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Gabriella Muniz Cabral* O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: O CASO MARIA DA PENHA E O ACESSO INTERNACIONAl à jUSTIÇA AMPlA THE INTER-AMERICAN SYSTEM FOR THE PROTECTION OF HUMAN RIGHTS: THE MARIA DA PENHA CASE AND THE bROAD INTERNATIONAl ACCESS TO jUSTICE El SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTECCIÓN DE lOS DERECHOS HUMANOS: El CASO DE lA lEY MARIA DA PENHA Y El ACCESO INTERNACIONAl A lA jUSTICIA AMPlIA

Resumo: A partir da análise da história de Maria da Penha Fernandes, que significou um importante precedente para as lutas em defesa dos direitos das mulheres em toda a região americana, busca-se averiguar a ideia de justiça que é construída no âmbito dos direitos humanos e viabilizada pelo Sistema Interamericano. Da pesquisa documental e bibliográfica, principalmente Piovesan, Cançado Trindade e Bobbio, verificou-se que o sistema regional, mais do que solucionar casos concretos em caráter subsidiário, impulsiona mudanças estruturais no ordenamento jurídico dos Estados, como no Brasil. Tais mudanças são imprescindíveis ao acesso à justiça, porém, não com a lógica de caso concreto, porquanto individual, mas ampla, uma justiça dos direitos humanos porque produtora de mudanças sociais, coletivas, jurídicas e políticas. Abstract: From the analysis of the story of Maria da Penha Fernandes, which meant an important precedent for the struggles in defense of women's rights throughout American region, we seek to investigate the idea of justice that is built within the framework of human rights and viable the Inter-American System. Documental and bibliographic research,

* Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

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especially Piovesan, Cançado Trinidad and Bobbio, it was found that the regional system, rather than solving concrete cases subsidiary nature, drives structural changes in the laws of states, as in Brazil. These changes are essential to access to justice, but not with the logic of the case, since individual, but wide, a righteousness of human rights because it produces social, collective, legal and political changes. Resumen: Del análisis de la historia de Maria da Penha Fernandes, que significó un importante precedente para las luchas en defensa de los derechos de las mujeres a lo largo de América, se busca investigar la idea de justicia que se construye en el marco de los derechos humanos y se torna viable en el Sistema Interamericano. En la pesquisa documental y de la investigación bibliográfica, especialmente Piovesan, Cançado Trindade y Bobbio, se percibió que el sistema regional, en lugar de resolver casos concretos en carácter subsidiario, impulsa cambios estructurales en las leyes de los países, como en Brasil. Estos cambios son esenciales para acceder a la justicia, pero no con la lógica del caso concreto, pese a que sea individual, pero amplia, una justicia de los derechos humanos, ya que produce cambios sociales, colectivos, jurídicos y políticos. Palavras-chaves: Brasil, mulher, violência. Keywords: Brazil, woman, violence. Palabras clave: Brasil, mujer, violencia.

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INTRODUÇÃO Embora muito se saiba sobre a repercussão da lei n. 11.340/2006, intitulada de “lei Maria da Penha”, mínimo parece ser o esclarecimento sobre o contexto de produção legal e sobre como se efetivou o processo de acesso à justiça no caso da Sr.ª Maria da Penha. Um dos maiores impulsos para essa inovação legislativa, entre tantas outras mudanças estruturais, é oriundo do Direito Internacional, mais precisamente do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIDH). A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CmIDH) é um órgão do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIDH). No seu âmbito, foi conhecido o caso “Maria da Penha versus brasil”, no qual o Estado foi responsabilizado como negligente, omisso e tolerante em relação à violência doméstica contra a mulher – situação que acabou por impulsionar medidas efetivas para imediatas mudanças. O caso envolve, portanto, violência, gênero e preconceitos advindos de suas questões, inclusive de ordem estatal por omissão. É um caso emblemático da história do sistema regional, abrindo caminho à busca da justiça em caso de falha pelos Estados. Problematizam-se, então: como se deu o contexto de produção legal e de acesso à justiça no caso da Sr.ª Maria da Penha? E que ideia de justiça está presente nessa relação entre o Direito nacional e o Direito internacional (regional)? busca-se afirmar, tendo como pano de fundo o caso Maria da Penha versus brasil, o Sistema Interamericano como uma eficiente via de acesso subsidiário à justiça de caráter amplo, coletivo, político. A pesquisa analisou a compreensão da CmIDH acerca do referido caso e refletiu sobre a via do Sistema Interamericano como instrumento de proteção subsidiária dos direitos fundamentais, além de conhecer e divulgar o SIDH como considerável via de acesso à justiça, a uma justiça mais ampla, que não se resume à satisfação apenas do indivíduo, mas a uma vitória do ser humano como coletividade. Para tanto, foi realizada uma pesquisa documental baseada em ponderações da Comissão acerca da “lide”, além da contribuição de estudiosos da temática de direitos humanos que auxiliaram no alcance dos objetivos propostos, principalmente os pensamentos de Flávia Piovesan 111


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(e suas considerações jurídicas sobre o acesso à justiça internacional, mormente frente ao sistema regional na América), de Cançado Trindade (a partir de uma visão experiente do SIDH) e de Norberto bobbio (com suas considerações sobre sistema internacional). Informações relativas ao brasil serão apresentadas, de forma a demonstrar que a atuação do Sistema Interamericano na defesa dos direitos humanos não está distante, necessitando, porém, ser mais difundida, de modo que a justiça não se limite ao monopólio do direito interno e que seja intensificada a responsabilidade internacional dos Estados.

