Revista Ponto #15 - ABR/MAI/JUN 2018

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abr/mai/jun 2018

RAFAEL SILVEIRA: O ARTISTA QUE TRATA DE TEMAS PESADOS DE UM JEITO MUITO ORIGINAL

Memรณria

Lapa, as jabuticabas de Tarsila e um bom sujeito

O destino dos oceanos

Por Joรฃo Lara Mesquita



Na página anterior, ilustração da publicação O senhor cem cabeças, de Ghislaine Herbéra, para a SESI-SP Editora.

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editorial

Este número da Ponto apresenta uma novidade em relação à distribuição da revista.

Ampliaremos a tiragem de 5 mil para 13 mil exemplares a fim de atender à crescente demanda da área de cultura dos Centros de Atividades do SESI-SP espalhados pelo interior do Estado. Essa ação ajuda a fortalecer a presença institucional da revista Ponto nas comunidades em que o SESI-SP está presente e proporciona que ela seja lida em localidades a que antes não chegávamos de maneira tão efetiva. Outra importante novidade é o site da revista Ponto, que contará com atualizações constantes, ampliação de seus conteúdos e a facilidade na navegação, o que torna a leitura muito mais agradável, inclusive, em todas as nossas edições anteriores. Além disso, estrearemos um blog e disponibilizaremos outras interatividades com o intuito principal de nos aproximar ainda mais dos nossos leitores. O site pode ser acessado pelo endereço www.revistaponto. com.br. Nele apresentamos o que há de mais moderno em termos de arquitetura da informação, conteúdo interativo e layout. Como as duas maiores forças motivadoras desta publicação são fomentar a produção cultural e a disseminação da literatura, além de estimular a leitura e a formação de nossa sociedade, conseguimos, com essas novidades, contribuir e ampliar cada vez mais as possibilidades de distribuição e acesso à nossa revista. O mundo da Ponto se expande e buscamos, a cada novo número, uma maneira de manter vivo este projeto, mesmo com todas as dificuldades para mantê-la em circulação, e esperamos que o nosso conteúdo também cresça e alcance novos patamares e, a cada edição, contamos sempre com o apoio na divulgação por parte de nossos leitores. Desta vez, deixo o conteúdo apresentar-se por si mesmo e desejo uma boa leitura! O Editor

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15 ABR/MAI/JUN 2018

Conselho editorial Paulo Skaf (Presidente) Walter Vicioni Gonçalves Neusa Mariani Comissão editorial Alexandre Ribeiro Meyer Pflug Rodrigo de Faria e Silva Editor-chefe Rodrigo de Faria e Silva Coordenação editorial Gabriella Plantulli Mario Santin Frugiuele Produção gráfica Camila Catto Sirlene Nascimento Valquíria Palma Assistente editorial Magda Sona Editoração Letícia Alvarez Sardella/Globaltec Editora Colaboradores desta edição Cadão Volpato Caio Tozzi Carlos Castelo Evandro Affonso Ferreira João Lara Mesquita Jorge Miguel Marinho Nelson de Oliveira Renato Dias Ronaldo Bressane Susana Ventura Revisão Danielle Sales

abr/mai/jun 2018

Jornalista responsável Gabriella Plantulli (MTB 0030796SP) Projeto gráfico Tereza Bettinardi Tiragem desta edição 13 mil exemplares

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Memória

ABR/MAI/JUN 2018

Lapa, as jabuticabas de Tarsila e um bom sujeito

O destino dos oceanos

Por João Lara Mesquita

CAPA Obra " Un Giro Nella Mente", óleo sobre tela, 2015, do artista Rafael Silveira.

(Divulgação)

RAFAEL SILVEIRA: O ARTISTA QUE TRATA DE TEMAS PESADOS DE UM JEITO MUITO ORIGINAL

Impressão Pancrom Revista Ponto® – Publicação literária e cultural Número 15 – ABR/MAI/JUN de 2018 SESI-SP Editora Av. Paulista 1313, 4o andar Tel. (11) 3146-7134 comunicacao_editora@sesisenaisp.org.br www.sesispeditora.com.br www.facebook.com/sesi-sp-editora


Obra do artista Rafael Silveira (Divulgação)

sumário

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Criador de um universo onírico, divertido e descabeladamente pop, Rafael Silveira trata de temas pesados de um jeito muito original

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36

64

Lançamentos

Lapa, as jabuticabas de Tarsila e um bom sujeito

Ler: um modo de ser feliz

Estante de livros

10

Bombons recheados de cicuta

Memória

42

Cultura

Artigo

72

Ponto do Conto

Origens do Carnaval Paulista

Cidades e noites Por Cadão Volpato

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52

78

Jaguar, Orlandeli, Ossostortos, Ruis e Gilmar

O lado (ainda) desconhecido dos contos de fadas

A eternidade e seu epílogo Por Thássio Ferreira

Por Evandro Affonso Ferreira

Tirinhas

Ensaio

20

58

O destino dos oceanos

Um bom lugar para morar

Meio ambiente

26

Literatura

Vasta memória de papel e tinta

Infantojuvenil

Ponto do novo contista

85

Unidades do SESI-SP


estante de livros

Três menos um é igual a sete WANDER PIROLI Ilustrações de LELIS

WANDER PIROLI Ilustrações de LELIS

Nesse livro, o escritor empresta sua prosa caipira a uma família que vive na capital mineira, mas passa os fins de semana em uma chácara que, um belo dia, é invadida por ladrões. A solução é arrumar um cachorro. Mas, ao invés de um, a família arranja três. Quando decidem se livrar de um deles, descobrem que de fato o cachorro é o mais fiel amigo do homem.

O menino Bumba está animado com o passeio do dia – irá pescar com o pai. Mais feliz do que ele, no entanto, é o próprio pai, que quer repetir com o filho exatamente o que fazia com seu pai, o avô de Bumba. Tudo deveria ser igual – as varas de pescar, o lanche da matula e até o trajeto de trem. Mas o pai se dá conta de que nada é como antes – nem a partida na estação, muito menos a paisagem, que já antecipa a decepção da chegada – por conta da poluição, não há mais mata, peixes ou mesmo rio.

Terror em três atos

Boa sorte, Dante

FLÁVIA MUNIZ E SHIRLEY SOUZA

CAIO TOZZI Ilustrações de PSONHA E THIAGO OSSOSTORTOS

Três histórias clássicas de puro medo. Nesse livro, você encontrará as vozes macabras de personagens e autores, recriadas com os feitiços de Flávia Muniz e Shirley Souza. Já pensou em como seria a vida de um escritor dominado por sua personagem? Pois, nessa obra, você irá imaginar. 6

Os rios morrem de sede

Dante é um menino com problemas de memória, que usa uma caderneta para ajudá-lo a se lembrar das coisas. Ao se mudar com seus pais para uma nova cidade, Dante se envolve numa grande aventura e terá que solucionar um mistério que rodeia o teatro antigo onde mora.


Meu vizinho é um cão ISABEL MINHÓS MARTINS Ilustrações de MADALENA MATOSO

Meu vizinho é um cão nos conta como a vida de uma menina, que morava num prédio onde “quase nada acontecia”, se transforma com a chegada de novos vizinhos – criaturas animais e à primeira vista bizarras, que vão afinal mostrar-se simpáticas e disponíveis para estabelecer laços com aqueles que as rodeiam.

Epigramas recheados de cicuta

99 brincadeiras cantadas

Felipe – o menino que refletia

EVANDRO AFFONSO FERREIRA E JULIANO GARCIA PESSANHA

MARLON CHUCRUTS E CIA. MALAS PORTAM

FERNANDO KNIJNIK

Breves diálogos poéticos que, tal cicuta ingerida, pode causar engasgos imediatos, náuseas, convulsões, tremores. Morte? Esta já está garantida. E o que vem antes? Em caso de gargalhadas, não se engane, há algumas passagens de amargar. Não se aconselha ler com moderação.

Nesse livro você vai (re) aprender as brincadeiras cantadas de roda, de mão e com corda que ocupam o imaginário do povo brasileiro há muito tempo. As melodias de cada uma das 99 canções estão disponíveis por meio de links e QR Codes.

Felipe é um menino curioso e cheio de energia. Um dia ele se acidenta e precisa ficar de repouso por duas semanas. Como suportar essa temporada sem fazer as coisas de que mais gosta? O que poderia ser um período chato se transforma em uma época de várias descobertas relacionadas ao amplo universo da física.

Lá em casa somos ISABEL MINHÓS MARTINS Ilustrações de MADALENA MATOS

Esse livro aborda, de maneira inusitada e divertida, um assunto muitas vezes temido pelas crianças: os números e, por consequência, a matemática. Por meio dos números, seguimos o dia a dia dessa família que poderia ser a nossa. Mais ainda: ao somar, somar e somar, as autoras nos ajudam a compreender os hábitos e o funcionamento do corpo humano. 7


estante de livros

Infâncias: aqui e além-mar JOSÉ JORGE LETRIA, JOSÉ SANTOS Ilustrações de CÁTIA VIDINHAS E GUAZZELLI

Se a sua infância pudesse ser traduzida numa cor, que cor seria? Se tivesse um cheiro, seria de quê? Os poemas desse livro contam lembranças da meninice de seus autores, que têm em comum a vontade de contar em versos suas infâncias, em uma bela trajetória literária.

A menina do mar SOPHIA DE MELLO E BREYNER ANDRESEN Ilustrações de VERIDIANA SCARPELLI

Em A menina do mar, a escritora projeta sobre crianças de todas as idades o desejo de mergulhar definitivamente no Azul, de unir a terra e a água numa mesma pátria de alegria e fluidez. Uma história que ensina o amor e a saudade como grandes afetos dos seres marinhos.

HQs

Valerian 3 PIERRE CHRISTIN E JEAN-CLAUDE MÉZIÈRES

Pela inventividade e audácia de seus autores, a série rapidamente se tornou referência para os leitores de histórias em quadrinhos de ficção científica. Nesse volume integral de Valerian você encontrará os seguintes álbuns: O embaixador das sombras; Nas terras falsificadas e Os heróis do equinócio.

A fada Oriana SOPHIA DE MELLO E BREYNER ANDRESEN Ilustrações de VERIDIANA SCARPELLI

Oriana é uma fada boa invisível aos olhos das pessoas. Ela cuida da floresta e de seus moradores e, por isso, mal tem tempo para si. Um dia, quando olha seu reflexo na água, surpreende-se com sua própria beleza e passa a admirar-se por horas a fio, perdendo-se em sua vaidade. Como punição, tem de abrir mão de seus bens mais preciosos – a varinha de condão e as asinhas – e lidar com as dificuldades da vida sem magia. 8

O bestiário particular de Parzifal HIRO KAWAHARA

Parzifal e a mãe vivem escondidas em uma floresta fugindo de uma profecia. Solitária após a morte da mãe, Parzifal inventa amigos imaginários. Ao completar 24 anos, precisou viver na cidade. Anos depois, com uma filha muito doente, sem dinheiro e alguém com quem contar, a única saída que lhe resta é retornar à floresta em busca do auxílio de seus antigos amigos imaginários.


Quando você lê _______, você é o Dom Quixote por um tempo.

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bombons nº 04 por Evandro Affonso Ferreira ilustrações de Bruno Maron

Foi surpreendido hoje cedo numa esquina: levaram tudo o que ele tinha no bolso – inclusive alguns pressentimentos. * Faz da gaveta do criado-mudo sua clausura – é o inseto ortóptero mais discreto que existe: não sai de seu cativeiro nem mesmo para ver, in loco, o motivo dos ais e uis do casal ao lado.

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Sempre que sai de casa tem certeza absoluta de que o Fastio se encontra atocaiado numa encruzilhada qualquer – dizem que esse delírio sistemático atende pelo nome de Paranoia.

* Torcicolo ecumênico o impede de ver as coisas sob vários dogmas diferentes.

*

Só, sempre só, embrenhava-se o tempo todo nos matagais da solidão. Exercitava solilóquios para afugentar destrambelhos. Agora, de uns tempos para cá, aprendeu a praticar heteronímias – hoje convive muito bem com o seus muitos-inúmeros fictícios Eus.

*


Vivem juntos há décadas, mas não se conhecem: toda frase que um diz sobre o outro carece de duas extremadas aspas. * Quase sempre conversa emperra: tenho muita dificuldade em dialogar comigo mesmo – somos sempre mutuamente esquivos.

*

Acomoda-se nos âmagos de si mesmo. Sabe que ainda vai demorar para conhecer a posição de todos os seus acidentes naturais ou artificiais: é um ser humano de topografia muito complexa. *

Escritor coerente recusa-se a vender seu romance epistolar nas livrarias: leitor só poderá recebê-lo pelo correio.

* Mudou-se para casa maior: na antiga não havia mais espaço suficiente para guardar tanto rancor.

*

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tirinhas

Jaguar*

*Este cartum faz parte do livro Átila, você é bárbaro, da SESI-SP Editora. 12


Orlandeli

Ossostortos

Bobo da corte − Ruis

Gilmar

Os autores das tirinhas integram o catĂĄlogo da SESI-SP Editora. 13


“Borboletas no Jardim”, de Rafael Silveira.

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entrevista

Horror = humor por Ronaldo Bressane

(Divulgação)

O que têm em comum personalidades tão diversas quanto o curador e

crítico de arte Agnaldo Farias, o músico Samuel Rosa, líder do Skank, o chef Alex Atala, dono do D.O.M., o empresário e colecionador Tibira e o diretor da Biblioteca Mario de Andrade, Charles Cosac? Todos têm obras de Rafael Silveira em suas paredes. Diversidade e diversão, eis algumas das marcas das telas, instalações e objetos multimídia deste curitibano de 37 anos – mas não só: a morte, o horror e a lisergia mais vertiginosa também rondam seu universo pictórico. O repórter perambulou pela vernissage de Silveira no Espaço de Exposições do Centro Cultural Fiesp num domingo ensolarado de fevereiro e notou que as expressões dos visitantes se repartiam entre sustos e sorrisos (enquanto isso, o repórter observava sua filha de seis anos pular loucamente sobre o sorvete-pufe, hit da exposição, e pensava: em quais outras exposições se juntam senhores severos com a mão no queixo, hipsters em busca de cenários para selfies e crianças malucas?). Por sorte, deu para tomar um café com o artista no saguão e matar curiosidades. Descobriu-se que: Silveira também é músico; já fez quadrinhos; é formado em artes gráficas e trabalhou com propaganda; a partir da pintura a óleo, técnica onipresente em seu trabalho, encadeia narrativas misturando botânica, bordado, circo, tatuagem, objetos cinéticos, clichês de publicidade dos anos 1950 e catálogos de moda do século XIX; e trabalha direto com sua esposa, a tecelã Flávia Itiberê. Em Circonjecturas, nome da exposição em cartaz na pirâmide da Fiesp, o público é convidado a entrar e interagir com a paisagem gráfica que toma conta do espaço expositivo – uma grande instalação imersiva, em que iluminação, sonorização e obras são dispostas de modo a criar uma experiência onírica e espiritual, fazendo com que o próprio público multifacetado de um domingo da avenida mais circense de São Paulo se metamorfoseasse no ambiente. Para ter uma ideia de como foi nosso café com Silveira, fica a sugestão: sua voz rima trompete com sorvete e solventes. 15


(Divulgação)

Por que essa fixação no imaginário norte-americano dos anos 1950? Não são só os anos 1950… Começa muito mais longe, nos artistas das expedições científicas do século XVI, passando por rococó, artes gráficas da era vitoriana, art nouveau e, daí sim, anos 1950, 1960, 1970. Creio que essa fixação por um imaginário, digamos assim, “vintage”, está relacionado ao poder que a imagem impressa antiga emana, esse poder que vem de um profundo inconsciente coletivo. O surrealismo é singular em sua obra, mas me parece um movimento que não teve muita ressonância no Brasil. Por quê? Acho que essa classificação do trabalho artístico é uma tarefa difícil, que eu deixo para curadores, críticos de arte, jornalistas... Não busquei esse surrealismo, não pesquisei especificamente esse movimento, esse componente emergiu de forma bem orgânica. Sou um pouco cético com relação a essas classificações, pois tentam delimitar algo complexo, então acaba sempre caindo em uma simplificação constrangedora. Amor, morte, bichos escrotos e cores fofinhas convivem numa boa nas suas imagens. Você acha a morte uma coisa fofa? Já conheci a morte de perto. Não é fofa, não. No meu trabalho, penso em esqueletos e vísceras muito mais como algo que está vivo e escondido por paredes de carne e pele. É como se cada pessoa fosse em seu interior uma dimensão paralela, feita de pensamentos, protegidos por camadas de ossos, órgãos e fluidos. Como assim conheceu a morte de perto? Minha irmã faleceu aos 33 anos (na época eu tinha 29). Não gosto de comentar muito esse assunto, pois é muito triste. O que posso dizer é que foi por escolha própria dela. Como foi sua infância? Feliz? Assustadora? O ambiente nos anos 1980 era muito selvagem, ninguém falava em bullying, a violência física e psicológica apenas corria solta como algo normal. Depois de muita porrada me tornei um tanto introspectivo. Teve problemas na escola? De 1978 a 1987 morei em Paranaguá, cidade próxima a Curitiba. Crianças em geral tendem a ser cruéis. Naquela época não havia essa vigília de celulares filmando o tempo todo, muita coisa acontecia sem que ninguém estivesse vendo… Era meio selvagem. Não acho que foi algo específico comigo. Qualquer criança que deixasse transparecer alguma fragilidade virava um prato cheio. 16

“Flor ou Fato”, de Rafael Silveira e Flávia Itiberê.


