. A ideia socialista só se mantém à custa de muita força, totalitarismo e falta de liberdade. Esses são os fatos. Nos países escandinavos temos a situação mais próxima do ideal. Podemos dizer que há uma igualdade de oportunidades, mas, mesmo assim, as mulheres são maioria entre as enfermeiras e as professoras primárias, os homens são maioria entre os pedreiros e os grandes executivos. Por quê?? Escolhas de cada um! Muitas mulheres altamente capazes não querem renunciar a uma vida mais tranquila junto à família e trabalhar 14 horas por dia em um ambiente altamente hostil e competitivo. A agressividade natural do homem o impele a isso, assim como o afasta de cuidar de crianças pequenas. É da natureza. Não é com um decreto que se muda isso. A história da China e da Índia são extremamente diferentes. Não se pode usar como exemplo a expectativa de vida entres esses dois países como medida de sucesso do sistema político econômico. Sei muito pouco sobre essas duas nações, mas vou me arriscar um pouco.

97 Não MateM os Pardais

A Índia é um país que foi praticamente inventado por uma mistura dos persas e dos gregos. Não tem uma identidade histórica e cultural longa. Suas crenças e sistemas de castas favorecem um sistema de vida quase medieval. Vivem uma eterna guerra com o Paquistão, cultuam a vaca como animal sagrado, usam um rio altamente poluído como se fosse uma divindade. Têm filhos em abundância, mesmo sem condições de dar o sustento. Imagine a mortalidade por doenças infecciosas...

A China tem mais de 5 mil anos de história e uma religião complexa, e um passado de guerras e mortes quase que incomparável. A revolução de Mao matou milhões de fome e depois eles implantaram a política do filho único. Pais matavam seus recém-nascidos se fossem do sexo feminino. Só o extermínio de milhões pela fome no passado e o assassinato de meninas recém-nascidas já falseiam essas estatísticas. Mas não vou me alongar, tenho parco conhecimento sobre esses dois países.

O capitalismo como conhecemos surgiu após a Revolução Industrial na Inglaterra. Antes disso o que existia eram relações comerciais entre pessoas, cidades, reinos, estados etc. E todas essas relações seguiram o instinto da natureza humana. Não é o nosso tema. Escravidão existe há milênios, independente da cor da pele. Povos eslavos vêm de escravos, e são os russos, poloneses, sérvios, croatas e países dos Balcãs, todos loiros. Os egípcios (pele escura) escravizaram os judeus por séculos. Reis africanos escravizaram outras tribos e vendiam para os europeus. A escravidão não veio do racismo. O racismo nas américas é que veio da escravidão dos africanos. Colonialismo também faz parte da nossa história há milênios. Alexandre o Grande (Grécia), Império Romano, Império Persa, Império Mongol, Império Japonês, Império Espanhol, Português, Austrohúngaro, Russo etc. Em nossa história sempre existiram colonizadores e colonizados muito antes da Revolução Industrial. Ficaremos no capitalismo propriamente dito.

98 Parte 03

A Revolução Industrial veio da revolução científica. Máquinas e motores foram criados a partir da engenharia. Inicialmente na indústria têxtil; não havia patentes sobre essas máquinas e era comum o roubo de máquinas e segredos industriais. A concorrência com produtos artesanais foi arrasadora e muitos camponeses vieram para os grandes centros urbanos. A renda per capita na Inglaterra subiu assustadoramente e muitas pessoas saíram de condições de miséria quase absoluta em áreas rurais. Veja esse gráfico:

Claro que era uma terra sem lei; jornada extenuante, baixos salários e lucro bem elevado. Para você ter uma ideia, a margem de lucro naquela época era de 50%. Bem diferente da margem de 3 a 4 % das empresas de varejo de hoje em dia. A busca pela matéria-prima expandiu o colonialismo. A Índia entrou nesse barco.

Karl Marx floresce nesse cenário. A ideia básica dele é que somos produtos do nosso sistema de produção. Afirmou que o ser humano não se molda pela religião, pela família, pelos valores tradicionais e nem pela

99 NÃO MATEM OS PARDAIS

filosofia. Somos simplesmente frutos da estrutura de produção. Empolgou naquela época e empolga hoje; pois nega os valores tradicionais que moldaram nossa história até hoje e vem com um discurso de altruísmo, bondade, solidariedade, contra os valores “depravados” da família tradicional. Todo adolescente adora esse discurso, não é?? Tudo se resume a meio de produção, socialismo x capitalismo. Nada tem valor: cultura, família, filosofia, artes, costumes, ou seja, tudo aquilo que a humanidade levou séculos para nos trazer até hoje, ele quis negar e destruir. Por ele, seu filho não pertence a você. Pertence à comunidade e tem que fazer o que a comunidade precisar. Nega religião e todos os valores tradicionais. Tudo é meio de produção. Foi o que nossos guerrilheiros quiseram fazer aqui (Dilma inclusive), mudar os meios de produção. Óbvio que não dá certo. Esquece que não é o regime político que muda o ser humano e sim a comunidade a qual ele quer pertencer. Basta ver a história de vida dele: estudou filosofia, mas não sabia nada de administração e contabilidade. Nunca trabalhou (vivia às custas da esposa), vivia de congresso em congresso, nunca se estabeleceu em nenhuma comunidade e em nenhuma profissão; duas filhas se suicidaram e três morreram porque ele não tinha dinheiro para pagar os médicos. Só 11 pessoas compareceram ao seu funeral. Ou seja, um fracasso humano retumbante.

Vamos voltar ao capitalismo. Esse evoluiu ao longo do tempo. O pai do capitalismo liberal é Adam Smith, com seu livro Ariquezadasnações. Veja um comentário sobre ele no jornal Gazeta do Povo:

Uma mera ideia, que o filósofo e economista Adam Smith chamou de “o plano liberal de igualdade, liberdade e justiça”. Em uma palavra, foi o liberalismo, no sentido europeu de livre mercado. Dê às massas de pessoas comuns igualdades perante à lei e a igualdade da dignidade social, e deixe-as em paz, e acontece que elas se tornam extraordinariamente criativas e energéticas.

100 Parte 03

Esse é o caminho. Só temos pão quente na padaria porque o padeiro vai ter o seu lucro.

Já li todos os livros de Yuval Harari. Belo escritor e muito inteligente, mas a ideia dele do capitalismo está totalmente obsoleta. O capitalismo moderno é socialmente responsável. Só se sustenta se agradar ao cliente e ao funcionário. Milhares saíram da miséria pelo capitalismo. Para você ter uma ideia, das 500 maiores empresas de capital aberto dos EUA, 45% das ações dessas empresas pertencem ao fundo previdenciário dos próprios funcionários, 20 % pertencem às viúvas de empresários que já morreram, em suma, 65% do controle das empresas está nas mãos de empregados e mulheres. A margem de lucro é estreita porque está muito dividida. Esse é o fruto do liberalismo. Temos gratuitamente (ou a custo baixo) hoje: e-mails, música, o Google, blogs, cursos on-line, informação e comunicação na palma da mão etc.

No Brasil nunca tivemos o liberalismo verdadeiro. Aqui sempre teve o capitalismo dos amigos do rei. Empresários escolhidos a dedo monopolizam o mercado e ditam as regras com a proteção dos governos e, em contrapartida, repassam propinas aos políticos que se perpetuam no poder. É o que Paulo Guedes tenta mudar. Na URSS comunista, existia um capitalismo oculto, ou seja, amigos do governo tinham também diversos monopólios. Quando caiu o Muro de Berlim, no outro dia existiam centenas de bilionários. Como isso era possível em um país comunista?? Por isso, capitalistas como George Soros apoiam regimes socialistas e sonham em ter um país comunista para chamar de seu. Vai exercer o capitalismo oculto sem concorrência.

Você fala que o objetivo do Estado mínimo é diminuir os direitos das minorias pobres e excluídas... não concordo. Esse é um argumento antigo e que soa bem aos ouvidos, mas não é verdadeiro. Nunca houve tanta proteção aos direitos humanos como na época atual que

101 Não MateM os Pardais

estamos vivendo. Nunca houve tanta riqueza produzida pela humanidade como agora. Temos o menor número histórico de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza em todo o mundo. Hoje se morre mais de excesso de comida do que da falta dela (o próprio Yuval fala isso).

O Estado mínimo é o que queremos e defendemos, mas não para retirar direitos de ninguém. Pelas suas palavras finais, percebo que você também é liberal, ou seja, defendemos a mesma coisa. Não há discordância. O que temos é uma visão diferente do conceito de capitalismo. Tente olhar pelo conceito do moderno capitalismo.

Por último, uns comentários sobre a entrevista do chinês que você mandou. Pelo que entendi, ele não conhece o verdadeiro liberalismo. Está impregnado do capitalismo chinês, que é sui generis. Na China, eles exercem um totalitarismo interno, proíbem o capitalismo interno e praticam o comércio exterior com força e agressividade, valendo-se de sua extensa mão de obra barata (escrava), controle das liberdades e partido único. Tirando a Coréia do Norte, talvez seja hoje o pior exemplo de sistema de governo do mundo. Querem, e estão fazendo, uma segunda rota da seda. Estão dominando os países subdesenvolvidos, comprando suas empresas e recebendo o apoio dos socialistas desses países. Basta ver recentemente a projeção da bandeira chinesa no Cristo Redentor, no Rio. Ver como o embaixador fala grosso aqui dentro do Brasil. Compraram o controle da Band aqui no Brasil e acentuam sua máquina de propaganda. Enfim, é muita coisa...