A HISTÓRIA DE MARIA DA PENHA1 A Sr.ª Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica por profissão, durante os diversos anos de convivência com seu marido, o Sr. Marco Antônio Heredia Viveiros, com quem teve três filhas, havia sido vítima de violência doméstica na cidade de Fortaleza (CE), onde viviam. Em 29 de maio de 1983, ela sofreu, além de outras diversas agressões, uma tentativa de homicídio, sendo contra si disparado um revolver enquanto dormia. Em decorrência desse fato, ela teve que se submeter a diversas cirurgias, as quais não a impediram de ficar paraplégica, de forma irreversível, e de adquirir outros traumas de ordens física e psicológica. O Sr. Marco Antônio havia procurado encobrir o acontecido alegando aos vizinhos que ladrões teriam entrado em sua casa, roubado bens e agredido o casal antes de fugirem. Ainda em recuperação, dias após a primeira vez, foi novamente vítima de outro atentado por parte do seu marido, que tentou eletrocutá-la durante o banho. Esse segundo momento foi o estopim para a separação conjugal, que somente não acontecera antes pelo temor das consequências violentas a que poderia dar origem. Desde a tragédia, Maria da Penha se via em situação de

A história da Sr.ª Maria da Penha Maia Fernandes pode ser conhecida por meio do livro que escreveu, intitulado “Sobrevivi... Posso contar”, pela Editora Armazém da Cultura.

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dependência de enfermeiros e de tratamentos físicos que geraram grandiosas despesas, além da compra de medicações, não recebendo qualquer auxílio financeiro por parte do agressor. O Ministério Público, baseado nas investigações e em provas robustas, apresentou denúncia contra o Senhor Viveiros2, de origem colombiana, em 28 de setembro de 1984. Mas, apesar de todo o conjunto probatório que o levava à autoria dos crimes, o processo só alcançou uma decisão em 4 de maio de 1991, condenando-o a quinze anos, resumidos a dez, posteriormente, em razão de não haver condenação prévia. Após mais três anos passados, em 4 de maio de 1995, a decisão do Tribunal do júri foi anulada em razão de apelação (extemporânea frente ao artigo 479 do Código de Processo Penal), por supostos vícios nas perguntas aos jurados. Em 1996, realizou-se um segundo julgamento pelo júri, havendo uma condenação de dez anos e seis meses de pena privativa de liberdade. Tal decisão também foi objeto de recurso de apelação por parte da defesa, aguardando o réu, como todo o tempo processual, em liberdade. Então, indignada com a impunidade evidente por anos sem uma decisão definitiva ao caso, correndo o risco da ocorrência de prescrição do crime (o que deveria ocorrer dali a cerca de mais cinco anos), ela recorreu à justiça internacional. Apresentou petição, em 20 de agosto de 1998, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, juntamente com o Centro pela justiça e pelo Direito Internacional (CEjIl) e pelo Comitê latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (ClADEM).

O SIDH E A COMISSÃO INTERAMERICANA O primeiro instrumento internacional de direitos humanos de caráter geral aprovado foi a Declaração Americana de Direitos e 2 Para conhecer a sua versão dos fatos, vide entrevista concedida à Istoé, em 2011. Revista Istoé, n.2150, jan. 2011. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/121068_A+MARIA+DA+PENHA+ME+TRANSFORMOU+NUM+MONSTRO+% 3E>. Acesso em: 20 set. 2013.

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Deveres do Homem, em abril de 1948, em bogotá, em um período pós-guerra (Segunda Guerra Mundial, 1939-1945). O documento antecipou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada apenas oito meses depois. Sem dúvidas, um grande marco desse Sistema Interamericano de Proteção foi a aprovação, no dia 22 de novembro de 1969, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ou Pacto de San josé da Costa Rica), na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em São josé, na Costa Rica. A CADH, que trata de direitos civis e políticos, entrou em vigor em 18 de julho de 1978, quando, na forma do § 2º de seu artigo 74, ao menos onze Estados depositaram os seus respectivos instrumentos de ratificação ou de adesão. Ao seu lado, e não menos importante, está o Pacto de San Salvador, que, como protocolo adicional à Convenção Americana, trata dos direitos econômicos, sociais e culturais. O brasil depositou sua carta de adesão à Convenção Americana somente em 25 de setembro de 1992, promulgada por meio do Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992, afirmando ali o dever de cumprimento de seu inteiro teor, possuindo atualmente status de norma supralegal no direito interno, assim como a Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher, ratificada pelo Estado em 1995.

Fonte: Produção própria, com datas disponíveis no site oficial da CmIDH (http://www.oas.org/pt/cidh) e imagens de domínio público resgatadas da internet.

