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Luciana Andréa Rosário Ribeiro* A legitimidAde do ministério Público PArA o mAnejo de Ação de interdição: um olhAr constitucionAl PUBLIc PRosEcUToR's oFFIcE LEGITIMAcy FoR MAnAGEMEnT oF InTERDIcTIon AcTIon: A consTITUTIonAL vIEw LA LEGITIMIDAD DEL MInIsTERIo PúBLIco PARA LA GEsTIÓn DE LA AccIÓn DE InTERDIccIÓn: UnA MIRADA consTITUcIonAL

resumo: A sociedade sempre discriminou as pessoas com deficiência. E quando mencionamos esta discriminação imposta às pessoas com deficiência não estamos tratando do discrimine positivo, aquele realizado como forma de superar o distanciamento com as demais pessoas de modo a tingir a igualdade substancial. Tratamos aqui da discriminação social que alija e afasta as pessoas com deficiência do mercado de trabalho, das escolas, da vida cultural, ou melhor, de todo o cotidiano vivido pelas pessoas. Podemos dizer, entretanto, que, em tempos pretéritos, esse discrimine era maior; atualmente mais velado, às vezes silencioso, intrínseco na alma, mas ainda existente. observamos, muitas vezes, que essa discriminação encontra respaldo até mesmo em dispositivos esparsos ainda presentes em nossa legislação, que favorecem uma interpretação que afasta a pessoa com deficiência do convívio social ao invés de favorecer a sua integração no seio da comunidade da qual faz parte, ou melhor, da qual deveria estar inserida. nesse sentido, ousamos discordar do posicionamento majoritário da doutrina posta, a qual, em consonância com os dispositivos infraconstitucionais, apenas legitimam o Ministério Público ao manejo de uma ação de interdição, caso não seja a mesma ajuizada por pais, tutores ou parentes. Desse modo, o promotor de justiça precisa aguardar a omissão dos pais, tutores ou parentes, e provar esse descaso para com a pessoa com deficiência, * Especialista em Direito do Estado pela Universidade Baiana de Direito, em parceria com a Escola de Magistrados da Bahia. Graduada em Direito pela UFBA. Analista Judiciário do TJ/PI.

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seja física ou mental, para estar legitimado a defender seus interesses. Para nós, esse posicionamento não favorece a defesa dos interesses e dos direitos das pessoas com deficiência, tampouco sua integração na comunidade. Ao revés, esse entendimento dominante impõe à pessoa com deficiência uma espera desnecessária e desconfortante para aquele que, diuturnamente, precisa enfrentar inúmeros percalços impostos pelos discrimines sociais. É certo que a presença ou não de um dispositivo infraconstitucional não tem o condão de afastar sentimentos intrinsecamente arraigados em nosso modo de sentir e pensar; que culturalmente foram assimilados sem que houvesse um esforço para entender diferente; para estabelecer um novo olhar. ocorre que, do mesmo modo, é correto também concluir que a presença de um dispositivo pode reforçar um comportamento preexistente e comprometer qualquer tentativa de esforço comum ou mesmo isolado que tente estabelecer um novo paradigma. E é esse novo modo de pensar uma situação “confortavelmente” já convencionada pela doutrina majoritária que aqui nos propomos. Abstract: society has always discriminated people with especial needs. And when we mention this discrimination imposed on people with especial needs we are not getting positive discrimination, the one carried out in order to overcome the distance with others in order to reach substantive equality. we treat here the social discrimination that jettisons away people with especial needs from labor market, from schools, from cultural life, or rather, from all lived daily by people. we can say, however, that in past times, this discriminate was bigger; currently more veiled, sometimes silent, inherent in the soul, but still existent. we observed many times that this discrimination is supported even in sparse apparatus still present in our law, which favor an interpretation which excludes people with especial needs from social interaction rather than promote their integration within the community from which they belong, or better, in which they should be inserted. In this sense, we dare to disagree with the majority's doctrine position, which, in line with the infra apparatus, only entitle the Public Prosecutor's office to the management of an interdiction action, in case of it not to be filed by parents, guardians or relatives. Thus, the Public Prosecutor must 82


