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Bruno Barra Gomes* NOVAS PERSPECTIVAS NA RELAÇÃO ENTRE AÇÕES INDIVIDUAIS E AÇÕES COLETIVAS NEW PERSPECTIVES ON THE RELATIONSHIP BETWEEN INDIVIDUAL ACTIONS AND COLLECTIVE ONES NUEVAS PERSPECTIVAS EN LA RELACIÓN ENTRE LAS ACCIONES INDIVIDUALES Y LAS ACCIONES COLECTIVAS

Resumo: O artigo 104 da Lei n. 8.078/1990 estabelece que não há litispendência entre uma ação individual e uma ação coletiva em sentido amplo, e que ambas podem coexistir sem qualquer prejuízo processual ao autor da ação individual, o qual pode optar por manter sua ação ou suspendê-la até o julgamento da ação coletiva, cuja sentença tem efeitos erga omnes ou ultra partes. É pertinente a alteração da lei brasileira, visando à valorização das ações coletivas ante as ações individuais, recomendando-se a suspensão das ações individuais por determinado tempo, até que seja julgada a ação coletiva paradigmática, desde que não haja prejuízo aos direitos subjetivos dos autores individuais. Abstract: The Article 104 of Law n. 8.078/1990 establishes that there is no collateral estoppel between individual action and collective one in the broad sense, and that both can coexist without any procedural prejudice to the plaintiff individually, which can choose to keep his/her action or suspend it until the trial collective action, whose sentence has effect erga omnes or ultra parties. It is pertinent to change Brazilian law aimed at increasing collective actions against individual actions, recommending the suspension of individual actions for a time, until it is judged by the collective action paradigm, since there is no prejudice to the legal rights of individual authors.

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Promotor de Justiça do MP-GO.

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Resumen: El artículo 104 de la Ley n. 8.078/1990 establece que no hay litispendencia entre la acción individual y la acción colectiva en el sentido amplio, y que ambos pueden coexistir sin ningún perjuicio procesal del demandante individual, que puede optar por mantener su acción o suspenderla hasta que el juicio de la acción colectiva, cuya sentencia tiene efectos erga omnes o inter partes. Es pertinente modificar la legislación brasileña, en busca de la valoración de las acciones colectivas contra las acciones individuales, recomendándose la suspensión de las acciones individuales por un tiempo, hasta que sea juzgada la acción colectiva paradigmática, siempre que no haya perjuicio de los derechos subjetivos de los autores individual. Palavras-chaves: Processo coletivo, litispendência, conexão, suspensão, direito individual. Keywords: Collective process, collateral estoppel, connection, suspension, individual right. Palabras clave: Proceso colectivo, litispendencia, conexión, suspensión, derecho individual.

INTRODUÇÃO O processo civil brasileiro tem a ação individual como base de todo o sistema, indicando o viés privatista do nosso sistema processual. O Código de Processo Civil prima pela fragmentação dos conflitos, estabelecendo já em seu artigo 6º que “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”. Ocorre que o modelo de processo civil tradicional é insuficiente 66


para a proteção judicial dos direitos coletivos, em sentido lato. O processo clássico “não só não atende às necessidades da sociedade de massa como, em relação aos interesses e direitos difusos e coletivos, atua como obstáculo ao acesso à justiça, na medida em que não dispõe de meios próprios para sua defesa em juízo” (ALMEIDA, 2010, p. 75). Segundo Didier e Zaneti (2008, p. 54): o Código de Processo Civil perdeu sua função de garantir uma disciplina única para o direito processual, seus princípios e regras não mais contém subsidiário que anteriormente lhes era natural. As lacunas, as antinomias, os conflitos entre leis especiais não são mais resolvidos por prevalência direta dos Códigos. O caminho percorrido sempre converge para a Constituição, que em si mesma não porta antinomias, dada a sua unidade narrativa.