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Aliás, com vistas a ilustrar o compromisso do brasil com os principais documentos do Sistema Interamericano, foi construída a ilustrativa linha do tempo ao lado, pautada pelas datas de depósito dos instrumentos de adesão e ratificação pelo Estado brasileiro. O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIDH) funciona, basicamente, com dois órgãos: a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos, competentes para conhecer violações a direitos e garantias fundamentais. À Corte são remetidos casos que, levados pela Comissão Interamericana (CmIDH) ao crivo do Tribunal, têm por base o descumprimento de qualquer das disposições do Pacto de San josé da Costa Rica por parte de um dos Estados que assinaram tal tratado. Como a competência da Corte possui natureza subsidiária, sua atuação somente é possível, no caso concreto, quando a questão que embasa o litígio já tenha sido apreciada pelo Estado, de forma a esgotar a discussão no âmbito do direito interno, ou mesmo quando a inércia ou mora estatal já infringe qualquer das referidas disposições. já a Comissão Interamericana, órgão encarregado da promoção e da proteção dos direitos humanos no continente americano, é o competente para receber denúncias de violação a normas do Pacto de San josé da Costa Rica por parte das pessoas cujos direitos foram negados, parcial ou totalmente. Conforme informações disponíveis no site da OEA (2013), foi criada em 1959, mas apenas a partir de 1965 foi autorizada a proceder ao recebimento e ao processamento de denúncias de violação aos direitos fundamentais. Desde então, foram vários milhares de petições recebidas e boa parte delas processada, embora não possua competência jurisdicional. Sediada nos Estados Unidos (Washington, D.C.), é formada por sete juízes dentre pessoas de reputação ilibada e de notável saber jurídico na área de direitos humanos, com exercício limitado a quatro anos, cabendo única recondução, eleitos pela Assembleia Geral da OEA a partir de lista tríplice apresentada pelos Estados-partes. Embora não possua competência jurisdicional, é, em regra, obrigatória sua análise prévia para o posterior encaminhamento à Corte Interamericana, como condição de procedibilidade de tramitação. É importante ressaltar que essa via pode ser alcançada, além dos Estados, por quaisquer pessoas, grupo de pessoas ou organizações não governamentais (reconhecidas por Estados da OEA), desde que 115


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alegue(m) violações a direitos protegidos nas Convenções ou na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Atendidos os requisitos, a peça inicial é recebida, sendo a ela atribuído um número pela Comissão, que começa a processá-lo como um “caso”.

O CASO N. 12.051 – MARIA DA PENHA VERSUS BRASIl Recebida a petição em 20 de agosto de 1998, a Comissão, então, admitiu a peça, reconhecendo sua competência. já em 1º de setembro do mesmo ano, acusou o recebimento aos demandantes, informando-lhes que havia sido iniciada a tramitação do caso. A partir daí, passou a verificar as alegadas violações de direitos às garantias judiciais e à proteção judicial em prejuízo da Sr.ª Maria da Penha. São os seguintes os requisitos de admissibilidade para que ocorra o processamento das denúncias: 1) esgotamento dos recursos da jurisdição interna (artigo 46, 1, a, da CADH) – embora não tenha havido decisão definitiva no Direito brasileiro, conforme previsão do artigo 46, 2, c, da CADH, houve atraso injustificado na decisão dos recursos internos, não se aplicando tal requisito. É de se ressaltar que ao atraso soma-se a iminente prescrição dos crimes cometidos, implicando uma possível e indevida impunidade; 2) prazo para apresentação (artigo 46, 1, b, da CADH) – a petição deve ser sempre apresentada em até seis meses após a data em que tenha sido notificado(a) o(a) interessado(a) da sentença final produzida pelo direito interno do Estado – requisito que também não se aplicou, uma vez que não houve decisão irrecorrível, entendendo a Comissão que à petição do caso n. 12.051 foi cabível essa exceção, mas, de qualquer forma, compreendeu que houve apresentação dentro do prazo razoável; 3) ausência de duplicação de procedimentos, atendida pelo fato de inexistir o processamento dos mesmos fatos perante outra instância internacional; 4) competência e admissibilidade – finalmente, houve conclusão positiva sobre esses requisitos especificamente previstos, não apenas na CADH, mas também pela Convenção de belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, de 9 de junho de 1994). 116