entrevista

Tatuagens e quadrinhos também são interlocutoras de seu trabalho, não? Minhas origens mais primitivas trazem muita informação gráfica dos quadrinhos e tatuagens. Após vinte anos frequentando a cena underground, as tattoos e fanzines acabam virando parte do imaginário. Imagino que Edgar Allan Poe esteja no topo da cadeia alimentar das suas referências literárias... Também posso citar Kafka e Augusto dos Anjos... Não utilizei ainda, mas é uma boa. Preciso ler mais! Com que obras e artistas você acha que dialoga no cenário brasileiro e internacional? No Brasil, acho que minha obra dialoga com coisas muito antigas, de artistas que não são bem brasileiros, mas tem o Brasil como tema: Rugendas, Eckhout, Martius e Spix. Nos internacionais, gosto muito de Audubon, Gil Elvgren, Haddon Sundblon, além de muita influência das artes gráficas do século XIX. Sobre a aproximação entre horror e humor: você conhece o trabalho do Mark Ryden? E Tim Burton, é uma linha a dialogar? Seu trabalho se enquadraria na estética “horror fofinho” ou horror bem-humorado? Conheço e adoro o trabalho do Ryden. É um monstro da pintura, sem dúvidas! O Tim Burton certamente é genial, adoro. Não sei se consigo ser fofinho... Mas nas minhas obras quase sempre tem uma carga de humor. Não sei explicar o porquê, vem muito da minha personalidade. Me interessa caráter provocativo do humor. Você é um artista bastante figurativo. Mas também flerta com a instalação, a performance e ambientes imersivos. Como foi seu percurso artístico? Comecei criança, fazia meus próprios gibis… Depois, adolescente, descobri que isso se chamava fanzine e me arrisquei fazendo alguns. Depois fiz cartazes de show, capas de disco, ilustrações para revistas, livros... Até começar a pintar a óleo. Fiz faculdade de artes plásticas (não concluí). Sou formado em publicidade (trabalhei dez anos na área). Penso que ter banda deixa o sujeito meio multimídia. A vivência na publicidade também tem muito disso. Precisar de faculdade, não precisa não. Mas aprendi coisas valiosas no meu percurso ­acadêmico. Em que trabalho você se sentiu realmente artista, sentiu que tinha uma obra, uma voz própria? A capa para o disco do Skank, Estandarte, de 2008, foi muito bacana. Uma banda grande que me deu liberdade total para criar. Nem tema me deram, 17


nada. Entregaram o trabalho para mim e disseram: você é o artista. Foi um divisor de águas para mim. Você fez algumas exposições solo, é representado pela galeria Choque Cultural, vai lançar um livro em breve. Para quem saiu do underground, é um percurso e tanto. Você planejou sua carreira? Se sim, quais os próximos passos? Não planejei muito não, apenas trabalho duro com objetivos mais próximos. O próximo passo certamente é o livro! Quero também fazer uma exposição “solo” em duo com minha esposa, Flávia Itiberê, só com os bordados que estamos criando juntos. Penso que vai sair muita coisa interessante dessa parceria. Já tem alguma ideia pra esse livro*? Está quase pronto. É um apanhado de quase uma década de produção. Tem as obras, as exposições recentes e fotos de processo. Tem também um ensaio que está sendo escrito pelo curador Agnaldo Farias. Estou muito entusiasmado com o livro. Eu adoro livros, tenho um carinho especial por eles, e esse vai sair caprichado. Como é seu método de trabalho? Desenha a lápis, depois repassa pra tela? Usa nanquim? Usa computador? Uso de tudo... Especialmente lápis para esboçar e desenhar e computador (para estudos de cor e composição). Você vai pra obra já sabendo o que fazer? É mais intuitivo ou mais cerebral? Os dois! Há dois momentos bem distintos. Quando eu crio, tudo ocorre de forma caótica e orgânica, não sei ao certo nem controlo o que está acontecendo. Disso surgem esboços grosseiros, quase que meras anotações mesmo. Num segundo momento, transformo esses rascunhos em obras pictoricamente complexas, é um trabalho minucioso, metódico, cerebral. Nessa etapa, eu gosto de ter o controle. Como é sua pesquisa de cores? Coleciono paletas de cores. Elas podem vir de uma foto, uma litografia antiga, uma embalagem de fósforo indiano, uma capa de HQ, um cartaz de filme... As fontes são as mais diversas. É importante para o artista ter uma pesquisa visual constante. Sou obsessivo com isso, faço por prazer. Já pensou em fazer quadrinhos ou animação? Já fiz... Cheguei a publicar pela Dark Horse em uma antologia chamada New Recruits, com uma HQ de umas trinta páginas. Era um trabalho bem experimental, não sei como eles aprovaram isso, hahahaha! Eu assinava como RHS, 18

* O livro sairá no segundo semestre deste ano pela SESI-SP Editora.


entrevista

minhas iniciais. Não tenho novos quadrinhos no horizonte, mas certamente carrego comigo uma forte influência desta linguagem. Não sinto que eu precise exercer esta influência de forma literal. Ela pode entrar de tempos em tempos em minhas obras. Pode ser uma pintura, uma instalação, quem sabe um filme… Animação nunca… Seria bacana! O circo é outra grande influência sobre seu trabalho. Você frequentava circo? Já pensou em fugir com um circo? Se sim, seria trapezista, domador de leões, palhaço ou mágico? Namoraria a Mulher-Barbada ou as Gêmeas Siamesas? Ia muito quando criança, sim. Não fugiria, mas dessas opções creio que seria o mágico, hahaha! Quanto a namorar, adoro minha esposa, não consigo nem imaginar outra pessoa… Quando era mais novo, gostava mais desse universo freak. Com o tempo fui me afastando. Gosto dos banners de sideshows, já fui em sideshow. Mas confesso que prefiro o ponto de vista não literal do Charles Burns, que usa anomalias físicas para expressar questões psicológicas. Aliás, fale um pouco sobre Flávia Itiberê. Como vocês se conheceram? Há quanto tempo estão juntos? Como ela influencia seu trabalho? Nos conhecemos por meio de amigos em comum... Estamos há onze anos juntos. Ela vem da área de moda e trouxe uma série de referências desse universo. Aos poucos, a indumentária dos meus personagens passou a ter uma importância maior nas narrativas, e foi ficando mais interessante. Ela também é muito crítica e me faz melhorar as obras, em detalhes que eu não percebo... Como é o processo de trabalho de um casal? Vocês mantêm um ateliê juntos? Quais os próximos passos dessa parceria, além da exposição? A gente troca muita ideia sobre meus trabalhos, ela tem bons insights artísticos. Depois de todos esses anos, começamos a pensar em uma forma de oficializar essa participação dela nas obras... Criamos então essa categoria de obras têxteis, que traz a linguagem dela à tona, misturada com meus desenhos. Esses trabalhos têm uma feminilidade que eu nunca alcançaria sozinho e têm também um caráter mais contemporâneo. Penso que isso deve nos levar a lugares a que a minha arte não chegaria sozinha. Trabalhamos juntos, nosso ateliê é em casa mesmo, ficamos juntos quase o tempo todo. Por incrível que pareça, pra gente funciona bem. E nessa intensidade toda dá pra sentir que tem uma entrega artística muito grande, o que transfere para as obras uma espécie de... alma!

RONALDO BRESSANE é jornalista e escritor, autor, entre outros, do romance Escalpo (Reformatório).

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Ocupação desordenada em Garopaba, Santa Catarina.

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meio ambiente

O destino dos oceanos por João Lara Mesquita

Depois de vinte anos dirigindo a Rádio Eldorado, em 2002 os acio-

(João Lara Mesquita)

nistas decidem que era chegada a hora dos Mesquitas abandonarem suas posições executivas no Grupo Estado. Aos 47 anos, tendo estudado música erudita, e com uma bagagem de vinte anos de experiência em rádio, me vi na incômoda posição de não saber o que fazer da vida. Foram anos difíceis até que veio a ideia: eu já conhecia rádio, jornal e revistas. Escrevia para ambos. Faltava a televisão. Naquela época era comum assistir a documentários sobre os lugares mais exóticos da Terra. Mas e o mar e a zona costeira brasileira? Temas como estes eram raros, e eu os conhecia bem. Navegava com meu pai, um fanático pescador, desde o final dos anos 1960. Tive o privilégio de conhecer o litoral de São Paulo e Rio de Janeiro praticamente intocados. Bastou abrirem a estrada litorânea, BR 101, para, em pouquíssimo tempo, nossa “pegada” destruir a beleza cênica e grande parte dos ecossistemas. Mangues aterrados para a construção de hotéis e condomínios, costões rochosos cimentados para a construção de rampas para barcos, especulação imobiliária e muita poluição. Bingo! Era isso o que eu queria fazer. Com o conhecimento de mais de quarenta anos navegando, não seria difícil alertar o público de que a ocupação desordenada do litoral estava ameaçando o mais importante ecossistema do planeta, sem o qual não haveria vida: os oceanos. Em abril de 2005, levei meu veleiro, Mar Sem Fim, até o rio Oiapoque. Eu desceria a costa brasileira registrando tudo para a TV Cultura. Dois anos depois, arrasado com o que vira, cheguei na fronteira sul, o arroio Chuí. Durante o período, produzi noventa documentários mostrando cada palmo do litoral brasileiro. Sucesso! Enquanto esteve no ar, a série “Mar Sem Fim” foi o programa de maior audiência da Cultura. Mas não foi só isso. 21


Durante a viagem, entrevistei mais de quarenta especialistas da academia, centenas de nativos, prefeitos e secretários de meio ambiente das cidades costeiras. Professores que dedicaram sua vida a estudar mangues, dunas, corais, vida marinha, poluição etc. deram contundentes depoimentos. Meu conhecimento, antes empírico, agora era também teórico. Mas a conclusão foi triste. Por ignorância em alguns casos, ganância e egoísmo em outros, estamos destruindo nosso mais importante ecossistema antes mesmo de conhecê-lo adequadamente. Até hoje o homem explorou menos de 5% do oceano profundo e, mesmo assim, foram recenseadas mais de duzentas mil espécies. Cientistas acreditam que identificaram menos de 10% da totalidade dos seres marinhos. Os oceanos são um bem coletivo, pertencem à humanidade. Com a viagem do Mar Sem Fim, aprendi que temos de mudar rapidamente tanto nossa ação pessoal como as políticas públicas se não quisermos ser co-responsabilizados por mais um desastre. Navios trazem organismos exóticos que tomam o lugar dos nativos. De acordo com a International Maritime Organization (IMO), doze bilhões de toneladas de água de lastro, contendo algo como cinco a sete mil espécies animais e vegetais, são transportados de um ponto para outro. A cada nove semanas, uma nova espécie marinha invade algum ambiente do planeta. No Brasil, não é diferente. Navios despejam água de lastro nos portos. Não há baía que não esteja contaminada. A introdução de espécies exóticas é a segunda maior causa de perda de biodiversidade, de acordo com a International Union for Conservation of Nature (IUCN). A primeira, o desaparecimento de habitats. Apenas um exemplo de contaminação: o mexilhão-dourado, molusco vindo da Ásia, entrou na América do Sul pelo Prata, infestou o Guaíba e subiu até o rio São Francisco. Agora ameaça chegar na Amazônia. Em seu trajeto, o molusco foi responsável pelo entupimento de encanamentos da usina de Itaipu, gerando enormes prejuízos e causando desequilíbrio ambiental. No Nordeste, a febre da carcinicultura, criação de camarões em cativeiro, extirpou enormes áreas de mangue, um importante berçário de vida marinha, que também tem a capacidade de limpar e melhorar a qualidade da água. Nos últimos 15 anos, o Brasil perdeu mais de 20% de sua área de manguezais, seja para a criação de camarões, seja para a construção de hotéis, condomínios ou casas de segunda residência. Na mesma região, falésias, antigas linhas da costa preservadas por lei por sua beleza cênica, são ocupadas impunemente. Dunas funcionam como repositório de areia. Por serem extremamente porosas, absorvem água. No Ceará, são a principal fonte de água doce das 22


meio ambiente

comunidades nativas. Elas agem como proteção contra a força das marés, temporais, ressacas. Devem ficar livres de interferência porque interagem com o ambiente e suas areias circulam: caem no leito dos rios, são novamente trazidas para as águas do mar e de lá para as praias, num movimento constante e dinâmico. Mesmo sendo proibido ocupá-las, no país a interdição se restringe aos papéis oficiais. Enquanto isso, a erosão toma conta do litoral. Corais são pisoteados por nativos e turistas. Barcos de pesca passam o arrastão, talvez a mais danosa espécie de pesca, na arrebentação, o que é proibido, sem qualquer fiscalização. E assim sucessivamente no sudeste e no sul. Caso você precise de mais evidências sobre a extraordinária capacidade do ser humano de destruir o planeta, considere isto: em 2050, os oceanos conterão mais plástico do que peixes, em peso (relatório da Ellen MacArthur Foundation apresentado no Fórum Econômico Mundial, Davos, 2016). Impressionado, passei a pesquisar sobre o estado dos oceanos na imprensa estrangeira que, ao contrário da nossa, ainda publica matérias a respeito; em sites especializados e em livros de especialistas. Foi assim que conheci Sylvia Earle e seu A Terra é azul, agora editado no Brasil pela SESI-SP Editora. O livro se tornou minha “bíblia”. De tão bom, eu tinha dois exemplares: um em casa, outro no barco. Enquanto navegava e via a destruição sistemática que impomos à zona costeira, ficava estarrecido com as informações desta que é a maior referência mundial na questão dos oceanos. E, mais uma vez, confirmei que estava certo ao me decidir levantar esta bandeira. Criei um site (www.marsemfim.com.br) para colocar as informações, fotos e filmes que recolhi. Publiquei livros, como O Brasil visto do mar sem fim (editora Terceiro Nome), em dois grossos volumes, escancarando nossa ação. Fui duplamente recompensado. Em 2008, ele foi indicado ao prêmio Jabuti na categoria reportagem. Ao ler Sylvia, descobri que ela pensava da mesma forma: “Talvez o mais problemático seja a grande e difusa ignorância sobre o papel vital dos oceanos para a vida de todas as pessoas, de todos os lugares e épocas”. “Hoje são comuns as manchetes sobre a preservação do ‘verde’, mas muita gente parece não saber que sem o ‘azul’ o ‘verde’ não existiria.” E prossegue: “Os oceanos regulam o clima, absorvem grande parte do dióxido de carbono da atmosfera, retêm 97% da água da Terra e abrigam 97% de sua biosfera”.

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“O mar controla a química do planeta, lançando na atmosfera a mesma água que voltará para a terra e para o mar através da chuva, da neve e do granizo, restabelecendo continuamente rios, lagos e aquíferos subterrâneos.” “A grande questão é: o que podemos fazer para cuidar do mundo azul que cuida de nós?” Ela mesma responde: “Desenvolver uma rede global de áreas protegidas no oceano, os ‘pontos de esperança’, me pareceu um desejo relevante e capaz de ajudar na proteção e recuperação da saúde do oceano”.

Até recentemente (anos 2000), menos de 3% dos oceanos eram protegidos por meio da criação de reservas marinhas. No Brasil, o índice é pior: 1,5% de “proteção” até hoje. Entre aspas mesmo. Já explico por quê. Do início do século XXI até hoje, novas e imensas reservas marinhas de proteção integral, aquelas de onde não se pode tirar nenhum tipo de recurso, sejam vivos, leia-se vida marinha, ou não, minerais, foram criadas. Crédito para cientistas como Sylvia Earle. Por causa dela, a terceira viagem que fiz pela costa brasileira foi para conhecer e registrar as poucas unidades de conservação federais do bioma marinho costeiro. Elas começam no Chuí e terminam no Amapá, totalizando apenas 1,5% de proteção e ferindo acordos internacionais que o Brasil assinou no âmbito da ONU, que preveem que até 2020 todos os países com saída para o mar tenham separado até 10% de sua zona costeira, ou mar territorial em áreas de proteção, os pontos de esperança de que fala Sylvia Earle. Mais uma vez fiquei mal-impressionado. Áreas imensas que foram transformadas em unidades de conservação não têm sequer um barco! Além de equipes mínimas. Em muitos casos, uma só pessoa toma conta de mais de 300 mil hectares “protegidos”. Como é possível fiscalizar a zona costeira sem barcos ou equipes? Entrevistando pescadores, ouvi um mantra que se repetiu de norte a sul: “o peixe acabou”. Os crustáceos seguem o mesmo destino. Foi este o motivo que me levou a procurar um grupo de ambientalistas e passar a lutar por mais áreas marinhas protegidas, desta vez longe da costa e de nossa ação. Roberto Klabin (SOS Mata Atlântica), Fábio Feldmann, José Truda Palazzo Jr. (Instituto Baleia Jubarte) e Angela Kuczach (Rede Pro-UCs) foram alguns deles. Nasceram os projetos para transformar os dois arquipélagos oceânicos, São Pedro e São Paulo, e Trindade e Martim Vaz, em áreas marinhas de proteção integral. O esforço deu resultados. No momento em que os projetos ficaram prontos, Sylvia desembarcou no Brasil para lançar seu livro. E imediatamente se engajou na campanha. Do lançamento, no início de março, 24


meio ambiente

na Fiesp, acompanhamos Sylvia numa audiência com o presidente Michel Temer. Ela entregou um exemplar autografado e, mais uma vez, explicou a necessidade da criação de áreas de proteção integral. Graças a esta feliz “conspiração de datas”, o projeto foi levado para o presidente Michel Temer, que o assinou. Saltamos de 1,5% de áreas marinhas protegidas para cerca de 25%.

Da redação Sylvia A. Earle foi apelidada pela revista New Yorker de “Vossa Profundeza”, e a Time a nomeou “Heroína do Planeta”. Essas são algumas das elogiosas referências que recebeu, condizentes com a dedicação dessa bióloga em desvendar e defender com extrema obstinação os oceanos. Para ela, a importância dos oceanos se dá não apenas por serem ambientes que abrigam ricos ecossistemas, mas pelo papel que desempenham na preservação da vida do planeta. A terra é azul, que a SESI-SP Editora acaba de lançar no Brasil e que vendeu mais de 50 mil exemplares em língua inglesa e também já foi traduzido para o espanhol, japonês e chinês, tem como objetivo principal responder a uma questão levantada por Earle: o que podemos fazer para cuidar do mundo azul que cuida de nós?”. Na publicação, ela faz uma radiografia da destruição da vida marinha e mostra a estreita relação entre o destino dos oceanos e o da humanidade. O trabalho é resultado das observações que recolheu em todos esses anos em que coordenou mais de cem expedições e somou mais de sete mil horas debaixo d’água. Retrata com detalhes o histórico da fúria extrativista com que os oceanos foram atacados, na crença de que seria uma fonte inesgotável de alimentos. O que vemos na publicação é que essa visão só levou ao extermínio de diversas espécies marinhas e muitas outras em via de extinção. A obra conta com prefácio de Bill McKibben, ambientalista norte-americano e autor dos best-sellers O fim da natureza, Deep Economy e Earth.

A TERRA É AZUL — POR QUE O DESTINO DOS OCEANOS E O NOSSO É UM SÓ? Autora: Sylvia A. Earle Páginas: 320

João Lara Mesquita é músico de formação, jornalista e fotógrafo. Entre 1982 e 2003, foi diretor da Rádio e Estúdio Eldorado, pertencentes ao Grupo Estado. Membro fundador (e conselheiro) do Núcleo União Pró-Tietê, ligado à Fundação SOS Mata Atlântica, ONG que desde 1990 comanda a campanha pela despoluição do rio Tietê. Foi conselheiro do Greenpeace de 2001 a 2004. Capitão amador, acumula mais de 60 mil milhas navegadas. Mais informações no site: marsemfim.com.br/

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literatura

Vasta memória de papel e tinta por Nelson de Oliveira

Imagens que fazem parte da obra A capa do livro brasileiro.