Nesse contexto, foram consolidadas as ações coletivas, que, de uma só vez: atendem à economia processual, ao permitir solução em um único processo de demandas que gerariam múltiplas ações individuais; garantem acesso à justiça a diversos cidadãos, que dela são privados por razões econômicas e culturais; e viabilizam a aplicação efetiva do direito. Atualmente, o direito processual coletivo constitui ramo autônomo do direito processual, com normas e princípios próprios destinados a resolver conflitos decorrentes de pretensões coletivas em sentido amplo, englobando os direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. No Brasil, existe um microssistema legal de processo coletivo, baseado em dois diplomas fundamentais: a Lei de Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990). Também integram o sistema de tutela coletiva a Lei de Ação Popular (Lei n. 4.717/1965), a Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.428/1992), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003), dentre outras normas infraconstitucionais, que extraem legitimidade diretamente da Constituição Federal. Há simetria entre as leis, que permitem aos aplicadores do direito estabelecer um constante diálogo entre as fontes normativas. Alguns institutos do processo civil possuem características 67


próprias no sistema de processo coletivo, tais como a legitimação para agir (artigos 5º, LACP, e 82, CDC), a coisa julgada com extensão subjetiva (artigos 16, LACP, e 103, CDC) e a litispendência (artigo 104, CDC), esta objeto do presente estudo.

A LITISPENDêNCIA E O PROCESSO COLETIVO A litispendência, em linhas gerais, é caracterizada pela concomitância de duas ou mais ações idênticas pendentes, ou seja, com as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, conforme a sistemática adotada pelo Código de Processo Civil. Tendo a primeira ação sido julgada em definitivo, opera-se a coisa julgada quanto a outras ações posteriores. Tanto a litispendência quanto a coisa julgada provocam a extinção do segundo processo sem resolução de mérito (artigo 267, V, CPC). O sistema processual, dessa forma, veda a repetição de ações idênticas, com o fim de afastar a possibilidade de decisões divergentes sobre a mesma demanda, bem como garantir economia processual e evitar a inútil duplicação de atividade pública judicante. Quando a identidade entre duas ou mais ações pendentes é apenas parcial, relacionada a um ou dois elementos da ação, há conexão ou continência, que resultam, em regra, na reunião das ações para que sejam decididas simultaneamente (artigo 105, CPC). No processo coletivo, divergem os estudiosos sobre a existência de litispendência entre duas ou mais ações coletivas, matéria que renderia outro estudo em apartado. Por outro lado, inexiste litispendência entre ação coletiva e ação individual, pois não há coincidência entre o autor de uma e de outra, além do que não se trata do mesmo direito posto em causa (DIDIER; ZANETI, 2008, p. 183). A ação coletiva tem como autor um dos legitimados do artigo 5º, da Lei n. 7.347/1985, e artigo 82, da Lei n. 8.078/1990, que não atuam em nome próprio, mas de forma autônoma ou extraordinária, representando em juízo inúmeros lesados coletivamente. Já na ação individual a parte atua em nome próprio, ainda que em litisconsórcio. 68


Por outro lado, a causa de pedir remota (fato) é mais genérica na ação coletiva que na ação individual semelhante, pois naquela são tratadas múltiplos fatos lesivos, enquanto nesta a lesão é individualizada. Os pedidos são também distintos, pois na ação coletiva se pede a recomposição de dano causado ao interesse metaindividual, o que não ocorre na ação individual. A lei expressamente afasta a litispendência entre ações coletivas e ações individuais. O artigo 104, da Lei n, 8.078/1990, estabelece: As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva.

O artigo 104 da Lei n. 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor) é aplicável a todas as ações coletivas, e não só às ações que tutelam direito de consumidores. De acordo com o artigo 21 da Lei n. 7.347/1985, “aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”. Destarte, não há litispendência entre ações coletivas em sentido lato e ações individuais, ainda que ambas compartilhem a mesma causa de pedir. A lei preconiza a coexistência de ações coletivas e ações individuais, sem relação de prejudicialidade, garantindo ao titular do direito a oportunidade de pedir sua tutela em juízo. A lei rechaça também a hipótese de continência ou conexão entre ações coletivas e ações individuais. A solução legal é louvável, pois a reunião de inúmeras ações individuais, para serem instruídas e julgadas simultaneamente, inviabilizaria a prestação jurisdicional em tempo razoável. “O que, na verdade, ocorre é que a eventual condenação genérica na ação coletiva será utilizada como ponto de partida para as execuções individuais que apreciarão outros requisitos essenciais ao deslinde da causa” (MOTTA, 2012, p. 19).