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A partir de então, documentos foram analisados para fortalecer o arcabouço probatório, resultando no reconhecimento pela CmIDH de que o brasil não tomou efetivamente as medidas necessárias para processar e punir o autor das agressões contra a integridade física e a vida da Sr.ª Maria Fernandes, por mais de quinze anos, com riscos até de prescrição do jus puniendi e impossibilidades de qualquer tipo de ressarcimento devido. Em seu relatório, a Comissão também reconheceu que não se tratava de um caso isolado, mas de um exemplo da reiterada ineficiência da justiça brasileira em investigar e punir a violência doméstica contra a mulher, chegando a declarar que grande parte das inúmeras denúncias referentes a esse tipo de violência no país não alcançava os tribunais e que somente em pouquíssimos casos alcançava-se a punição dos agressores, apesar da concreta obrigação internacional do Estado de prevenir e punir a violência contra mulher. Além disso, apontou para o fato de que a maior parte dessas agressões e homicídios serem cometidas por seus companheiros ou conhecidos e para o fato de que há um padrão discriminatório de tolerância estatal frente à ineficácia da ação judicial implementada. Para o lado do brasil, de certa maneira, pesavam algumas medidas positivas, citadas exemplificativamente pela Comissão no referido relatório, relativas à criação de delegacias especializadas da mulher, à criação de casas de refúgio para atendimento a mulheres agredidas e à invalidação pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 1991, do conceito de “defesa da honra” como justificativa de crime contra elas. Por fim, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos concluiu que o brasil, no caso n. 12.051, infringiu, em prejuízo da Sr.ª Maria da Penha, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8º e 25 da CADH), faltando com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos de seus jurisdicionados (artigo 1º, 1, da CADH, artigos II e XVII da Declaração) e o artigo 7º da Convenção de belém do Pará. No segundo mês seguinte ao recebimento da petição, a CmIDH começou a enviar ao brasil documentos de notificação, solicitação de esclarecimentos cabíveis e até mesmo a informação de sua disponibilidade para uma possível solução amigável (dias 19 de outubro de 1988, 4 de agosto de 1999 e 7 de agosto de 2000, respectivamente), sem qualquer resposta do Estado até o ano 2000. Frente ao silêncio estatal, foi a ele aplicado o artigo do Regulamento 117


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da Comissão que reza pela presunção de veracidade dos fatos relatados na petição. Houve uma série de recomendações ao brasil no sentido de proceder a uma persecução penal efetiva (“séria, imparcial e exaustiva”), com vistas a determinar e punir o agressor que atentou contra a vida da peticionária, além da reparação justa e rápida da vítima. Recomendou-se também implementar uma investigação sobre quaisquer fatos ou agentes do Estado que tenham contribuído para a mora no processamento do caso e a adoção de medidas nacionais aptas a eliminar esse tipo de crime. Em março de 2001, em conformidade com o artigo 51 da Convenção, o relatório final foi, então, enviado ao brasil para cumprimento das recomendações estabelecidas, em um prazo de três meses, mais uma vez sem sucesso. A partir de então, a todas as informações do caso foi dada publicidade, incluindo-as no Relatório Anual da Assembléia Geral da OEA referente ao ano 2000. O Sr. Marco Antônio Heredia Viveiros, aproximadamente seis meses antes de os crimes prescreverem, foi, finalmente, preso, em 2002, cumprindo apenas cerca de dois anos da pena de prisão aplicada em regime fechado, quando progrediu para o cumprimento da pena em regime aberto. Paralelamente a isso, iniciou-se no país a intensificação de discussões sobre a proposta de alterações legislativas elaboradas por um consórcio de Organizações Não Governamentais (ADVOCACY, AGENDE, CEPIA, CFEMEA, ClADEM/IPÊ e THEMIS) contra a violência doméstica em face da mulher. Após reformulações coordenadas pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (Governo Federal), foi transformado em Projeto de lei, havendo a realização de diversas audiências públicas (MP/CE, 2013). Após unânime aprovação, o brasil promulgou, em 7 de agosto de 2006, a lei n. 11.340, intitulada lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo em vista o § 8º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. A lei também criou os juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e trouxe alterações mais rigorosas ao Código 118


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de Processo Penal, ao Código Penal e à lei de Execução Penal do ordenamento jurídico brasileiro. Em vigor a partir de setembro do mesmo ano, ampliou o rol de violências para além da física e da sexual, incluindo, por exemplo, as violências psicológica, patrimonial e relativas a assédio moral, extinguiu penas de pagamento de cestas básicas e também fez com que os crimes dessa natureza fossem tratados como de menor potencial ofensivo. Atualmente, como se sabe, a lei tornou-se um símbolo de vitória para as muitas mulheres que sofrem o medo e a realidade da agressão familiar. Apesar de a lei não ser solução para todos os problemas, seu surgimento foi essencial para um maior amadurecimento do Estado e da sociedade sobre as questões que aborda, dando força ao contínuo processo de construção permanente de respeito e de proteção à mulher.

A VIA INTERAMERICANA DE ACESSO à jUSTIÇA AMPlA – REFlEXÕES Compreendendo que os direitos humanos não advêm de sua mera nacionalidade, mas sim da condição humana que lhe é inerente, faz-se a proteção internacional presente e necessária. Nesse sentido, Cançado Trindade3 – em seu artigo intitulado “A consolidação da capacidade processual dos indivíduos na evolução da proteção internacional dos Direitos Humanos” (2002) – afirma que os diversos instrumentos internacionais pressupõem que os direitos humanos protegidos são inseparáveis das pessoas, sendo, portanto, anteriores e superiores à figura estatal. E ressalta: “estes instrumentos [do Direito Internacional] têm sido postos em operação no entendimento de que as iniciativas de proteção de tais direitos não se exaurem - não podem se exaurir - na ação do Estado”. Nesse mesmo sentido, Norberto bobbio (1992, p. 1) expõe que “[...] o processo de democratização do sistema internacional [...]

Antônio Augusto Cançado Trindade, jurista brasileiro, é, atualmente, membro do Tribunal Internacional de justiça (2009-2018) e foi juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, entre 1994 e 2008.

