Revista Ponto #11 - JAN/FEV/MAR 2017

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ISSN 2359-5248

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11 JAN/FEV/MAR 2017

Mauricio de Sousa:

O MAIS BEM-SUCEDIDO PROJETO EDITORIAL DE HQ DO PAÍS

Conversa com Daniel Mordzinksi Metamorfoses do real

por Nelson de Oliveira Publicação literária e cultural do SESI-SP #11 JAN/FEV/MAR 2017

editora@sesisenaisp.org.br sesispeditora.com.br facebook.com/sesi-sp-editora

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JAN/FEV/MAR 2017

SESI-SP Editora Av. Paulista, 1313 – 4o andar 01311-923 São Paulo SP Telefone 55 11 3146 7308

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Traduzir:

do sentido, da (in)fidelidade e outras histórias

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Na página anterior, ilustração do livro Verões felizes 1. Rumo ao sul!, lançamento da SESI-SP Editora.

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editorial

A revista Ponto chega ao número 11 com um novo projeto grá-

fico e o mesmo propósito de debater a cultura em todas as suas frentes. Neste número, vemos uma aproximação maior com o ambiente da literatura e um reforço do universo das histórias em quadrinhos, reflexo da linha editorial que a SESI-SP Editora adotou ao longo de 2016, mas não perderam nem perderão, revista e catálogo, o ponto de contato com outros meios artísticos e culturais. Lançada no segundo semestre de 2012, a revista entra agora no quinto ano de existência, mesmo que com uma periodicidade oscilante, o que vale o destaque do espírito de resistência desta publicação, bem do jeito que a cultura consegue sobreviver num país que não enxerga nela o olho que falta para chegarmos a um ponto de equilíbrio saudável como seres humanos. Termos a possibilidade de editar uma revista como esta é um privilégio e uma responsabilidade – que devem sempre andar juntos. Gostaria muito do apoio dos nossos leitores na multiplicação do acesso deste conteúdo e das discussões aqui apresentadas para mantermos vivo o propósito da Ponto e, quem sabe, expandir ainda mais a sua presença, seja aumentando a periodicidade, ampliando a tiragem ou prolongando os seus anos de existência. Leiam e divulguem! O Editor 3

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conselho editorial Paulo Skaf (Presidente) Walter Vicioni Gonçalves Débora Cypriano Botelho Neusa Mariani comissão editorial Alexandre Ribeiro Meyer Pflug Débora Pinto Alves Viana Alexandra Salomão Miamoto Rodrigo de Faria e Silva Gabriella Plantulli editor-chefe Rodrigo de Faria e Silva produção editorial Letícia Mendes de Souza coordenação editorial Gabriella Plantulli Mario Santin Frugiuele produção gráfica Camila Catto Sirlene Nascimento Valquíria Palma editoração Letícia Alvarez Sardella/Globaltec Editora colaboradores desta edição Carlos F. B. Martin Camilo Gomide Evandro Affonso Ferreira Luiz Antonio Aguiar Marcelo Alencar Nelson de Oliveira Roberta Barni revisão Danielle Mendes Sales jornalista responsável Gabriella Plantulli (MTB 0030796SP) capa e projeto gráfico Tereza Bettinardi tiragem desta edição 5 mil exemplares impressão Pancrom Revista Ponto® – Publicação literária e cultural Número 11 – Jan-Fev-Mar de 2017

CAPA Colagem feita com elementos extraídos das matérias que compõem a revista.

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sumário 42 Ponto HQ especial

Mauricio de Sousa: o mais bem-sucedido projeto editorial de HQ do país

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Lançamentos

A vida dos outros: explicações possíveis para a retomada da literatura autobiográfica

Por Evandro Affonso Ferreira

Estante de livros

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Tirinhas

Jaguar, Orlandeli, Ossostortos, Ruis e Gilmar

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Ponto entrevista Conversa com Daniel Mordzinski

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Tradução

Traduzir: do sentido, da (in) fidelidade e outras histórias

Autoficção

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Artigo

A metamorfose do real: a ficção fantástica e as subversões do cotidiano

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Estante de HQs

Lançamentos

54

Ponto pop

Ponto do conto

78

Ponto do novo contista Por Rodrigo Novaes de Almeida

82

Eventos das editoras SESI-SP e SENAI-SP Lançamentos

84

Cardápio

Unidades do SESI-SP

O pop do clássico & o clássico do pop

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Ponto educação

Oficina literária e pedagogia

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estante de livros

Lançamentos Olhar à margem LUIZ CAMILLO OSORIO

Publicados a partir de diversas demandas – seminários, catálogos, curadorias, resenhas – de instituições locais e estrangeiras, os textos reunidos no livro abarcam um período de quinze anos e respondem a um imperativo crítico: enfrentar a experiência sempre indeterminada e desafiadora da arte contemporânea. Os ensaios de Luiz Camillo Osorio sobre obras e os principais artistas plásticos brasileiros contemporâneos abrangem, enfim, um vasto panorama da arte nacional.