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RELAÇÃO ENTRE AÇÕES COLETIVAS E AÇÕES INDIVIDUAIS NO ATUAL CONTExTO LEgISLATIVO O Código de Defesa do Consumidor estimula a adesão dos autores de ações individuais à ação coletiva cujo resultado lhe possa ser proveitoso. O titular do direito poderá requerer a suspensão da ação individual para se beneficiar da coisa julgada com efeito subjetivo extensivo – erga omnes ou ultra partes – previsto no artigo 103 da mesma lei. Assim, se o autor da ação individual insistir no julgamento de seu processo, deixará de ser afetado pela coisa julgada da ação coletiva. Se, noutro giro, optar pela suspensão do processo individual, será alcançado pela coisa julgada erga omnes ou ultra partes, seja ela procedente ou improcedente com base em provas conclusivas. Caso a sentença coletiva seja pela improcedência do pedido por insuficiência de provas, poderá o autor retomar a ação individual. Denomina-se extensão in utilibus da coisa julgada o fenômeno de se transportar a coisa julgada da ação coletiva para a ação individual, dependendo do resultado da ação coletiva. Enfim, a sentença proferida em processo coletivo pode ser executada para efetivar o direito individual daqueles que se beneficiaram com a extensão in utilibus da coisa julgada, devendo, para tanto, cada indivíduo proceder à liquidação de seu crédito. De acordo com o artigo 104 do CDC, a opção pela suspensão ou não da ação individual deve ser feita no prazo de trinta dias, a contar da ciência do particular sobre a existência de ação coletiva, formalizada no processo individual. Na prática, uma série de fatores pode influenciar a opção do autor individual, tais como o tempo estimado para julgamento de cada processo, os custos envolvidos e a amplitude da instrução probatória. “Às vezes, pode não lhe ser proveitoso a reunião de sua demanda com o processo coletivo e nem mesmo vantajoso esperar até o final do julgamento do processo coletivo para somente então aproveitar os efeitos da coisa julgada in utilibus” (LASCALA; FREITAS, 2011, p. 109). No direito comparado há dois sistemas de vinculação de indivíduos ao processo coletivo: “o de inclusão (opt-in), no qual os interessados deverão requerer o seu ingresso até determinado 70


momento; e o de exclusão (opt-out), mediante o qual devem os membros ausentes solicitar o desacoplamento do litígio coletivo, dentro de prazo fixado pelo juiz” (MENDES, 2008, p. 24). Segundo esse autor, o artigo 104 do CDC não adotou nenhum desses métodos em sua forma pura, e sim um sistema distinto, em que a ação coletiva não é o referencial mais importante. Cada indivíduo possui prazo distinto – a contar de sua ciência no respectivo processo individual – para requerer a suspensão do feito, implicando a omissão no prosseguimento deste. Outro aspecto que merece destaque é a restrição feita pelo artigo 104 da Lei n. 8.078/1990 quanto ao alcance da litispendência entre ações individuais e coletivas. A lei dispõe que apenas as ações coletivas previstas nos incisos I e II do artigo 81 – direitos difusos e direitos coletivos strictu senso – não induzem litispendência para as ações individuais. A remissão feita no texto legal induz o intérprete a concluir que a ação em que se tutela direito individual homogêneo pode gerar litispendência para ações individuais. Entretanto, a maior parte da doutrina (DIDIER e ZANETI (2008, p. 184) cita por todos as doutrinas de Gidi (1995)) – defende que houve equívoco do legislador, e que a melhor interpretação é de que o afastamento da litispendência aplica-se às ações previstas nos incisos I, II e III do artigo 81, ou seja, na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. O legislador, no art. 104 do CDC, não determinou a exclusão expressa da litispendência entre ação coletiva que discuta esses direitos (individuais homogêneos) e ação individual, como fez quanto aos incisos I e II do art. 81 do CDC. Porém, logo após mencionar os dispositivos do art. 103, o art. 104 refere-se aos incisos II e III. O terceiro inciso do art. 103 trata justamente dos direitos individuais homogêneos. Tal leitura permite a interpretação de que houve falha na redação da lei.