wait the omission of parents, guardians or relatives, and prove this disregard for the person with especial needs, whether physical or mental, to be legitimized to defend their interests. For us, this placement is not conducive to protecting the interests and rights of people with especial needs, nor their integration in the community. Upside down, this mainstream understanding requires from the person with especial needs an unnecessary and uncomfortable waiting for the one that, during the daytime, must face numerous mishaps imposed by social discrimines. Admittedly, the presence or absence of an infra apparatus does not have the power to ward off feelings intrinsically ingrained in our way of feeling and thinking, that were culturally assimilated without there being an effort to understand different, to establish a new view. It happens that, likewise, is also correct to conclude that the presence of an apparatus can enhance a preexisting behavior and compromise any common or even isolated efforts that attempt to try to establish a new paradigm. And this new way of thinking of "comfortably" situation already agreed by the majority doctrine that we propose here. resumen: La sociedad siempre ha discriminado a las personas con discapacidad. y cuando mencionamos esta discriminación impuesta a las personas con discapacidad no se está tratando sólamente de la discriminación positiva, aquella llevada a cabo con el fin de superar la distancia de los demás con el fin de alcanzar a la igualdad sustantiva. Tratamos aquí de la discriminación social que alija a las personas con discapacidad del mercado de trabajo, de las escuelas, de la vida cultural, o más bien, de todo lo vivido por la gente común. Podemos decir, sin embargo, que en el pasado esta discriminación ocurría más frecuentemente; en la actualidad es más velada, a veces silenciosa, inherente al alma, pero todavía existente. Hemos observado muchas veces que esta discriminación se apoya incluso en dispositivos dispersos aún presentes en nuestra ley , que favorecen una interpretación que excluye a las personas con discapacidad de la interacción social en lugar de promover su integración en la comunidad de la que forma parte, o mejor, en la que debería estar insertada. En este sentido, nos atrevemos a no estar de acuerdo con la doctrina puesta, que, en línea con los dispositivos infraconstitucionales, sólo 83


da derecho al Ministerio Público para la gestión de una acción de interdicción, si no es la misma presentada por los padres, tutores o familiares. Por lo tanto, el fiscal debe esperar la omisión de los padres, tutores o familiares, y demostrar este desprecio para con la persona con discapacidad, ya sea física o mental, para ser legitimado a defender sus intereses. Para nosotros, esta colocación no es propicia a la protección de los intereses y de los derechos de las personas con discapacidad, tampoco para su integración en la comunidad. Al revés, esta comprensión convencional requiere de la persona discapacitada una espera innecesaria e incómoda para aquél que, todos los días, necesita hacer frente a numerosos contratiempos impuestos por la discriminación social. Es cierto que la presencia o ausencia de un dispositivo infraconstitucional no tiene el poder de evitar sentimientos intrínsecamente arraigados en nuestra forma de sentir y de pensar, que fueron asimilados culturalmente sin que haya un esfuerzo por comprender lo diferente, para establecer una nueva mirada. sucede que, del mismo modo, también es correcto concluir que la presencia de un dispositivo puede mejorar una conducta preexistente y comprometer los esfuerzos comunes o incluso aislados que intentan tratar de establecer un nuevo paradigma. y es esta nueva forma de pensar de pensar una situación “confortablemente” ya acordada por la doctrina mayoritaria que proponemos aquí. Palavras-chaves: Ação de Interdição, pessoa com deficiência, legitimidade do Ministério Público. Keywords: Interdiction Action; Person with Especial needs; Public Prosecutor's office Legitimacy. Palabras clave: Acción de interdicción, persona con discapacidade, legitimidad del Ministerio Público.

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um olhAr constitucionAl AcercA dAs AtribuiçÕes do Promotor de justiçA É o princípio da dignidade da pessoa humana que molda as atribuições institucionais do Ministério Público delineadas na constituição Federal brasileira. Esta é uma afirmativa que abre um leque enorme de atuação do promotor de justiça em áreas que realmente interessam à sociedade e aos grupos que convencionamos denominar de vulneráveis, na medida em que este princípio traz um conceito jurídico aberto, e não estanque. Assim, concluo que as atribuições do promotor de justiça delineadas no texto constitucional apresentam íntima relação com as vertentes principiológicas traçadas pelo legislador constitucional, sobretudo com o princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, evidencia-se que ao atuar na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis - e o direito à saúde nada mais é que um direito do qual não pode o cidadão dispor - o promotor de justiça precisa centrar sua legitimação na ideia de preservação e garantia da dignidade da pessoa humana. Desse modo, conforme disciplina o artigo 127, caput, da nossa constituição, os direitos individuais indisponíveis apresentam íntima relação com a preservação da dignidade da pessoa humana, fato que justifica o promotor de justiça ter nesta o fundamento que norteia e legitima a sua atuação. nesse contexto de legitimação constitucional do promotor de justiça, o código civil e o código Instrumental civil, em seus artigos 1769 e 1178, destoam, em nosso sentir, da normativa constitucional. Isso porque, segundo esses dispositivos, a legitimação ministerial para o ajuizamento de uma ação de interdição somente surge com a omissão dos legitimados dos incisos I e II dos artigos 1768, do cc, e 1177, do cPc, in verbis: Art. 1769, cc: o Ministério Público só promoverá a interdição: I- Em caso de doença mental grave; ii- se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas nos incisos i e ii do artigo antecedente; III- se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas no