Sobre eleição, Bolsonaro e outros nomes não vou me expressar. É assunto para outra carta... mas, se você quiser, debateremos também...

Um grande abraço querida amiga.

Ermano, 17/04/20.

102 Parte 03

Carta II ao meu amigo Ermano

Acarta resposta foi demorada, reconheço, mas é como um poema, uma música, uma pintura, tem o seu momento de nascer. E o desembaralhar das ideias só me vem depois de decantados os pensamentos, que são múltiplos, que me confundem por vezes, para enfim nascer algo que possa sintetizar o que mais predomina num dado momento.

Acompanho suas falas no grupo do Whatsapp, às vezes com surpresa, às vezes até incrédula, quando você se esmera em tanto defender suas bandeiras ultraliberais e tanto condenar as ideias “comunistas”. Fico sempre me perguntando por que o ideário comunista tanto lhe assombra, visto não ter você passado por ele em nenhum momento da sua vida e ver o país que você nasceu e reside completamente fora da rota deste ideário. Como lhe falei na carta anterior, não deu certo mesmo, embora reafirme, não foi sequer implementado, pois o comunismo prescinde da existência do Estado. As nações onde imagino que você enxergue comunistas, têm um poder central fortíssimo, liberdade controlada, precariedade de serviços e baixos salários. De fato,

103 Não MateM os Pardais

imagino ser um lugar horrível de se viver. Mas, tem a famigerada China, essa que faz o mundo capitalista se dobrar à sua imensa capacidade produtiva e aos seus preços que ninguém consegue competir! Cenário dantesco para um democrata liberal, não é mesmo? Como assim, esses malditos vermelhos (na bandeira) agora interferem nos preços e bolsas do mundo todo. Não pode ter dado certo! São comunistas! Como podem produzir tanto! E aquelas cidades, megalópoles, cheias de trens de alta velocidade, aeroportos, edifícios de 150 andares? E as Universidades? Os malditos estão produzindo ciência a rodo. Os seus trabalhos médicos mais modestos têm “n” maiores que todo o mundo, como pode? E não estão só copiando, estão também sendo inventivos, criativos! E para piorar, estão comprando terras no mundo todo! É, infelizmente, acho que virou a maior representante do capitalismo! Paradoxo mesmo!

Não vou me esmerar em defender Marx, até porque não é este o meu propósito de vida e nem o fundamento do meu pensar. Reconheço Marx como um pensador, filósofo, fortemente influenciado por Hegel, que questionou os fundamentos do modelo capitalista. Estudou as relações de trabalho e o lucro e definiu a mais valia. Foi um pensador como tantos outros, de inúmeras correntes, mas devemos reconhecer que foi um contestador brilhante, com argumentos genuínos e embasados. Trouxe vários problemas para si e para sua família, mas manteve-se casado com a mesma mulher até a sua morte. Foi perseguido, expulso de vários países e de fato, em vários momentos viveu de doações dos amigos, por não conseguir um emprego. Como todos os revolucionários, quando se questiona a ordem vigente, você se arrisca à perseguição. Viveu tragédias familiares com a perda de filhos, mas não li em nenhum lugar que foi uma consequência direta da sua falta de apreço ao trabalho. A obra de Marx é vasta, influenciou pensadores por várias gerações, entre filósofos, sociólogos,

104 Parte 03

historiadores etc. Foi um intelectual de grande calibre! É inquestionável a qualidade de OCapital.

O pensamento nascido a partir do Manifesto Comunista de fato influenciou gerações de jovens revolucionários em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil. A luta aqui teve suas peculiaridades, com forte influência dos americanos, que se encontravam em plena Guerra Fria, duelando por poder e armas com os russos. Havia a atuação dos americanos por questões geopolíticas (com o sempre presente desejo de manter as nações subdesenvolvidas sob seu mando), interferiu grandemente na América do Sul, conduzindo o continente a ditaduras militares violentas, que foram responsáveis pelo desaparecimento e tortura de milhares de seus cidadãos, a título de defender a ordem e a soberania. Instalou-se aqui um governo central, com a liberdade vigiada, censura, imprensa controlada, indivíduos presos e sem julgamento, ausência de eleições, enfim, um modus operandi meio parecido com os malditos países ditos comunistas! E entre esses presos estava Dilma Rousseff, essa mulher incrivelmente corajosa, que foi barbaramente torturada, mas que manteve a altivez, lucidez e garra e tornou-se a primeira mulher presidente do Brasil! Uma grande conquista! Como você sabe a definição direita/esquerda teve sua origem nos embates do Parlamento Inglês. À direita do primeiro-ministro sentam-se os indivíduos conservadores, que definiam suas decisões e votos pela permanência das coisas como elas estavam. Não queriam mudanças. À esquerda sentavam os indivíduos mais abertos às mudanças, que aceitavam o novo, o diferente, enfim, que estavam abertos a mudanças. Naturalmente é fácil compreender porque as lutas de minorias, como lutas identitárias, de questões relacionadas aos costumes, opção sexual, direito das mulheres etc. encontram uma caixa de ressonância entre os representantes de esquerda. Pois pela própria definição são indivíduos que

105 Não MateM os Pardais

aceitam e estão mais abertos a essas mudanças. Não considero que sejam somente questões humanísticas. Tudo aquilo que envolve questões de representatividade e direitos, necessariamente passa por luta política. Provavelmente por isto, as bandeiras tão odiadas pelos conservadores encontrem colo na direita (conservadorismo dos costumes, opressão feminina, violência contra a mulher, não reconhecimento à opção sexual diferente da heterossexualidade e por aí vai). Enxergo que estas conquistas passaram por muita luta política e tenho certo de que não há mudanças sociais sem luta! As opções individuais de como cada um vai levar sua vida é próprio de cada um. Não enxergo nenhum problema em uma mulher querer ser dona de casa e mãe e somente isto. De fato, o ambiente corporativo e da política não é muito palatável ao universo feminino, por sua competitividade e agressividade. Mas, há inúmeras mulheres que estão aptas a ele (veja o brilhante papel ocupado por Ângela Merkel). Reconheço que há pouca representatividade feminina em ambos os universos, muito poucas mulheres ocupando cargos políticos ou de chefias em grandes corporações. Não penso ser isto uma fatalidade decorrente de questões hormonais inerentes ao universo feminino e sim uma dificuldade imposta a que as mulheres ascendam a estes postos, mesmo sendo elas a maioria da população em muitos países. No Brasil, tivemos o caso emblemático da enfermeira Maria da Penha, que necessitou ficar paraplégica, após várias tentativas de assassinato por parte do companheiro, para se ter alguma lei de amparo à violência contra as mulheres. Por séculos, alguns homens bateram e humilharam suas companheiras impunemente e não houve nenhuma manifestação social em defesa dessas mulheres.

Thomas Piketty, em OCapital no Século XXI, mostra de forma inconteste como as nações concentram renda, mesmo nações altamente desenvolvidas do ponto de

106 Parte 03

vista social. A cada década, a riqueza se concentra mais e mais na mão de poucos. Imagino ser isto um ponto de desequilíbrio na curva de paz social, pois há uma finitude à capacidade de geração de riquezas. Sua obra mostra que a taxa de acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico e essa tendência é uma ameaça à democracia. Encontra neste ponto um gargalo do capitalismo, aliado ao esgotamento dos recursos do planeta Terra. No modelo de geração e concentração de renda atual, destrói-se o planeta e não se consegue equilíbrio nem paz social. O liberalismo econômico não encontrou soluções para todos os gargalos sociais. Poucas empresas tornaram-se gigantes, como estrelas supernovas e desafiam governos e a democracia. Um capital flutuante, na forma de títulos, migra de lá para cá, entrando e saindo em bolsas de valores, comprando títulos governamentais que precisam ser pagos a altas taxas de juros, a um custo muito grande para a população mais pobre.

Brasil, uma nação absurdamente excludente com muitos dos seus cidadãos, inclusive com enorme desigualdade de oportunidades, altamente concentradora de renda (Índice Gini 0,543), inclusive sendo o NE do Brasil um dos grandes contribuintes na piora deste índice em 2019. Uma nação que aprisiona pretos, pobres e periféricos (os presídios brasileiros que não reintegram ninguém à sociedade estão repletos deles), que não proporciona um sistema educacional que permita equidade entre todos os seus jovens, na competição pelas vagas nas melhores universidades ou nos seus melhores cursos técnicos. Assistimos há séculos a falta de oportunidades educacionais aos mais pobres. As vagas nas universidades públicas brasileiras historicamente mantiveram-se entre os mesmos. Filhos da classe média ou média alta brasileira é quem delas se usufruíam, mantendo as coisas exatamente como elas eram por décadas após décadas.