Livro. Book. Libro. Liber. Buch. Livre. Llibre. Em qualquer idioma,

que objeto mais fascinante! E mais simples, quando comparado aos eletrônicos que nos rodeiam. Livro não precisa de bateria nem tomada, muito menos de manual técnico. “Eu sempre imaginei que o paraíso seria um tipo de biblioteca”, disse um dos homens mais apaixonados por livros: o mestre dos espelhos, dos labirintos e das bibliotecas, Jorge Luis Borges. Muito antes da web, muito antes da tevê e do cinema, muito antes do rádio, o livro já era a grande fábrica de sonhos lúcidos e inquietações sociais. No século XVII, o engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha perdeu o juízo de tanto ler romances de cavalaria, cheios de gigantes e feiticeiras. Mais tarde, no século XIX, quem perderá o juízo será a entediada dona de casa Emma Bovary, de tanto ler romances sentimentais e fantasias românticas. Livros são libertadores, são parte importantíssima de nossa memória externa, fora de nosso corpo biológico. “São como a radiação de um corpo negro apontando pra expansão do universo”, canta Caetano Veloso numa bela canção sua. Livros ampliam nossa inteligência e nossa humanidade. Também são perigosos, principalmente para os Estados opressores, que teimam em impedir sua livre circulação. Desde a invenção, por volta de 1450, da prensa com tipos de metal móveis, de Johannes Gutenberg, que os livros começaram a se multiplicar e a se espalhar pelo mundo todo. Em 1500, dizem os especialistas, já havia milhões de livros circulando em diversos países, acompanhando o fluxo da modernidade nascente. Com a graxa e a fumaceira da revolução industrial, o livro passou de artigo de luxo, objeto caríssimo que apenas reis e nobres podiam adquirir, a artigo popular, vendido em bancas de jornal e sebos. 27


Tornou-se algo tão comum que, séculos após sua invenção, o escritor mexicano Gabriel Zaid, notando que no mundo há mais livros do que leitores, chegou a escrever uma obra intitulada Livros demais. Escrever e publicar um livro equivale a ser consagrado, imortalizado? Parece que sim. Por isso há tantos escritores e tantos livros. “A leitura de livros está crescendo aritmeticamente, a escrita de livros está crescendo exponencialmente. Se nossa paixão por escrever não for controlada, no futuro próximo haverá mais pessoas escrevendo livros do que lendo.” (Gabriel Zaid, em Livros demais) A escrita, inventada há mais de cinco mil anos no Oriente Médio, encontrou na prensa de Gutenberg o parceiro perfeito. Escrita e livro, finalmente reunidos, implantaram na comunidade humana a esfera de conhecimento mais eficiente e democrática que existe. Mas parece que atualmente o valor do objeto-livro é muito diferente para a geração de leitores que nasceu antes da informatização do planeta e para a geração que nasceu após o surgimento do computador pessoal, do ­smartphone, da web e das redes sociais. Leitores apaixonados pelo objeto-livro, donos de grandes bibliotecas particulares, estão diminuindo. A leitura de ficção e não ficção continua intensa, mas agora o objeto-livro está dividindo a atenção com outros objetos-de-conhecimento. Hoje vivemos o iminente desaparecimento do livro impresso, anunciado todas as vezes que um novo e-book reader (leitor de livros digitais) é lançado no mercado. Será que no futuro o livro de papel impresso e encadernado será assunto apenas de excêntricos e esnobes colecionadores? Essa questão tem rendido debates acalorados.

Aventura na Terra Brasilis

O uso irrestrito dos meios de comunicação sempre representou um grande perigo para os Estados totalitários. Foi essa premissa nefasta que o escritor Ray Bradbury potencializou no célebre romance distópico Fahrenheit 451, sobre uma ditadura futurista que promove a queima de todos os livros existentes. Para abafar ideias e ideais revolucionários, a Coroa portuguesa proibiu, até 1808, a instalação da imprensa no Brasil. Folhetos e livros começaram a ser produzidos regularmente em nosso território somente após a chegada da família real, que fugia das garras afiadas de Napoleão Bonaparte. A boa notícia é que Dom João VI trouxe pra cá sessenta mil volumes da Biblioteca Real de Portugal. Essa bela coleção de livros deu início à nossa Biblioteca Nacional, fundada em 1810. 28


literatura

Durante muito tempo, o texto impresso numa folha de papel ou num livro representou o que o texto impresso numa tela de computador ou num smart­ phone representa hoje: um canal eficaz de esclarecimento da população. Ou seja, uma eficiente arma política contra a opressão e o fascismo. Por isso, em pleno século XXI, nações não democráticas ainda censuram pesadamente sites, blogues e redes sociais, decidindo o que o cidadão pode ou não ler. No outro extremo do eixo que vai da censura total até a ampla difusão, agora encontramos um momento muito propício para os livros que antes não eram escritos nem publicados. Graças à informatização e ao barateamento dos meios de produção editorial, que permitem tiragens mínimas de cem ou duzentos exemplares, e graças à crescente mudança de mentalidade social, as vozes estranguladas − autores indígenas, autores afrodescendentes, vozes da favela, vozes LGBTs − já conseguem se expressar e ser ouvidas sem intermediários. Finalmente! Nas mãos de um romancista talentoso, os duzentos anos de história do livro no Brasil dariam no mínimo um romance cheio de peripécias e reviravoltas, protagonizado por escritores, ilustradores, capistas, empresários, tipógrafos, censores, contrabandistas, fabricantes de papel, bibliófilos, clubes e sociedades do livro, críticos odiados e, é claro, muitos piratas literários. Como começaria essa aventura? Capas presentes na publicação A capa do livro brasileiro.

“A história do livro no Brasil começa em 1747, quando o tipógrafo português Antônio Isidoro da Fonseca imprime no Rio de Janeiro a Relação da Entrada do bispo Dom Antônio do Desterro Malheiro na cidade. A obra de Luís Antônio Rosado da Cunha nem chega a ser um livro, apenas um folheto de vinte e duas páginas, laudatório e inócuo, sem qualquer conotação política, mas é interpretado como um sinal de alerta pelo governo da Metrópole. A arte da impressão viola a política lusa de estrangular qualquer tentativa de expressão do pensamento por parte dos brasileiros. A reação é imediata. No dia 10 de maio do mesmo ano, uma ordem régia determina o sequestro e o envio para o Reino das letras de imprensa de propriedade de Antônio ­Isidoro e a deportação do tipógrafo para a Metrópole.” (Ubiratan Machado, em A capa do livro brasileiro: 1820-1950)

O primeiro personagem principal dessa aventura seria certamente esse atrevido impressor Antônio Isidoro da Fonseca, que teve a desfaçatez de desobedecer a uma ordem da Metrópole. Outros protagonistas seriam o livreiro29


-editor Paulo Martin e o frei Conceição Veloso, um dos primeiros editores da Imprensa Oficial. Também merecem participar desse romance heroico os desbravadores editores Silva Serva, Pierre Plancher, Junio Villeneuve, Louis Mongie, Paula Brito, B. L. Garnier, os irmãos Laemmert, Francisco Alves, Monteiro Lobato, José Olympio e Ênio Silveira. Esse romance épico ainda não foi escrito, mas os interessados na história do livro no Brasil encontram minuciosa prosa historiográfica em pelo menos cinco obras fascinantes: A capa do livro brasileiro: 1820-1950, de Ubiratan Machado, publicado pela Ateliê Editorial e pela SESI-SP Editora. História da imprensa no Brasil, de Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca, da editora Contexto. História da imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, lançado pela Edipuc-RS. Livros e bibliotecas no Brasil colonial, de Rubens Borba de Moraes, da editora Briquet de Lemos. O livro no Brasil, de Laurence Hallewell, publicado pela Edusp.

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literatura

Bate-papo

ilustrado

Ainda sobre esse assunto tão fascinante, conversei por e-mail com o paulista Claudio Giordano (bibliófilo, editor e tradutor), ex-presidente da hoje extinta Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, e com o carioca Ubiratan Machado (jornalista, tradutor e escritor), autor de mais de uma dúzia de livros, entre eles o citado A capa do livro brasileiro. Nelson: A história do livro impresso no Brasil em breve chegará ao fim, com o tão anunciado triunfo do livro eletrônico? Giordano: Pela observação das conquistas tecnológicas que vêm ocorrendo de forma vertiginosa, e também de forma acelerada vêm mudando o comportamento das sociedades, será surpreendente se o livro impresso não perder em um futuro breve o pouco espaço que ainda ocupa nessas mesmas sociedades. Perda de espaço que será talvez mais acentuada em sociedades como a brasileira, onde a educação é de nível sofrível. Sendo bastante realista, tenho para mim que o capital financeiro, movimentado pelas grandes editoras, em breve perderá o interesse de investir no mercado de livros. Ubiratan: O futuro é sempre uma incógnita. Confira as previsões do norte-americano Herman Kahn, formuladas nos anos 1960-70, se não estou enganado, e baseadas em dados e tendências sociais e científicas da época. Acertou menos que um profeta de roça. No referente ao futuro do livro impresso, há alguns fatores a considerar. A ideia de que ele vai desaparecer me parece uma notícia plantada pelos interessados na mídia eletrônica. As grandes empresas jogam com todas as armas. Lícitas e sujas. Só se preocupam com seus interesses. Podemos comparar com a morte anunciada do teatro, quando do surgimento do rádio e depois da televisão. O mesmo ocorre com o e-book. Cresceu muito e agora se estabilizou, enquanto o livro impresso permanece. A questão, me parece, deve ser colocada da seguinte forma: vai diminuir o público do livro impresso? Creio que sim. É um fenômeno que já está ocorrendo, menos pela concorrência do livro eletrônico do que pelas características da vida moderna: a pressa excessiva, os meios de comunicação imediata, como o celular (os celularinos se divertem lendo um ao outro, e abandonam os livros), a obsessão de aparecer a qualquer custo (os famosos quinze minutos de glória), uma época que Vargas Llosa definiu como a civilização do espetáculo. Livro e leitura são o oposto do espetáculo e, se há espetáculo na leitura de um livro, ele se desenrola no interior de cada um, na sua cachola. Deve-se considerar ainda uma espécie de alienação crescente

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da sociedade moderna em relação a tudo que não seja imediato. Todos reivindicam direitos – reais ou supostos −, enquanto o velho humanismo vai para as cucuias. Ainda bem que existem os conservadores. Nelson: Pierre Plancher, Junio Villeneuve, Louis Mongie, Paula Brito, B. L. Garnier, os irmãos Laemmert, Francisco Alves, Monteiro Lobato… É possível eleger o empresário-editor mais importante da história do livro no Brasil? Giordano: Monteiro Lobato para mim é o grande divisor de águas na história do livro no Brasil. Foi o único editor a verdadeiramente trabalhar no sentido de aumentar o público-leitor, além de ter contribuído de maneira marcante para tornar o livro um produto atraente. A Companhia das Letras foi o outro marco da nossa moderna transformação editorial. Era de doer a qualidade gráfica em geral de nossos livros nas décadas de 1950 a 1980. Ubiratan: No século XIX, os grandes livreiros-editores foram Garnier e os Laemmert. O francês e os alemães. Um fazendo picuinha com os outros dois. (Lembre-se que em 1871 a Alemanha conquistou a Alsácia-Lorena da França.) Com uma diferença. O francês editava uma boa parte de seus livros na França. Os autores menos importantes eram confiados a tipografias brasileiras. Trocando em miúdos: Garnier foi fundamental na difusão do livro no Brasil, mas pesou pouco na evolução do livro impresso no Brasil. Já os irmãos Laemmert tinham outra filosofia. Imprimiram uma ou outra obra na Alemanha. A maior parte no Brasil, com maquinário moderno, contribuindo, assim, para o aprimoramento do livro brasileiro como nenhum outro editor do século. Vale lembrar também o Paula Brito, o primeiro editor brasileiro, no meio de tantos estrangeiros que ocupavam o pedaço. Editou muita coisa importante, sobretudo os nossos românticos − Casimiro de Abreu, Machado de Assis no início da carreira etc. −, mas não tinha cacife para enfrentar os concorrentes. Na primeira metade do século XX, Francisco Alves foi o principal editor, mas as suas edições eram desgraciosas, no estilo relatório. No final da década de 1910 em diante, surgem alguns editores que começam a dar um aspecto tipicamente brasileiro ao livro nacional: Leite Ribeiro e Monteiro Lobato. O carioca e o paulista. Ambos com uma visão de mercado bastante semelhante: Leite mais precavido, Lobato mais arrojado e, por isso mesmo, indo mais longe e contribuindo mais do que qualquer outro para a evolução do livro brasileiro, em seus dias. Em suma: cada um na sua época. 32


literatura

Nelson: Em algum momento de sua história de dois séculos, o design gráfico de nosso livro impresso apresentou um estilo próprio, bem brasileiro, como aconteceu na música, na literatura e nas artes plásticas? Giordano: Não acho que se possa falar em design próprio brasileiro. Tivemos e temos editoras com certo padrão editorial. Por exemplo, a Perspectiva e suas coleções com volumes absolutamente padronizados em todos os seus parâmetros; a Editora Globo, do Rio Grande do Sul, com edições encadernadas em tecido; a Livraria José Olympio Editora com brochuras alentadas sobretudo nas décadas de 1950 e 1960 (Guimarães Rosa, Dostoievski , A. J. Cronin…). Talvez se possa dizer que a Cosac Naify tenha apresentado um estilo próprio no design gráfico de suas edições. Ubiratan: No século XIX, o grande capista do livro brasileiro foi Julião Machado, um português porra-louca, de estilo de desenho francês. Influenciou pelo menos duas gerações de artistas gráficos. Mas foi na década de 1920, quando o espírito nacionalista explodia, que surgiram os grandes capistas nacionais, criadores de um estilo brasileiríssimo. Me refiro a Raul Pederneiras, Kalisto, Belmonte e, acima de todos, J. Carlos. Ele está para as artes gráficas como Machado de Assis para a literatura. Gênio. Um dos maiores do mundo em sua especialidade. Esse estilo tipicamente brasileiro, identificável, mas difícil de definir, composto por muitos artistas de tendências diversas, se afirma ainda com as notáveis capas do editor Benjamin Costallat, desenhadas por artistas como Jefferson, Luiz Peixoto, Alvarus, Di Cavalcanti etc. Nos anos 1930, entra em cena um grande artista, renovador do livro brasileiro, o paraibano Santa Rosa, que reafirma e enriquece a brasilidade da capa do livro feito aqui. Esse espírito predomina até os anos 50, quando Eugenio Hirsch começa a atuar no país, impondo seu estilo e exercendo uma grande influência na praça. Mas essa já é outra história. Nelson: O que você pensa do comércio do objeto-livro? Nunca se publicaram tantos livros quanto nas últimas décadas. Só no Brasil, segundo a CBL, são lançados mais de vinte mil novos títulos por ano. Se o brasileiro não tem fama de bom leitor de livros, então, quem está consumindo todos esses lançamentos? Giordano: É realmente surpreendente nosso mercado do livro. Quase não vou mais às livrarias, sendo certo que ao longo da vida fui na verdade frequentador de sebos. Hoje o desgaste do corpo já me tolhe esse prazer e devo contentar-me com o recurso − exce33


lente, diga-se − da Estante Virtual. Mas nas raras visitas às grandes livrarias impressiona-me a quantidade e variedade de edições, seja de autores novos e obras novas, seja de obras e autores antigos reeditados, retraduzidos. (Que vontade de revisitar Dostoievski, lido há mais de sessenta anos nas traduções de traduções, agora por meio das novas versões feitas diretamente do russo…). Não pequeno também é o número de obras de arte em edições importadas etc. Quem dera minha geração tivesse na juventude e mesmo na maturidade essa riqueza editorial… Como explicar esse comércio, sendo tão frágil nosso mercado consumidor de livros? 1) A mídia e os facebooks e twitters são fatores que põem adrenalina nesse processo. 2) Os best-sellers funcionam como catalisadores. 3) Muitas edições recebem patrocínio. 4) Há o nicho dos leitores efetivos (intelectuais, escritores, pessoas de boa formação etc.); edições de autores consagrados (Proust, Baudelaire, Balzac, Shakespeare, Fernando Pessoa, Faulkner, Stefan Zweig e por aí vai); estímulo das feiras de livros, Bienal, Paraty (Flip), Festa do Livro da USP… 5) Editoras que não têm propriamente escopo comercial (universitárias, como Edusp, da Unicamp, da Unesp, e do Sesi, do Senac, do Senado etc.), mas alimentam fortemente a produção editorial. Ou seja: há fatores cuja dinâmica atua e estimula segmentos e interesses diferentes do mercado consumidor, induzindo-o à aquisição do best-seller, do livro infantil, de culinária, de arte, de autoajuda, de religião, de literatura, de história, do policial e da ficção científica, dos quadrinhos etc. Uns mais (best-sellers), outros menos (poesia), cada um dá sua cota de consumo e a máquina continua andando. Ubiratan: Não é novidade dizer que o comércio livreiro, no Brasil, sempre esteve muito aquém de suas possibilidades. O que salvou, historicamente, o livro brasileiro foi um público fiel e persistente, mínimo no período colonial, bem maior durante o romantismo, devido à abertura das faculdades de direito (em São Paulo e Pernambuco) e de medicina (na Bahia e no Rio de Janeiro) e ao início sistemático da alfabetização das iaiás, apesar dos duros preconceitos. Assim, no século XIX, mulheres e estudantes alavancaram a venda de livros. Verdade que era um público bastante modesto, comparado com países leitores, como França, Inglaterra etc. No século XX, as edições brasileiras tiveram um grande progresso, em particular durante a presidência de Getúlio Vargas, com a aquisição de obras pelo governo federal. Daí para cá, considerando-se a relação livro-população, houve um crescimento contínuo, apesar das fases críticas. Acredito que boa parte da produção atual encalha e envelhece nos depósitos, quando não é vendida como papel para reciclar. Apesar disso, creio que o público leitor brasileiro seja maior que o das estatísticas oficiais, nas 34


literatura

quais não figuram as vendas de livros usados. Aqui no Rio, na entrada do metrô carioca, há diversas bancas de venda de livros. Uma delas cobra R$ 2,00 o volume e vende, em média, trezentos livros por dia. Dá o que pensar… Nelson: Tenho a impressão de que, apesar do esforço dos grandes editores e livreiros, dos grandes escritores, jornalistas e professores, o Brasil nunca foi um país de leitores. A máxima de Lobato, “um país se faz com homens e livros”, parece jamais ter sido levada a sério... Sempre fomos basicamente um país audiovisual (música, cinema, tevê etc.)? Giordano: Nossa educação está falida. Em passado não muito distante tínhamos um número assombroso de analfabetos. Hoje são ainda doze milhões. Além disso, boa parte da população mal sabe ler. Fomos − será que não somos mais? − colonizados econômica e culturalmente. Nosso progresso mais recente, material e cultural, desastradamente se deu à imitação do modelo norte-americano. Crescemos com o cinema e a tevê. Hoje, mais do que o cinema e a tevê, o que arrasta nossas multidões é a música, de qualquer natureza. O mundo presente é movido por imagens, que carregamos conosco nos celulares. A distorção da sociedade brasileira é brutal demais e gerou (e continua gerando) a tragédia das favelas e das periferias. Nossa classe dominante é absolutamente insensível à responsabilidade social. Jamais lhe passa pela cabeça que ela depende do que chama de massa ignara. Discurso de esquerda? Para mim é a principal explicação ao seu quinto quesito, Nelson. Não deixo de pensar também na inevitável transformação por que passam todas as sociedades. Afinal, o ser humano não é, ele está sendo… É um permanente (!) mutante. O Brasil sempre foi um país de poucos leitores. Mas teve-os bons, como demonstra a obra de autores nossos que não lemos nem reeditamos mais: Humberto de Campos, Coelho Neto, Olavo Bilac… Ubiratan: Concordo com você, Nelson, mas atenuando sua afirmação com os dados indicados por mim na resposta anterior, de venda de livros novos e usados, e reconhecendo um aumento gradativo e constante do público leitor, ainda muito pequeno em relação até mesmo a países do continente, como Argentina e Chile. Também acredito que o interesse do brasileiro é mais pela música, rádio, cinema, tevê e… celular. Nelson: “Acho a televisão muito educativa, sempre que alguém liga o aparelho eu vou para outra sala e leio um livro”, dizia Groucho Marx. Quem dera esse fosse um hábito bem brasileiro.