Portanto, prevalece a tese de que o regramento acerca da relação entre demandas coletivas e individuais, contido no artigo 104 do CDC, aplica-se a todas as ações em que se tutelam direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. Em resumo, a relação entre ações coletivas e ações individuais

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está fundada nas seguintes premissas: inexistência de litispendência, conexão ou continência entre ações coletivas em sentido amplo e ações individuais; possibilidade de coexistência de ações individuais e ações coletivas, sem relação de interdependência, quando o particular não adere à ação coletiva; e possibilidade de adesão de autores de ações individuais a ações coletivas em sentido amplo, visando ao transporte in utilibus dos efeitos da coisa julgada do processo coletivo. O sistema positivado no Brasil, como dito, valorizou o direito de ação e de acesso à Justiça dos titulares de direitos, deixando como mera faculdade a adesão à demanda coletiva, cujo resultado favorável possa satisfazer à pretensão do particular. “Fica patente que o ordenamento jurídico quis preservar toda a forma de acesso à justiça, admitindo o caráter apenas adicional da via coletiva” (MOTTA, 2012, p. 19). Na redação do artigo 104 do CDC, o legislador optou claramente por posicionar a ação coletiva como um mecanismo adicional de prestação jurisdicional, ao lado da ação individual tradicional. Preferiu não criar relação de prejudicialidade entre ações coletivas e individuais, garantindo que o particular não seja prejudicado em sua ação individual.

NOVAS PERSPECTIVAS PARA O SISTEmA PROCESSUAL bRASILEIRO O sistema vigente, embora virtuoso, também recebe críticas. É notório que a tutela coletiva não tem atingido plenamente os objetivos para os quais foi criada, visto que remanescem milhares de ações individuais com pretensões que poderiam ser buscadas coletivamente. Ademais, ainda é pequeno o número de indivíduos que se habilitam em execuções de processos coletivos. Esse cenário decorre, ao menos em parte, da ampla liberdade processual conferida aos indivíduos pelo artigo 104 do CDC, que permite o prosseguimento regular de ações individuais concomitantemente a determinada ação coletiva com pedido de reparação de lesão para todos os integrantes do grupo. 72


Na prática, ocorre o abarrotamento de processos individuais no Poder Judiciário. Alguns temas geram uma enorme quantidade de processos semelhantes, podendo-se citar como exemplos as ações envolvendo expurgos inflacionários, benefícios previdenciários, tarifas de serviços públicos e vantagens legais de servidores públicos. A coexistência de milhares de processos individuais com a mesma causa de pedir dificulta o julgamento de todos os feitos em tempo razoável e gera altos custos às partes e ao Poder Judiciário, o que indiretamente prejudica uma grande massa de titulares de direito. Deixa-se de atender à duração razoável do processo, direito fundamental previsto no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal. Segundo Cerqueira (2010): as garantias individuais de acesso à justiça devem ser interpretadas e ponderadas diante da garantia da coletividade de jurisdicionados a um processo célere e eficaz. Somente entendendo o processo como uma garantia coletiva é que se avançará em prol da sua real instrumentalidade no plano individual.