107 Não MateM os Pardais

Em 2019, o IBGE publica os dados do PNAD e mostra que os 10% da população com os maiores rendimentos ganham, em média, 13 vezes mais do que os 40% da população com os menores rendimentos. O aumento da desigualdade é reflexo da falta de ganho real no salário-mínimo em 2018, além da informalidade e da subutilização no mercado de trabalho, que atingem níveis recordes atualmente. Nesta mesma pesquisa o IBGE mostrou que há mais pessoas em situação de pobreza extrema do que toda a população de países como Bolívia, Bélgica, Grécia e Portugal. Deste total, 72,7% são pretas ou pardas. Como é possível com cifras tão alarmantes desejar que o Estado brasileiro vire as costas para esta gente? E defender que o Estado seja mínimo e alheio a estes brasileiros. Como estas pessoas, vivendo sob absoluta pobreza, analfabetos funcionais, irão empreender? Como encontrarão subsídios para irem ao mercado de trabalho competir de forma igualitária com quem está saudável, nutrido, alfabetizado? E não adianta fazer de conta que estes brasileiros não existem, eles existem e somam uma enorme quantidade de pessoas. Como escolher conservadores para nos representar diante de tanta discrepância? De tanta injustiça? Eu não consigo escolher pelos conservadores, pois eu quero mudança, eu quero que estas coisas mudem! Não defendo, não almejo, não destino nenhuma energia a imaginar que devemos retirar dos ricos para dar aos pobres, em podar os talentosos das suas habilidades, em impedir os empreendedores de empreender e enricar, nem os criativos e superinteligentes de criar e inovar, porém é preciso olhar para estes excluídos, é preciso encontrar fórmulas para melhorar as condições destas vidas e não enxergo outra via que não sejam políticas públicas.

Percebo também uma grande contradição entre os brasileiros que assim como eu viajam ao exterior e acham bonito e elogiam o estado de bem-estar social

108 Parte 03

dos europeus, com sua educação e saúde pública, de boa qualidade e universalizada, mas que ao retornarem consideram que para nós o bom são escolas de nível fundamental e médio privadas, saúde privada, hospitais que mais parecem hotéis, para serem atendidos com certa diferenciação, sem se misturar à ralé. Mas as universidades devem continuar públicas, de preferência, e suas vagas ocupadas pelo público presumivelmente egresso das melhores escolas privadas de ensino médio, lugar onde filhos de pobres não puderam estudar. E se escandalizam com esses “vermelhos cretinos” que ousaram criar cotas para pôr na universidade essa ralé malformada e inculta! Como ousaram? A meritocracia foi ultrajada!

Harari escreveu em um dos seus livros que não há justiça na História. Fiquei desalentada depois disso! Acho que conservava alguma esperança que houvesse! Depois disso, fui ler Filosofia, li (de forma superficial) dos pré-socráticos até Sartre e tenho uma fila de livros aqui para ler. Buscando nos livros o que não encontro na dura realidade. Meu querido, termino minha carta com um poema do grande Manoel de Barros no livro Meu quintalémaiordoqueomundo:

Aprendo com abelhas do que com aeroplanos. É um olhar para baixo que eu nasci tendo. É um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo. O ser que na sociedade é chutado como uma barata – cresce de importância para o meu olho.

Ainda não entendi por que herdei esse olhar para baixo.

Sempre imagino que venha de ancestralidades machucadas.

Fui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão -

109 Não MateM os Pardais

Antes que das coisas celestiais. Pessoas pertencidas de abandono me comovem: Tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.

Um grande beijo e até breve! Dinorá Bezerra, 12/06/20.

110 Parte 03

Querida Dinorá!

Demorei demais a lhe responder! Foi um tempo difícil para mim e minha família com a doença e morte de meu pai, além da pandemia. Enfim, tentarei contra-argumentar com as limitações naturais de um não-historiador, não-economista e não-filósofo, apenas com o atrevimento de um sim-curioso. Agradeço de antemão o alto nível de seus argumentos, que me forçaram a ler e estudar além do meu hábito. Usarei palavras minhas e de autores e colunistas que sigo e respeito, obviamente dando o crédito. Perdoe-me se eu me estender muito nessa carta, pois, como comentei com você, pretendo algum dia torná-las públicas para que outros possam usar de nossos argumentos para o próprio crescimento (principalmente os jovens). Então, como diria Jack, o estripador, vamos por partes. Sobre o comunismo, que você diz me assombrar, reconheço aqui o pavor. Não do comunismo em si, pois nunca existiu na prática e nunca vai existir; é incompatível com a natureza humana. O que me traz pesadelos são as tentativas, pois sempre vêm associadas com a força, a tirania e a perda da liberdade, que como

111 Não MateM os Pardais

disse Ronald Reagan, nunca está a mais de uma geração de distância. Vamos voltar um pouco no tempo. Você cita que o comunismo prescinde da existência do Estado, presumo que também do capital; seria um ambiente em que as tarefas são divididas e as benesses compartilhadas e todos seriam felizes. Mas isso já foi tentado inúmeras vezes. Assim foi o início da história da civilização, desde os primeiros hominídeos no continente africano. O Estado, como conhecemos hoje, é fruto da imaginação humana em busca de uma solução para os eternos e violentos conflitos que sempre existiram entre nós. Diversos modelos foram testados ao longo da história e a criação de fronteiras imaginárias, nacionalidades e países foi o que triunfou e nos trouxe até o mundo que temos hoje.

Quando os europeus descobriram a América, encontraram diversas comunidades indígenas onde não havia Estado nem capital, apenas o homem em estado bruto (verdadeiro comunismo?)! Ficaram fascinados e, segundo Carlos Rangel em seu livro Mitos e falácias sobre a América Latina imaginaram terem achado o “bom selvagem”, ou seja, o homem puro, longe da corrupção, ganância e selvageria dos europeus, o Adão no paraíso. Ocorre que essa “experiência comunista” também não era tão boa assim. Havia tribos diversas e impérios (Asteca, Maia, Inca) que praticavam sacrifícios humanos, canibalismo, guerras por território, infanticídios, parricídios e toda forma de bestialidade. É a força da natureza humana não domesticada pelos séculos de pensamento religioso e filosófico e pelas inúmeras tentativas de organização social.

Em resumo, era impossível a paz e a igualdade, pois somos desiguais e violentos por natureza, é preciso um sistema de pesos e contrapesos para conter os nossos instintos primitivos. O Estado tem que existir e somente ele pode ter o monopólio da força; a discussão é o tamanho e o modelo a ser implantado. Mas vamos

112 Parte 03

voltar ao capitalismo, tão atacado desde sempre e tão mal compreendido pelas pessoas de boa fé. Deirdre McCloskey, professora de economia da Universidade de Chicago, fez uma boa análise sobre o motivo do fascínio pelo socialismo. Segundo ela, essa atração é um tipo de primeiro amor, de infância, que surge porque nascemos dentro de uma experiência socialista que é a família, onde todos colaboram de acordo com suas habilidades e as benesses são distribuídas igualmente. Em seguida vem o grupo de amigos adolescentes, onde tudo também é um bem comum. Mesmo que um indivíduo compre uma pizza para o grupo, as fatias serão distribuídas igualmente, pois quem se recusasse seria normalmente afastado. Quando essa criança enxerga um pobre na rua, sua tendência é tentar com que essa pessoa seja atraída para a família, uma grande família onde não haveria pobreza. Além disso, não há a percepção do esforço e da recompensa direta. Eles crescem em um mundo utópico. Essa ideia é atraente demais e é reforçada pelos professores nas escolas, onde não há o ensino verdadeiro da história, por pura ignorância mesmo; os contos de fada sobre o socialismo se repetem há décadas e jovens ficam sem acesso ao que de fato ocorreu. Um brilhante historiador, Eric Hobsbawm quando perguntado se o assassinato de 20 milhões de pessoas na URSS sob Stálin podia ser justificado para o sonho comunista, ele disse: “Sim, assassinar tanta gente foi justificado”. A lenda de que o capitalismo é o mal e que apenas o Estado é altruísta e cuida dos mais pobres é martelada incessantemente geração após geração. A filosofia nos ensina o perigo das ideologias e vou recorrer agora a uma jovem mulher, filósofa e ainda por cima pernambucana. Natália Sulman está disponível facilmente nas redes sociais e é uma agradável surpresa conhecer o seu pensamento. Em sua análise sobre o filósofo alemão Eric Voegelin, ela explica o significado

113 Não MateM os Pardais

das ideologias na visão de Voegelin. Trata-se do mundo das ideias sem amparo no mundo real e que surge de tempos em tempos como uma fuga à dura realidade. Há vários exemplos e que sempre terminam mal: nazismo, fascismo, comunismo, além do populismo e suas diversas facetas: peronismo, sebastianismo, getulismo e tantos outros. Em comum, não há fundamento real para o que se pretende impor e o fracasso é só questão de tempo.

O marxismo em particular se baseia na hipótese que o homem é bom por natureza e o capital o corrompeu, ora, basta estudar Santo Agostinho e observar a natureza humana para perceber o erro básico. Nascemos egoístas e desde bebês queremos o leite materno sem oferecer nada em troca; a criança é egocêntrica e só pensa em seus desejos, sendo cruel em muitas situações nos jardins de infância. Educar é antes de tudo ensinar a controlar os instintos naturais para poder conviver com outras pessoas. A bíblia já nos alertou para o nosso pecado original e a expulsão do paraíso. Marx achava que poderíamos recuperar o paraíso aqui na terra com a extinção do capital, da propriedade privada e consequentemente, da família. Para o socialismo, seu filho não pertence à família, mas ao Estado e esse define o que deve ser feito da sua vida. Instituiu a luta de classes, como se isso fosse o mal, o que contraria a observação de que países onde os pobres têm mais dignidade, são justamente onde há mais liberdade econômica e mais criação de empresas. Quando uma grande corporação vai à falência, quem mais sofre são os funcionários, pois os donos têm recursos para recomeçar.

O capitalismo não é uma ideologia, é um sistema vivo, dinâmico, maleável, fruto da vida real e que está sempre se aperfeiçoando ao longo dos tempos. Desde os homens pré-históricos e suas trocas, passando pelo mercantilismo no século XVII, pela Revolução Industrial no XIX, pela produção em série de Henry Ford no XX e agora com o capitalismo tecnológico e digital de nossa

114 Parte 03

era, há uma constante evolução. Não é fruto de ideias mirabolantes de mentes iluminadas como o comunismo, onde cada fracasso é justificado porque ainda não foi implantado de maneira correta e que na próxima vez vai ser diferente.