NELSON DE OLIVEIRA é escritor e coordenador de oficinas de criação literária. Publicou diversos livros, entre eles os romances Subsolo infinito e Poeira: demônios e maldições, este protagonizado por um bibliotecário. Venceu duas vezes o Prêmio Casa de las Américas, em 1995 e 2011.

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Luís Martins e Grande Otelo ao lado de moças em fotografia tirada em 1936.

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memória

Lapa, as jabuticabas de Tarsila e um bom sujeito por Carlos Castelo

Se depois de tanto tempo de conhecimento mútuo ainda sobra motivo para um abraço de verdade, é porque no mínimo um de nós é bom sujeito, e receio que esse um, exclusivo, seja precisamente você. Aliás, não tenho dúvida sobre isso: você é dos melhores sujeitos que conheci, e fico satisfeito quando um amigo comum me previne: “o Luís Martins está na terra”. Sei que não vamos ter grandes conversas sobre grandes assuntos, que provavelmente vamos até conversar pouco, mas sua presença é cordial, faz bem, lembra um terreno firme onde a gente pode pisar. Carlos Drummond de Andrade

(Arquivo Pedro Corrêa do Lago, fotógrafo desconhecido)

Numa ida recente ao Rio de Janeiro, encontrei-me com o jornalista e

biógrafo Ruy Castro. Disse-lhe, na ocasião, que o cronista Luís Martins merecia uma biografia completíssima, como as que ele sempre produz. Seria justo com a extensa produção do escritor e sua interessantíssima trajetória. Ruy concordou com a observação. Já escrevera o prefácio de alguns livros de Luís e conhecia muito bem o seu épico itinerário. Contudo, naquele momento, já estava comprometido com outros projetos. Saí do apartamento de Ruy com o telefone da filha do autor, a também escritora Ana Luísa Martins. E foi ela quem me mostrou o caminho das pedras para este breve relato. Se ficássemos apenas no detalhamento do livro Lapa, lançado por Luís Martins em 1936, já teríamos vários ensaios como este. Ou até mesmo um longa-metragem ou uma série de tevê. Luís costumava dizer que seu relato 37


revolução no Brasil”. O detalhe é que, naquele momento histórico, o comunismo era reprimido ferozmente pelo getulismo. Não custou para que o episódio terminasse nos corredores da famigerada Delegacia de Ordem Política e Social. Luís descobriu, por terceiros, que haviam expedido um mandado de prisão contra ele e foi falar pessoalmente com o delegado Serafim Braga para obter mais informações. O delegado foi bastante cortês com o cronista, disse-lhe que, de fato, existia um mandado, mas que Israel Souto – titular do órgão – mandara cancelá-lo. Sentindo-se aliviado, mas ainda deprimido e muito cansado por todos os sobressaltos vividos Luís Martins, Carmem Miranda e Berilo Neves, por aqueles dias, Luís aceitou os insistentes pedi- no Rio de Janeiro, em 1932. 38

(Arquivo Pedro Corrêa do Lago, fotógrafo desconhecido)

sobre o bairro boêmio do Rio de Janeiro surpreendeu muitas pessoas e chocou algumas. Houve quem o visse como um “livro de escândalo”, já que descrevia, com cores vivas, a prostituição carioca. Em O Globo, o crítico literário Eloy Pontes fez grandes elogios à obra naquele ano: “cultura, vivacidade, bom gosto, instinto lírico, visão social, estilo nítido e pitoresco”, entre outros adjetivos. Mas, logo em seguida, lamentava que o autor tivesse estreado com aquele romance, uma vez que o palavrão “cru e decotado, Tarsila do Amaral e Luís Martins. não tem o que fazer na prosa literária”. Em finais de 1936, Luís encontrou-se com Rubem Braga e este lhe confidenciou que estivera no Ministério da Educação e lá lhe contaram que “havia qualquer coisa” contra a publicação de Lapa. Rubem aconselhou o amigo a procurar o poeta Carlos Drummond de Andrade – que era chefe do gabinete do ministro Gustavo Capanema – para saber o que ocorria com mais detalhes. Ao encontrar-se com Drummond no ministério, Luís soube que, de fato, houvera uma denúncia contra o livro. Ela vinha de um literato chamado Carlos Maul e fora enviada diretamente ao presidente Getúlio Vargas. O romance sobre meretrício era citado como “obra subversiva e o seu criador como um agente do comunismo internacional, interessado em implantar a


memória

dos de sua companheira à época, a pintora Tarsila do Amaral, para sair do Rio e ficar com ela na fazenda Santa Teresa do Alto, em Itupeva, interior de São Paulo. Estava “enervado, meio sem saber que rumo tomar na vida”, mas impulsivamente decidiu despachar seus pertences e ir encontrar-se com a pintora no campo. Dois dias após sua chegada em Santa Teresa do Alto, foi acordado por tiras, às cinco horas da manhã, com uma ordem de prisão.

As jabuticabas de Tarsila

Luís conta, em texto autobiográfico, que a primeira coisa que Tarsila fez, “como boa dona-de-casa que era”, foi perguntar aos quatro policiais se queriam comer alguma coisa. Os tiras, famintos, aceitaram de pronto. Ela então mandou servir um lauto desjejum do qual todos participaram – inclusive o preso. O cronista soube ali na mesa que estava sendo detido por ordem do delegado Israel Souto, do Rio de Janeiro. E que teria de viajar escoltado, na manhã seguinte, para a capital federal, de trem. Tinha início o quiprocó. O que se sucedia, de fato, é que Israel Souto cancelara a prisão de Luís, mas esquecera-se de avisar a decisão à polícia de São Paulo. Apesar da contestação do escritor, os tiras lamentavam, mas era mister cumprir as ordens superiores. Nesse momento, Tarsila fez

(Arquivo Pedro Corrêa do Lago, fotógrafo desconhecido)

Tarsila do Amaral pintando o retrato de Luís Martins.

um corte analítico e propôs que todos fossem chupar jabuticabas-de-cipó no lindo pomar da fazenda. Algum tempo depois, ainda elogiando a doçura das jabuticabas da criadora do Abaporu, o delegado-chefe olhou para o relógio de pulso, agradeceu o carinho da anfitriã, e pediu a Luís que se vestisse pois estava preso. Foram Luís, Tarsila, os dois delegados, o investigador e o motorista rumo à chefatura de polícia, pela antiga via Anhanguera, que ainda passava pela Serra dos Cristais. Após marchas e contramarchas, Tarsila conseguiu que um delegado conhecido seu, Durval Villalva, se comunicasse com Israel Souto e este telefonou para a Ordem Política e Social de São Paulo e Luís Martins foi finalmente solto. A partir dali, não voltaria mais para o Rio, ficando entre São Paulo e a fazenda de Itupeva. Tarsila o apresentou à pintura moderna e ele se fez um renomado crítico de arte. 39


Carlos Drummond de Andrade resumiu a importância do surreal episódio da tentativa de prisão, em crônica de 1957, no Correio da Manhã, numa homenagem ao cinquentenário de Luís ­Martins: “Em 1936, um escritor fascista nacional denunciava ao governo o romance em que você fixava certos aspectos da vida do Rio, e que se chamava Lapa. Como Picasso falando de Guernica, você poderia alegar que a Lapa não era invenção sua. O livro foi apreendido, os exemplares destruídos, você perdeu o emprego, e um dia a força policial, de arma em punho, resolveu caçá-lo de madrugada numa fazenda, como um sujeito perigosíssimo. Data deste episódio sua transplantação para São Paulo e a perda deplorável, para o Rio, de um dos cariocas mais genuínos. Conheci você por essa época, e me lembro de que a maldade burra lhe despertou pasmo, não ódio e nem sequer azedume.”

Panteão de cronistas

Luís Martins habita meu panteão de cronistas favoritos. Por “n” razões, uma delas – explicarei melhor mais adiante – foi que me tornei cronista indiretamente por sua causa. E convenhamos: não era todo dia que o autor de “Claro Enigma” dedicava estas palavras – além das que estão espalhadas por este artigo – a um autor: “O ‘humour’ de Luís dosa sabiamente essa exposição do que em nossa vida é perplexidade, tédio ou alegria miúda”.

O tal do “humour”, mencionado pelo poeta mineiro, é feito de observação aguda e uma discreta erudição. Coisa que nem todo plumitivo sabe usar adequadamente, o que não era o caso das sete mil crônicas que o autor publicou durante o período de 32 anos em que trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo. Por essa época de Estadão, começo dos anos 1940, a rotina de Luís não tinha lá muito de comicidade. Estava recém-casado com Anna Maria do Amaral Andrada Coelho, prima de Tarsila em segundo grau, e 17 anos mais nova do que ele. Teve de enfrentar a discordância da família de Anna Maria, o estrago que Lapa impôs em sua vida e a dissolução de uma relação de 18 anos. O casal foi morar num quarto e sala em São Paulo. Em sua autobiografia, Luís conta sua rotina: “Eu trabalhava feito um mouro. Como ganhava por crônica, escrevia duas diariamente. E tinha as minhas obrigações de inspetor de ensino a cumprir. 40


passei a escrever uma terceira, que eu próprio lia perante as câmeras para o programa “O Estado de S. Paulo na TV”. Levantava-me cedo e corria para a máquina. Depois do almoço, descansava uma meia hora e ia, em seguida, para a redação do O Estado, a fim de preparar parte do noticiário.”

Curiosamente, ainda assim, Luís não se enxergava como escritor. Apesar de ser um dos primeiros jornalistas a assinar por extenso seu material – fato inédito na imprensa brasileira dos anos 1940, que só publicava crônica assinada com pseudônimo. Ele comentava, no final dos anos 1950, ao lançar seu livro Futebol na madrugada: “É a primeira vez que, como cronista, me vejo metido em volume. Confesso que me sinto constrangido como se, numa reunião em que se exige traje de gala, eu aparecesse de pijama. Um pijama de tecido grosseiro que mais se assemelha a um rude macacão  –  roupa de trabalho cotidiano, trabalho rotineiro…”

Em 1986, cinco anos após a morte de Luís Martins, o jornal O Estado de S. Paulo promoveu uma grande renovação em seu caderno de Cultura. O editor Luís Fernando Emediato trouxe muitos outros cronistas para participar do novo suplemento batizado de Caderno 2. Entre esses novos escritores estavam Caio Fernando Abreu, Xico Sá, Walcyr Carrasco, o próprio Emediato e este cronista, que escrevia na coluna Antena todas as sextas-feiras. A nova linha editorial do Estadão, além de restaurar a crônica no jornalismo brasileiro, provocou uma produção bem diversa da de L. M. – foi com estas iniciais que ele assinou seu material durante 36 anos. Mas, para quem teve contato com sua escrita, o espaço nunca mais foi o mesmo. E acrescento: nem minha vida como colunista também. Naquela reformulação do Estadão estreei como cronista e depois segui – e sigo – por tantos outros órgãos de imprensa. Sem dúvida, essa minha jornada, e a de muitos outros colegas do Caderno 2, se deu muito por causa do legado deixado por aquele bom sujeito.

CARLOS CASTELO é poeta e escritor. Lançará em 2018, pela editora Patuá, o livro Poesihahaha e, pela Noir, Frases desfeitas, seleção de aforismos de humor.

memória

Mas a minha vida endureceu, além das duas crônicas que já fazia,



Estas imagens fazem parte do livro Carne Vale - O imaginário carnavalesco na cultura brasileira, da SESI-SP Editora. Da esquerda para a direita: todas do artista Arthur Omar.

cultura

Origens do Carnaval Paulista por Renato Dias

Um feito para aguçar um pouco mais a rixa Rio-São Paulo. Pela primeira vez, que se tem conhecimento ou desde que é feita a medição, o Carnaval Paulista superou o da capital carioca em número de participantes. Os dados estimados apontam que 9,1 milhões de foliões curtiram os blocos de rua em São Paulo, no período de 3 a 13 de fevereiro deste ano, contra 6 milhões no Rio de Janeiro. Nada que chegue perto das cerca de 15 milhões de pessoas que pularam atrás dos trios elétricos em Salvador, mas São Paulo teve o maior número de blocos de rua inscritos do país, 491. Mas, afinal, como começou o carnaval paulista e de que maneira a cidade se transformou para chegar até aqui? O carnaval em São Paulo passou por marcos importantes, como a forte presença negra no bairro da baixada do Glicério e Liberdade com o cortejo de foliões que se autointitulavam “Zoavos” no ano de 1857. No entanto, o grande símbolo do carnaval paulista ocorre no ano de 1914 com a fundação do grupo carnavalesco Barra Funda, por Dionísio Barbosa, grande referência do samba da Pauliceia. As manifestações aconteciam pelas ruas da Barra Funda, onde o grupo cantava músicas próprias; mas, antes de entrarmos na história desse gru­po é importante falar sobre o Batuque de São Paulo, matriz africana composta por sotaques, demandas, tambores, danças e dialetos encarnando os sentidos profundos de tais manifestações. Essa formação genética cultural se encontraria posteriormente com a pajelança dos índios guaranis e tupis do estado de São Paulo. São diversas as vertentes que ajudam a formar esta célula cultural que chamamos de samba paulista ou samba rural paulista, entre elas temos o tambu e a umbigada, comum em Capivari, Tietê e Piracicaba, o samba de bumbo ou campineiro, em Pirapora do Bom Jesus, e ainda o futebol de várzea nas regiões periféricas da cidade.

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Os cordões carnavalescos em São Paulo anteciparam as escolas de samba. A nova modalidade de manifestação intitulada de grupo carnavalesco surge em 12 de março de 1914, fundado pelo Dionísio Barbosa aliado ao seu irmão Luiz Barbosa, e seu cunhado, Cornélio Ayres, e este grupo mais tarde receberia o apelido “Camisa Verde”, nome pelo qual se tornaria conhecido. No cortejo tríduo de carnaval, o grupo levava uma formação instrumental para as ruas, composta de sopros e cordas com músicos de grande estirpe. Destaco entre eles Silvano do Saxofone, Capistrano do Trombone, Sebastiãozinho do violão, Augusto dos Santos no violão, Márcio e Dionísio Barbosa no pandeiro, Mario Jandiro e Vitor no cavaquinho. O estandarte do grupo, bandeira ricamente bordada com temas que representam a entidade, era carregado pelas mãos de Torquato, irmão de criação de Dionísio. No entanto, em 1923, os estandartes passam a ser carregados por mulheres influenciados pelo Neco, do cordão “Os desprezados”; precursor da novidade na época; desta maneira Dionísio e outros o acompanharam na iniciativa. Os cordões deveriam ter em suas formações a presença de personagens que compunham a corte: rei, rainha, duque, duquesa, príncipe, princesa e outros integrantes. Com relação à formação do desfile, havia porta-estandarte, rumbeiros, marinheiros, pastoras, cabrochas, caiapós e as “amadoras”, mocinhas agrupadas que saíam nos cordões. Nesta composição existiam também os balizas, figuras importantes que faziam malabarismos com bastões de madeira e dançavam em frente ao cortejo com a finalidade de defender o estandarte, também conhecidos como “balizas de pau”. O grupo carnavalesco Barra Funda teve importantes balizas em sua história, entre eles: Bagico, Cara-torta, Oscar, Hernani e Vitor, este último considerado como um dos melhores balizas do grupo. Nessa primeira fase, uma das características diferenciais do grupo era a cantoria de músicas autorais, todo ano fazia-se uma marcha para o carnaval, ao contrário de outras agremiações que cantavam músicas já populares. “Na Barra Funda existe um grupo sem rival, salve o Camisa Verde nestes dias de carnaval.”

É importante frisar que na década de 1930 se inicia o enxame dos cordões carnavalescos na capital paulista, cito alguns que se propagaram nesta época: Campos Elíseos, Flor de Maio e Geraldinos nos Campos Elíseos; na Pompéia, “Esmeraldinos”; na Casa Verde, “As Caprichosas”; em Pinheiros, o “Caveira de Ouro”; na Liberdade, o 44

Dionísio Barbosa, fundador do primeiro cordão carnavalesco paulista.


cultura

“Mocidade da Lavapés”, no Cambuci, “Marujos Paulistas”; no Bixiga, “Vai Vai”, além de outros, como “Termiarno”, “Metalúrgica Mar Rugerone”, “Victória Paulista”, “Nacionalistas”, “Irmãos Patriotas”, “Diamante Negro” e as “Baianas Teimosas na Baixada do Glicério”, onde participava a lendária Madrinha Eunice, fundadora da escola de samba “Lavapés”, criada em 1937.