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não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimento e da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado”. É necessário que se reconheça, então, o mérito dos sistemas de direito internacional, que, em uma história recente de pósguerras e de atrocidades delas advindas, deram grandes passos inaugurais em 1948, sendo embriões para o surgimento da criação dos sistemas regionais de proteção. Esses sistemas regionais (Interamericano, Europeu e Africano, atualmente) visam, ao que parece, longe de defender o universalismo absoluto, criar standards mínimos de direitos a serem amparados, em um cuidado mais sensível às peculiaridades culturais de cada região, se comparados ao sistema global. Assim, eles vêm apresentando, juntamente com o sistema global, resultados consideráveis em suas atuações. É o que aduz Cançado Trindade (2002), na obra já mencionada: Graças aos esforços dos órgãos internacionais de supervisão nos planos global e regional, logrou-se salvar muitas vidas, reparar muitos dos danos denunciados e comprovados, adotar ou alterar medidas legislativas, pôr fim a práticas administrativas violatórias dos direitos garantidos, alterar medidas legislativas impugnadas, adotar programas educativos e outras medidas positivas por parte dos governos. (grifos nossos)

Ressalta-se que a opção por esses mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos deve ocorrer quando o direito interno não foi eficientemente capaz de tutelá-lo de forma justa. É possível, então, afirmar o caráter subsidiário dessa via, mas, também, sustentar que essa característica, de forma alguma, vem a mitigar o importante papel dos Estados na proteção aos direitos humanos. Na verdade, ocorre exatamente o contrário, como bem expressa Flávia Piovesan (2013): O sistema interamericano constitui uma eficaz estratégia de proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas. A Comissão e a Corte Interamericana contribuem para a denúncia dos mais sérios abusos e pressionam os governos para que cessem com as violações de direitos humanos, fortalecendo a accountability dos Estados.

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O termo accountability, palavra oriunda do inglês, pode ser traduzido como “responsabilização” no idioma português. E faz todo o sentido o uso desse termo no contexto, uma vez que, para além do agir perante a ineficácia do direito interno dos Estados-partes das Convenções e demais tratados, o SIDH aponta essas falhas, faz recomendações, julga os Estados, prevê a adoção de medidas aptas a cessar violações e implementa mecanismos de monitoramento a respeito da (in)aplicação do que foi estabelecido. Tudo isso vem a aumentar a responsabilidade dos Estados, de modo a explicitar a amplitude de suas obrigações perante o Direito internacional, em prol de cada um dos indivíduos e grupos locais. bobbio (1992, p. 39-40) ajuda a compreender melhor a atuação do sistema internacional com a explicitação das funções de promoção, controle e garantias dos direitos humanos. É possível dizer que Sistema Interamericano se enquadra nesse contexto explicitado por bobbio (VINCENTIM, 2010), sendo certo também que o Direito internacional, ao menos nesse foco estudado, não é apto a obrigar coercitivamente a aplicação de suas regras em relação aos Estados na medida e com os mesmos mecanismos utilizados no Direito interno destes com seus cidadãos. Mas é possível dizer que uma das grandes forças desse sistema parece estar no campo político do constrangimento gerado pelo risco de ser tachado como violador de direitos humanos. Trata-se, indubitavelmente, de influência, como nas palavras de bobbio (1992, p. 39): [...] a teoria política distingue hoje, substancialmente, duas formas de controle social, a influência e o poder (entendendo-se por “influência” o modo de controle que determina a ação do outro incidindo sobre sua escolha, e por “poder” o modo de controle que determina o comportamento do outro, pondo-o na impossibilidade de agir diferentemente). Mesmo partindo-se dessa distinção, resulta claro que existe uma diferença entre a proteção jurídica em sentido estrito e as garantias internacionais: a primeira serve-se da forma de controle social, que é o poder; as segundas são fundadas exclusivamente na influência.

A realidade do sistema regional não está distante do brasil, haja vista no caso n. 12.051, intitulado “Maria da Penha versus brasil”, durante o qual foi declarado existir no país um padrão cultural de 121


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tolerância estatal quanto aos diversos tipos de violência doméstica em prejuízo das mulheres. Com a publicação do relatório da Comissão Interamericana no Relatório Anual da Assembleia Geral da OEA, entre outros mecanismos, a pressão e a repercussão para a execução de soluções imediatas foram muito grandes. Estrategicamente, catalisaram-se mudanças positivas no contexto de proteção a direitos fundamentais, como a criação da lei n. 1.340/2006. Em vigor desde 22 de setembro de 2006, a lei Maria da Penha dá cumprimento à Convenção para Prevenir, Punir, e Erradicar a Violência contra a Mulher, da OEA, assim como à Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da ONU. Assim, o Estado brasileiro não escapa das ações dos sistemas internacionais de proteção aos direitos fundamentais, como pondera Piovesan (2014, p. 115): A experiência brasileira revela que a ação internacional tem também auxiliado a publicidade das violações de direitos humanos, o que oferece o risco de constrangimento político e moral ao Estado violador, e, nesse sentido, surge como significativo fator para a proteção dos direitos humanos. Ademais, ao enfrentar a publicidade das violações de direitos humanos, bem como as pressões internacionais, o Estado é praticamente “compelido” a apresentar justificativas a respeito de sua prática. A ação internacional e as pressões internacionais podem, assim, contribuir para transformar uma prática governamental específica, no que se refere aos direitos humanos, conferindo suporte ou estímulo para reformas internas.