As empresas modernas atuais exercem um papel fundamental na melhora da sociedade. Alguns exemplos: a Zoom durante a pandemia suspendeu temporariamente a cobrança do aplicativo e permitiu que 100 mil escolas em 25 países continuassem com as aulas; a Microsoft está patrocinando programa de treinamento digital na África para inclusão digital do seu povo; a Covax (pool de 170 laboratórios) planeja produzir 2 bilhões de doses de vacina até o fim de 2021, em uma escala jamais vista; a Google desenvolveu o aplicativo Smart Barley, que ajuda a proteger plantações de cevada e também criou parceria com agricultores do Nordeste; a Pearson, empresa de tecnologia de educação, oferece cursos universitários para pobres em 85 países africanos; a Jordan Ahli Bank está entregando cartões de débitos a 106 mil famílias de refugiados sírios na Jordânia para que retirem seus alimentos nos postos de emergência etc. São inúmeros projetos que ajudam a tirar as pessoas da pobreza que o Estado não seria capaz de fazer.

São vários exemplos, não porque eles são bonzinhos, mas porque com essas ações, essas empresas também serão beneficiadas indiretamente no futuro, essa é a vida real. Há pesquisas que indicam que um bilionário tem acesso a apenas 3% de toda a riqueza produzida pela sua ideia ou empresa, ou seja, a riqueza criada por ele beneficia inúmeras pessoas, tanto que a pobreza mundial diminuiu drasticamente nos últimos 200 anos.

Economia não é um jogo de soma zero, onde para um ganhar o outro tem que perder. A criação de riqueza é infinita e quando uma mente brilhante cria algo que vai beneficiar muita gente, o valor gerado se espalha por muita gente, em muitos países. Veja os exemplos

115 Não MateM os Pardais

de Steve Jobs e Bill Gates, é inimaginável um governo produzir algo parecido. Precisamos demais das grandes mentes inovadoras, o Estado não é capaz disso.

Outra acusação é a da destruição da natureza e dos recursos naturais. Havia sim essa falta de consciência no passado, mas não era privilégio de empresas malvadas. Era desconhecimento mesmo, de todos. Hoje, todas as empresas modernas têm essa preocupação e, parafraseando Dagomir Marquezi, a indústria não passou a usar menos alumínio nas latinhas (de 85 gramas baixou para 14) porque Greta Thunberg fez biquinho, e sim porque sabe que para sobreviver precisa ter essa preocupação senão seus produtos terão menos valor - é o círculo virtuoso do mercado - e a própria reciclagem de alumínio e de outros materiais também é criação da iniciativa privada. A economia de mercado segue uma lógica própria, sem controle, que nenhum governo ou burocrata bem-intencionado é capaz de imaginar ou idealizar. O papel do Estado encolhe no mundo todo espontaneamente, como se fosse uma seleção natural e quem faz o sentido inverso pela força, como a Venezuela e agora a Argentina, tende a colapsar. Dagomir Marquezi nos lembra que na Estônia a administração federal vem sendo substituída com sucesso por uma rede de computadores com participação ativa dos cidadãos, é incrível, não? Sigamos.

O que ouço com frequência é que o socialismo sonhado pelas pessoas que têm um bom coração não é esse antigo que matou muito e fracassou, mas a social democracia dos países nórdicos, escandinavos, onde existe o bemestar proporcionado por um Estado grande e altruísta. Para esse tema, vou me apropriar de uma coluna de Renata Barreto, economista e ativa nas redes sociais. O país exemplo é a Dinamarca, mas poderia ser qualquer outro. Trata-se de uma monarquia parlamentarista, alta renda per capta, inflação e desemprego baixo; quase sem corrupção, com grande transparência regulatória,

116 Parte 03

alta liberdade econômica e extremamente aberto a investimentos estrangeiros; a indústria e a agricultura são avançadas e as importações e exportações somam 33% e 36% do PIB respectivamente. O foco dos esquerdistas é que a carga tributária é de 48% do PIB e o Estado é pesado e presta bons serviços, protegendo os mais pobres. O imposto sobre a renda e consumo é realmente alto, mas para as pessoas jurídicas é um dos mais baixos do mundo e há várias deduções, o que estimula o empreendedorismo. As regras e leis para as empresas e trabalhadores são simples, flexíveis; não há saláriomínimo nem limite de horas extras e o contrato é por horas trabalhadas. Há segurança jurídica, a propriedade privada é muito bem assegurada e a política monetária é ortodoxa. Todas essas características são o extremo oposto do socialismo. O fato de haver saúde e educação de qualidade e gratuita não torna esse país socialista, pelo contrário. Eles só são capazes disso porque geram muita riqueza pelo sistema capitalista e retornam o imposto com bons serviços, ou seja, o sistema de bem-estar social existe apesar do Estado grande e não por causa dele. Eles geram bem-estar social porque são ricos e são ricos porque sempre obedeceram a uma economia de mercado, ou seja, capitalismo. É apenas mais uma falácia chamar os países nórdicos de socialistas, é exatamente o contrário.

Vamos em frente que ainda falta muita coisa! Você abordou muitos tópicos interessantíssimos que aguçaram minha curiosidade e não foi possível escrever menos do que essas páginas. Espero que tenhas paciência com esse velho amigo, que também era esquerdista na juventude e que sofreu uma conversão. Seria eu uma versão tupiniquim, rasteira e pecadora de Saulo de Tarso a caminho de Damasco?... Perdoe meu atrevimento, é o mesmo que comparar Jesus Cristo com Zé Buchudo!!

Você presume que eu seja um liberal, ultraliberal! Não me vejo assim e vou explicar melhor. O liberalismo

117 Não MateM os Pardais

que acredito e desejo é aquele que serve para aumentar a concorrência no mercado interno, ou seja, eu quero 100 empresas produtoras de petróleo e não apenas a Petrobrás; quero outras 100 no lugar dos correios e por aí vai. Mas não sou liberal para achar normal um bilionário qualquer comprar o Museu do Louvre e transformá-lo em um shopping, nem quero nenhum empresário poderoso derrubando prédios históricos tombados para construir edifícios horrorosos. Também sou contra o liberalismo econômico a qualquer custo no comércio exterior, como o que Richard Nixon e Henry Kissinger fizeram com a ditadura chinesa na década de 70 (deixarei a China para o final), ignorando todos os horrores ao seu povo desde sempre. Se é para me dar um rótulo, que seja o de conservador pois, diferente do que a maioria pensa, o conservador não é aquele que não quer mudanças de jeito nenhum, esse é o reacionário! O conservador deseja a manutenção do que historicamente deu certo, mas aceita e se adapta às mudanças necessárias com a evolução dos tempos. O progressista é aquele que acha que tudo tem que mudar, ou seja, nada do que a humanidade levou anos para construir, seus valores, seus costumes e seus modelos de civilização está certo; é preciso recomeçar do zero. Foi isso que a Revolução Bolchevique fez e deu no que deu; um exemplo mais direto seria esse de agora de criar pronomes neutros no lugar de ele e ela, é algo irracional. Mas não gosto de rótulos; um pensador importante disse uma vez: “... não sou de direita e nem de esquerda pois não sou hemiplégico... bom, talvez eu seja um pouco hemiplégico...”. Vamos agora aos EUA, a América Latina e Dilma Rousseff.

Evito sempre nomes de políticos, pois a grande maioria deles não merece ter seu nome registrado pela escrita em nenhum documento; o máximo seria a citação oral e de preferência em mesa de bar como passatempo entre amigos. Mas não sou contra a política, considero a mais nobre das atividades pois é a única

118 Parte 03

capaz de proporcionar o bem a uma grande quantidade de pessoas. Sou admirador de Winston Churchill, para mim, o melhor deles. Infelizmente, não somos muito bem providos por essas bandas.

Como você falou em Dilma, reconheço sua coragem e eleger uma mulher é sim uma grande conquista, mas tirando isso, não há muito o que comemorar em sua gestão. Gosto de Merkel e mais ainda, sou fã de carteirinha de Margaret Thatcher, mas prefiro seguir com assuntos mais relevantes.

Você citou a interferência dos EUA na política latinoamericana como uma das causas de nossos males. Preciso voltar a Carlos Rangel e seu livro que tão bem comparou as nossas histórias. A origem do sucesso deles e do nosso fracasso não foi no século XX, foi desde o início. As 13 colônias americanas foram fundadas por anglo-saxões que buscavam prosperidade econômica e liberdade religiosa (na época, a Inglaterra voltara a ser católica e havia perseguição aos protestantes).

Esses imigrantes foram lá para trabalhar, produzir e criar ou sustentar suas famílias com um forte sentimento religioso. Os puritanos em Boston e os Quaker na Pensilvânia chegaram com suas mulheres e filhos e os solteiros recebiam mulheres da Europa para casar e criar raízes. A relação com os índios não foi de integração e sim de distanciamento, eles foram empurrados para o oeste ou mortos em disputas por terras; aqui não faço nenhum julgamento ético ou moral, apenas relato os fatos. Resumidamente, eles estavam lá não para extrair riquezas para a Inglaterra e sim para desenvolver um novo mundo mesmo.