(USP Imagens)

O carnaval paulistano, suas transformações e compositores

A alteração da estrutura do carnaval e tensões causadas pelo avanço do capitalismo voraz foram determinantes para uma drástica mudança na dinâmica de manifestação popular. No final da década de 1960, mais precisamente no ano de 1968, começou a oficialização dos desfiles carnavalescos promovidos por órgãos públicos municipais, adquirindo assim subvenção financeira que contribuiria com uma boa parcela dos custos das agremiações. Essa oficialização acontece no ano de 1967 e tem participação ativa de alguns representantes destas entidades, entre eles Inocêncio Tobias (Camisa Verde e Branco), Pé Rachado (Vai Vai), Seu Nenê (Nenê da Vila Matilde), Seu Carlão (Unidos do Peruche), Madrinha Eunice (Lavapés) e Xangô (Vila Maria). Esse processo contou também com a presença dos radialistas Moraes Sarnento, Evaristo de Carvalho, Vicente Leporace e Ramon Gomes Portão. Desse encontro surge então a comissão que levaria a proposta para o prefeito da época, José Vicente Faria Lima. O prefeito realizou um encontro com a comissão de sambistas e radialistas para organizar os desfiles carnavalescos no estado de São Paulo, e após esta ação enviou para a Câmara Municipal a lei nº 7.100 de 29 de dezembro de 1967, na qual a prefeitura ficava autorizada a promover as festas de carnaval e financiá-las por meio de verbas orçamentárias públicas. Este apoio financeiro por meio da lei e decretos complementares exigia que as escolas e os cordões fundassem uma federação ou confederação de cunho jurídico afim de receber os incentivos da Secretaria de Turismo e Fomento. Dessa forma, foi reativada a Federação das Escolas de Samba e Cordões Carnavalescos, fundada em 1958, que se encontrava sem nenhuma atribuição. A partir desse momento as escolas de samba ganham força no cenário da terra da garoa em detrimento da presença dos cordões carnavalescos, até então a grande referência da cultura popular paulista. Esse processo antropofágico alavancado pela força do capital e interesses políticos leva ao fim os cordões do início da década de 1970, assim como o carnaval espontâneo sairia de cena, sendo substituído pela disputa das escolas de samba, as quais patrocinariam os desfiles de carnaval. 45


(USP Imagens)

Cordão do Camisa Verde e Branco criado por Dionísio Barbosa.

A transformação do formato dessa manifestação cultural, além de ter contado com o apoio do poder público, fez-se presente neste processo os veículos de comunicação midiáticos, revelando posteriormente profundas alterações que atingiriam de forma frontal seus griôs e sambistas litúrgicos. Um dos atores mais atingidos foram os compositores, que tiveram de se adequar a regras e enquadramentos burocráticos vigentes a partir do novo contexto. A presença financeira nas escolas de samba induzira a ala de compositores a participar de concursos entre seus componentes, criando um clima de competitividade entre os membros nas disputas dos sambas de enredo. A partir desse momento, todas as idealizações advindas das escolas possuíam um viés de competição direcionado aos desfiles, e essa lógica exercida pelo capitalismo levou os indivíduos a partilharem dessa dinâmica. Dentro deste contexto é relevante observar que, ainda nas primeiras décadas dessas mudanças, mais precisamente 1970 e 1980, a poética exercida pelos compositores não foi corrompida, haja vista os grandes sambas que entraram na história do carnaval paulista destacando grandes nomes que se imortalizaram com suas obras nestes pavilhões: Ideval e Talismã (Camisa Verde e Branco), Paulistinha (Nenê de Vila Matilde), Zé Di (Vai Vai), B. Lobo e Pinheirão (Peruche), Zeca da Casa Verde (Morro da Casa Verde, Rosas de Ouro), Geraldo Filme (Peruche, Paulistano da Glória, Vai Vai). Entre a riqueza poética dos inúmeros poetas da Pauliceia, escolho falar sobre dois compositores simbólicos do carnaval paulistano: Geraldo Filme e Ideval Ancelmo. 46


cultura

Poetas em destaque

A verve poética carrega em si as suas reflexões e africanismo na cultura do samba, e é nessa toada de versos que começo a falar de Geraldo Filme, ativista cultural e profundo conhecedor da história de seu povo. Geraldo Filme afirmava que havia nascido na capital em 1927, embora registrado na cidade de São João da Boa Vista, no interior do estado, em 1928. Essa curiosidade se deve ao fato de manter-se a tradição de registrar os filhos como nascidos na terra natal dos pais, um costume comum entre a população negra mais antiga. Inicia sua vivência no carnaval desfilando no Camisa Verde. Nesses primeiros passos, ainda na infância, apresenta-se como baliza e, posteriormente passaria a desfilar no Campos Elíseos. A poesia e os questionamentos de Geraldo Filme começam a manifestar em sua pré-adolescência quando compôs o samba “Eu vou Mostrar” em resposta imediata ao seu pai, quando o questionara sobre a existência do samba na cidade paulista. “Eu vou mostrar, eu vou mostrar Que o povo paulista também sabe sambar Eu sou paulista, gosto de samba Na Barra Funda também tem gente bamba Somos paulistas e sambamos para cachorro Pra ser sambista não precisa ser do morro”

A presença do poeta nas festas de Pirapora do Bom Jesus desde criança imprimiu marcas em sua trajetória, inspirando-o a compor dois sambas memoráveis sobre este tema: “Batuque de Pirapora” e “Tradições e Festas de Pirapora”, este último apresentado como samba enredo da Unidos do Peruche em 1971. Essa veia crítica de autoafirmação em sua luta pelos valores africanistas aparece em outras obras “Vai Cuidar de sua Vida” e “Reencarnação”, gravadas em seu álbum solo de 1980, e “Tebas”, no álbum “Nas Quebradas do Mundaréu”. Em 1976 emplaca o samba-enredo da escola de samba Vai Vai com o tema sobre o poeta e artista plástico Solano Trindade. Geraldo Filme, implacável ativista cultural, deixa sua marca em dois álbuns antológicos produzidos pelo dramaturgo e escritor Plínio Marcos: “Balbina de Iansã” (1971) e “Nas Quebradas do Mundaréu” (1974). Este último álbum conta com a presença de outros dois ícones da cultura do samba paulista: Toniquinho Batuqueiro e Zeca da Casa Verde.

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A africanidade inerente ao seu ser não parava por aí e, em 1982, grava o álbum “Canto dos Escravos”, ao lado de Tia Doca e Clementina de Jesus, interpretando cantigas ancestrais dos negros oriundos de benguela, na cidade de São João da Chapada, em Diamantina, estado de Minas Gerais. Esse repertório integra a pesquisa de Aires da Mata Machado Filho e foi gerado a partir do recolhimento de cantigas do fim do século XX dando origem à coletânea “Memória Eldorado”. É de suma importância ressaltar que Geraldo Filme teve sua primeira obra gravada pelo catedrático do samba ­Germano Mathias, com o samba “Baiano Capoeira” em parceria com o alagoano erradicado em São Paulo Jorge Costa, compositor renomado na época. Geraldo Filme é a representação mais voraz no tocante ao elo vivo africano no estado de São Paulo. “Quero ser sambista Ao renascer de novo Pra cantar a alegria E desventura de meu povo Quero ter muitos amigos Como tenho atualmente Cantar samba na avenida E nascer negro novamente”

Dentro do universo dos sambas-enredo das escolas de São Paulo, Ideval Anselmo é a maior referência neste rico cenário. Nascido em 18 de setembro de 1940, em Catanduva, interior de São Paulo, ingressa em 1969 na agremiação Camisa Verde e Branco, época em que tal entidade levaria para o carnaval um tema antológico “Samba através dos tempos”, também conhecido como “Biografia do Samba”, de autoria de Talismã e Tabu. Posteriormente essa música se tornaria o hino oficial da “Embaixada do Samba Paulistano”. Em sua primeira aparição como compositor na agremiação, emplaca o samba “Literatura de Cordel” em 1972. Tal episódio se tornaria corriqueiro em sua trajetória de sambista, ganhando muitos outros carnavais. Entre os sambas-enredo vencedores, um deles viraria um marco: “Narainã, A ­ lvorada dos Pássaros”, parceria com Zelão e Jordão, em 1977. Apresentado pela escola de samba Camisa Verde e Branco, a música foi considerada o samba do século.

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Esta fotografia de Pierre Verger, tirada em 1947, no Recife, faz parte da obra da SESI-SP Editora, Carne Vale – O imaginário carnavalesco na cultura brasileira.


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“Era de manhã Narainã ali chegou No reino encantado Oh sinfonia a patativa Que cantou A índia tão bonita Prometida ao pajé Amava outro moço, com calor e muita fé Iara mãe d’água No pé do ipê (USP Imagens)

Quem faz a morada É o saci pererê Mulher te viro bicho No feitiço Pajé falou Calou a sua voz

Grupo de crianças do Camisa Verde e Branco, em 1925.

Ela em ave transformou Guerreiro Moço valente chorava Até a lua prateada Implorou ôô Das lágrimas de um curandeiro Virou alado o guerreiro E voou ôôô”

Suas obras também foram gravadas por intérpretes como Jamelão, Fabiana Cozza, Eliana de Lima, Leandro e Leonardo, entre outros. Ideval, com sua poesia africanista carregada de sensibilidade, marcava seu grito de libertação nas músicas “Tesouro Africano” e “Mutação*”, esta última um grito inflamado de denúncia contra o racismo que sua filha teria sofrido na escola. As duas músicas pertencem à coleção “Memória do Samba Paulista”, gravada em 2012, com produção em parceria dos selos musicais Kolombolo Diá Piratininga e Sambatá. Ideval Anselmo, além de ser um ícone da escola de samba Camisa Verde Branco, é atualmente integrante da velha guarda musical. Teve seus sambas cantados no carnaval por outras agremiações, entre elas: Unidos do Peruche, Rosas de Ouro, Colorado do Brás e Tom Maior, na qual é um dos fundadores. *“Sou negro sim, valor em mim, o negro tem histórias para contar” 50


cultura

Referências Bibliográficas MORAIS, Wilson Rodrigues. Escolas de Samba de São Paulo: Capital. São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978. BARONETTI, Bruno Sanches. Transformações na avenida: história das escolas de samba da cidade de São Paulo (1968 – 1996). São Paulo: LiberArs, 2015. SOUZA, Geraldo Filme de. Geraldo Filme de Souza: depoimento [mai. 1981]. Entrevistadores: Olga R. Moares Von Simson e Ciro Ferreira Faro. São Paulo: Museu de Imagem e Som (MIS), 1981. Apostila. Entrevista concedida ao Projeto “Memória do Carnaval Paulistano: cordões e escolas de samba.

Da redação Concomitantemente à exposição Carne Vale – O imaginário carnavalesco na cultura brasileira, realizada na Galeria de Arte do Centro Cultural Fiesp – Ruth Cardoso, em 2015, a SESI-SP Editora lançou o livro de mesmo nome. A obra apresenta a diversidade, a criatividade e a riqueza cultural da festa mais popular do Brasil. Um conjunto de representações, sonoridades, memórias, imagens e alegorias de um carnaval. As obras de artistas consagrados, como os desenhos de Carlos Julião, Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Lygia Pape, as gravuras de Debret, Rugendas, Pierre Verger, Arthur Omar, Eder Santos, entre outros, estão na publicação, contribuindo para o resgate da trajetória dessa festa anual que leva multidões às ruas.

CARNE VALE – O IMAGINÁRIO CARNAVALESCO NA CULTURA BRASILEIRO Organização: Roberto Moreira S. Cruz Páginas: 152

RENATO DIAS é músico, compositor e produtor cultural. Fundador do grêmio de resistência cultural “Kolombolo Diá Piratininga”, do cordão carnavalesco “Corpo Fechado” e do “Kuringa movimento cultural Afro Bantu paulista”. Como músico, foi fundador e integrante do grupo de rap Sinhô Preto Velho. Como sambista, lançou o álbum “Samba Rural Urbano”, em parceria com o músico T. Kaçula (2007) e em 2015 lançou o álbum solo “Antropofagia – O ritual samba-antropofágico do mestre de cerimônia”.

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ensaio

O lado (ainda) desconhecido dos contos de fadas As ilustrações deste ensaio fazem parte do livro A bela adormecida, de Arthur Rackham, publicado em 2015, pela SESI-SP Editora.

por Susana Ventura

Os contos de

fadas são parte importante do imaginário ocidental. Quase todos os leitores, quando adultos, têm referências de um repertório básico composto por duas ou três dezenas de histórias deste cânone que, formado a partir de textos, recebeu, ao longo dos últimos dois séculos e meio, um sem-número de leituras pelas artes plásticas, pela música e, sobretudo, pelo audiovisual. Ítalo Calvino falou-nos do repertório de destinos humanos que subjaz do conjunto de contos. Angela Carter percebeu a multiplicidade de narrativas como um sem fim de histórias anônimas, passíveis de reelaboração constante por parte de quem as conta e que têm feito parte do divertimento de grande parte da população mundial através dos tempos. Mas, da dimensão exclusivamente oral à fixação escrita e à apropriação desse tipo de narrativas para servirem à educação infantil, houve um longo caminho. Como resultado, em termos de livros, vemos uma repetição com poucas variações de um cânone que, estejamos em São Paulo ou em Paris, em ­Buenos Aires ou em Nova York, se repete nas estantes de livrarias, bibliotecas e acervos domésticos. Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, João e o Pé de Feijão, Branca de Neve, Cinderela, O gato de botas, A bela adormecida são traduzidos das publicações de Perrault, dos Grimm, de Jacobs ou recontados e parodiados à exaustão, sem que o público jamais se canse da leitura de novas edições. Mas será que esse repertório possui um “lado B”? Se possui, o que estaria nele? Há alguns anos investigo as narrativas literárias construídas tanto por recolha oral quanto por elaboração a partir das estruturas do conto de fadas e venho 53


colecionando contos capazes de surpreender e de nos fazer questionar tanto os papeis tradicionalmente atribuídos às personagens típicas desse tipo de conto quanto os modos de perceber e estar no mundo. As donzelas em torres e precisando ser salvas são, por exemplo, uma constante que ultrapassa o caso de Rapunzel, estando presentes em vários contos ao redor do mundo, especialmente os criados ou coletados no continente europeu. Mas e rapazes em torres, presos e precisando de salvação, será que nossos antepassados contaram e escreveram histórias assim também? Estar prisioneiro num corpo monstruoso, como a Fera de A bela e a fera ou o sapo de O príncipe sapo, necessitando, para o desencantamento, ser profundamente amado ou beijado. Seria essa terrível circunstância uma exclusividade de personagens do sexo masculino? Em busca de responder a questões como esta, tenho buscado repertórios pouco visitados pelas publicações. É o caso da obra da siciliana Laura Gonzenbach (Itália, 1842-1878). No conto “Sorfarina”, que traduzi e adaptei para ser apresentado como um dos contos transcritos pela avó em O caderno da avó Clara (SESI-SP Editora, 2016), temos uma protagonista bem mais ativa do que as donzelas que habitam os contos de fadas mais conhecidos. Sorfarina é inteligente, enérgica, apaixonada e, por ter rivalizado com o futuro marido (aliás, príncipe) nos tempos de escola, é submetida a duras provas depois de casada com ele, sendo condenada, inclusive, a viver num poço até que lhe peça desculpas por um ato cometido na longínqua infância! No entanto, com esperteza e excelente disposição física, essa protagonista constrói uma relação de amor e sedução com o autoritário e ressentido marido, numa história repleta de aventura, humor, suspense e uma boa dose de violência. Pensando em revelar um pouco mais deste (ainda) desconhecido lado B, onde, sim, donzelas salvam rapazes presos em torres e podem ser vítimas de encantamentos, apresento agora uma tradução literal de outro conto de Laura Gonzenbach, “A cobra que testemunhou para uma donzela” que, como “Sorfarina”, faz parte de seus Contos sicilianos, publicados na Alemanha da segunda metade do século XIX. Estamos aqui diante de uma história inusitada em que a protagonista luta pelo que parece a ela ser “o final feliz”. Vejamos:

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ensaio

A cobra que testemunhou para uma donzela Era uma vez uma pobre mulher, tão pobre que tinha que viver numa região muito selvagem e desolada. Ela havia tido apenas uma filha, que era mais bela que o sol. A mãe colhia ervas e as levava à cidade, onde as vendia enquanto a filha geralmente ficava em casa e ali cozinhava e lavava. Um dia, quando a mãe tinha ido novamente à cidade com suas ervas, a filha ficou completamente só em casa e aconteceu de o filho do rei estar naquelas paragens. Ele estava caçando e acabou por se separar dos demais membros de sua comitiva. Quando ele avistou a pequena choupana, bateu na porta e pediu um copo de água porque tinha muita sede. A donzela não abriu a porta, mas, em vez disso, abriu a janela e estendeu através dela um copo de água. Assim que ele viu como ela era linda, ele foi tomado por um desejo sombrio e impetuosamente mandou que ela abrisse a porta para ele. Ela se recusou, mas ele estava tomado de selvageria e colocou a porta abaixo. Ele invadiu a casa e subjugou a donzela. Ela gritou e chorou, mas ninguém a ouviu. Quando ela estava olhando em volta para ver se conseguia alguma ajuda, ela notou uma cobra que se esgueirava por ali. — Já que ninguém pode me ouvir em minha necessidade — ela disse — Eu te chamo, ó cobra, para minha testemunha: príncipe, que você nunca possa se casar com mais ninguém a não ser comigo! Assim que ela disse isso, se viu subjugada pela vontade do príncipe. Depois ele deixou a choupana e ela nunca disse para sua mãe nada do que tinha acontecido ali. Não muito depois desse evento, correu um rumor noticiando que o príncipe estava para se casar com uma bela princesa. Um dia, quando a mãe retornou de sua ida à cidade para vender ervas, a donzela perguntou: — Diga-me, mãezinha, o que há de novo na cidade? — Oh, minha criança — a mãe respondeu — escutei uma história tão estranha que ninguém acreditaria. Imagine você que o príncipe está com uma cobra enrolada no pescoço e ninguém consegue tirá-la de lá. A cada um que se aproxima, ela aperta a garganta do príncipe um pouco mais e ele está quase morrendo estrangulado! 55


Quando a filha escutou isso, ela soube muito bem qual era a cobra e, assim, se arrumou na manhã seguinte e partiu para a cidade sem nada dizer para sua mãe. Uma vez ali, foi diretamente ao castelo. Quando os guardas a viram e perguntaram-lhe o que queria, ela disse: — Anunciem-me para o rei. Eu tenho uma maneira de livrar o príncipe da cobra que se enrolou em volta do pescoço dele. Os guardas começaram a rir e disseram: — Muitos médicos e sábios já tentaram e nenhum deles conseguiu. Agora você quer tentar! Mas ela respondeu: — Apenas me anunciem para o rei. Quando o rei escutou o barulho que havia na porta, perguntou o que estava acon­ tecendo: — Há uma jovem lá embaixo — contaram-lhe seus servos. — Ela garante que pode libertar o príncipe da cobra. — Bem, deixem-na subir — disse o rei. — Mesmo que ela não tenha como fazer isso, não custa nada deixarmos que ela tente. Então a linda donzela foi levada à presença do rei, que a conduziu até o quarto do filho e deixou-a lá sozinha com ele. Ela caminhou em direção a ele e disse: — Olhe para mim. Você me reconhece? — Não — respondeu o príncipe. Mas assim que ele disse isso, a cobra se apertou um pouco mais ao redor do pescoço dele. — O quê? — ela continuou. — Você esqueceu como abordou a minha casa e me forçou a fazer sua vontade? Você não se lembra que chamei a cobra para ser minha testemunha e assim você não pudesse se casar com ninguém além de mim? Ele gostaria bem de responder “não” novamente, mas a cobra apertou-se mais um pouco em torno do pescoço dele, até que ele finalmente dissesse “sim”. Só então a cobra afrouxou um pouco o laço. — E agora, você quer casar com a princesa e me abandonar? — perguntou a donzela. — Sim — ele respondeu. Tão logo ele disse essas palavras, a cobra apertou mais seu abraço em torno do pescoço dele e prosseguiu estreitando o aperto até que ele finalmente prometeu que não se casaria com a princesa. — Agora jure-me que se casará comigo — disse a donzela. O príncipe jurou e, assim que o fez, a cobra se desenrolou do pescoço dele e desapareceu rapidamente. 56


ensaio

O príncipe correu para o rei e disse: — Querido pai, mande minha noiva de volta para seu pai. Esta donzela me libertou da malvada cobra, e ela e apenas ela será minha noiva. O príncipe casou-se com a linda donzela e ela trouxe sua mãe para viver no castelo. Eles viveram felizes e contentes, e nós aqui sem dinheiro nem para o aluguel!