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inciso antecedente. (grifo nosso) Art. 1768, cc: A interdição deve ser promovida: I- Pelos pais ou tutores; II- Pelo cônjuge, ou por qualquer parente; iii- Pelo ministério Público. (grifo nosso) Art. 1177, cPc: A interdição pode ser promovida: I- Pelo pai, mãe ou tutor; II- Pelo cônjuge ou algum parente próximo; iii- Pelo órgão do ministério Público. (grifo nosso) Art. 1178, cPc: o órgão do Ministério Público só requererá a interdição: I- no caso de anomalia psíquica; ii- se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas no artigo antecedente, ns i e ii; III- se, existindo, forem menores ou incapazes. (grifo nosso)

Percebemos, pela leitura dos dispositivos anteriormente expostos que a interdição pode ser promovida por pais ou tutores; e cônjuge ou parente. Interessante sublinhar que o código civil menciona qualquer parente como legitimado para o ajuizamento da interdição, devendo o promotor de justiça aguardar a atuação de qualquer deles; de modo distinto, a lei processual, menos restritiva à atuação do Ministério Público, exige a demonstração da falta de atuação de um parente próximo, e não de qualquer parente, tal qual a legislação civilista. notamos, assim, que é legitimado para o ajuizamento da ação de interdição aquele quem a lei civil reconhece como parente, ou seja, os ascendentes e descendentes de qualquer grau, como disciplina o art. 1591, do código civil, e os parentes em linha colateral até o quarto grau, como expressamente elenca o art. 1592 do mesmo diploma legal. vale ressaltar que a afinidade também gera relação de parentesco, fato já consolidado na legislação civilista que, inclusive, traz o impedimento de casamento entre o genro e a sogra (parentesco por afinidade em linha reta). Desse modo, por essa razão a doutrina admite o manejo de interdição por parentes por afinidade. 86


Ademais, conveniente esclarecermos que apenas os filhos maiores e capazes podem manejar a interdição dos pais, não sendo admitido que filhos menores ou incapazes o façam. Essa ideia encontra sua razão de ser no fato de que aquele que não tem capacidade para reger a própria pessoa não pode ser responsabilizado por outras pessoas. Elucida Paulo Lôbo (2008, p. 395), em sua obra Famílias, que: [s]ão legitimados para promover a interdição os pais, os tutores, o cônjuge, o companheiro, o parente e o Ministério Público. A iniciativa, pode partir de qualquer dos legitimados, sem obediência a qualquer ordem, porque a interdição do incapaz é de interesse público. o parente colateral de grau mais remoto pode requerer a interdição se não o fizerem, por exemplo, os irmãos.

ocorre que o mesmo autor (idem, ibidem), ao tratar da legitimidade do Ministério Público, apesar de reconhecer o interesse público que naturalmente envolve a questão, assevera: o Ministério Público, todavia, apenas pode tomar a iniciativa em caso de doença mental grave evidente ou se não existirem ou ficar provada a omissão dos pais, cônjuge, companheiro e parentes, ou se familiares forem considerados incapazes.

Predomina, portanto na doutrina e jurisprudência pátrias, o entendimento do abalizado Paulo Lôbo, pois somente após a inércia das pessoas anteriormente elencadas a legislação infraconstitucional autoriza o Ministério Público a manejar ação de interdição em defesa de pessoas com deficiência física que necessitem da nomeação de um curador para resolver os aspectos práticos do seu cotidiano, de modo a ser garantida e efetivada a sua dignidade. Pois bem, desse entendimento dominante ousamos aqui discordar. É cediço que, muitas vezes, a deficiência física não importa em impedimento de sua capacidade para lidar e alcançar êxito na resolução das tarefas que lhes são exigidas diuturnamente; para esses casos, a interdição funcionaria como mais um instrumento de alijamento social. ocorre que não é sempre assim. Há casos em que a deficiência física é tão incapacitante que impede qualquer tentativa da pessoa com deficiência em se locomover, restando à mesma a 87