Uma escola em jogo

Três histórias fantásticas

Trovas burlescas

JOSÉ SANTOS E ROGÉRIO CORRÊA

LUIZ VILELA

LUIZ GAMA

Reunião de contos sobre três jovens meninos que em seus universos particulares vivenciam aventuras fantásticas. Além da surpresa e do inesperado, as histórias deste livro fazem o leitor mergulhar em questões essencialmente humanas.

A reedição de Trovas Burlescas faz reverência a um dos mais significativos nomes da poesia brasileira. A importância de Luiz Gonzaga Pinto da Gama não se dá apenas por sua consistente obra, mas também porque o autor foi um grande brasileiro e sua história é referencial de luta e superação.

Um livro infantojuvenil que vai agradar a quem gosta de literatura e esporte. Ensina regras de onze modalidades e mostra os segredos dos diversos tipos de poesia. No livro, dois professores se unem contra o fechamento de uma escola. Um vilão incansável faz de tudo para atrapalhar. 6

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Cozinha é lugar de criança SESI-SP

Que monstro te mordeu? SESI-SP EDITORA

A coleção “Que monstro te mordeu?” traz as personagens da série de TV homônima envolvidas em receitas monstruosamente deliciosas e fáceis de fazer. Ponha a mão na lesma (ops... na massa), chame seus monstrinhos (ops... amiguinhos) e bom apetite!

Este livro oferece conceitos básicos para a iniciação de crianças e adolescentes na arte culinária. Para que você possa fazer receitas saborosas, seguindo as regras de higiene e com bom valor nutricional, algumas técnicas dietéticas e culinárias devem ser respeitadas, pois são elas que vão garantir um bom resultado, ou seja, pratos gostosos e nutritivos.

Receitinhas para você: bolos SESI-SP

Era uma vez um desenho RODRIGO BUENO

Esta é a história de um desenho que nasce pronto, vira rabiscos, ganha formas... e é devorado. Esta é a história de um desenho, que amadurece até se tornar... livre.

Tudo o que você precisa saber para fazer o bolo mais delicioso! O livro trata dos cuidados com os ingredientes, dicas para um bolo perfeito e traz ainda receitas sensacionais de bolos, caldas e coberturas. De dar água na boca...

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estante de livros

Monstros do cinema

Una e o leão

AUGUSTO MASSI E DANIEL KONDO

EDMUND SPENSER, ilustrações JAN LIMPENS

Neste livro-brinquedo, as ilustrações de Daniel Kondo devem ser montadas e reconstruídas de acordo com a imaginação de cada leitor. Com uma seleção de onze monstros do cinema, o livro traz ainda um levantamento histórico desses personagens, os filmes em que apareceram pela primeira vez e um panorama evolutivo de suas representações.

Uma das obras mais cultuadas por ilustradores e pintores, tendo inspirado inúmeras representações, Una e o leão surge agora sob o traço ágil de Jan Limpens e adaptação de Heloisa Prieto e Victor Scatolin. A obra, inédita no Brasil, apresenta ao leitor a transcrição de alguns versos originais e a narrativa recontada com a rapidez e leveza próprias da tradição oral.

Histórias felinas

Um lugar chamado aqui

GIULIA MOON E HELENA GOMES ilustrações YASMIN MUNDACA

FELIPE MACHADO E DANIEL KONDO

Heróis, vilões ou coadjuvantes importantes, os gatos deste livro são personagens em dez narrativas que reúnem suspense, mistério, aventura e uma boa dose de terror. O leitor descobrirá que o inacreditável muitas vezes pode surgir em forma de olhos inocentes e passos elegantes de patas almofadadas, que transitam, sutis, no espaço entre a sombra e a luz.

Ele não sabe como chegar Lá. Ela não tem como ir até Ali. Mais que a distância, a impossibilidade do encontro. Até que, um dia, eles descobrem o caminho. Neste livro, Felipe Machado e Daniel Kondo nos colocam em outro mapa, traçando a cartografia do encontro, uma rota desenhada nas estrelas e sussurrada pelos ventos, conduzindo ao lugar-momento onde tudo se encaixa: Aqui.

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Meu amor Kalashnikov SYLVIE DESHORS

O presente de Manzandaba e outras aventuras SILVIA OBERG ilustrações RENATO ALARCÃO

Manzandaba sai de sua casa, no sul da África, para ir buscar o que seus olhos pedem: histórias. No leste da Europa, uma princesa sem sorte caminha sozinha rumo ao desconhecido. Aqui mesmo no Brasil, uma jovem muito esperta desafia um rei a sair da pasmaceira em que estava. Tudo isso está aqui, só aguardando pela sua leitura.

Uma moça de uma beleza exótica deixa uma pequena cidade de província para estudar em Lyon e se envolve em um crime. Tudo o que era claro em seu cotidiano fica nebuloso. As pessoas próximas ficam misteriosas. Os acontecimentos se precipitam. E o pior: ela não sabe mais em quem confiar.