A leitura de um conto como este, em que a protagonista deseja se unir a seu agressor, sendo a união considerada a culminação da existência “feliz”, pode ser um desafio. Neste “lado B”, que merece ser mais conhecido, temos, entre outros elementos, doses grandes de violência, presença de jogos de poder, fugas espetaculares (muitas delas conduzidas por mulheres) e variedade na descrição de modos de sentir e estar no mundo. Para leitores críticos, pode ser uma oportunidade interessante de perceber que há mais nos contos de fadas do que se percebeu até hoje e que a “história dos contos de fadas” tem sido, no mais das vezes, a “história das edições de um mesmo conjunto contos”, contos esses que constituem uma pequena parte de um enorme e ainda pouco desconhecido acervo.

SUSANA VENTURA é doutora em letras pela USP, pesquisadora, escritora e tem vinte livros publicados. Ganhou o 3o lugar no prêmio Jabuti 2017 com o romance juvenil O caderno da avó Clara, publicado pela SESI-SP Editora. Estuda contos de fadas de autoria feminina e as representações artísticas realizadas por mulheres em torno do tema.

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As ilustrações desta matéria fazem parte do livro Infâncias: aqui e além-mar, publicado pela SESI-SP Editora.


infantojuvenil

Um bom lugar para morar por Caio Tozzi

Afinal, como criar histórias para crianças e jovens que sejam ines-

quecíveis e encantadoras? Essa é uma das principais perguntas que está escrita em um caderninho laranja que carrego para lá e para cá. Nele passei a anotar diversas questões que me surgem sobre o ofício da literatura infantojuvenil. Sou novato na área, começando a me deliciar com a ideia de ver os livros que escrevo nas mãos dos jovens e ávidos leitores. Por isso, ando cada vez mais interessado em descobrir como fazer livros saborosos para esse público. Sei bem que não chegaremos a uma resposta clara, trata-se de algo complexo. Ainda assim, aproveitei a chance para procurar alguns colegas que têm se dedicado a escrever para o público infantojuvenil e dividir essa e outras angústias e pensamentos com eles. Claudio Fragata, autor de livros como Palmas para Picolina! e Histórias mal contadas (ambos da SESI-SP Editora), começa me dando um norte. “O despertar do leitor é o despertar da vontade de ler”, explica. “Gerar a questão: por que eu não consigo viver sem ler? E entender que a literatura vai levar para um estado que não se consegue chegar de outra maneira.” Foi inevitável eu não me conectar ao menino que fui. Rememorei o primeiro contato com os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, com oito ou nove anos, e logo depois, com uns dez, a surpresa com a história de Uma professora muito maluquinha, de Ziraldo. Revisitei o deslumbramento que Claudio comentou – um sentimento importante para se guardar.

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José Roberto Torero também me confidenciou algo do tipo. O autor de Uma história de futebol e Chapeuzinhos coloridos lembrou do primeiro livro que o fez chorar, na adolescência. Era Os patins de prata e fazia parte de uma coleção que ganhara do avô, os Clássicos da Juventude. Numa tarde, em Santos, sua cidade natal, foi às lágrimas dentro do carro ao lado da mãe, que estava ao volante. Ela, lembra Torero, estranhou muito o acontecido. Ele, o menino leitor, também. “A primeira vez que você chora lendo um livro é um negócio...”, afirma, citando também outro título que o marcou, Beleza negra, em que o narrador era um cavalo. “Eu pensei: então é isso, o livro me faz entender como um cavalo pensa e me faz chorar? Vou acabar me apaixonando, né?” Parei um instante para assimilar o que ouvi. Será que esse era um primeiro caminho que eu tinha encontrado para aquela minha questão? Como entender (ou redescobrir, ou reconectar-se) com as sensações que os livros nos provocam no tempo que estamos crescendo e descobrindo as coisas do mundo? Roberta Asse escreve e ilustra histórias. Esse também é um ponto de atenção para ela, que é autora da coleção Crianças Daqui, que conta histórias de pequenos moradores de diversos cantos do país. “Fui uma criança que imaginava o tempo todo, muitas vezes em busca de respostas aos acontecidos que vivi”, relata. “As explicações mágicas do mundo voltaram quando fui mãe e não parei mais de ler e escrever. Desejei conhecer mais crianças, saber quem são, aprender a contar tudo para elas”. Mas será que é necessário estar em contato constante com crianças para acessar esse sentimento? Mãe de duas meninas, Roberta acha que ajuda, mas não é essencial. “Fundamental é reparar — no sentido que Saramago diz, ‘aquele depois de ver’ — a criança leitora e desvelar maneiras de falar com ela.” Torero conta seu caminho: “Eu escrevo imaginando eu mesmo como leitor, com certa idade. Em geral, penso: esse livro é para meu ‘eu’ de oito anos. Aí eu tento mirar e acertar, afinal, eu conheço bem esse cara.” No meio dessa investigação, recorro à opinião de Pedro Bandeira, o escritor que mais vendeu livros do gênero no país, autor de clássicos como A droga da obediência e A marca de uma lágrima. “A literatura não depende de boas ideias para os enredos, e sim da presença no texto de sentimentos de quem vai lê-lo: seus medos, suas esperanças, suas raivas, suas paixões, seus amores, suas dúvidas, suas dificuldades de relacionamento, sua inclusão no mundo”, diz. Dentro desse ínterim, abro um novo caminho para entender, então, como se dá o processo criativo deles. Aponto essa curiosidade, levando em consi60


infantojuvenil

deração dois pontos da história da literatura infantojuvenil no Brasil: o fato de termos um fundador totalmente libertário como Monteiro Lobato e, ao mesmo tempo, trazermos uma herança de tempos em que obras para crianças foram amplamente vinculadas à educação, o que trouxe, muitas vezes, um viés didático, moralista e de “autoajuda” à nossa produção. Frente a frente com esses extremos, indago-me como esses criadores encaram o computador na hora de inventar suas histórias? Quais as questões que surgem? “Mergulho no mundo da imaginação sem diretriz nem restrição”, me conta Silvana Salerno, que já publicou mais de vinte obras para as crianças – inclusive, está no prelo um novo título pela SESI-SP Editora. Stella Maris Rezende é um nome que, nos últimos anos, virou sinônimo da melhor literatura juvenil produzida no Brasil. Já venceu os principais prêmios do gênero, como o Barco a Vapor e o João-de-Barro, além de ter quatro Jabutis. Sua obra é conhecida também por não fazer nenhuma concessão aos leitores. “Tenho um projeto estético. Meu principal objetivo é fazer literatura, prosa poética, independentemente do público-alvo. Faço questão da poesia”, revela. “Não subestimo a inteligência das crianças e dos jovens. Creio que o maior desafio na literatura infantojuvenil é fazer literatura de boa qualidade, pois muitos autores optam por facilitar demais as coisas. Por acaso a vida facilita? Por acaso a criança não convive com assuntos delicados e polêmicos? Ora, a condição humana é complexa e a literatura precisa conter essa complexidade de alguma forma.” Diante da fala – e do trabalho – de Stella, coloco-me a pensar no quanto de ousadia e coragem é preciso ter para escrever algo realmente original para crianças, fugindo da premissa de que a literatura para elas é mais fácil de se fazer ou da classificação como algo menor. Claudio, que também ministra aulas de escrita criativa para jovens escritores que querem entrar na área, reafirma a necessidade de olhar além. “Quando você procura fazer uma literatura de vanguarda, arrojada, sem medo, sem camisa de força, você chega a algo novo e que pode ser realmente de interesse dessa juventude.” Dentro desse contexto, recordo-me de um ponto citado por Torero, que volta a conectar à indagação inicial, sobre “os segredos do sucesso”. “Eu acho que um tanto [do sucesso] é a novidade”, analisa, citando alguns clássicos precursores a seu tempo. “Monteiro Lobato foi assim. O Marcelo, marmelo, martelo, da Ruth Rocha, talvez seja um dos primeiros a usar a metalinguagem, como é o Chapeuzinho amarelo, do Chico Buarque. Como O reizinho mandão, também da Ruth, é um pouco político e também não tinha.” O fato é que, cada vez mais, se está entendendo qual o poder que a literatura para crianças e jovens possui. A mocinha do mercado central, livro para 61


jovens de Stella Maris Rezende, foi o primeiro do gênero a vencer a categoria “livro do ano de ficção” do prêmio Jabuti, em 2012. “Foi um belo reconhecimento da importância da literatura infantojuvenil, afinal, ela é literatura e ponto”, conta a autora, refletindo, porém, como ainda não podemos considerar esse cenário completamente mudado: “Qualquer autor para adultos que tenha recebido um único Jabuti, mesmo que seja de terceiro lugar, é muito mais reverenciado pela mídia do que autores para crianças e jovens que tenham recebido quatro ou dez Jabutis! Isso ainda se deve a um olhar de desdém sobre os livros para crianças e jovens, o que é um paradoxo, pois é com eles que nasce o gosto pela leitura. Só aos poucos a literatura infantojuvenil vem crescendo em importância e reconhecimento.” Do ponto de vista dos novos criadores, Claudio, que lida diretamente com eles em suas oficinas, conta que a maioria já chega “sabendo onde estão amarrando o burro” e com um profundo desejo de se dedicar a esse público. Não à toa, ele acredita que estamos vivendo o momento mais efervescente da literatura infantojuvenil brasileira desde os tempos de Lobato. “Muita gente nova despontando e escrevendo de uma maneira realmente inovadora. Mas, assim, com uma pegada realmente literária”, afirma. Roberta Asse, que foi aluna de Claudio, tem a mesma impressão, inclusive quando amplia a observação para o campo das ilustrações. “Tivemos uma revolução na ilustração e nas abordagens temáticas, principalmente nos últimos dez ou quinze anos, fruto da reflexão sobre uma linguagem brasileira, de identidade e liberdade”. Eu bem desconfiava que minha pergunta inicial iria render muitos assuntos. Os caminhos foram surgindo e diversos temas entrando na conversa. Talvez fosse previsível (ou intencional). Ainda assim, faço uma última questão para meus companheiros: o que, então, um escritor para crianças precisa ter? “Desejo de se divertir. Porque é divertido escrever para crianças”, afirma Torero. “É muito livre, você pode usar mais magias, deuses, personagens malucos. É bem bom.” Pedro Bandeira conclui: “Estudar a psicologia e a sociologia de crianças e jovens ajuda, mas não basta. Se bastasse, todo psicólogo seria um escritor. A partir daí entra algo chamado ‘de nascença’”. Seja como for, é preciso continuar criando para esse público, entendendo a importância desse trabalho, a responsabilidade, respeitando nosso interlocutor e tendo, acima de tudo, liberdade para criar. É por isso que também carrego na primeira página daquele meu caderninho laranja o seguinte pensamento: “Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar”. Esta é uma frase de Monteiro Lobato que peguei emprestada para me acompanhar. Suspeito que, quando me inquieto que62


infantojuvenil

rendo saber como encantar e conectar leitores, na verdade estou querendo abrigá-los — seja numa tarde qualquer, numa noite de insônia ou na leitura compartilhada na escola. Para que depois, quando saírem dessa “casa”, voltem para o mundo real com outras perspectivas, entendendo seus sentimentos, as questões humanas e se sentindo menos só nessa imensidão que é a vida. Um tanto mais felizes, fortes e interessados na jornada que vem pela frente.

CAIO TOZZI é escritor, jornalista e roteirista. Para o público infantojuvenil, escreveu Tito Bang!, Boa sorte, Dante, Procura-se Zapata e O segredo do disco perdido. É também criador, roteirista e codiretor de documentários que falam sobre a importância da arte para as pessoas, como “A vida não basta” e “Ele era um menino feliz”.

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Quinho. Antonio Candido, 2014.


artigo

Ler: um modo de ser feliz por Jorge Miguel Marinho

Como sempre afirmou Mário de Andrade e foi conivente com a

afirmação que sempre me esclareceu no que se refere às questões políticas e estéticas da arte da palavra literária: “A literatura, mesmo a mais pessimista, é sempre uma proposição de felicidade e a felicidade não pertence a ninguém, é de todos.”1

Na sua dimensão utópica, entusiasmada e marcadamente sugestiva pela sua própria natureza lúdica e recriadora da realidade, ao mesmo tempo em que a arte literária denuncia as mazelas mais absurdas e mesmo mais cruéis da existência humana, simultaneamente ela, ao menos, anuncia sempre um mundo, concebido pelo imaginário poético, possível e naturalmente melhor. Mundo este, conhecido ou desconhecido, mas invariavelmente proposto como realidade mais humana e, não por acaso, mais feliz. Portanto ler é devaneio, enseada da felicidade sobretudo quando centrada na matéria literária. É dessa raiz profundamente humanizadora tão bem acentuada e iluminadora nos estudos e precisas considerações do professor Antonio Candido que a literatura, ainda que se sustente em uma visão dramática, trágica, cética, pessimista e mesmo fatídica do real, sempre se oferece, pelo seu traçado lúdico e recriador do universo de fato, como experiência imperdível, um modo de ser feliz. Nesse universo que elege a felicidade enquanto condição imprescindível de ser e existir, como Borges insistiu não poucas vezes, na esfera e ação humanas, reduto, nas palavras do poeta/leitor, da própria “obrigação de ser feliz”, que a arte literária se apresenta como material privilegiado no âmbito da motivação. 1 ANDRADE, Mário – A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade anotadas pelo destinatário – São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 79.

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Assim, a leitura do que possa ser literatura – e ela é tanta coisa – é também um ato previsível, comum, tão trivial e, às vezes, até mesmo banal. Entretanto, é impressionante, ao menos para os leitores mais sensíveis, o seu poder de sugerir, de surpreender, de projetar na esfera do imaginário um mundo que se constrói, no trânsito de ficção e realidade, insistindo sempre numa vida mais feliz e melhor. É isto: ler é uma experiência essencialmente subjetiva e, quando lemos Shakespeare, Clarice Lispector, Julio Cortázar e tantos outros, passamos a ser os livros lidos e, como leitores criativos, guardamos e recriamos as palavras dos escritores e dos personagens no nosso universo íntimo, na construção da nossa possível visão de mundo, naquela enseada da nossa necessidade vital de fantasias e revelações. Somos felizes, enfim. A maioria dos escritores que, com paixão e entusiasmo, confessa a sua história de leitura, celebra a sua configuração mágica, não apenas como ato, mas como fonte de descoberta de mundos conhecidos e desconhecidos que, por vezes, não existiam e, pela força sugestiva das palavras, passam a existir no horizonte fictício e por natureza real da felicidade de imaginar e inventar. E também aquelas realidades, fantasias e aspirações que pairavam nas camadas mais subjetivas do ser e, pela força emotiva e reflexiva das palavras, acordaram e se tornaram vivências no lugar íntimo e existencial de cada um. É justamente por isso, por essa peculiaridade da arte de casar a realidade com a fantasia, que, no universo da literatura que se oferece para o exercício de ler, que um conto de Guimarães Rosa, um romance de Graciliano Ramos, uma crônica de Caio Fernando Abreu, um poema de Carlos Drummond de Andrade, todos eles propõem uma busca da alegria, mesmo quando fazem do sofrimento o seu tema aparentemente maior. A dor, a solidão humana, a injustiça social, os amores impossíveis, as mazelas da existência representados na arte nunca aparecem como o atestado de uma ordem imutável, como simples registro de uma realidade fatídica, como consumação definitiva de que viver se reduz à experiência de sofrer. Não que a literatura modifique imediatamente o mundo em que vivemos, mas ao menos ela aprofunda e inquieta a sensibilidade do leitor para uma vida que pode sempre ser humanamente melhor. E, por falar em Drummond, vejamos como o seu poema “Os Ombros Suportam o Mundo” – para mim o poema mais triste da Literatura Brasileira contemporânea – revela a carência, o estado de penúria, a falta de gestos mais humanos na sociedade dos nossos dias e, pela própria gravidade poética da denúncia, apela-clama-grita por uma existência menos atroz: 66


artigo

“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.” 2

É muito relevante observar que a frustração, o lamento do Poeta e seu olhar esteticamente entristecido não ganham dimensão trágica apenas pela consciência poética de que a humanidade sofre – o que provoca empatia no leitor é o sentimento poético de que lamentavelmente o homem se habitou a sofrer. Entretanto o impacto da mensagem, os jogos de palavras, a sugestão dizem como o mundo é e propõem no mesmo tom como ele poderia idealmente ser, enfatizando que a literatura está sempre a favor da vida, sendo sua função mais humana, política e revolucionária revelar, por meio do imaginário, que a vida pode ser mais completa, solidária e comunitariamente mais feliz. Na verdade, a arte – e muito especialmente a literatura – convida o indivíduo a prosseguir com sua promessa de felicidade, reordenando, reinventando e reinaugurando permanentemente o real. 2 ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1979, p. 131.