alternativa de permanecer sobre o seu leito. É para esses casos que se impõe a alternativa da interdição e da nomeação de um curador para a pessoa com deficiência física, devendo ser consideradas como não escritas, no nosso modo de enxergar as coisas, qualquer exigência imposta ao Ministério Público de atuação apenas subsidiária ou supletiva, que se daria apenas na ausência dos outros legitimados. Tanto o código civil, como o código de Ritos civis indicam as hipóteses em que o Ministério Público pode promover a ação de interdição. Ressalta o art. 1178 do cPc os casos de anomalia psíquica e as hipóteses do art. 1769 do código civil (doença mental grave; se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas nos incisos I e II do artigo antecedente; se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas no inciso antecedente). Acrescente-se que na hipótese que estamos aqui discorrendo, quando o interditando possui deficiência física, e não mental, descabe respaldar a instituição de curatela em qualquer das hipóteses mencionadas no art. 1767 do código civil, uma vez que não se vislumbra qualquer ausência ou redução da capacidade de discernimento, mesmo que temporária. nada obstante o disposto no artigo 1178 do código de Ritos civis, a legislação civilista de 2002 contemplou uma nova espécie de curatela, também denominada de curatela especial. nesta, a finalidade não se destina a declarar o indivíduo portador de doença física como incapaz: Art. 1780. A requerimento do enfermo ou portador de deficiência física, ou, na impossibilidade de fazê-lo, de qualquer das pessoas a que se refere o art. 1.768, dar-se-lhe-á curador para cuidar de todos ou alguns de seus negócios ou bens.

sobre a hipótese em comento, que se amolda ao caso aqui discorrido, preleciona Arnaldo Rizzardo (2003, p. 196): constitui uma inovação salutar, para resolver as situações em que a doença ou deficiência física dificulta ou impede a locomoção e o desempenho de atividades, especialmente se a pessoa está im-

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possibilitada de se afastar da residência, ou é portadora de mal físico que lhe tira a disposição, como a paraplegia, a falta de membro inferior, a cegueira, a obesidade excessiva. se a administração dos bens requerer a constante movimentação, viagens, esforço físico, contatos com pessoas, é conveniente a curatela para a estrita finalidade por meio da constituição de procurador, ou representante. Percebe-se que o doente ou portador de deficiência física tem as faculdades mentais perfeitamente normais, não se constatando qualquer falta de discernimento.

no mesmo sentido, leciona Maria Berenice Dias (2006, p. 488): o portador de deficiência física ou o enfermo pode requerer que lhe seja nomeado curador para cuidar de todos ou alguns de seus negócios ou bens (art. 1.780). cuida-se de curatela de menor extensão, até porque não se destina a um incapaz. o requerente é que definirá o âmbito de abrangência da curatela. Qualquer das pessoas legitimadas (art. 1.768) também podem requerer a curatela, mas esta só será concedida se houver a concordância do interditando.

Interessante a observação de Alexandre Guedes Alcoforado Assunção et al. (2004, p. 1645) sobre a temática da curatela à pessoa com deficiência física, ao comentar o novel art. 1780 do código civil: Este artigo confere faculdade aos enfermos e aos portadores de deficiência física de, diretamente ou, na impossibilidade de fazêlo, através das pessoas indicadas no art. 1768, requerer que lhes seja dado curador para administrar todos ou alguns de seus negócios ou bens.

com efeito, a previsão legal visa à proteção do indivíduo com deficiência, limitado fisicamente, que necessite de um representante com uma responsabilidade maior do que a de um simples mandatário. Essa previsão, longe de afastar do indivíduo da sociedade, possibilita sua inserção, já que a mesma ocorre por meio de disposição de vontade do próprio curatelado, que, para os atos da vida civil que se vê privado de fazer pessoalmente pela perda de movimento ou 89