O manto escarlate FLÁVIA MUNIZ

Desvendar o mistério oculto em uma aldeia medieval e entender como os acontecimentos que lá se deram culminaram de modo perturbador para os envolvidos é o desafio que você, leitor, está convidado a encarar ao longo de mais de 400 páginas de história. Romance, intrigas, traição e vingança. A recriação de uma lenda. Um relato minucioso dos fatos na voz das bruxas de Finisterre.

Alek Ciaran e os guardiões da escuridão De pássaro em passo J. R. PENTEADO ilustrações ARTHUR VERGANI

Na vida aprendemos tudo o que temos para aprender de passo em passo ou de pássaro em pássaro… Um passo me contou que devemos ir devagar: sempre um passarinho depois do outro.

SHIRLEY SOUZA

Os sonhos são poderosos. Quando Alek Ciaran começou a ter uma série deles, que aos poucos se revelaram verdadeiros, descobriu que também podiam ser muito perigosos! Agora, ele precisa deixar o medo de lado e aceitar o inevitável. Sua vida foi transformada e nada mais será como antes. Entre a luz e a escuridão, Alek deverá mudar o balanço de poder desse mundo. Mas parece que existe uma terceira força em ação... 9

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tirinhas

Jaguar*

* Esta charge faz parte do livro Átila, você é bárbaro, da SESI-SP Editora.

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Grump – Orlandeli

Ossostortos

Bobo da corte – Ruis

Gilmar

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Acervo Daniel Mordzinski.

Autorretrato realizado em estĂşdio em Buenos Aires, em 2014.

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entrevista

A literatura na lente de Daniel Mordzinski Jorge Luis Borges

foi o primeiro escritor a ser fotografado por Daniel Mordzinski. Nessa época, em 1978, ele era assistente de direção e fazia o registro para o documentário “Borges para milhões”. Passados 38 anos, centenas de escritores clicados e o reconhecimento como o fotógrafo dos escritores, Mordzinski lança seu primeiro livro no Brasil: A literatura na lente de Daniel Mordzinski, da SESI-SP Editora, que reúne cerca de 400 imagens de autores ao redor do mundo. E, não por acaso, o primeiro escritor a aparecer neste livro é Jorge Luis Borges. Nascido em Buenos Aires, em 1960, Mordzinksi morou 35 anos em Paris e agora reside em Barcelona. Confira a entrevista que ele concedeu para a revista Ponto:

Você já fotografou escritores de idades, estilos, nacionalidades e mesmo níveis de prestígio muito diferentes. Estipula algum tipo de pré-requisito para que alguém seja fotografado, escolhe-os por admiração ou é uma decisão meramente profissional? Como retratista, o primeiro e mais importante fator deve sempre ser a pessoa, antes dos prêmios ou da fama do escritor. A minha paixão pelos livros me levou a empreender uma viagem infinita e imperfeita até as faces da literatura. Na minha visão, um escritor não se torna mais “retratável” por ter ganhado prêmios 13

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ou porque seus livros possuem mais edições. Fotografo um ganhador do Nobel com o mesmo respeito e entusiasmo com que fotografo um jovem escritor. Em breve, cumprirei quatro décadas retratando escritores e me sinto muito feliz e orgulhoso de apresentar meu primeiro livro no Brasil. O livro, de capa dura e muito bem editado pela SESI-SP Editora, tem mais de 400 páginas e reúne minhas primeiras fotografias, além de muitos retratos inéditos e concebidos especialmente para a obra. Com um “foco” especial no Brasil e na língua portuguesa, nele também mostro pela primeira vez meus retratos de escritores de todo o mundo. No geral, os escritores aceitam suas propostas ou há resistência? Algum escritor já se recusou a fotografar? Se sim, por qual motivo? As Fotinskis (foto + Mordzinski) são travessuras visuais, sempre rápidas e respeitosas. Para que uma Fotinski ocorra, é preciso intimidade (emocional, e não necessariamente física!), um tipo de diálogo, ainda que inaudível, mas não invisível aos olhos do espectador da fotografia. Para mim, a única fronteira clara é o respeito. Os escritores sabem que nunca irei lhes trair e que não prego peças. Desde quando os escritores passaram a ser seus principais fotografados? Desde pequeno sempre amei a literatura, o ato secreto de viajar no tempo sem sair de casa ou da biblioteca. Cresci em uma Argentina dura e em uma Europa que começava a intuir o que hoje chamamos globalização. Sempre pensei que nos livros se escondem os verdadeiros segredos da vida, que não são nem o dinheiro, nem o poder e nem a fama. Comecei a retratar os autores que admiro aos 18 anos e, agora, com quase 15... (nasci em um 29 de fevereiro), já tenho alguns autores retratados (contá-los não me faria bem). Muitas das suas fotos são bem inusitadas. Neste livro que você acaba de lançar com a SESI-SP Editora, por exemplo, o Mario Vargas Llosa está segurando um crânio, a Tatiana Salem está sentada em uma máquina de lavar roupa. Como surge o conceito dos seus retratos? Como se dá a escolha do local e do cenário? Ainda muito jovem pensei que a melhor maneira de tirar um escritor de sua pose de escritor seria propondo-lhe uma nova pose que se afastasse das bibliotecas, dos livros e dos rostos com cara de pensador... A nova proposta está carregada de vida cotidiana, humor e, às vezes, referências à literatura do autor fotografado. 14