Outra desvantagem do atual sistema é que a manutenção de diversas ações individuais, concomitantemente com ações coletivas, é campo fértil para o surgimento de sentenças contraditórias. Quanto mais processos individuais são distribuídos, a diferentes juízos, maior é a possibilidade de entendimentos divergentes acerca da mesma matéria. Apesar de constituir fenômeno natural do direito, a existência de decisões divergentes em casos análogos não é desejável. Portanto, se de um lado o sistema atual alberga o direito subjetivo de ação e o acesso à jurisdição, de outro lado desvaloriza a economia processual, a duração razoável do processo e a efetividade da tutela jurisdicional. Diante desse quadro, devem ser valorizadas as alternativas para melhor aproveitamento das ações coletivas e para a diminuição do número de ações individuais na fase de conhecimento. Na atualidade, já há mecanismos legais de coletivização de julgamentos. O artigo 285-A do Código de Processo Civil prevê a prolação de sentença sem citação do réu ou instrução do processo, quando se tratar de matéria de direito que já tenha sido rejeitada no mesmo juízo. 73


Já os artigos 543-B e 543-C do Código de Processo Civil estabelecem, respectivamente, a repercussão geral de recursos extraordinários e o julgamento de recursos especiais repetitivos. Nos dois casos, a admissão dos incidentes nos tribunais superiores provoca a suspensão de recursos que tratam da mesma matéria, até o julgamento do recurso paradigma. Segundo Didier e Zaneti (2011, p. 8), há conexão por afinidade entre os recursos repetitivos, sendo esta uma nova espécie de conexão, que acarreta não a reunião, mas sim a suspensão dos recursos pendentes para julgamento do recurso paradigma. Outrossim, o Projeto de Reforma do Código de Processo Civil (PLS 166/2010) prevê novo instituto denominado incidente de resolução de demandas repetitivas, que deve possibilitar a suspensão de processos fundados em idêntica questão de direito, quando houver controvérsia com potencial de gerar múltiplos processos e de causar insegurança jurídica: Art. 930. É admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes. [...] Art. 934. Admitido o incidente, o presidente do tribunal determinará, na própria sessão, a suspensão dos processos pendentes, em primeiro e segundo graus de jurisdição.

Há grande expectativa no meio jurídico pela aplicação do incidente de demandas repetitivas, que por certo contribuirá na resolução do problema da multiplicação de ações individuais com a mesma questão de direito. Ainda que o instituto seja regulado no novo Código de Processo Civil, e não na Lei de Ação Civil Pública ou no aguardado Código de Processo Coletivo, terá eficácia no Direito Processual Coletivo. Todavia, assim como os outros mecanismos de coletivização de demandas, o incidente de demandas repetitivas também deixa de conferir a necessária preferência às ações coletivas em relação às ações individuais correlatas, pois o processo escolhido como paradigma não é necessariamente um processo coletivo, podendo ser escolhido dentre os vários processos individuais de forma aleatória. 74


Melhor seria se o projeto de lei tivesse dado preferência à ação coletiva, movida por legitimado compromissado com a defesa do grupo de pessoas lesadas, cuja coisa julgada pudesse ser estendida a todos os particulares, caso procedente o pedido genérico. Nesse sentido, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Herman Benjamin, registrou, em seu voto proferido no REsp n. 911.802/RS, a seguinte percepção: [...] inverteu-se a lógica do processo civil coletivo: em vez da ação civil pública fazer coisa julgada erga omnes, é a ação individual que, por um expediente interno do Tribunal, de natureza pragmática, de fato transforma-se, em consequência da eficácia uniformizadora da decisão colegiada, em instrumento de solução de conflitos coletivos e massificados. Não se resiste aqui à tentação de apontar o paradoxo.

E, ainda que o incidente de demandas repetitivas do novo CPC venha a priorizar a ação coletiva na escolha do processo paradigma, restará descoberta a hipótese de a questão envolver também matéria fática, comum a diversas pessoas. Assim, é necessário que a alteração legislativa seja mais profunda, a fim de estabelecer uma nova relação entre ações coletivas e ações individuais semelhantes, com priorização dos feitos coletivos em relação aos processos individuais correlatos, independentemente da questão discutida. Com efeito, já existe projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, tratando da codificação do processo coletivo no Brasil. O Projeto de Lei da Câmara n. 5.138/2009 prevê regramento próprio para as ações civis públicas que tutelam os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, com a consequente revogação da Lei de Ação Civil Pública e de diversos artigos do Código de Defesa do Consumidor. Ao tratar da relação entre ações coletivas e individuais, o projeto de lei dispõe: Art. 37. O ajuizamento de ações coletivas não induz litispendência para as ações individuais que tenham objeto correspondente, mas haverá a suspensão destas, até o julgamento da demanda coletiva em primeiro grau de jurisdição.