No caso n. 12.051 não foi diferente. Como se viu, para que a Sr.ª Maria da Penha visse condenado seu agressor, foi imprescindível o impulso do Direito internacional, mais precisamente do Sistema Interamericano de Proteção, visto que o Direito interno brasileiro havia falhado com o compromisso de defesa fundamental de seus jurisdicionados. Havia um padrão cultural de tolerância do Estado quanto aos diversos tipos de violência doméstica em prejuízo das mulheres. Estrategicamente, decerto, não é “confortável” para nenhum Estado democrático o fato de ser internacionalmente intitulado de violador de direitos humanos. O caso foi um precedente importantíssimo para a luta das mulheres nas Américas. Como se diz na linguagem jurídica, é 122


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considerado um standard case (ou leading case) em se tratando de direitos humanos – o que significa dizer que o caso se tornou referência ou parâmetro para julgamentos futuros. Resta claro que o conceito de justiça nessa relação é especialmente distinto do habitualmente praticado no Direito interno, uma vez que os órgãos do Sistema Interamericano não funcionam como 4ª instância (revendo decisões produzidas pelo Direito interno), mas investigam o (des)cumprimento por parte do Estado de compromissos internacionais a respeito dos direitos humanos firmados em instrumentos. A justiça, portanto, deve ser vista não como meramente inter partes, mas como uma espécie especial de efeito erga omnes (para todos), gerando uma função de tornar-se precedente impeditivo de violação a direitos humanos à sua semelhança (coadunando-se, portanto, ao princípio do não retrocesso). Nesse contexto, a consideração de Piovesan (2014, p. 97): O sistema regional interamericano simboliza a consolidação de um ‘constitucionalismo regional’ [...]. [...]. [A Convenção Americana] serve a um duplo propósito: a) promover e encorajar avanços no plano interno dos Estados; e b) prevenir recuos e retrocessos no regime de proteção de direitos. (grifos nossos)

E, sobre a influência do Direito internacional no Direito interno, Cançado Trindade (2003, p. 258) explica que [o] exercício da garantia coletiva pelos Estados Partes da Convenção não deveria ser somente reativo, quando se produzisse o descumprimento de uma sentença da Corte [Interamericana], mas também proativo, no sentido de que todos os Estados Partes adotassem, previamente, medidas positivas de proteção, em conformidade com as normas da Convenção Americana. É indubitável que uma sentença é “coisa julgada”, obrigatória para o Estado demandado em questão, mas também é “coisa interpretada”, válida erga omnes partes, no sentido de que tem implicações para todos os Estados Partes da Convenção em seu dever de proteção. Somente mediante um claro entendimento desses pontos fundamentais conseguiremos construir uma ordre public [ordem pública, no francês] interamericana, baseada na fiel observância dos direitos humanos.4 (grifos do autor)

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Essa ideia de justiça produz uma reparação que supera a indenização pecuniária, produzindo mudanças de legislação interna do Estado violador, de entendimentos jurisprudenciais de Supremas Cortes e a promoção ou intensificação de políticas públicas que incentivem a não repetição da violência denunciada aos órgãos internacionais (bERNARDES, 2011), de forma que o ser humano sai vitorioso por meio de um caso modelo naquele âmbito regional. E foi exatamente isso que aconteceu no caso da lei Maria da Penha. Foi necessária uma pressão de cunho internacional para impulsionar mudanças no absurdo padrão institucional de tolerância da violência doméstica contra as mulheres. Na verdade, de certa maneira, um positivo impulso na direção contrária também ocorreu. Isso porque esse foi o primeiro caso sobre o tema aceito pela Comissão Interamericana, incitando e inaugurando, nesta instância, a discussão e o amadurecimento sobre questões sobre esse desumano tipo de violência que atinge, culturalmente, tantas mulheres em todo o continente americano e no mundo. Abriu-se, portanto, importante precedente regional de direitos humanos ligado à defesa do gênero feminino, assim como ao combate às tradicionais violações. Para se ter uma breve noção dessa referida construção de justiça em direitos humanos, apresenta-se a reposta da Sr.ª Maria da Penha (FERNANDES, 2009) quando indagada sobre se havia ficado satisfeita com o período que o seu ex-marido ficou preso (condenado, finalmente, a cerca de dez anos de prisão, cumprindo menos de um terço do tempo em regime fechado): “A minha alegria foi o brasil ter sido ‘condenado’ internacionalmente. Acho que o tempo que ele ficou preso não interfere em nada. O importante é o que se conquistou, diversas mulheres já foram salvas pela lei [n. 11.340/2006]” (grifos nossos). Houve um caso também muito emblemático envolvendo o Sistema Interamericano, desta vez um julgamento pela Corte Interamericana, o caso “Atala Riffo e as meninas versus Chile”, que tratava de discriminação estatal com base na orientação sexual homoafetiva contra a Sr.ª Karen Atala Riffo, a qual havia resultado na perda judicial da guarda de suas próprias filhas. Mesmo com a condenação do Chile, ela sabia que não poderia reaver a custódia 4

Tradução pela autora do presente trabalho.