impossibilidade de locomoção, clama pela atuação de um curador. nessa esteira de pensamento, três aspectos merecem realce em nosso sentir. Primeiramente, a vontade do interditando é manifestada e considerada, fato que alberga a intervenção mínima do Estado na esfera da vida privada das pessoas e consagra a dignidade da pessoa humana, na medida em que a pessoa com deficiência física apresenta capacidade de ter manifestada e respeitada a sua vontade. nesse contexto, deve ser considerada como não recepcionada ou revogada qualquer norma infraconstitucional que restrinja a legitimação do Ministério Público ao ajuizamento de ações de interdição apenas na ausência ou omissão dos parentes também legitimados, desconsiderando a vontade da pessoa com deficiência. o segundo aspecto a ser considerado e que aqui merece por nós ser destacado é o fato de que a imposição do ônus ao Ministério Público de provar a inércia de pais e parentes para legitimar a sua atuação impõe à pessoa com deficiência uma espera que, por mínima que seja, não é razoável, na medida em que os outros legitimados ao ajuizamento da interdição podem já ter abandonado a pessoa com deficiência à própria sorte, ficando esta ao amparo muitas vezes de vizinhos ou pessoas amigas. nesse contexto, o tempo precisa ser um aliado da pessoa com deficiência e, por conseguinte, do promotor de justiça, não devendo, em hipótese alguma, ser um entrave à realização da dignidade daquele. Entendo, ainda, como último aspecto a ser realçado, que conferir ao Ministério Público uma legitimidade apenas supletiva diminui a importância do órgão e não está em consonância com a função constitucional a ele destinada, cujo realce neste trabalho se volta à defesa dos interesses e direitos individuais indisponíveis, no qual se inserem a saúde e a sadia qualidade de vida. Ademais, nesta mesma linha de intelecção, colocar o promotor de justiça em um patamar diverso dos pais e familiares do interditando, como se não fosse atribuição daquele a defesa dos vulneráveis e a efetivação dos direitos individuais de cunho indisponível, é desconsiderar o novo papel eleito pelo legislador constituinte e abraçado pela coletividade, a qual deposita no órgão do Ministério Público justas expectativas de construção de uma sociedade melhor e de concretização de direitos. 90


salientamos, outrossim, o dispositivo do art. 201, III, do EcA, lembrado por Maria Berenice Dias em seu Manual de Direito das Famílias, que também confere legitimidade ao Ministério Público no manejo da ação de interdição, mesmo sendo um diploma legal destinado aos maiores, segundo a autora (2006, p. 487): “[a]inda que o EcA esteja voltado para os menores e adolescentes, confere legitimidade ao Ministério Público para a ação de interdição (EcA 201, III), o que alcança também os maiores”. Assim, correto é se inferir que constatada somente a deficiência física do interditando, capaz de lhe impedir a execução de atos necessários, inclusive a sua sobrevivência com dignidade, fazse necessária a nomeação do curador para gerir seus bens, cuja gestão será atrelada, porém, à vontade expressada pelo curatelado. casos análogos já foram enfrentados nas cortes brasileiras, servindo de exemplo: APELAÇÃo cÍvEL. cURATELA. Dá-se curador ao portador de deficiência física, consistente em paralisia total do lado esquerdo do corpo, que o impede de locomover-se, a fim de que possa perceber o benefício previdenciário a que tem direito, devido a essa limitação (art. 1.780 do cc/2002). Apelação cível provida em parte. Unânime. (Ac nº 70011048972, 8ª ccível, TJRs, Relª Drª walda Maria Melo Pierro, j. 15/12/2005)

Acrescente-se a tudo o que já foi por nós aqui exposto que o Ministério Público tem atribuição de defender os direitos individuais de cunho indisponível, in casu, a existência com dignidade e a sadia qualidade de vida, o que inclui o exercício de atos necessários à manutenção de sua saúde. Importante destacar que é o Ministério Público órgão legitimado para atuar em defesa das pessoas com deficiência. Pois bem, a Lei n. 7.853/1989 protege em juízo os interesses das pessoas portadoras de deficiência e dispõe, em seu art. 3º, que entre os legitimados para exercer esta proteção encontra-se o Ministério Público, in verbis: As ações civis públicas destinadas à proteção de interesses coletivos ou difusos das pessoas portadoras de deficiência poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, Estados, Muni-

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cípios e Distrito Federal; por associação constituída há mais de 1 (um) ano, nos termos da lei civil, autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista que inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção das pessoas com deficiência.