A América Espanhola foi bem diferente desde o início. Os espanhóis e portugueses que vieram para cá tinham uma motivação diferente. Não eram famílias em busca de uma nova terra; muitos eram fugitivos ou simplesmente caçadores de riquezas e o objetivo era levar para a Europa o que pudessem. Os índios foram integrados da pior

119 Não MateM os Pardais

maneira possível: os homens escravizados e as mulheres estupradas e quem não se adequasse era assassinado. Logo criou-se uma categoria intermediária entre o espanhol puro e os nativos, era o criollo, que era filho de espanhol, mas nascido na América e esses tomaram a liderança das terras, dividindo-as entre si com o aval do Império. Como resultado, tivemos inúmeras disputas e guerras que resultaram na subdivisão territorial que temos hoje; são vários países em um continente onde historicamente deveria haver 2 ou 3 no máximo (a GrãColômbia era extensa). Golpes em cima de golpes era a regra até bem pouco tempo e, só para ter uma ideia, a Venezuela teve mais de 70 governos no período de 100 anos entre os séculos XIX e XX. O Brasil conseguiu ser menos ruim por conta da família real no Brasil, fugida de Napoleão, que estando por aqui manteve a unidade territorial, além da influência benéfica dos holandeses e ingleses. Tivemos mais sorte.

A cultura dos filhos sem pais, frutos dos estupros, era a regra e de certa maneira perdura até hoje na América Latina; na América do Norte até os filhos ilegítimos eram criados e educados, mesmo sob um falso “apadrinhamento”, que foi o caso do bastardo de Benjamin Franklin, um dos pais fundadores. Até o fim do século XVIII, a América Espanhola era mais rica do que as 13 colônias juntas; Boston e New York eram vilarejos e Caracas já era uma metrópole. A partir da independência eles começaram um processo de desenvolvimento e enriquecimento que foi totalmente independente do restante da América e nós, ao contrário, com inúmeras guerras e golpes que fragmentaram o continente, iniciamos o nosso empobrecimento. A cultura do líder messiânico, populista e salvador da pátria se espalhou de vez e permanece até os dias atuais.

Os EUA só começaram a interferir nas políticas latinas a partir da construção do Canal do Panamá, no início do século XX, e após a guerra hispano-americana.

120 Parte 03

Eles já eram ricos e nós já tínhamos fracassado. A França tinha desistido da obra pelas inúmeras mortes (principalmente pela malária) e Theodore Roosevelt assumiu a missão; não porque era um homem bom, mas porque era economicamente importante para o comércio americano. Negociou com a Colômbia e assumiu esse pedaço esquecido que depois se tornou um país, o Panamá, o que foi bem melhor para eles.

A Argentina, até a década de 30, era uma potência mundial. Uma agricultura e uma pecuária pujante, exportava para toda a Europa e seu PIB era maior que o da Alemanha. Era um país europeu na América do Sul, com vida intelectual e cultural de alto nível. Mas esse rico país também caiu no conto do populismo, com Perón a partir da década de 40, quando começou uma escalada descendente que dura até hoje, e isso não é culpa dos gringos. A interferência dos EUA ocorreu em meio à Guerra Fria, onde do outro lado havia uma ditadura comunista apoiada por outra, a de Mao Tsé-Tung. Eram tempos difíceis e o papel deles em nossa pobreza é injustificável, mas amplamente divulgado e usado como propaganda revolucionária. Estava transformado o mito sul-americano: deixamos de ser o “bom selvagem” para ser o “bom revolucionário” nas palavras de Carlos Rangel. Basicamente, minha amiga, os americanos do norte fundaram uma nação com base no trabalho, na família, na liberdade e no respeito às leis, totalmente diferente da nossa, infelizmente. Agora a China! Deixei por último por ser bem mais difícil de compreender. Lembro até hoje, quando éramos jovens estudantes, em 1989, das cenas de um corajoso chinês enfrentando sozinho uma fileira de tanques na Praça da Paz Celestial em Pequim; lembra disso no Jornal Nacional? Não compreendi bem o que estava ocorrendo, só sabia que uma onda libertária estava varrendo os países do império soviético, com destaque para a Polônia e o Solidariedade de Lech Walesa, que contaminou vários

121 Não MateM os Pardais

outros. Essa mudança foi fruto de um trabalho corajoso e firme de três grandes líderes mundiais: Ronald Reagan, Margaret Thatcher e João Paulo II. Desde aquela época nunca entendi o motivo da China comunista também não cair, era impensável permanecer daquele modo. Confesso que apenas hoje, consegui ter uma noção mínima do que é aquele país e de sua história. É preciso voltar no tempo. Vou tentar resumir.

Apenas dois povos têm mais de cinco mil anos de história: a China e os judeus. Todas as outras nações não chegam nem perto disso. Um historiador citou o confucionismo como a base para entender a China. Essa doutrina filosófica teve início com Confúcio, no séc. VI a.C, e pregava que a humanidade era o centro do universo e ressaltava a educação como base para o progresso; os líderes eram vistos como os “pais do povo” e, por isso mesmo, incontestáveis. Imperadores eram vistos como deuses. Segundo alguns historiadores, isso gerou uma docilidade que facilitou a dominação de um país continental pelos líderes e por outros povos, a exemplo da Mongólia no tempo de Gengis Khan e do Japão no começo do século XX, dificultando a diversificação no modo de pensar na população.

Entender a China é difícil, é preciso um vai e volta entre o passado e o presente constantemente. Em 14 de maio de 2017, Xi Jinping anunciou o investimento de 70 bilhões de dólares na “nova rota da seda”. O que ele quis dizer? O termo rota da seda foi cunhado por um alemão no séc. XIX e refere-se à maior rede comercial do mundo antigo existente desde 200 anos a.C; estendiase da China à Europa, passando pelo Oriente Médio e o norte da África. O segredo bem guardado da fabricação da seda a partir do casulo, pelos chineses, foi a base desse comércio, mas não era apenas seda, inúmeras especiarias eram apreciadas e foram comercializadas em caravanas e navios ao longo dos séculos. O veneziano Marco Polo fez o caminho inverso no séc. XIII e descreveu as suas

122 Parte 03

viagens, despertando a cobiça e o interesse de vários, em especial mercadores genoveses que, em uma de suas idas e vindas, trouxeram a yersíniapestis nos porões dos seus navios. Era o início da peste negra que dizimou a Europa na Idade Média, matando quase 1/3 de sua população, com auge entre 1347 e 1351. Como a história se repete, em outubro de 2010, geneticistas sugeriram que todas as três grandes ondas da peste negra tiveram origem na China e, se somarmos isso ao fato de que chegou ao ocidente pela Sicília, na Itália, temos um interessante paralelo com a Covid-19 - um pequeno desvio em nosso tema.

A segunda rota da seda teve início - aqui é minha opinião - a partir da abertura comercial dos EUA com a China, na década de 70. Nixon e Henry Kissinger foram os responsáveis por essa aproximação e, com a chegada de Deng Xiaoping ao poder, em 1978, as relações se fortaleceram. Era o início da economia socialista de mercado - seja lá o que essa expressão queira dizerque perdura até hoje. Deng era uma espécie de Churchill chinês, e ficou famoso com a expressão “não importa a cor do gato, contanto que ele cace os ratos” para justificar a abertura na economia, arrasada após o grande salto adiante de Mao Tse-Tung.

Deng caiu em desgraça após a repressão brutal aos protestos na Praça da Paz Celestial, em 1989, e logo após renunciou. Uma pena que o mais liberal dos chineses não tenha entrado para a história por uma abertura política naquela época, porque em seguida houve um endurecimento na política interna chinesa e vários jovens desapareceram após aquele massacre. Curiosamente, aquele corajoso chinês que enfrentou os tanques conseguiu fugir e jamais foi encontrado e identificado.

O crescimento avassalador da economia chinesa desde então gerou um paradoxo, pois temos um capitalismo no mercado externo, mas com um comunismo interno, ou seja, o paraíso para qualquer projeto de autoritarismo e

123 Não MateM os Pardais

dominação. Você tem as benesses do capital sem precisar lidar com coisas “pequenas”, tais como liberdade, democracia, direitos humanos, supremos tribunais ou congressos nacionais, pois há apenas um poder: O PCC, que recentemente completou 100 anos de existência e que nos leva de volta ao início do séc. XX.

Em 1915, jovens chineses, revoltados com a dominação japonesa, exaltavam as ideias ocidentais e criaram o partido nacionalista, movimento que pregava valores como ciência e democracia. Paralelamente, por influência da Revolução Bolchevique, 50 militantes (Mao entre eles) fundaram, em 1921, o Partido Comunista Chinês. Esses dois grupos entraram em conflito em 1927, iniciando uma guerra civil que, em tese, dura até hoje, com uma trégua durante a II Guerra. Em 1949, após novos conflitos, os nacionalistas foram expulsos para a ilha de Taiwan e surge a República Popular da China, sob a liderança de Mao. Em 1950, invadem o Tibete e soldados chineses destroem boa parte de sua rica cultura.

Mao merece ao menos um parágrafo pois é, talvez, o ser humano que mais matou seus semelhantes. Com o seu grande salto adiante, e sua política desastrosa, é apontado como responsável pela morte de 60 milhões de chineses, de fazer inveja a genocidas históricos como Hitler e Stálin. Tinha ideias brilhantes, tais como a sua sugestão à URSS da construção do Muro de Berlim (inspirado na muralha da China) e foi o criador da expressão Terceiro Mundo, sonhava em ser o líder dessas nações excluídas do Primeiro e Segundo Mundo. Serviu de ideal para guerrilha terrorista aqui na América do Sul, tanto aqui no Brasil, como no Peru, com o famoso e sangrento Sendero Luminoso. Mas vamos voltar à ilha.