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das três meninas, já que a Corte não funciona como 4ª instância, mas isso não a impediu de buscar uma justiça – uma justiça que não pertencia a ela como indivíduo, mas como pessoa humana, uma justiça que acreditava necessária e possível. Então, resta a grande pergunta: o que ela ganhou perante a Corte, finalmente? Entre outros ganhos, responde-se: a restauração de sua dignidade como pessoa, como mulher, como mãe; a declaração inafastável em âmbito regional de que orientação sexual não vincula a qualidade de maternidade, nem afasta o direito à igualdade. Insiste-se aqui, portanto, no caráter geral dessa justiça no âmbito dos direitos humanos, sendo ratificado pelas palavras da Sr.ª Atala Riffo (2012): O tempo perdido de nossas vidas como uma “família excepcional e não valorizada socialmente” não vem a remediar-se com a sentença da Corte Interamericana. A luta deixou de ser pessoal ante a inexorável passagem do tempo e se transformou em política. Por isso, nosso caso particular se transformou em um Caso emblemático, mas era absolutamente necessário para restaurar o império do direito à igualdade no Chile. Esta sentença vem a dignificar todas aquelas mães lésbicas e pais gays que têm tido que suportar estigmas, violações de seus direitos e a crítica social por sua condição, ou tenham tido que invisibilizar e silenciar sua vida afetiva por medo de perder a custódia de seus filhos. A eles quero dedicar esta sentença. Para que nunca mais no Chile desses pais e mães que possuem companheiros permanentes do mesmo sexo lhe retirem a guarda de seus filhos por sua só condição de tais.5 (grifos nossos)

A luta tornou-se política, uma política de direitos humanos. Trata-se, portanto, assim como no caso Maria da Penha, de vitória para além da lógica da mera satisfação individual de algum integrante direto da lide, sendo possível, até mesmo, que o lado agredido se mantenha, em parte, no estado de agressão, como nos casos expostos anteriormente. Percebe-se que a ideia de justiça nos direitos humanos, a partir da relação do Direito internacional (regional) com o Direito interno, traduz-se pela produção de efeitos amplos, sociais,

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Tradução pela autora do presente trabalho.

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coletivos, jurídicos, políticos, portanto. A vitória perante os órgãos regionais impulsiona mudanças evolutivas na promoção e na proteção dos direitos humanos dentro do Estado envolvido e em toda a região americana. É nesse sentido, em primazia da pessoa humana, que a justiça vem sendo feita. Essa atuação do SIDH é tão importante que já foi responsável por mudanças estruturais também em outros países da região no que concerne ao gênero feminino. Sintetiza Flávia Piovesan (2013): Com relação aos direitos das mulheres, destacam-se relevantes decisões do sistema interamericano sobre discriminação e violência contra mulheres, o que fomentou a reforma do Código Civil da Guatemala, a adoção de uma lei de violência doméstica no Chile e no brasil, dentre outros avanços. No caso González e outras contra o México (caso “Campo Algodonero”), a Corte Interamericana condenou o México em virtude do desaparecimento e morte de mulheres em Ciudad juarez, sob o argumento de que a omissão estatal estava a contribuir para a cultura da violência e da discriminação contra a mulher. No período de 1993 a 2003, estima-se que de 260 a 370 mulheres tenham sido vítimas de assassinatos, em Ciudad juarez. A sentença da Corte condenou o Estado do México ao dever de investigar, sob a perspectiva de gênero, as graves violações ocorridas, garantindo direitos e adotando medidas preventivas necessárias de forma a combater a discriminação contra a mulher.

Entretanto, a justiça só é possível de ser alcançada quando os meios de acesso a ela são viabilizados por mecanismos próprios. O acesso à justiça é fundamental para a efetivação de todos os direitos humanos. Aqui, já se visualiza um dos maiores obstáculos do Sistema Interamericano: a deficiência de informações sobre a sua existência e o seu funcionamento. Quantos representantes das “minorias” pelas Américas, entre índios, negros, idosos, portadores de necessidades especiais, homoafetivos, etc., continuam achando que o limite do direito humano está nas mãos dos seus Estados, com total desconhecimento dessa via de amparo regional? (SIlVA, 2006). Fato é que os direitos humanos não podem se ver limitados pelas fronteiras estatais, uma vez que eles são inerentes à pessoa humana, não importa onde esta se encontre. Assim, é possível também considerar que essa via de acesso à justiça se apresenta, embora 126


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ainda pouco conhecida, como eficiente e imprescindível, apta à promoção, proteção e garantia dos direitos humanos. Assim, nesse sentido, segue reflexão baseada no primeiro caso de condenação do brasil pela CrIDH6: [...] o contexto indica uma tendência regional na jurisdicionalização internacional do acesso à justiça, efeito da cessão gradual de soberania por parte dos em prol de valores universais imbuídos de um ideário cosmopolita no campo dos Direitos Humanos em uma constante tensão entre a jurisdição nacional e a busca de satisfação de direitos no plano supranacional. (VIEIRA, 2011)