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Foto que compõe o livro A literatura na lente de Daniel Mordzinski.

entrevista

Julio Cortázar

Acha importante ler a obra de um escritor antes de fotografá-lo? Nem sempre conheço os autores que fotografo, por vezes não conheço nem mesmo a sua obra, mas sempre procuro criar uma intimidade, uma conexão, uma piscadela, uma cumplicidade. Se o autor sabe, ou intui que esse retrato é “um trato” entre cúmplices, então me deixará fazer uma foto singular. Senão é muito difícil. As imagens, neste seu último livro em particular, foram dispostas de uma forma planejada, a fim de dialogar umas com as outras? Se sim, quais os critérios utilizados para essa construção? Meramente fotográficos ou houve uma preocupação relacionada ao lugar que os escritores ocupam na literatura? Trabalho muito a estrutura narrativa de um livro ou de uma exposição. Parto de uma ideia e desenvolvo um conceito. A forma é sempre importante, mas nunca renuncio à emoção e ao sentimento. Levo horas decidindo o lugar de cada foto. Os critérios são muitos, e todos eles subjetivos. Esse é o desafio e me dedico completamente a isso. Parte de suas fotografias tem um diálogo perceptível com o universo dos seus fotografados (por exemplo: a de Quino, a de Robbe-Grillet...). 15

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Mas mesmo aquelas mais inusitadas (como a de Umberto Eco ou a de Salman Rushdie) têm alguma relação, mesmo que indireta, com o estilo, temática ou biografia desses escritores. Até que ponto suas fotos procuram, de fato, traçar um paralelo com o mundo dos escritores? E até que ponto esses “paralelos” são mera construção mental por parte de quem vê as fotos? Nem sempre existe essa relação. Os escritores são fabricantes de sonhos e eu, como leitor, me arrisco a interpretar esses sonhos e a traduzi-los em fotografias. Em minhas imagens busco as mil faces que se escondem atrás das palavras. Às vezes há paralelismos com a obra do autor, muitas outras vezes isso não acontece. Sempre busco evitar o lugar-comum.

Foto que compõe o livro A literatura na lente de Daniel Mordzinski.

O italiano Elio Vittorini, um dos primeiros escritores a incorporar imagens fotográficas a um romance, considerava a fotografia um elemento narrativo. Que história você está tentando narrar? Uma história que é pura literatura misturada com fotografia, respeito e paixão. As protagonistas são as letras, a poesia, a beleza e a alma humana.

Rubem Fonseca

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Foto que compõe o livro A literatura na lente de Daniel Mordzinski.

entrevista

Já pensou em publicar um livro em que cada foto venha acompanhada de um texto que aborde toda a sua concepção? Ótima pergunta. Obrigado. As palavras, as velhas palavras, são muito tentadoras para um grande leitor. Estou trabalhando nesse livro e acabo de passar umas semanas em Buenos Aires, recuperando fragmentos dessa memória íntima que é a adolescência, da qual precisava para entretecer o relato dos meus primeiros anos. Espejos de Plata será uma “intra-história” das últimas décadas da literatura, contada por meio de pequenas e grandes histórias, nas quais os protagonistas serão os escritores.

Eduardo Galeano

Adriana Lisboa, no prefácio do seu livro, menciona que suas fotos são também livros. Com base nisso, você diria pertencer a que gênero literário? Adriana Lisboa é uma grande amiga e uma enorme escritora e eu agradeço suas belas palavras. Se eu tivesse que escolher um único estilo, diria pertencer à crônica literária. Dito isso, a literatura que prefiro é aquela que mistura os gêneros. Ainda no prefácio, ela pontua que “há fotógrafos que roubam almas; outros as devolvem”. Você se identifica com algum desses dois tipos? Ficaria feliz em acreditar por um momento que posso devolver, ainda que seja apenas um pouquinho do muito que os escritores me dão. Quem é o melhor fotografado: o anônimo ou o famoso? Creio que, paradoxalmente, os autores que mais impressionam (por sua fama, suas lendas ou suas extravagâncias passadas) são os mais dóceis e menos barrocos na hora de fotografar. As situações mais difíceis são as de autores que admiro, talvez pelo fato de não querer decepcioná-los. Recordo a primeira vez que retratei Elsa Osorio. Tinha acabado de ler e chorar por A veinte años Luz; estava comovido, queria escutá-la, fazer perguntas e transmitir o quanto havia gostado de seu livro. Naquele momento, o menos importante eram as fotos. 17

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Foto que compõe o livro A literatura na lente de Daniel Mordzinski. Leonardo Padura