Taiwan está nos noticiários atuais e há quem diga que é o epicentro de uma possível III Guerra Mundial. Há uma disputa intensa pelo mar do sul da China e o canal de Taiwan, que separa o continente da ilha e envolve até a Austrália, que está em alta tensão com os chineses e tem

124 Parte 03

o apoio político e militar do ocidente. Tudo isso porque Xi Jinping quer a ilha de volta, não admite mais que seja um país independente, que até o acordo de Nixon com Mao, em 1972, era a verdadeira China para o ocidente. Formosa (traduzido para Taiwan) foi descoberta em 1517 pelos portugueses e foi ocupada pelos chineses em 1662, esses expulsos pelos japoneses 200 anos depois. Desde a chegada dos chineses nacionalistas, Taiwan prosperou economicamente e politicamente, virando um pária internacional após o fatídico acordo de 72. Taiwan é o alvo de Xi Jinping tão logo ele resolva a questão de Hong Kong, que ainda resiste bravamente contra a dominação chinesa. Outra complicação é entender Hong Kong, precisamos falar da Guerra do Ópio. No séc. XIX, a Inglaterra colhia os frutos da Revolução Industrial e ampliava seu domínio territorial e político. Necessitava de mercado consumidor para seus produtos e a Ásia, com sua enorme população, era o alvo. A China mantinha restrições comerciais nos seus portos e dificultava o comercio. Traficantes de ópio produzido na Índia queriam aumentar seus lucros e viram na droga uma bela chance, era mais vantajoso encher os navios de ópio que outros produtos. Entupiram os chineses de ópio e criaram uma verdadeira epidemia, o que levou a uma retaliação chinesa com afundamento de navios ingleses, que responderam com sua poderosa frota naval e iniciaram a Primeira Guerra do Ópio, entre 1839 e 1842, com vitória inglesa e a assinatura do Tratado de Nanquim, que, entre outras vantagens comerciais para a Inglaterra, dava a posse da ilha de Hong Kong para a Inglaterra - só devolvida parcialmente em 1997.

A Segunda Guerra do Ópio (1856/1860) foi uma continuação da primeira, só que com o apoio da França e da Irlanda à Inglaterra. Moralmente, obviamente que a China estava certa e a Inglaterra era a agressora, mas a História é assim, não há bandidos e mocinhos, somos o que somos; nunca disse que um povo é moralmente

125 Não MateM os Pardais

superior a outro, o que acredito é que há ideias e pessoas que produzem resultados melhores que outras ideias e pessoas. O povo chinês tem uma história de sofrimento extensa, especialmente pelo domínio japonês, mas também causada por seus próprios líderes, como Mao.

O fato é que há historiadores que dizem haver um sentimento de revanchismo muito grande da China em relação ao ocidente por conta do ópio e que eles nos consideram até hoje traficantes de drogas impiedosos. Não sei se isso é verdade, mas me preocupa muito a extensão e o sucesso dessa segunda rota da seda, pois os valores do Partido Comunista Chinês não são aqueles que nós concordamos.

O liberalismo de Nixon, em minha opinião, deveria ter sido mais bem controlado; não sou a favor do comércio a qualquer custo entre as nações pois valores básicos para o ocidente como liberdade e direitos humanos não são moeda de troca. A última vez que isso aconteceu não deu muito certo.

Na década de 30, Churchill estava no ostracismo político, mas enxergou o crescimento econômico e militar da Alemanha nazista e fez inúmeros alertas para o parlamento. Seus avisos foram ignorados em nome do que depois ficou conhecido como política do apaziguamento, ou seja, temos relações comerciais fortes com eles e não devemos nos meter no que eles fazem internamente. Deu no que deu.

A China necessita muito do Brasil. Somos, talvez, os maiores produtores de grãos do mundo e eles têm uma população gigante para alimentar. Mas é preciso cautela nessas relações. Estamos assistindo à embaixada chinesa falar grosso aqui dentro e se metendo em política interna como se tivessem esse direito e muitos políticos e jornalistas “progressistas” acham normal e exaltam a China. É preocupante que tenhamos hoje tanta dependência dos chineses no comércio internacional, pois denúncias afloram constantemente nos noticiários e

126 Parte 03

redes sociais. Vejamos algumas, que tenho certeza, você não concorda. No twitter de Rodrigo da silva @rodrigodasilva, encontrei todas essas afirmações, todas com suas respectivas fontes linkadas e, de lá, criei os parágrafos seguintes.

Casamento gay e adoção de crianças por casais LGBT não são permitidos na China e suas representações na mídia são proibidas por serem vulgares. A mera organização de protestos feministas leva à prisão e a violência contra a mulher é uma prática generalizada. Em 2016, Pequim buscou substituir professoras por homens na escola, para reafirmar a masculinidade. Ícones da cultura progressista ocidental - Beyoncé, Kate Perry, Lady Gaga, são censuradas na China pois são “vulgares”. Na China há a maior censura virtual do planeta, com o bloqueio de mais de 10 mil domínios, tudo de acordo com os valores do PCC.

Você não gosta de imperialismo, mas é exatamente disso que a China é acusada no Vietnã, Malásia, Tailândia, Camboja, Índia, Tibete, Austrália e outros. Igualdade social? Esqueça. Thomas Piketty, em seu último livro – que lá foi censurado - Capital e ideologia, relata uma desigualdade social no mesmo nível dos EUA. Há acusações de transplante de órgãos extraídos de presos, e a China mata mais prisioneiros todos os anos que o resto do mundo.

A liberdade religiosa não é respeitada e a ONU confirmou a existência de campos de concentração para muçulmanos, em Xinjiang, e essa região é o palco da maior política de discriminação racial desde o Terceiro Reich.

Igrejas são destruídas todos os anos e padres e pastores são presos apenas por evangelizar. O racismo contra negros na China é generalizado e eles não permitem que seus estudantes de intercâmbio para os EUA fiquem em residências de famílias negras. Em 2020, diplomatas de diversos países africanos protestaram contra esse racismo desenfreado.

127 Não MateM os Pardais

Direitos trabalhistas? Lá é famoso o seu sistema 996, que tem 12h de trabalho por dia, seis dias por semana. É trabalho escravo que fez o The Guardian publicar que “a escravidão nunca será história enquanto fecharmos os olhos para a China”.

Alemanha, Austrália, Canadá, Dinamarca, Finlândia, França, Holanda, Noruega e Suíça são os países que mais protegem os direitos humanos no mundo e todos eles já fizeram denúncias contra a China por abusos na ONU. Não é possível ignorar isso em nome do comércio internacional.

Vou finalizar pois já me estendi demais. Acho que consegui expressar meu pensamento sobre esse difícil tema. Claro que posso estar errado em muitos fatos e detalhes que coloquei aqui, caso esteja, por favor, me deixe saber. Mas, na essência, acho que pesquisei bem para lhe responder com responsabilidade. Meu intuito é o diálogo e o alerta para o que acho perigoso para o futuro de nossos jovens. Não pretendo mudar posição política de ninguém, principalmente eleitoral, pois julgo que o voto direto tem tantas variáveis envolvidas e são tão pessoais que discussões nesse sentido são totalmente inúteis.

Meu desejo é ampliar a visão histórica e estimular o pensamento próprio dos mais novos, para que não sejam conduzidos por professores, jornalistas e políticos mal preparados ou mal-intencionados.

Um grande abraço, minha querida, e caso eu realmente publique nossas cartas, você será minha convidada especial e, se assim desejar, vou deixar a última palavra para você, caso me escreva até a publicação.

Afetuosamente me despeço, sou seu eterno amigo e admirador.

Ermano

Recife, 19/09/2021.

128 Parte 03

Carta III ao meu amigo Ermano

Querido amigo, agradeço de antemão sua resposta, que chegou intensa, longa e certamente com a soma daquilo que lhe ocupou os pensamentos, além do esforço de suas pesquisas. Também lhe respondo com minhas limitações, de uma não historiadora, uma não economista, uma não filósofa, uma não socióloga, mas uma curiosa, reflexiva e teimosa, quase sempre “nadando contra a maré”, estando onde os que me cercam não estão. Lembro bem do Poema de Sete Faces, de Drummond, quando ele diz: “Vai Carlos! Ser gauche na vida...”. Acho que estou mais para isso, um sentimento de inadequação perene. Mas, sem nenhuma programação, aqui estou, expondo minhas opiniões a um amigo que estava ausente da minha convivência rotineira por quase 30 anos e que a vida com sua modelagem social parece ter esculpido em um formato político econômico distinto do meu, mas que é afeito ao debate, ao confronto de ideias e opiniões. Nasce mais uma carta a um espectador atento, que é você, mesmo sendo uma carta de conteúdo “torto”, tão desencontrado das suas ideias.

129 Não MateM os Pardais

Não se assombre com o comunismo, nem quando ele lhe pareça associado à força, à tirania, à perda de liberdade. Tudo isto está bem longe de você, nunca esteve perto. O país que você vive está a milhões de anos luz de qualquer vestígio do socialismo, neste momento mais do que nunca. Assombrada estou eu, com este mando atual, com este homem que agora ocupa a cadeira presidencial do nosso país. Nele enxergo a força da mediocridade, a tirania dos mentirosos, do discurso inflamado e rasteiro, próprio de quem não tem um projeto para esta grande nação.