Logo, o Ministério Público tem legitimidade ampla para a proteção dos interesses das pessoas com deficiência; apresentem estas demandas ou caráter de defesa de direitos meramente individuais, difusos ou coletivos. Está, pois, autorizado a promover a interdição da pessoa, nos casos previstos no art. 1769 do código civil. Possui, também, o Ministério Público legitimidade para requerer a internação compulsória de deficiente mental que esteja colocando em risco a sua vida e a sociedade, não estando aqui a sua legitimidade submetida a uma omissão dos parentes da pessoa com deficiência. neste sentido já se pronunciou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do sul: recurso: APELAÇÃo cÍvEL número: 70000389353 relAtor: MARIA BEREnIcE DIAs ementA: InTERnAÇÃo coMPULsÓRIA. TEM o MInIsTÉRIo PúBLIco coMPETÊncIA PARA REQUERER A InTERnAÇÃo coMPULsÓRIA DE PEssoA QUE vIvE nA vIA PúBLIcA, sEnDo UsUÁRIA DE DRoGAs E cAUsAnDo DEsoRDEns E DAnos A BEns MÓvEIs E IMÓvEIs DE TERcEIRos, PRovIDÊncIA QUE nÃo InFRInGE o PRIncÍPIo consTITUcIonAL DA LIBERDADE. APELo PRovIDo. (5FLs.) JULGADo EM 21/06/2000. recurso: APELAÇÃo cÍvEL número: 70005226063 relAtor: JosÉ cARLos TEIXEIRA GIoRGIs ementA: InTERnAÇÃo coMPULsÓRIA DE PAcIEnTE QUE soFRE DE PRoBLEMAs MEnTAIs. LEGITIMIDADE Do MInIsTÉRIo PúBLIco. o MInIsTÉRIo PúBLIco TEM LEGITIMIDADE PARA PRoPoR A AÇÃo DE InTERnAÇÃo coMPULsÓRIA DE PAcIEnTE QUE APREsEnTA DoEnÇA MEnTAL GRAvE E REPREsEnTA RIsco PARA sI, PARA os FILHos E PARA A socIEDADE. APELo PRovIDo. (5 FLs D.) (sEGREDo DE JUsTIÇA)

Por sua vez, o art. 2º, nos incisos I usque Iv, da lei 92


7.853/1989, determina ao Poder Público e a seus órgãos assegurar às pessoas com deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade etc., que propiciam seu bem-estar pessoal, social e econômico. Essas determinações constam também na constituição Federal brasileira. Esta, em seu art. 1º, dispõe entre os fundamentos da nação a dignidade da pessoa humana; na mesma esteira, o art. 3º determina serem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; por fim, o art. 5º garante a inviolabilidade do direito à vida. segundo definição constante no item XXX / 3.447, da Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, da onU, considera-se deficiente "qualquer pessoa incapaz de assegurar a si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais". Tratamos neste estudo, portanto, de pessoas com deficiência física, em decorrência da qual possuem limitações para o exercício das inúmeras atividades cotidianas. Estas pessoas podem ter sido abandonadas por seus familiares e encontrarem-se ao amparo de vizinhos e pessoas sem qualquer vínculo de parentesco. necessitam, pois, de um curador para a prática de diversos atos necessários à garantia e preservação de seus direitos e, por conseguinte, de sua dignidade. conclusão Ao final deste trabalho, torna-se conveniente trazer algumas conclusões que aqui alcançamos, de forma sistematizada: a) as funções constitucionais do Ministério Público exigem do órgão uma postura pró-ativa, a qual não se compatibiliza com uma legitimação apenas supletiva para o ajuizamento de ação de interdição; 93


b) exigir do promotor de justiça a prova de omissão dos familiares do curatelado para o manejo de ação de interdição para pessoa com deficiência física é desconhecer o texto constitucional e o rol de atribuições do parquet; c) a legitimação do Ministério Público, na condição de substituto processual, para o ajuizamento de ação de interdição na defesa de vulnerável, pessoa com deficiência física, tem por finalidade a concretização de direitos individuais de cunho indisponível, assim como também a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. reFerÊnciAs AssUnÇÃo, Alexandre Guedes Alcoforado et al. Novo Código Civil Comentado. são Paulo: saraiva, 2004. cHAvEs, Antonio. Tratado de Direito Civil. Parte Geral. v. I. 1. ed. são Paulo: Revista dos Tribunais. 1982. DIAs, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. são Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. GAGLIAno, Pablo stolze; PAMPLonA FILHo, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil: parte geral. são Paulo: saraiva. 2002. LÔBo, Paulo. Direito Civil: Famílias. são Paulo: saraiva, 2008. RIZZARDo, Arnaldo. Parte Geral do código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

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