Nesse quadro, surgem, então, como importantíssimos atores no cenário de defesa dos direitos humanos, as organizações não governamentais (ONGs) e demais entidades preocupadas com o humano. No caso da Sr.ª Maria da Penha, como dito, ela foi assistida pelo Centro pela justiça e pelo Direito Internacional (CEjIl) e pelo Comitê latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (ClADEM). A Sr.ª Atala Riffo, por entidades chilenas, como a libertades Públicas, a Clínica de Acciones de Interés Público de la Universidad Diego Portales e a Fundación Ideas. O histórico dos litígios levados ao SIDH tem mostrado que essas organizações têm conseguido grandes avanços de sensibilização da sociedade civil e na busca do acesso transnacional efetivo à jurisdição interamericana frente a governos democráticos insuficientes e falhos. Dessa forma, baseada nos entendimentos mantidos no caso em tela, já é possível perceber que o sistema regional interamericano de proteção aos direitos humanos surge coadunado com um entendimento mais sensível às diversas e constantes mudanças da sociedade, em prol de uma “justicialização” comum em âmbito regional, capaz de atuar perante a falha dos Estados. O Sistema Interamericano vem, com força catalizadora, atuando para tornar efetivas as jovens democracias das Américas e está em um caminho sem volta de jurisprudência regional protetiva dos direitos humanos. Aos poucos, as pessoas devem obter mais Trata-se do caso “Ximenes lopes versus brasil”, que, em julho de 2006, funcionou como precedente ao acesso brasileiro à justiça no plano regional interamericano, em razão da violação de direitos humanos a portador de sofrimento mental.

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conhecimento sobre a existência e a grande utilidade dos sistemas de proteção para além do Estado, em defesa da condição propriamente humana, que buscam ressaltar a igualdade, e não a diferença.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como se viu, para que a Sr.ª Maria da Penha tivesse a justiça de ver condenado o homem que, para além das inúmeras agressões cometidas, atentou diretamente contra a sua vida por duas vezes, foi imprescindível o impulso do Direito internacional, mais precisamente do Sistema Interamericano de Proteção, visto que o Direito interno brasileiro havia falhado com seu compromisso de defesa dos direitos humanos, passadas quase duas décadas dos crimes. O caso n. 12.051 foi um precedente importantíssimo para o combate ao padrão cultural e institucional de violência contra a mulher, recomendando ao Estado brasileiro diversas medidas específicas ao caso para o alcance de uma persecução penal efetiva, mas também alertando sobre a necessidade de políticas públicas efetivas de proteção especial por parte do brasil. Uma das principais foi no sentido de que fosse criada uma legislação adequada a esse tipo de violência. Daí o surgimento, em 2006, da conhecida lei Maria da Penha (lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006). Os direitos humanos não podem ser limitados pelas fronteiras dos Estados, já que inerentes à pessoa humana, não importa onde esta se encontre. Nesse sentido, é possível também considerar que essa via de acesso à justiça se faz útil, consistente e justificada, apta à promoção, proteção e garantia dos direitos humanos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reforça o discurso do combate à discriminação e da promoção, defesa e garantia dos direitos fundamentais, mormente, no presente caso, em rechaço à violência contra a mulher nos âmbitos doméstico e familiar. No entanto, relevou-se a deficiência do direito fundamental ao acesso à justiça como empecilho à atuação do Sistema Interamericano, possibilitando a culminância de omissões institucionais, violadoras dos direitos humanos. Certo é que se faz necessário di128


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vulgar mais esse sistema de proteção, para que o rol de direitos dos seres humanos não fique à mercê de democracias ainda frágeis, como é o caso da brasileira. Esses direitos não possuem limitação estatal, mas, sim, os Estados é que são limitados internacionalmente pelos direitos humanos quando se comprometem, por convenções ou tratados, a protegê-los. O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, mais do que solucionar casos concretos em caráter subsidiário, impulsiona mudanças estruturais no ordenamento dos Estados, como o do brasil e do Chile, sendo imprescindível impulso aos deveres dos Estados de prevenir, investigar e punir as violações aos direitos humanos, assim como reparar os danos e indenizar as vítimas. O caso em tela, certamente, foi paradigmático, pois abriu importante precedente no âmbito regional, aumentando a força das lutas políticas em defesa dos direitos femininos (e dos direitos humanos em geral) em toda a América e abrindo os olhos dos indivíduos para a possibilidade sólida de tutela de seus direitos no âmbito supranacional. Insiste-se, pois, na paulatina construção de uma justiça com efeitos erga omnes, em se tratando de direitos humanos, percebendo-se como ultrapassada, na relação entre Direito nacional e internacional, a vitória de cunho meramente individual. Tal conquista vai mais além: possui natureza política, social, humana. Por fim, importante ressaltar que são necessárias mais pesquisas para que se possa compreender melhor essa discussão, uma vez que se trata de um assunto complexo e ainda pouco esclarecido, mas que, de certo, possui grande relevância para os direitos fundamentais em âmbito nacional e internacional.

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