O leitor passou por cima do fotógrafo. Terminamos em um café, não houve fotos, mas nasceu uma amizade. Ricardo Piglia afirma em Los diarios de Emilio Renzi que o valor da leitura não depende do livro em si mesmo, mas sim das emoções que sentimos no momento de ler. Comigo acontece a mesma coisa com relação às fotografias. Gosto das imagens que me fazem lembrar dos gratos momentos compartilhados com famosos ou anônimos. Atualmente, existe uma grande preocupação com a construção da imagem pessoal. O diálogo por meio das redes, sem que saibamos como a outra pessoa se assemelha, parece desprovido de sentido. Você acredita que essa superexposição imagética também tenha atingido o mundo da literatura? Percebeu alguma mudança no seu trabalho ao longo dos últimos anos – seja na postura dos escritores ou mesmo no alcance geral de suas fotografias? Não sou de frequentar as redes sociais e não faço disso uma postura social ou ética: simplesmente não me interesso e não tenho tempo. Prefiro mil vezes ler uma página de um livro ou escrever um desses velhos e-mails a alimentar uma polêmica na internet. 18

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entrevista

Foto que compõe o livro A literatura na lente de Daniel Mordzinski.

Qual seu projeto atual? O mais recente Nobel de Literatura, Bob Dylan, já está na sua mira? Até fevereiro, estou com uma grande mostra antológica no CCK de Buenos Aires. Organizada pela Acción Cultural Española AC/E, a mostra reúne 347 fotografias, muitas delas inéditas ou de nova produção. A mostra tem cinco partes, uma delas, “Como olhar para o que já não existe. Espaços da memória”, é uma instalação composta por documentos, recortes de jornal, câmeras e objetos pessoais que evocam a destruição dos meus arquivos há quatro anos em Paris. Não quero polemizar, mas penso que o prêmio ao grande Dylan é um soco na cara de milhares de escritores que poderiam ter saído da obscuridade e da ­difícil vida que – em sua imensa maioria – acabam levando por não renunciarem à escrita. Isso não elimina o fato de Dylan ser um grande poeta. Eu seguirei escutando suas canções e lendo livros de poetas esquecidos. Aceitaria feliz se Bob me chamasse para fotografá-lo e levaria de presente um exemplar autografado de A literatura na lente de Daniel Mordzinski.

Ian McEwan

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tradução

Traduzir: do sentido, da (in)fidelidade e outras histórias por Roberta Barni

Peter Bruegel. Torre de Babel, c. 1563.

Para falar de tradução, gostaria de começar mencionando um conto do escritor húngaro Dezsö Kosztolányi (1885-1936) intitulado “O tradutor cleptomaníaco”, publicado no Brasil em volume homônimo e traduzido por Ladislao Szabo. Já o seu título denota uma aventura. Poderíamos nos perguntar: o que o tradutor subtrai furtivamente? E por que a alusão à cleptomania? A cleptomania, sabe-se, é uma patologia compulsiva, irrefreável, uma tendência mórbida ao roubo. Para a psicanálise, é um mecanismo de compensação, uma atração fatal por determinados objetos, cujo valor muitas vezes é apenas relativo e pessoal. A própria construção da narrativa se desdobra em inúmeras ocasiões de sutil ironia sobre a tradução e o ofício de tradutor: “(...) Por onde sua pena de tradutor passasse, sempre causava prejuízo aos personagens, mesmo que só se apresentassem naquele capítulo e, sem respeitar móvel ou imóvel, atropelava a quase indiscutível sacralidade da propriedade privada”1.

1 KOSZTOLÁNYI, D. O tradutor cleptomaníaco. Tradução de Ladislao Szabo. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 10.

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A imagem do tradutor cleptomaníaco remete ao velho e temido prejuízo ao texto e às personagens causado pela tradução. Está aí o antigo problema da tradução como mal necessário, o da impossibilidade da tradução, por não poder corresponder plenamente ao texto de partida. Só que... poucas vezes nos damos conta, mas boa parte da literatura que lemos é fruto de uma tradução. Até alguns anos, calculava-se que cerca de 70% da produção editorial brasileira compunha-se de livros traduzidos. Por que será então que não nos damos conta da existência do tradutor? Tarefa ingrata é a do tradutor, e uma enorme responsabilidade, ou seja, permitir ao público a leitura de um autor estrangeiro que de outro modo ele não poderia ler. Se trabalhar direito, em geral haverá silêncio, mas, se ele trabalhar mal, todos os dedos estarão apontados em sua direção. Cabe lembrar, porém, que, se é verdade que o trabalho do tradutor é solitário, também é verdade que o livro, o produto final, é um trabalho de equipe. Por isso, para que uma boa tradução se torne um bom livro, também será necessária toda uma equipe editorial. Uma boa edição passa necessariamente pelo crivo de bons revisores e de um bom editor em seu caminho rumo a uma publicação competente. Também é preciso dizer que, umas mais, outras menos, todas as tradições literárias são constituídas pela literatura do próprio país e pela literatura assimilada – em tradução. Dostoiévski, por exemplo, ou Goethe, ou Dante. Retrocedendo na história, sabe-se, por exemplo, o quanto era considerada importante, no século xviii, a tradução como formação para o escritor, pelo exercício de escrita que proporcionava. Ou, voltando mais um pouco no tempo, como o Renascimento baseou boa parte de sua cultura na releitura dos clássicos gregos e romanos e nas novas traduções dos humanistas. A pergunta é: o autor, influenciado por escritores estrangeiros, os leu no original? E o leitor de hoje? E você? Que responsabilidade a do tradutor! Não paramos para pensar nisso, mas é óbvio que nossa literatura também se compôs sob a influência de obras estrangeiras que transitaram pelo país. Famoso, apenas para dar um exemplo, é o caso da influência dantesca em Machado de Assis. Vamos dar um passo para trás e pensar no ofício tradutório. As más línguas dizem que se trata da segunda profissão mais antiga do mundo. Brincadeiras à parte, a Babilônia de Hamurabi, em 1700 a.C., era uma cidade poliglota, e muitas questões da vida civil e administrativa se resolviam graças a um grupo de escrivães que traduziam as leis nos diversos idiomas locais. Trinta séculos antes da era cristã, os egípcios já tinham um hieróglifo que significava “interpretando”, ou seja, traduzindo oralmente. O fato é que, desde a invenção da escrita, com as trocas de informações e 22