Em seu terceiro parágrafo você diz: “quando os europeus descobriram a América, encontraram diversas comunidades indígenas onde não havia Estado, nem capital, apenas o homem em estado bruto (verdadeiro comunismo?)”. Neste parágrafo você tenta fazer a associação entre estes povos originários da América e seu modo de organização social como sendo uma “experiência comunista” e citando Carlos Rangel busca desfazer o mito do “bom selvagem”, citando o comportamento violento de membros das tribos. Não considero essa associação adequada do ponto de vista histórico. Não temos a exata informação sobre em que época essas tribos, comunidades, se estabeleceram. Ocuparam locais distintos no continente americano e é sabido que Incas, Astecas e Maias tinham organização social, divisão de tarefas, funções. Obviamente não havia a noção de Estado, nem de propriedade, mas havia uma organização em comunidade. Buscando associá-los a uma “experiência comunista”, você fundamenta a sua crítica ao comunismo sobre argumentos que não têm sustentação histórica.

Do ponto de vista da definição, o comunismo é um estágio posterior ao socialismo, quando, já havendo igualdade absoluta entre os cidadãos, o Estado poderia ser abolido. Na teoria marxista, o socialismo é uma etapa para se chegar ao comunismo. Embora Marx e Engels sejam apontados como os precursores do comunismo,

130 Parte 03

os ideais de uma sociedade igualitária podem ser encontrados desde o período da antiguidade clássica. Em uma de suas obras mais importantes, intitulada A República, Platão formula um modelo de sociedade ideal, baseada na extinção da propriedade privada e da família. Segundo ele, o fim da propriedade privada causaria o fim do conflito entre o Estado e o cidadão em particular.

Entre os séculos XII e XV, grupos dissidentes da Igreja Católica pregavam o repúdio à propriedade privada e aos bens materiais em geral, pregavam uma vida simples e comunitária, onde todos deveriam trabalhar e conviver em igualdade. Destacaram-se nessa corrente o abade Joaquim de Fiore, o franciscano frei Dolcino e o protestante Thomas Muntzer. Somente no século XIX, após a Revolução Industrial, é que se dá a transformação social e econômica dos países Europeus, com pleno desenvolvimento do capitalismo industrial e junto com ele os conflitos decorrentes da relação de desequilíbrio entre o trabalho e os meios de produção. Situado dentro do socialismo científico, o marxismo é uma corrente de pensamento criada por Marx e Engels. Para eles, em todas as épocas da história, a sociedade foi marcada por uma luta de classes. Propuseram a abolição da propriedade privada, a socialização dos meios de produção, o fim da divisão de classes e a abolição da exploração do trabalho. Diferente da sua citação, eles não instituíram a luta de classes, eles a descreveram e criaram uma teoria de contraposição a ela. Marx por sua vez teve enorme influência intelectual de Hegel, um dos mais complexos e incríveis filósofos de todos os tempos. Fica claro que o processo de desenvolvimento humano é perpassado por correntes filosóficas que se antagonizam e às vezes se complementam. Avaliar o pensamento filosófico sob a ótica do bem versus o mal é reduzir este debate intelectual a um plano altamente inferiorizado.

131 Não MateM os Pardais

Para se contrapor à filósofa pernambucana Natália Sulman, cito o também jovem pernambucano, historiador e filósofo Jones Manoel. Para se contrapor ao filósofo Eric Voegelin, cito o historiador e pesquisador Domenico Losurdo, com especial destaque para seu livro: Fuga da História?

O desenvolvimento do capitalismo passou por várias fases, perpassando séculos: capitalismo comercial, industrial e financeiro (que é o momento atual). No meio do caminho crises existiram, muitas delas geradas por ele mesmo. Adam Smith, teórico do liberalismo econômico, acreditava que os mercados teriam a sabedoria de encontrar o ajuste perfeito, através da relação entre oferta e demanda. Era defensor do Estado mínimo e da quase ausente participação do Estado nas questões econômicas. Até chegar 1929 e o capitalismo experimentar sua primeira grande crise econômica, com a quebra da bolsa de valores dos EUA. Para salvar o mercado, o Estado teve que intervir na economia. O liberalismo econômico começa a ser questionado e os Estados passam a intervir nas economias. A partir de então adotou-se o sistema econômico Keynesiano (John Maynard Keynes, economista britânico, 1883-1946), que defendia a intervenção do Estado na economia para evitar crises e garantir o consumo e o emprego. Esse sistema é também chamado de Welfare State, ou Estado de bem-estar social.

A partir dos anos 1980, o keynesianismo perde forças e a ideia de Estado mínimo e pouca participação estatal na economia retorna. Assim como os liberais, os defensores do neoliberalismo defendem que as próprias regras do mercado vão garantir o crescimento econômico e o desenvolvimento social.

Em 2008, nova grande crise do capitalismo financeiro, com a quebra de bancos e instituições financeiras nos EUA, como o Banco Lehman Brothers, Bank of America, AIG e outros, através de bolhas imobiliárias via

132 Parte 03

empréstimo a pessoas físicas sob hipotecas. Esta quebra de bancos estendeu-se pela Europa. E novamente o Estado teve de intervir. Abaixo, o discurso do presidente George Bush:

Eu acredito muito na livre iniciativa, por isso o meu instinto natural é se opor à intervenção do governo. Eu acredito que as empresas que tomam más decisões devem sair do mercado. Em circunstâncias normais, eu teria seguido esse curso. Mas estas não são circunstâncias normais. O mercado não está funcionando corretamente.

O Tesouro Americano e os bancos europeus injetaram trilhões de dólares para salvar essas instituições financeiras e, ao final, os bancos – principais responsáveis pela crisemantiveram os grandes lucros que conseguiram nos tempos de bonança e, quando o prejuízo veio, este foi socializado para a população. Afinal de contas está provado que a socialização para o “chão de fábrica” precisa ser somente dos prejuízos (risos!!). Com o final da Guerra Fria, o capitalismo é o grande vitorioso como sistema hegemônico.

E chegamos ao momento atual, caracterizado pela globalização e pelos avanços nas tecnologias de informação, na aceleração e crescimento dos fluxos de informações, pessoas, capitais e mercadorias.

Naturalmente que já se percebeu que o sistema capitalista é também dotado de imperfeições e por sua característica natural de buscar o lucro desenfreado e infinito, como nos diz o sociólogo alemão Wolfgang Streeck (Diretor Emérito do Instituto Max Planck na Alemanha), em suas publicações:

O capitalismo tem evoluído permanentemente desde seu início, assumindo constantemente novas formas: novas tecnologias, nova organização do trabalho, novos regimes financeiros, mudança nas relações com o Estado e a democracia etc... o que não mudou foi sua natureza fundamental: uma economia política guiada por uma compulsão intrínseca pela acumulação sem fim de capital privado capaz de gerar mais capital privado.

133 Não MateM os Pardais

Falemos um pouco sobre a Escandinávia. Lá temos o que de melhor há no mundo sobre IDH, renda percapita, segurança, bem-estar social, investimento maciço em educação e políticas públicas eficazes. Não é por existir nela países em que há uma monarquia parlamentarista, ou ausência de monarquia e somente parlamentarismo. É por investimento maciço do Estado em políticas públicas, principalmente saúde e educação. É o Estado que regulamenta, que intervém, que arbitra. Seus cidadãos pagam quase 60% de imposto de renda e não se sentem infelizes por isso. Diversas pesquisas corriqueiramente apontam um ou outro país escandinavo entre os mais felizes do mundo.

Esse enorme ganho de qualidade de vida não veio do nada. Na Noruega, por exemplo, a criação do Fundo Soberano Norueguês foi um divisor de águas. O governo norueguês criou o referido fundo a partir dos lucros auferidos com a exploração do petróleo, gás natural, mineração e tudo o mais que seja extraído do solo ou dos seus mares. Esse fundo atualmente é o mais importante e capitalizado do mundo. Seus trilhões são investidos em diversas empresas no mundo todo, com o objetivo de garantir a seguridade social dos seus habitantes, tanto que um bebê norueguês, ao nascer, já tem um patrimônio de 260.000 dólares. Já nasce rico! Portanto não é somente a liberdade econômica ou a facilidade em abrir uma empresa que determina os excelentes índices de bem-estar social na Escandinávia, é a cultura do povo e o alinhamento de políticas públicas com forte participação estatal que garante estes índices. Aqui no Brasil, em governos que você não aprova, foi tentada a criação de fundo semelhante a partir das riquezas do pré-sal. Criou-se o modelo de partilha da Petrobras, onde os lucros auferidos da exploração destas reservas seriam convertidos em recursos para a educação, garantindo financiamento dela por inúmeras gerações. Mas, isso não agradou aos donos do capital

134 Parte 03

aqui nas nossas terras. A presidente foi destituída do cargo, sem crime compatível para a perda do mesmo, o modelo de partilha foi quebrado e nosso Congresso aproveitou o ensejo, no governo Temer, para aprovar aquela PEC inacreditável, a PEC 55, que congelava os investimentos públicos por inacreditáveis 20 anos!!!! De quebra, seguiu-se a reforma trabalhista e a da previdência. Esta última foi primorosa em sentenciar que o trabalhador pouco privilegiado deveria trabalhar até o fim da vida. Em contrapartida, não se mexeu uma vírgula nas aposentadorias especiais. E, vez por outra, na grande mídia, ouvimos o burburinho de privatização da Petrobras.

As grandes e desenvolvidas nações sabem a importância estratégica de se ter uma matriz energética forte e de se ter autonomia energética. Por aqui, o pensamento é entregar a Petrobras para as petroleiras internacionais! É inacreditável! E você escreve: “O papel do Estado encolhe no mundo todo espontaneamente, como se fosse uma seleção natural e quem faz o sentido inverso tende a colapsar”. Sou compelida a discordar de você!