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§ 1º Durante o período de suspensão, poderá o juiz perante o qual foi ajuizada a demanda individual, conceder medidas de urgência. § 2º Cabe ao réu, na ação individual, informar o juízo sobre a existência de demanda coletiva que verse sobre idêntico bem jurídico, sob pena de, não o fazendo, o autor individual beneficiar-se da coisa julgada coletiva mesmo no caso de o pedido da ação individual ser improcedente, desde que a improcedência esteja fundada em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. § 3º A ação individual somente poderá ter prosseguimento, a pedido do autor, se demonstrada a existência de graves prejuízos decorrentes da suspensão, caso em que não se beneficiará do resultado da demanda coletiva. § 4º A suspensão do processo individual perdurará até a prolação da sentença da ação coletiva, facultado ao autor, no caso de procedência desta e decorrido o prazo concedido ao réu para cumprimento da sentença, requerer a conversão da ação individual em liquidação provisória ou em cumprimento provisório da sentença do processo coletivo, para apuração ou recebimento do valor ou pretensão a que faz jus. § 5º No prazo de noventa dias contado do trânsito em julgado da sentença proferida no processo coletivo, a ação individual suspensa será extinta, salvo se postulada a sua conversão em liquidação ou cumprimento de sentença do processo coletivo. § 6º Em caso de julgamento de improcedência do pedido em ação coletiva de tutela de direitos ou interesses individuais homogêneos, por insuficiência de provas, a ação individual será extinta, salvo se for requerido o prosseguimento no prazo de trinta dias contado da intimação do trânsito em julgado da sentença proferida no processo coletivo.

Na exposição de motivos da proposição legislativa, a comissão de juristas explicou que os institutos da conexão, continência e litispendência foram tratados de forma a “assegurar de maneira mais ampla a reunião de processos e a evitar a proliferação de demandas e a divergência entre julgamentos”. De acordo com o projeto de lei, a suspensão das ações individuais não causa prejuízo aos titulares de direito, já que é temporária e não impede a aplicação de medidas urgentes nos processos singulares. O indivíduo pode prosseguir com sua ação, caso a ação coletiva seja julgada improcedente por falta de provas, ou requerer a 76


conversão da ação individual em liquidação provisória ou em cumprimento provisório da sentença coletiva, caso esta seja procedente. Entretanto, vislumbra-se prejuízo aos autores individuais diante da ausência de limite temporal de suspensão do processo. O projeto de lei dispõe que a suspensão do processo individual é obrigatória e perdurará até o julgamento da ação coletiva em primeiro grau de jurisdição. Pondera-se que o particular não pode ficar à mercê de um processo coletivo que tramite por vários anos, não raramente procrastinado pelo réu para se omitir de sua responsabilidade perante o grupo de lesados. O ideal é que o projeto de lei seja alterado, estabelecendo-se um prazo para suspensão das ações individuais, com previsão de retomada dos processos individuais a partir desse prazo e determinando-se a tramitação prioritária do feito coletivo em relação a outros processos de natureza cível. Assim, o magistrado competente para julgar o processo coletivo será estimulado a resolver a lide de maneira uniforme, em prazo razoável. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já tem admitido, ao largo de previsão legal, que o magistrado determine de ofício a suspensão de ações individuais ante a propositura de ação coletiva, quando se tratar de macrolide capaz de gerar múltiplos processos individuais. Nesse sentido estão os acórdãos proferidos no REsp 1110549/RS (DJe 14/12/2009) e no AgRg no AREsp 210.738/RS (DJe 05/11/2012). De acordo com o Superior Tribunal de Justiça, “ajuizada ação coletiva atinente a macro-lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva”. Entretanto, o STJ utiliza como fundamento, por analogia, o artigo 543-C do Código de Processo Civil, que trata do julgamento de recursos especiais repetitivos, deixando de atender à melhor técnica processual, diante do conservadorismo da legislação vigente. Segundo o voto do Ministro Sidnei Beneti no REsp 1110549/RS, referente à correção monetária devida em virtude de planos econômicos, pretensão que era objeto também de ação civil pública movida pelo Ministério Público, os rigores formais de admissibilidade devem ser mitigados, diante relevância da tese principal, a fim de que se cumpra o que a Lei atualmente