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tradução

mercadorias entre populações diferentes, a tradução escrita também se tornou uma atividade necessária. E complexa, extremamente complexa. Para começar, um só vocábulo – “tradução”, justamente – pode indicar tanto um processo como o resultado desse processo. E não se trata de um processo matemático, porque a linguagem, é notório, não é ciência exata. Devido àquele quinhão de subjetividade que toda expressão literária conserva, você não obtém uma tradução apropriada do Google tradutor, por exemplo. Por que não? Porque a operação que a mente humana faz subjetivamente, e que vai determinar qual, digamos, das opções possíveis (se é que todas estarão sugeridas ali) seria a tradução correta, a máquina ainda não consegue realizar. E isso numa frase comum. Imagine-se, então, como isso se dá com a linguagem literária, que, por sua própria natureza, talvez seja a expressão mais complexa de uma cultura. Para explicar esse aspecto, gosto de lembrar do poeta Ezra Pound, que em seu ABC of reading, partindo das três dimensões aristotélicas do fazer poético, afirma que a alta literatura é “linguagem carregada de significado no grau máximo possível”. Dispomos, para tanto, de três meios principais: podemos suscitar o objeto, fixo ou em movimento, na imaginação visual (fanopeia); sugerir correlações emocionais a partir do som e do ritmo do texto (melopeia); incutir ambos esses efeitos estimulando as associações (intelectuais ou emocionais) presentes na consciência do receptor, relacionadas às palavras em si ou aos grupos de palavras empregados (logopeia). Segundo Pound, o poeta/escritor codifica o conteúdo daquilo que deseja expressar por meio dessa operação de condensação e dos recursos à sua disposição para tal. Ao tradutor, por sua vez, cabe decodificar e recodificar esse conteúdo na língua de chegada de sua tradução. Para tanto, também ele terá à sua disposição os mesmos meios de que se valeu o autor na língua de partida. Mas então qual a diferença entre escrita e tradução? Para ilustrar um dos aspectos cruciais dessa diferença, vou citar o caso do escritor italiano Antonio Tabucchi. Além de escritor, Tabucchi também era professor de literatura portuguesa e brasileira na Universidade de Pisa. Ele foi o responsável pela penetração da poesia de Fernando Pessoa na Itália e foi o tradutor de Carlos Drummond de Andrade. Isso apenas para dizer que ele era fluente em português a ponto de ter escrito nessa língua um de seus romances, Réquiem. Pois bem, quando ele quis lançar o livro na Itália, pediu a um amigo tradutor que se encarregasse do trabalho de tradução. Por quê? Tabucchi disse textualmente que, se fosse fazer a tradução da própria obra, certamente acabaria escrevendo outro romance. Escrever um texto literário e traduzir 23

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M. C. Escher. Drawing Hands, 1948.

são atividades diferentes. Um tradutor não parte, como o escritor, da própria imaginação à solta, mas é balizado pelo texto (e pelo autor) que está traduzindo e sabe se ater a ele. O tradutor tem, sim, a possibilidade de recorrer aos três instrumentos mencionados por Pound, mas ninguém garante que a língua de partida e a língua de chegada disponham das mesmas figuras para simbolizar determinada imagem, som, ritmo ou ideia. Ele terá de buscar “correspondências”. Se tradução e texto tivessem os mesmos recursos, idênticos, a tradução seria desnecessária. E aí começam as dificuldades. O percurso de tradução é uma caminhada, e quem escolhe o(s) caminho(s) a tomar é precisamente o tradutor. Assim, a escolha de cada palavra por parte do tradutor será necessariamente um ato autoral. Ora, não fossem os tradutores, estaríamos na velha danação da Torre de Babel. Sem tradução, cada qual com a própria língua, ninguém se entenderia. Cabe ao tradutor cumprir essa tarefa deslumbrante de permitir a leitura de um autor estrangeiro. E sua versão decorre, inevitavelmente, de sua leitura. No entanto, costuma-se acreditar que, quanto melhor for o trabalho tradutório, tanto menos se notará que o texto é traduzido. Costuma-se privilegiar a 24