Atualmente a nação que se encaminha para assumir a dianteira no mundo tem no Estado forte e regulamentador uma importância vital. Falo da China, com sua incrível capacidade organizacional e uma economia descrita pelo Prof. Elias Jabbour como uma economia do projetamento. Os ciclos de crescimento são devidamente projetados, estudados, planejados por um Estado que tenta equilibrar o desempenho e liberdade das empresas com a necessidade da Nação e dos seus habitantes. É incontestável o salto ocorrido na China após a Revolução de 1949. Libertando-se do domínio colonial a que foi submetida por séculos, mudou sua rota, com mudança do seu sistema político e foco em crescimento e autonomia, tornou-se a gigante nação de hoje.

Porém, o período que antecedeu a Revolução Chinesa

135 Não MateM os Pardais

foi de grande humilhação para o povo chinês. A Guerra do Ópio impôs à China um alto preço no tocante à sua autonomia e liberdade como nação. O governo chinês não queria a comercialização da droga entorpecente e viciante promovida pela Grã-Bretanha, vindo a proibir o comércio da mesma. Em 1839, os ingleses declaram guerra à China, com um conflito que culminaria na assinatura dos Tratados de Nanquim e Tianjin, marcando na China a fase do Imperialismo Inglês, quando a China perdeu Hong Kong por 100 anos e foi subordinada às potências ocidentais, que exigiam dela abertura ao livre mercado. Em 1860, o oficial inglês Lord Elgin e suas tropas tomam a capital Pequim e, com a ajuda dos franceses, incendeiam o Palácio do Imperador. As consequências da Guerra do Ópio foram a presença dos ingleses no oriente e a abertura dos portos chineses para a entrada de produtos estrangeiros. A Ilha de Hong Kong pertenceu à Grã-Bretanha até 1997, quando foi devolvida aos chineses. Dava-se início à colonização da Ásia pelas nações europeias que desenvolviam seus parques industriais e necessitavam de matéria prima barata e mercado consumidor.

A partir daí, a China passa por sucessivas intervenções de nações estrangeiras (Japão, Alemanha, França, Inglaterra, Rússia) e se manteve sem autonomia e com supressão territorial até sua revolução, em 1949. E foi a partir dela que a China recuperou sua autonomia territorial e política. Sei que causa certo desconforto aos liberais do mercado constatar que uma revolução cujas bases foram a doutrina socialista possa ter dado certo. Mas ela está aí, portentosa, rica e assumindo a dianteira mundial. Você coloca que lá não há liberdade, que o PCC a tudo e todos controla. Certamente há grandes contradições e vários dos seus argumentos são coerentes. Entretanto, enquanto esta nação esteve sob o mando imperialista, também não tinha liberdade e os interesses do comércio internacional capitaneado pelos ingleses

136 Parte 03

é que ditavam as regras. Note, há frequentemente contradições! Percebo no tratamento que é dado pela imprensa ocidental à China que há um viés ideológico. O que é difícil de engolir é o fato de uma experiência socialista ter dado certo.

Você dedica parte grande da sua carta a tratar do continente americano. Com um levantamento histórico detalhado e boa pesquisa, você coloca sua visão histórica enriquecida de muitos detalhes e fatos históricos. Só me resta fazer o contraponto, afinal, esse é um debate escrito (risos!). Da maneira como você coloca seus argumentos, percebo que considera que tivemos (toda a América Latina) um grande azar em termos sido colonizados por países de língua neolatina (francês, português e espanhol), ao invés das potências do extremo norte da América que foram colonizadas por países de tronco linguístico germânico (inglês e holandês). Parece que tivemos azar mesmo (risos!!), é incontestável a qualidade de vida e desenvolvimento econômico dos EUA e Canadá. Mas isto se deu não pelo modelo político adotado e sim pelo formato de colonização. A América Latina teve sua colonização pautada pela exploração, ao contrário da América Anglosaxônica, cujo modelo foi de povoamento. Aos primeiros restaram a expropriação desmedida e saque das riquezas encontradas em benefício das nações colonizadoras. Aos segundos, o povoamento, o desenvolvimento da riqueza e permanência da mesma no lugar, a fixação dos núcleos familiares e posse da terra. O resultado desta diferença é que os países latino-americanos herdaram desse período um grande atraso socioeconômico que se reflete até os dias atuais. Fica claro que os fatores determinantes para o desenvolvimento ou subdesenvolvimento dos países americanos está ligado a fatos históricos. A estas questões históricas somaram-se outros percalços que vêm contribuindo para o subdesenvolvimento da América Latina. A questão do espaço rural merece um destaque. Grande concentração latifundiária e enorme disparidade

137 Não MateM os Pardais

tecnológica entre as terras agriculturáveis. Pequenas e médias propriedades rurais produzem alimentos para o mercado interno, com baixa produtividade e grande atraso tecnológico. Os grandes latifúndios ou são improdutivos ou têm uma agricultura de grande eficiência e tecnologia, mas voltada ao mercado externo. Este formato agrário é responsável por conflitos de há muito tempo, gerando êxodo rural, favelização das grandes metrópoles, violência no campo.

Você dedica um parágrafo à Argentina e já foi motivo de uma coluna sua escrita para o Diário de Pernambuco. Sua argumentação reside principalmente em culpar o peronismo por toda desgraça argentina. Não tenho conhecimento algum sobre a Argentina, mas pela necessidade dessa nossa conversa fui em busca de algumas fontes. Li uma tese de uma pós-graduanda da UFRGS (Maria Helena Lenz) e uma matéria de Enric González para o El Pais. A questão argentina é muito mais complexa que a associação linear sugerida por você em relação ao peronismo. Pelo que li, foi um país que optou por produzir com foco no mercado interno, bastante desacoplado do comércio internacional, com uma alta produção agrária, mas com grandes problemas de logística e baixa infraestrutura. Sofreu cinco mudanças de moeda e convive com inflação elevada, às vezes hiperinflação. Não se industrializou e vende sua produção essencialmente para o mercado interno. Além de ser devedor de grande porte do FMI. Foram rumos tomados pelo país, que antecedem o governo de Juan Peron.

Chego ao fim de mais uma “carta”, agora com certa precaução na colocação das ideias, afinal meu interlocutor está se tornando um cronista prestigiado em Pernambuco e pretende publicar nossos escritos (risos!).

Finalizo com uma espetacular entrevista concedida pelo Prof. Antônio Cândido (crítico literário, sociólogo e um dos grandes intelectuais do Brasil), concedida em

138 Parte 03

julho de 2011 ao Jornal Brasil de Fato. Tive a sorte de me lembrar desta entrevista e consegui encontrá-la.

Transcrevo abaixo um pequeno trecho dela:

O senhor é socialista?

Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na Revolução Industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na Ideologia Alemã: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia, porque virou

139 Não MateM os Pardais

capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo é caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa da luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do socialismo.

Um grande beijo, Dinorá Bezerra.

Atibaia, 21/11/2021.

140 Parte 03

Epílogo

Discussão, etimologicamente vem do latim discussio que significa “sacudidela, abalo, investigação, exame” e o verbo discutere que quer dizer, originalmente, “destacar agitando” como nos ensina o dicionário de Zingarelli. Esse foi o objetivo da publicação dessas cartas, uma provocação praticamente inexistente há 30 anos, mas que o acesso a informações de várias fontes tornou possível a contestação da narrativa predominante no Brasil.

Muita coisa ficou de fora, como por exemplo a Revolução Russa e o assassinato de mais de 50 milhões de pessoas por Stálin, o Holodomor na Ucrânia, a Revolução Cubana, a Guerra da Coréia, a Guerra Fria e a geopolítica assustadora atual com escalada autoritária da ChinaRússia contra o ocidente. Só isso seria um outro livro, mas acho que o recado foi dado tanto por mim como por Dinorá Bezerra e agora cada um que siga adiante com os seus estudos, se assim o desejar.

Uma ótima fonte de conteúdos de alto nível em todas as disciplinas que abordamos aqui e muitas outras encontra-se disponível no site e no aplicativo da Brasil Paralelo, que recomendo fortemente aos interessados em outro modo de ver a história do Brasil e do mundo. Mas devemos encerrar por aqui.

Como prometido à minha amiga, deixei a última palavra com ela. Não apenas como sinal de respeito e gratidão, mas também porque acho que já esgotamos esse assunto e se continuássemos seria repetitivo mais do que já foi e, como dito anteriormente, o objetivo nunca foi mudar a opinião de quem já tem seu imaginário formado, mas sim, ajudar aos que ainda estão em formação. Terminamos com a promessa de debatermos

141 Não MateM os Pardais

outros assuntos e ideias, pois só temos a ganhar com isso.

Muito obrigado pela oportunidade querida Dinorá!

Muito obrigado aos que prestigiaram essa pequena obra!

Se o tempo e o nosso bom Deus me permitir, pretendo escrever algo mais no futuro, talvez realizar o sonho e o atrevimento de algumas páginas sobre Sir Winston Churchill, em minha opinião, o maior personagem do século XX.

Abraços.

142 Parte 03

Formato do Livro: 13,8x20,7 cm

Tipografias utilizadas

Zen Antique 26/31,2 (títulos)

Vesper Libre 11/12,5 (corpo do texto)

Vesper Libre 8/9,6 (fólio)

BLACK 100 BLACK 60 BLACK 30

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.