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determina, ou seja, que o Tribunal julgue de vez, com celeridade e consistência, a macro-lide multitudinária, que se espraia em milhares de processos, cujo andamento individual, repetindo o julgamento da mesma questão milhares de vezes, leva ao verdadeiro estrangulamento dos órgãos jurisdicionais, em prejuízo da totalidade dos jurisdicionados, entre os quais os próprios litigantes do caso.

A corte superior não escapa de receber críticas, como a de Torres (2013, p. 10), para quem “os tribunais superiores, sublinhe-se, em atividade contra legem, vêm, em alguns casos, determinando, de ofício, a suspensão dos feitos individuais em tramitação. A determinação, por vezes, alcança até mesmo feitos que sequer foram intentados”. Por outro lado, é louvado por Didier e Zaneti (2011, p. 8), para quem “o STJ deu um grande passo na racionalização do sistema de tutela dos direitos, dando-lhe mais coerência e eficiência. Percebe-se que mudanças legislativas, às vezes, são desnecessárias; a mudança do repertório teórico do aplicador é muito mais importante”. Consolida-se, assim, no tribunal responsável por interpretar a lei federal no país, a prevalência da ação coletiva em relação a ações individuais, quando a primeira constitua macro-lide geradora de demandas multitudinárias, que seja apta a tutelar de uma só vez direitos de todos os integrantes da coletividade substituída. Essa ideia deve permear a necessária positivação da matéria no direito brasileiro, que se espera com a aprovação do Código Brasileiro de Processo Coletivo, que tramita no Congresso Nacional.

CONCLUSÃO Conclui-se que é pertinente a alteração da lei brasileira que regula a relação entre ações coletivas e ações individuais, com vistas à valorização das ações coletivas e à celeridade processual. O projeto do novo Código de Processo Civil contempla o incidente de resolução de demandas repetitivas, que deverá unificar a resolução de demandas que compartilham a mesma questão de direito, com potencial para desafogar boa parte dos processos que aguardam apreciação do Poder Judiciário. 78


Sem prejuízo desse novo instituto, é necessário aprovar o projeto de lei n. 5.138/2009, que estabelece a suspensão dos processos individuais cuja tutela possa ser alcançada por meio da ação coletiva, sem prejuízo da concessão de medidas judiciais urgentes em favor dos autores individuais. Entretanto, o projeto de lei deveria também definir prazo máximo para a suspensão das ações individuais, bem como conferir prioridade ao julgamento de ações coletivas em relação a outros processos de natureza cível. REFERêNCIAS ALMEIDA, Wânia Guimarães Rabêllo de. A relação entre ações coletivas e ações individuais no processo do trabalho: litispendência e coisa julgada. 2010. 346f. Dissertação (Mestrado em Direito) – PUCMG, Belo Horizonte-MG. Disponível em: http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_AlmeidaWG_1.pdf. Acesso em: 20 mar. 2013. BRASIL.Lei n. 5869, de 11 de janeiro de 1973.Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 17 jan. 1973. ______. Lei n. 7347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 25 jul. 1985. ______. Lei n. 8078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 12 set. 1990. ______. Projeto de Lei n. 5139/2009 da Câmara dos Deputados. Disciplina a ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, e dá outras providências. Congresso Nacional. Brasília, DF. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=DB1E1C85E008186C0DB1612 D2CE0F8A9.node1?codteor=651669&filename=PL+5139/2009. 79


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