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chamada “legibilidade”, almejar a “fluência da leitura” a ponto de, paradoxalmente, a tradução considerada de “boa qualidade” ser aquela que “nem parece tradução”. Mas o ato tradutório implica não a anulação da diferença, e sim o confronto constante com ela, com a alteridade. É dar espaço ao “outro” sem que nos confundamos com ele. A tradução é um encontro, uma aproximação gradual, um movimento de aproximação a uma terra estrangeira, ao estranho. Para realizar essa aproximação, para estar realmente presente nesse encontro, são três as condições de possibilidade (e de verdade): reconhecer a alteridade, marcar essa diferença e, finalmente, acolher em si a diferença. Talvez possamos definir a tradução como a tomada de consciência da distância. Mas essa é uma discussão antiga. Considerada uma atividade de segunda ordem, justamente por ser a reprodução de uma criação, a tradução sempre foi, ao longo dos séculos, objeto de reflexão por parte de tradutores e teóricos. No fundo, nunca se abandonou a velha discussão sobre a qual caberia a primazia na obtenção de um bom resultado, se à tradução literal ou à tradução livre. George Steiner chega a afirmar que, em dois mil anos, toda a teoria da tradução se reduz a variações em torno do mesmo tema, ou seja, à oposição entre “letra” e “espírito”. Devemos traduzir “ao pé da letra” ou o que importa é, ao contrário, transmitir o “espírito” do texto? A mensagem em si ou o estilo da mensagem? Qual delas seria a mais correta? Ou qual a mais fiel? A resposta é impossível. Nem sequer para a Bíblia (o texto mais traduzido do mundo) se chegou a algum consenso. Quando São Jerônimo, principal autor da Vulgata e depois padroeiro dos tradutores, fez a revisão das duas traduções existentes do Novo Testamento e traduziu a versão integral do Antigo Testamento a partir do aramaico e do hebraico (incumbido pelo Papa de fixar o texto canônico), seu trabalho foi muito criticado. Nem tanto por erros linguísticos, mas antes pelo afastamento de seu texto da tradição exegética até então consagrada. Famosa e acalorada é sua discussão com Santo Agostinho, que atribuía valor pedagógico às passagens obscuras das Escrituras, acreditando que a ordem (estranha) das palavras representasse um “mistério de fé”, e, por isso mesmo, não apreciou nem um pouco a clareza de estilo que São Jerônimo utilizara em sua versão, que buscava dar maior inteligibilidade ao texto. Ora, se nem sequer dois santos chegaram a algum consenso...

ROBERTA BARNI é docente de literatura italiana e tradução literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e dos programas de pós-graduação em língua, literatura e cultura italianas e de estudos da tradução. É também tradutora literária e, entre os cerca de cinquenta volumes traduzidos, figuram autores como Calvino, Tabucchi, Ripellino, Manganelli, Baricco, Svevo e Pirandello.

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Explicações possíveis para a retomada da literatura autobiográfica

A vida dos outros Wilhelm Bendz. A young artist (Ditlev Blunck looking a sketch through a mirror), 1826.

por Camilo Gomide

Em abril de 1719, Daniel Defoe lançava na Inglaterra Robinson Crusoé. No prefácio, Defoe anunciava-se o editor da autobiografia de um homem cuja vida fora extraordinária e assegurava não haver no relato qualquer indício de ficcionalidade. Defoe foi um dos escritores mais prolíficos da Londres de sua época, assim como um homem de negócios atento ao mercado incipiente da comunicação de massas dos meios impressos. Tudo o que ele escreveu teria sido pensado para atender às demandas do público, segundo seus biógrafos. Com Robinson Crusoé, Defoe acertou em cheio. Estima-se que no final do século xix a obra já havia sido editada, traduzida ou imitada pelo menos setecentas vezes. Mais do que fazer uma leitura de mercado, o autor parece ter sido capaz de captar temas e desejos sensíveis ao seu tempo, a saber: o interesse por histórias menos fantasiosas, como as da literatura romanesca, anterior a ele. 27

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Para alguns historiadores, a obra é a primeira expressão em língua inglesa do que hoje conhecemos como “romance realista”. Sua linguagem, o artifício do escritor, levou os leitores a acreditarem que estavam diante de um personagem real. Ao analisar algumas listas dos livros mais vendidos de 2015 e 2016, é possível confirmar facilmente uma impressão corrente da crítica literária e traçar um paralelo com o que acontecia no século xviii: de uns tempos para cá, o interesse por obras com histórias e personagens reais tem aumentado. Entre os onipresentes títulos religiosos, fantásticos e de autoajuda, acumulam-se memórias, diários, livros históricos, jornalísticos, biografias e autobiografias de personalidades as mais diversas entre si (o empresário de sucesso, a nova sensação do YouTube, vítimas de guerras).