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Este elemento motivador da criação faz da arte talvez a expressão mais generosamente democrática da vida e confirma as palavras de Mário de Andrade que continuam a ressoar dentro de nós no sentido de viver a literatura, ler e ser feliz. E aqui vale reforçar que este sentido de felicidade proporcionado pela arte, ainda que vivido e escavado do registro artístico da dor, e igualmente sua rede ou trama democrática de significações – já que sua relação intersubjetiva com as pessoas tem sempre componentes de ordem afetiva ou emocional – reiterando – ambos ocorrem muito especialmente na arte literária, que, veiculando temas os mais diversos pela exclusiva força sugestiva da palavra, motiva de forma exemplar os fluxos e labirintos da imaginação do leitor. Apenas a título de curiosidade, é relevante saber que, comprovadamente, quando lemos Dom Casmurro de Machado, A hora da Estrela de Clarice Lispector ou o poema VII de O guardador de rebanhos de Fernando Pessoa, na voz do seu heterônimo Alberto Caeiro, cada leitor imagina de forma muito particular como é a sua Capitu, a sua Macabéa, o seu possível Jesus, enfim vive a felicidade de imaginar motivada por seu particular olhar de leitor que, com raro sentimento de alegria imediata, vive momentaneamente também a felicidade de ser criador. Pois muito bem: a literatura é uma manifestação artística e uma forma de conhecimento – acentuando que conhecimento alcançado pelo privilégio de ler é felicidade – e tem nas palavras trabalhadas e potencialmente carregadas de significações o seu instrumento de expressão do “homem que no fundo dele mesmo se pergunta em situações comuns ou extraordinárias: quem sou eu, de onde vim, para onde vou’, quem somos nós, afinal o que é viver? Em face da realidade transitória, passageira e até mesmo fugaz, a literatura é a possibilidade de representar simbolicamente, na dimensão de quem escreve e no ângulo de quem lê, as vidas que realmente vivemos ou os personagens que imaginariamente inventamos dentro de nós. Esta é a outra face da felicidade prometida pela literatura e é justamente o que a feliz entrada deste texto que retoma a frase de Mário de Andrade diz, propondo igualmente o exercício de uma leitura aberta, livre e feliz em conivência com a própria natureza do seu objeto no sentido de identificar um dos traços mais marcantes do ato de ler a literatura: o seu modo livre e tão bem-vindo de ser sendo feliz. Por toda essa sua capacidade inventiva, a arte literária é sempre ficção no sentido de realidade imaginada e criada pela palavra, sem necessariamente precisar ser comprovada com o real. Entretanto, por mais alegórico, fantasioso, absurdo que seja um conto, um poema ou uma novela, o texto literário mantém estreitos vínculos com a realidade humana e só o homem na sua 68


artigo existência real é seu foco de interesse e atenção. Este talvez seja o traço mais generosamente humano da literatura e a sua própria razão de existir – expressar em profundidade a dor e a alegria, a luta e a desistência, o amor e o desencontro, a morte e o retorno, o misterioso e o prosaico, o desejo e a frustração, a liberdade e a descoberta, a fome e os excessos, a persistência e a fuga, a imobilidade e a peregrinação, contribuindo assim para a formação ética, estética e histórica do homem em permanente processo de descoberta e revelação. Ele, o leitor que se quer feliz, imagina, acolhe e hospeda cada vez mais personagens dentro dele e igualmente se torna cada vez mais solidário com a vida, depois de cada livro que lê. Ele interrompe a leitura, mesmo quando ela é inadiável, pelo prazer de fingir que o livro não existe por um momento e, de repente, poder lembrar que o livro é de verdade e voltar a ser feliz. Assim e com destaque, a leitura literária é um modo de ser feliz e, pela sua força recriadora de sentidos e de palavras, ao menos uma promessa de felicidade. Vale a pena reiterar e celebrar sempre a observação de Mário de Andrade que inicia esse ensaio revelando o seu conceito de felicidade: “(...) mas a felicidade não pertence a ninguém, é de todos.”

Nesse ponto exato, apenas como sugestão de leitura imperdível, é muito bom ler e reler o brilhante estudo “O direito à literatura”3, de Antonio Candido, que destaca incisivamente a literatura na sua vertente fabuladora como direito de todos e, sendo assim, fica aqui um alerta nosso a propósito desse tema tão humanizador: “Sendo a literatura um direito de todos enquanto necessidade de viver a ficção e o imaginário, ler é um direito à felicidade e um modo humanamente entusiasmado de ser.”

Por vezes e não poucas, os escritores dialogam distantes no tempo e no espaço, entre tantos Jorge Luís Borges e Davi Arrigucci Jr como um eco poético que aproxima as pessoas criando uma comunidade de vozes que parece ler a caligrafia coletiva de todos e de cada um. Jorge Luís Borges diz: “Creio que uma forma de leitura é a felicidade.” E Davi Arrigucci Jr sublinha a experiência imperdível que é ser feliz numa leitura livre e sem tempo de duração: “A leitura, para dizer o mínimo, é uma forma de felicidade”. 3 CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”, in: Vários escritos, São Paulo/Rio de Janeiro: Duas cidades, 2004, p. 174-5.

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E mais: em Ética a Nicômaco, principal obra sobre ética de Aristóteles, o autor defende que a felicidade é o maior bem desejado pelos homens e fim das ações humanas4. No percurso desse texto e ampliando as informações sobre o tema aqui tratado, vale considerar as palavras de Ana Rüsche, colaboradora da Ponto 14 em seu sensível ensaio sobre o componente humano e o sentido de resistência na obra de John Blacksad, que, por vezes, oscila entre o fracasso e a ousadia, quando a autora enfatiza a dimensão utópica e humanizadora da literatura: “Uma das funções da ficção é nos inspirar, conceder possibilidades para que lidemos melhor com desafios e questões que nos atravessam. A ficção possui esta força mágica de nos devolver um mundo em que vivemos exatamente como ele se apresenta”5 . A passagem em questão, que aponta para literatura como forma de resistência, tema que o professor Alfredo Bosi já abordou em seu brilhante estudo “O ser e o tempo na poesia” –, enfatiza o modo de ser da literatura como um modo de resistir, de lutar e também de ser feliz. Dessa forma e por todas as atenções aqui colhidas, podemos compreender que o ato de ler, entendido como bem e felicidade para os seres humanos, não deve ser alcançado individualmente, mas sim enquanto ação coletiva, por toda vida. E é nesse exato sentido que bem e felicidade coincidem com o propósito da literatura enquanto arte de todos. Tal propósito, o maior da literatura, clama ainda mais uma vez pela voz marcadamente humanitária de Mario de Andrade, na sua tão iluminadora concepção do seu próprio ser poético que nunca separou vida, arte e fabulação, com a frase que iniciou, percorreu e provisoriamente põe um ponto final nesse texto: “A literatura, mesmo a mais pessimista, é sempre uma proposição de felicidade e a felicidade não pertence a ninguém, é de todos.”

Enfim, ler é um modo de ser feliz. 4 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco: poética Aristóteles; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Nova Cultura, 1991, s/d. 5 RÜSCHE, Ana - “Só fracassa quem tem muita coragem: as sete vidas do audacioso Blacksad”, IN: revista Ponto, no 14, São Paulo: SESI-SP Editora, 2017-8, p. 33.

JORGE MIGUEL MARINHO é professor de literatura brasileira, coordenador de oficinas de criação literária, roteirista, ator e escritor de vários livros, entre eles, Te dou a lua amanhã (Prêmio Jabuti), Lis no peito – um livro que pede perdão (Prêmio Jabuti) e Na curva das emoções (Prêmio APCA). Pela SESI-SP Editora, publicou Blue e outras cores do meu voo, A gravidade das coisas miúdas (Prêmio FNLIJ) e Lá longe no chora menino, que recebeu o prêmio Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio, na categoria Distinção Cátedra 10, como um dos melhores livros de literatura infantojuvenil 2017.

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Ilustração de Cadão Volpato.


do conto

Cidades e noites por Cadão Volpato

No Porto, a uns 30 metros de altura, dependurados na ponte D. Luís à

espera do salto no Rio Douro, conversando distraídos, despreocupados, era tudo uma questão de cair em pé no rio, porque ninguém se atira – abandona-se, cai-se com fria suavidade. Eles vestem apenas o calção de banho, o que, para nós que estamos à margem, aumenta a fragilidade dos corpos em queda livre. Uma ponte, isso é que é trampolim. Merecia uma roupa de mergulho, não era Acapulco, não era pular numa prova de salto ornamental, era o verão no Porto, e o Rio Douro cortado por barcos grandes e pequenos de silhuetas desenhadas pelo sol, singrando as águas profundas como se tudo na vida passasse com essa naturalidade, incluindo os abomináveis jet-skies que a gente gostaria de derrubar com um arpão ou um lança-mísseis, se bem que um arpão lembra mais um baleeiro, e tem mais a ver com a água em questão. E os meninos continuavam a pular no rio, maiores e menores, dependurados na ponte e, sem que nos déssemos conta do momento preciso, despencavam em queda livre. E depois de alguns instantes aflitos de suspensão, as cabeças vinham à tona e eles chacoalhavam os cabelos e começavam a nadar na direção da margem, fora da nossa perspectiva. Em seguida, sem anúncio, vinha mais um corpo em pé, sem nada de ornamental. Eles me lembravam os meninos de Aniki Bobó, o filme de Manoel de Oliveira, o cineasta do Porto que não morre nunca, embora pareça ter morrido ultimamente. Aniki Bobó está cheio desses meninos barulhentos e destemidos. Em geral, a perspectiva do filme era igual à minha, de baixo para cima, da margem para o alto da ponte, para o alto das colinas. Por isso eu queria conhecer o Porto, por causa de Aniki Bobó. E da margem de Aniki Bobó também se avistava a ponte d. Luís, de onde esses meninos saltavam. No Porto, agora, subitamente o filme em preto e branco ganha as cores da realidade. Mas os meninos continuam em preto e branco, em queda livre. Aniki Bobó é uma canção infantil. É sobre um triângulo infantil. Um menino rouba uma boneca para a menina amada na Loja das Tentações, que fica logo ali. “Quando não a vê, a espera ou a procura com pezinhos de lã em trajectos bem pensados, incluindo os telhados.” Parece um poema, mas é como aparece 73


na Wikipédia. Lá se diz que Manoel de Oliveira era filho de um fabricante de lâmpadas. E lá alguém cravou a data da sua morte. A menina amada se transformou numa velha mulher simpática, que se lembra de detalhes das filmagens. E então cai mais um menino em 2016. E parece que Manoel de Oliveira, um centenário que atravessava a nado o Rio Douro, agora morreu de verdade. Das seis pontes que ligam o Porto à Vila Nova de Gaia, a mais bonita é a d. Luís. Uma delas caiu sob o peso de 4 mil pessoas fugidas do exército de ­Napoleão. Há uma outra desenhada por Eiffel. Chama-se Maria Pia. Os engenheiros que ergueram essa ponte foram depois trabalhar na torre Eiffel. Ponte da Arrábida, cimbre de ferro apoiado nas margens em macacos hidráulicos; sobre ele, dois arcos de betão armado. Percebes? Ponte Infante dom Henrique. Ponte São João, o santo padroeiro da cidade. Ponte do Freixo. O motorista de táxi contou tudo sobre elas, incluindo a história de Napoleão. Também disse que chove muito no Porto. Que o clima se assemelha ao de Porto Alegre, onde ele viveu na juventude. Mas não vimos uma gota de chuva. Vimos, sim, uma grande lua amarela no céu escuro e vazio. No Porto, viveu um blog chamado Dias Difíceis, de Cristina Martí e Rui Manuel Amaral. Eu o li diariamente por mais de cinco anos. Ela escrevia sobre cinema da mesma forma que uma cinéfila do tempo dos cineclubes. Ele tinha uma banda pesada e escrevia microcontos surrealistas. Agora tudo está morto. Catástrofe. Foi assim que conheci o Porto. Da outra margem, do alto de Vila Nova de Gaia, observando o crepúsculo e a cidade que se acendia. Dos telhados abaixo, saltava a silhueta negra do Sandman. “Uma livraria ambulante a bordo de uma bicicleta e uma página no ­Facebook” (Público): a livraria Flâneur. E a Lello, mais bonita que os livros, com suas escadas em forma de arabesco. Os rapazes cantores numa arcada da Faculdade de Ciências, de capa preta, a capa dos estudantes universitários. Imagino um mundo inteiro perdido nessa cidade, enquanto os meninos saltam da ponte para o rio. Manoel de Oliveira era quarenta anos mais velho do que eu e ainda estava vivo, nadando no Douro. Havia também o Museu das Marionetas, cujos atores já encenaram O Silêncio de Beckett. Porto é a cidade dos amantes, segundo o Diário de Notícias. “O ator recém-falecido Anton Yelchin é Jake, um jovem americano que vive no Porto e que se apaixona numa escavação arqueológica por uma estudante francesa, Matti, interpretada por Lucie Lucas. De volta ao Porto, os dois têm uma noite de sexo e uma ceia que lhes marcará para sempre a vida”. Da sinopse de um filme chamado Porto. “Há antes um efeito orgânico de uma alma urbana que 74


do conto

chega a surtir uma espécie de efeito romântico-punk muito recomendável. Os blues do Porto captados na zona velha da cidade, sem embelezamento, com aquela pura e soturna alma da Invicta. O restaurante Cunha, o café Ceuta, o mercado do Bolhão fazem sentido aqui. O realizador afirmou que Manoel de Oliveira foi uma influência e que ficou tocado pela incrível beleza da cidade mas o seu cinema é de uma outra família.” Mais meninos pulam no rio. Trata-se de uma alegria feroz da qual são acometidos apenas no verão. Porque chove, e o Porto é como Londres no resto do ano. À noite, bem tarde da noite, desce uma neblina que ajuda no sono, como um lençol. E tudo em volta do Douro dorme. E também no fundo do rio, onde só há tainhas. Não sardinhas, que pertencem ao Tejo. O motorista de táxi diz que os peixes do rio Douro não servem para nada, a não ser para a distração da pesca, por isso, eu que nunca pesquei na vida mas sou perfeitamente distraído, devo ter andado pescando por ali em outras eras.

UM BLOG DA CIDADE DO PORTO, Dias Felizes, quando

ainda havia esse tipo de coisa e eu era um leitor fiel, certo de que ninguém mais no Brasil o lia, a solidão no meio da multidão. Dias Felizes vem da peça de Samuel Beckett, em que a personagem central Winnie vive enterrada, primeiro até a cintura, depois até o pescoço. Seu companheiro quase invisível, silencioso e taciturno, se chama Willie. Winnie se vira como pode, apreciando o que tira da bolsinha. Seu refrão é: “Ah, este é um dia feliz!”. O blog era feito por um casal que talvez nem fosse um casal. Ele era um escritor de microcontos. Ela gostava de cinema. Os textos dele eram surrealistas. Os dela misturavam personagens dos filmes de Robert Bresson, como o asno Balthazar, com um pêssego que estivesse comendo na hora do almoço ou uma cerejeira florida avistada na rua. Hoje você tenta abrir o blog e aparece uma página cinzenta de luto. No lugar do endereço, Catastrophe (desactivado). Ela se chamava Cristina; ele, Rui Manuel. Pessoas do Porto das quais não tivemos mais notícias.

EM ALGUM MOMENTO DE 2011, assombrado pela história

do polonês que passara 15 dias no aeroporto de Guarulhos depois de desembarcar de um voo de Londres sem ter para onde ir nem como voltar, escrevi a epígrafe de um livro falsificando um poema em nome dele. Aconteceu em junho daquele ano. Wladyslao dormiu num banco de cimento, agarrado à mala, usando apenas um cobertor fino. Era inverno, ele também se aqueceu com duas garrafas de vodka, achadas vazias no canteiro atrás do banco. Só sabia dizer “I’m Poland”. Os faxineiros do terminal cuidaram dele, conversando em português. “Vai que ele fica”, disse uma faxineira. 75


Levavam-lhe restos de comida. Pensavam que era alemão. Ele trazia um passaporte com uma foto de bigode stalinista. Não tinha passagem de volta. Era eletricista em Cracóvia, mas morava em Londres, onde estava desempregado. Tinha cinco filhos. Um amigo propôs que viesse ao Brasil. Ganhou uma passagem só de ida. Precisava esperar dois dias no aeroporto. Daria um passeio por São Paulo e depois voltaria a Londres. Bastava levar dois aparelhos telefônicos como encomenda. Para quê? Não soube responder ao ser interrogado por um funcionário do consulado polonês. O fato é que ninguém apareceu. Os repórteres que descrevaram o caso usaram o Google Tradutor para lhe dizer em polonês, assim que ele foi levado do aeroporto por um táxi a caminho do consulado: “Estamos aqui para ajudar”. E ele voou de volta para Londres. Em 13 de janeiro do ano seguinte, Wladyslao foi encontrado morto, estendido nos degraus de uma escada que levava a um porão, por limpadores de rua londrinos. Estava cercado de garrafas de vodka. Falência crônica do fígado. Aqui, segundo a notícia, ele não tinha filhos. Não tinha ninguém. Não tinha dinheiro, apenas um carregador de celular. Não tinha telefone. Era conhecido como O Homem do Aeroporto, nascido em 10 de março de 1967. Em Londres, eles o chamavam de “O Jogador de Xadrez”, porque ele tinha um olhar inteligente, de escritor ou coisa parecida. Tinha os olhos muito azuis, e Wladyslao Parzelski é um nome de poeta. Ele, de fato, assina o seguinte poema, que usei como epígrafe de um livro que nunca existiu: Essa noite de brinquedo Terminará quebrada Entre mil constelações Desgovernadas Wladislao Parzelski

Primeiro a epígrafe, depois, nenhum livro. Talvez por ele, pelo poema, não pelos telefones e as garrafas de vodka e o banco frio do aeroporto e os cinco filhos que em Londres viraram nada, nem pela eletricidade. Talvez por ele, Wladislao Parzelski, cuja história pregressa desconhecemos, o poema seja lembrado. Não se trata de um bom poema que se sustente sozinho. Não se sabe a sua real extensão, se está escrito por inteiro, mas é um diabo de poema pessimista, com o olhar azul vítreo de Wladislao Parzelski em ­Cracóvia, São Paulo e Londres.

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do conto

O PROGRAMA DE RÁDIO À MEIA-NOITE, num

prédio vazio, a não ser pelo locutor. Ele ficará até as duas da manhã. Estamos falando de rock, eu e mais dois roqueiros que já têm uma carreira de 26 anos. Eles são de Santos. Seu som é pesado, mas as músicas que eles escolheram para o DJ tocar são mais leves. Os três fechamos na admiração pelo Husker Dü, e tudo que saiu do Husker Dü, Bob Mould, Sugar, eu ouvia direto numa fase barulhenta que não durou muito, é claro. De forma que hoje não escuto mais nada, e eles, por sua vez, viraram os ouvidos para outra direção. Por isso falamos do passado com nostalgia. Conto a história de como Chico Science me ligou do Estúdio Nas Nuvens certa noite, pedindo a letra de uma canção que ele estava a ponto de gravar. Um telefonema do céu, lembro de ter pensado. Ditei a letra, ele gravou no seu último disco. Depois morreu num estúpido acidente de automóvel. Era domingo. A letra dizia: “Eu sábado vou rodar/Criança de domingo/Sem saber guiar/Criança de domingo”. Fui à missa de sétimo dia. Ainda não sabia guiar, estava começando a aprender. Da nossa conversa à meia-noite: aos 15 anos os rapazes eram ratos de shows em um planeta distante chamado São Paulo. Usavam um visual que misturava skate, grunge e punk para confundir os skinheads. Os skinheads portavam machadinhas. Os meninos tinham que correr deles feito loucos. Demos adeus numa avenida Paulista quente e sonâmbula, sem saber se, por acaso neste mundo insone, alguém quem sabe nos teria ouvido.

VERÃO, “estate”em italiano: dizia que o odiava. A canção se chamava

mesmo “Odio l’Estate”, mas um outro cantor confundiu-a na tevê, de propósito, com “Odio le statue”, “Odeio as estátuas”, o que nem parece tão desastroso assim, também odeio as estátuas, as estátuas equestre de todas as cidades. O título da canção ficou apenas “Estate”, e assim ela virou um standard do jazz. Quem a compôs foi Bruno Martino, um romano apelidado de “Principe del night”. Era uma canção de piano-bar, com letra de Bruno Brighetti, na qual diz odiar o verão porque ele traz recordações insuportáveis. E que fica esperando a neve cobrir todas as coisas. João Gilberto gravou a música em Amoroso, cortando o ódio ao verão. Mas confesso que também sofro dessa doença rara de alguns cariocas, que passam anos sem pisar na areia, sem dormir ao sol. Que só passeiam à noite.

CADÃO VOLPATO escreveu oito livros de ficção e gravou sete discos com os grupos Fellini e Funziona Senza Vapore, bem como um disco solo, Tudo que eu quero dizer tem que ser no ouvido. Seu romance Pessoas que Passam pelos Sonhos (Cosac Naify) foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2014. O Fellini fez sua última aparição pública em 2016, embora tenha gravado até 2009, depois de encerrar a carreira em 1990.

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Edgar Degas. Two Ballet Dancers, c.1879.

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do novo contista

A eternidade e seu epílogo por Thássio Ferreira

Fazia um frio sutil na sala de espetáculo. Um frio que, entre os espaços

da música, era sentido como um retinir metálico, um badalar de sinos, só que esférico. A plateia, imersa em breu e silêncio, era toda olhos e ouvidos atentos e pele arrepiada ao toque daquele frio esférico que preenchia os hiatos da melodia feito uma contravoz distante, em tom menor. E então.

A música não se interrompeu, não reprimiu qualquer nota dissonante, nem prendeu sua respiração de sons, quando. Aliás, o que houve nem mesmo se deu no intervalo minúsculo entre um retinir e outro. Não, foi bem ao meio mais agudo de uma das ritmadas notas que enchiam a imensidão negra do teatro. Quase como se fizesse parte da sequência de movimentos coreografados e exatos que se desenrolavam no palco. Quase como se não fosse um acidente. Mais que um acidente. Uma pequena tragédia, uma ferida aberta, em carne lacerada e sangue doído, numa das pétalas daquela rosa a se desabrochar que era o espetáculo de dança, deslizando sobre o tablado seco e ao mesmo tempo úmido feito uma campina depois da chuva. Quase uma lâmina a seccionar milimetricamente um sorriso, uma guilhotina, um ato cru e inexplicado de impiedade, a bailarina caiu. Do alto do ar, onde voava lançada pelo parceiro de corpo tão esguio e forte quanto o dela, tão ensaiado e capaz quanto o dela, do alto do movimento agudo em meio à nota aguda de retinir metálico, do alto do frio seco que inconscientemente todos acreditávamos não fosse permitir que nada escorregasse um palmo além do necessário, do alto da ausência dolorosa e impressentida de onde deveriam estar as mãos que não estavam, de onde ambos achavam que estariam, de onde todos queríamos que estivessem, no instante que precedeu a ausência; ou talvez do alto do espaço deslocado onde ela não deveria estar, quem sabe tão libertada em seu voo – como nunca antes – que tivesse flutuado para fora do alcance firme e lógico de seu par, cegamente guiada por uma ousadia inata, toda sua e toda entranhada em seu corpo desde sempre, desde o primeiro engatinhar que foi seu primeiro passo de dança, do alto mais alto, a bailarina caiu, sem perdão. 79


do novo contista

Não se ouviu o baque de seu corpo teso ao bater o chão. Disciplinados, nem ela nem o bailarino que não a segurara precisaram sufocar nenhum grito, nenhum gemido, o qual simplesmente não houve, não se formara, ambos inteiramente corpos em silêncio na cena nua. A música não silenciou. Nenhum dos outros bailarinos, talvez sete ou oito em cena, estancou seus movimentos, nem alongou ou desacelerou qualquer gesto, na tentativa de recuperar, como quem se esforça em rejuntar estilhaços de um cristal partido, a harmonia rompida por aquela queda sem disfarce. O frio da sala de espetáculos prosseguiu, sutil. O tempo, ao contrário do que se diz, não parou. Mas dentro daquele instante – não tivesse ele existido com a intensidade enorme dos desastres, alguém poderia dizer ter parecido não existir, tão breve em seu percurso do ar ao chão – germinou-se uma eternidade. E a eternidade varreu a plateia eletrizando-nos como se cada um de nós fosse uma partícula da mesma corrente. Eletrodos, conduítes, da primeira à última fila, todos nós. Circuito fechado. Nós presenciáramos o desastre. Nós, que não esperávamos nada daquela sorte, fomos tocados pelo desastre como se ele tangesse nossas espinhas feito a corda de um violino. Nossos nervos em rede, entrelaçados, conectados todos, fios a constituírem-na, viva, pulsante, reconhecível enfim (mas não compreensível, isto nunca!), porque éramos todos inocentes a sentir dor, e a dor dos inocentes é a própria eternidade. E como dentro da eternidade, dentro da dor, cabem espantos incalculáveis, cada um de nós sentiu em sua carne, e em seus nervos conectados, a dor do outro, as infinitudes da dor do outro. De muitos outros, todos os outros, na multidão sentada a ouvir a música que não se interrompera. Dentro daquela eternidade que não era cronológica, que não se sucedia nem permanecia estancada, mas era toda simultaneidade, a leve náusea que subiu à garganta da senhora da poltrona A5. Como um engasgo, com o qual todos nós, nas poltronas quase todas ocupadas, tínhamos que lidar. Dentro daquela eternidade, como dentro da noite uma noite dentro do peito, a angústia da moça da terceira fila, que a custo contém um gemido, sacrificando a empatia que é sua grande qualidade, controlando a vontade de se levantar e acorrer ao palco, sem todavia impedir sua mão de gelar no braço da poltrona, transmitindo a mesma angústia, mas por outros motivos, ao namorado ao lado, que pouco se dera conta da queda, absorto em outro ponto do palco, e que lhe aperta a mão com força porque prefere não se virar para mirar o rosto da moça tão linda linda linda que ele ama mas ainda não tem certeza se o ama, e ele não pode, em plena noite de sábado, correr o risco enorme de se deparar com algo maior do que suas forças, um rosto tão lindo 80


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e tão amado que pode não hesitar em demonstrar que não o ama de volta, com a sinceridade dos rostos pegos desprevenidos. Dentro daquela eternidade que era toda tumultos, o espanto que se formou todo, pleno, gordo em ser espanto – antes mesmo de compreender sua própria causa – dentro da carne tão pouca daquele jovem da terceira fila, que aspirava secretamente reunir um dia a coragem de ser bailarino também, mas que por enquanto só reunia espantos pela vida que nem mesmo chegava a compreender. Esse espanto de quem descobre, com o horror eletrizante de toda primeira vez – porque toda descoberta das incomensuráveis possibilidades da vida traz horror e traz volúpia – que os bailarinos erram, que as bailarinas caem, que a beleza é frágil, o salto é grande, e haverá sim joelhos quebrados e vergonha e medo e, enfim, se é mortal; esse espanto convulsionado de compreensões que de tão novas eram ainda incompreensíveis, nós todos o sentimos, com os mesmos espasmos musculares do jovem franzino que desejava ser bailarino e agora o deseja ainda mais, porém quase desejando não desejar, porque descobriu o medo e a potência inebriante contidos no desejo. Naquela eternidade compartilhada, que não era paz, não era quietude, nem remanso, nem regaço, a dor na córnea da mulher solitária feito um arrancão, como se lhe extraíssem o pulmão esquerdo à força de presenciar aquela queda, aquela impossível queda, inaceitável queda. Toda tão metódica, tudo tão necessariamente, organizadamente, inafastavelmente metódico, porque assim ela mantinha a sanidade contra o mundo de acasos e improvisos, agarrando-se e refestelando-se no que de menos imprevisto podia encontrar, as comidas industrializadas congeladas assépticas, as roupas de tecido sintético que não amarrotava, as traduções que lhe davam o ganho sem que as palavras a serem traduzidas oferecessem resistência, as apresentações de dança que eram a celebração do ensaio, do exato, sem espaço para a invenção nem para o erro, e ali então aquela queda, como um soco, e era também à nossa boca gelada que vinha o sangue quente agredido e estúpido daquela mulher solitária e medíocre, e tão contundida e tão coitada que do contato com sua dor ecoávamos todos uma piedade imensa que expandia a eternidade, dores e dores e penas e afagos a ressoarem e se multiplicarem aproveitando-se da acústica da sala como nenhuma música jamais fizera. No centro geográfico daquela eternidade que preenchia o teatro como a areia de uma ampulheta infinita, a senhora vestida com a ostentação dos impiedosos. Vistosa. Impávida. Só os que não têm compaixão ostentam roupas (e maquiagem, e joias, e carros, e salas de estar, de jantar e de chá) como uniformes, como medalhas por sua dureza que lhes permite caminhar pelo 82


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mundo sem dobrar-se ao peso da iniquidade que vestem. Impávida. No centro da sala de espetáculos, no melhor assento que o dinheiro poderia comprar, a executiva de um grande banco transmite, pela rede neural que toma o ambiente, sua impassibilidade, acostumada a ver os outros caírem, a ver os outros errarem, saltos que não se completam, mãos que não acolhem, esgarçamentos. Impávida. E triste, ligeiramente, quase imperceptivelmente doída, lá ao fundo, não da queda, não de tantos desastres que já presenciara, mas de sua própria incapacidade de solidarizar-se. Mas, ao mesmo tempo em que transmite essa frieza de esfinge, de montanha que mira o lago e jamais se abala com a neve que a recobre, e essa dorzinha nas suas entrelinhas, no subtexto de si mesma, tão estranha a sua personalidade que mal chega a percebê-la, a dama de chumbo também recebe – com a brutalidade de um vagalhão que nos arrasta e nos afoga e nos faz vomitar sal e espuma – a piedade que nós, os outros, reverberávamos por compaixão com a outra senhora bem ao seu lado!, sua vizinha na segunda ou talvez terceira melhor poltrona do teatro, arrancada para sempre de seu mundo sem erro. Para sempre, por toda a eternidade. Na fila H, o grupo de adolescentes – já anteriormente tão conectados entre si, meninos e meninas e hormônios e transgressões e diluições de fronteiras e identidades e regras – e o espanto muito simples, a dor muito natural, a inquietação muito pura de flagrarem algo que não deveria estar lá, para deleite e pasmo de suas retinas ainda desacostumadas com os solavancos do mundo. Para suas retinas aprendizes, a novidade é apenas uma naturalidade a mais, desconhecida. Três rapazes, quatro garotas, desnudos de medo ou julgamento, espraiando pelo ar frio a sensação muito límpida e muito ingênua, toda descomplicada e quase inexplicável, de doer ao contato do mundo que se altera e absorver na carnadura de sua própria existência essa mutação, qualquer que seja, como um alimento que se ingere, como os seios que crescem, como a voz ou os pelos que se engrossam, como uma eternidade que se vivencia sem interrogações. Os inocentes dentre os inocentes! E logo atrás, porque dentro da eternidade cabem todas as contradições, a antítese: o velho senhor com olhos impacientes de quem busca sempre o inesperado, sôfrego, doendo a cada minuto – há tantos anos! – em que a vida não lhe traz o imprevisto, a ruptura; e doendo ainda mais sofregamente quando, como agora, o atordoamento que saboreia é pouco para quem vive dessas fagulhas, como um viciado condenado à escassez de sua droga e a precisar de doses cada vez maiores para saciar, pelas breves eternidades do tempo afora, sua fome, seu vício de assombros que lhe façam sentir vivo e que lhe digam, na linguagem clara dos fatos, que o mundo ainda se modifica 83


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ao acaso, apesar das células tão acostumadas à mesmice de tudo que seu corpo carrega, enrugado, ressecado, quebradiço. Mas ainda curioso, ainda sôfrego, ainda esperançoso das dores que busca nos incalculados da vida. Inocente, nos dando de beber seu vício, agrura e delícia. À direita da eternidade, o crítico, ofendido pelo erro como se lhe fosse uma injúria pessoal. A ele!, que tão cuidadosamente cultivara sua sensibilidade e buscava, nas penumbras dos teatros, fugir da rudeza do mundo acelerado sob o sol, e mergulhar apenas em beleza sua alma cultivada. Ofendidíssimo, as mãos tremendo. Inocente. À esquerda, a irmã da bailarina, sofrendo uma vergonha muda sem sentido, por dever familiar, por convenção social que nada tem a ver com seu amor pela bailarina. A noroeste. No balcão nobre, nas frisas e camarotes. Nas bordas todas daquela eternidade. Nos oitocentos e trinta e sete lugares ocupados. Em todos, entre todos, de cada inocente ao outro, a dor, as muitas dores, tão pungentes, delicadas, expostas aos desconhecidos com quem se compartilhara uma visão da queda. Para sempre. E então, porque tudo cessa, a eternidade cessou. A dor, toda dor, sempre amaina. E no instante seguinte, nos entremeios da dança que prosseguia, coreografando o tempo infinito, nossas dores inculpadas, matéria da eternidade, também foram se aquietando e a eternidade foi desvanecendo, até que não mais. Mistérios, porque tudo são mistérios. Epílogo Depois de recomposto o mundo, depois de cessada a eternidade – porque as eternidades também se acabam –, muito depois, quase ao fim do espetáculo, um outro desastre, um outro soluço na fluidez do mundo. Esgarçamento, ruptura. Desta vez, sim, a música. Interrompida. Durante segundos que gritavam tão alto o seu silêncio que poderiam ensurdecer as aves migratórias do Ártico em pleno voo. E o silêncio, vocês sabem, é sempre perigoso. Sempre emprenhado de eternidades possíveis. Mas dessa vez, mesmo já tão longe daquela outra eternidade, desvanecida, outra não se germinou. Já fôramos tocados. Não éramos mais inocentes. Thássio Ferreira, escritor radicado no Rio de Janeiro, é autor do livro de poemas (DES)NU(DO) e colaborador, curador e editor-associado da Revista Philos de Literatura. Participou da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) em 2017, como convidado da Liga Brasileira de Editoras. Já publicou poemas e contos em diversas revistas, destacando-se a Revista Brasileira (no 94), da Academia Brasileira de Letras. Mantém a página facebook.com/thassioescritor e o perfil de instagram @thassiof.

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cat antonio devisate Rua Catumbi, 318 − Belenzinho cep 03021-000 − São Paulo − sp Tel: (11) 2291-1444 www.sesisp.org.br/catumbi

São Paulo − Ipiranga

cat roberto simonsen Rua Bom Pastor, 654 − Ipiranga cep 04203-000 São Paulo − sp Tel: (11) 2065-0150 www.sesisp.org.br/ipiranga

São Paulo − Vila das Mercês

cat sen josé ermírio de moraes Rua Duque de Caxias, 494 Mangal cep 18040-425 − Sorocaba − sp Tel: (15) 3388-0444

cat fuad assef maluf Avenida Amazonas, 99 Jardim Nova Veneza cep 13177-060 − Sumaré − sp Tel: (19) 3838-9710 www.sesisp.org.br/sumaré

Suzano

cat max feffer Avenida Senador Roberto Simonsen, 550 Jardim Imperador cep 08673-270 − Suzano − sp Tel: (11) 4741-1661 www.sesisp.org.br/suzano

cat professor carlos pasquale Rua Júlio Felipe Guedes, 138 cep 04174-040 São Paulo − sp Tel: (11) 2946-8172

Tatuí

www.sesisp.org.br/merces

www.sesisp.org.br/tatui

São Paulo − Vila Leopoldina

Taubaté

cat gastão vidigal Rua Carlos Weber, 835 Vila Leopoldina cep 05303-902 São Paulo − sp Tel: (11) 3832-1066 www.sesisp.org.br/leopoldina

Sertãozinho

cat nelson abbud joão Rua José Rodrigues Godinho, 100 − Conj. Hab. Maurílio Biagi cep 14177-320 Sertãozinho − sp Tel: (16) 3945-4173

unidades do sesi-sp

cep 11085-202 − Santos − sp Tel: (13) 3209-8210

cat wilson sampaio Avenida São Carlos, 900 B. Dr. Laurindo cep 18271-380 − Tatuí − sp Tel: (015) 3205-7910

cat luiz dumont villares Rua Voluntário Benedito Sérgio, 710 − B. Estiva cep 12050-470 − Taubaté − sp Tel: (12) 3633-4699 www.sesisp.org.br/taubate

Votorantim

cat josé ermírio de moraes filho Rua Cláudio Pinto Nascimento, 140 − Jd. Morumbi cep 18110-380 Votorantim − sp Tel: (15) 3353-9200 www.sesisp.org.br/votorantim

www.sesisp.org.br/sertaozinho

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Ilustração que faz parte do livro O senhor cem cabeças, de Ghislaine Herbéra.


ISSN 2359-5248

9 772359 524001

Publicação literária e cultural do SESI-SP #15 abr/mai/jun 2018 SESI-SP Editora Av. Paulista 1313 – 4o andar 01311-923 São Paulo SP Telefone 55 11 3146 7308 editora@sesisenaisp.org.br sesispeditora.com.br facebook.com/sesi-sp-editora


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