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Fazendo um corte mais profundo, também é possível identificar essa tendência em outros segmentos literários. Entre as muitas expressões do realismo contemporâneo, percebe-se certa profusão do que tem sido classificado como autoficção. O termo, cunhado em 1977 por Serge Doubrovsky, em seu livro Le fils (O filho), tentava delimitar um fenômeno que vinha ganhando força na França: a publicação de romances nos quais os personagens centrais eram os próprios autores. Nesses livros, os escritores expunham seus pensamentos, sentimentos, memórias, assim como suas intimidades, e, inevitavelmente, a de terceiros. Escrever sobre si mesmo faz parte de uma tradição distante. Michel Foucault, em A escrita de si, resgata a função que a prática tinha para os antigos filósofos gregos, uma espécie de terapia da alma, vital para a formação de um bom cidadão. Montaigne, em seu Os ensaios, e Rousseau, em As confissões, se propõem a falar de si próprios, em nome da busca de uma verdade existencial. A autoficção, portanto, não é exatamente algo novo, mas traz novidades, como o retorno da questão do autor na análise da obra, o que costuma dividir críticos e escritores. Para o escritor Luiz Ruffato, a figura do criador simplesmente não interessa, já que toda literatura acaba sendo autoficção. “Por trás do narrador tem um autor, portanto ele está narrando a partir das próprias memórias, das próprias experiências”, disse Ruffato à reportagem. “O livro é muito mais que isso, e a literatura deve ser muito mais do que isso. O que pereniza a literatura é sua transcendência.” A obra de Ruffato é diversa. Cada livro contém uma forma diferente de narrar. Em Eles eram muitos cavalos, por exemplo, a cidade de São Paulo é apresentada em relatos fragmentados, por meio de diferentes pontos de vista. De mim já nem

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se lembra parece contar a história da família do escritor, cujo próprio nome é dado a um personagem. Quando perguntado sobre a coincidência, Ruffato questionou a relevância da informação: “Quem disse que aquelas memórias lá são verdadeiras? Quem disse que aquilo lá é autobiográfico? E, se for, o que que isso muda?”. “O que importa quem fala, alguém disse, o que importa quem fala.” Com essa citação de Beckett, Foucault formulava o problema central de sua conferência O que é um autor?, de 1969. O que se apresentava ali era a noção de que o autor como indivíduo real é indiferente: o autor na literatura é uma função. O que ele faz é instaurar um espaço onde outras vozes, além da dele, são postas em jogo; nesse lugar, ele próprio desaparece.

Procura de uma forma

A lógica de que o texto é muito mais importante do que tudo o que o precede não parece estar sendo posta à prova. O que se vê, de diferentes maneiras, são tentativas de encontrar outras expressões do real, novas formas de narrar e de renovar um gênero. Um exemplo recente é o romance A resistência (2015), do paulistano Julián Fuks, vencedor do prêmio Jabuti 2016 na categoria livro de ficção do ano. Na obra, Sebastián, o narrador, reconstitui a história de sua família tendo como foco a vida de seu irmão mais velho, Emi. O primogênito foi adotado por seus pais, um casal argentino de militantes de esquerda que se exilaria no Brasil pouco tempo depois da adoção, fugindo da repressão da ditadura de seu país. Apesar do pseudônimo, o relato é declaradamente inspirado na experiência do autor. Em boa parte de seus livros, Fuks reflete sobre os limites da ficção e busca, por meio de seus narradores, novas possibilidades de narrar. Procura do romance (2011), por exemplo, nasceu como uma espécie de resposta ao problema da crise do romance, tema da dissertação de mestrado do escritor, que também é crítico literário. “Em alguma medida eu senti que reproduzi na minha própria trajetória algo da trajetória maior do romance, como eu fui aprendendo como se deu essa história, eu mesmo fui me tornando mais desconfiado do ato de inventar, do ato de fabular, de contar uma história simplesmente, do início ao fim, com uma intriga, com um enredo. Tudo isso nunca me foi muito fácil, pessoalmente eu fui me tornando cada vez mais desconfiado”, comenta Fuks. Escrever sobre a própria vida e a história de seus familiares acabou sendo uma consequência natural desse processo. “Acho que é uma tendência contemporânea recente essa busca de uma precisão maior e de um contato mais 29

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M. C. Escher. Hand With Reflecting Sphere, 1935.

J. Ayrton Symington. Robinson Crusoé, 1905.

direto com o real. E acho que uma das maneiras desse contato mais direto é a busca de si, e a escrita muito próxima em que o narrador se assemelha muito ao próprio autor e compartilha de uma certa perspectiva, de um mesmo ponto de vista que guarda certa autenticidade, certa legitimidade”, diz. Uma das autoficções mais bem-sucedidas da atualidade, a série Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgård, tem como ponto de partida uma inquietação semelhante. No primeiro e no segundo volumes da sequência de seis livros, o narrador/autor discorre, em diversos momentos, sobre a crise que ele enfrentava como romancista. Ele sentia que o mundo estava saturado de narrativas pouco convincentes. Até mesmo os relatos documentais e jornalísticos soavam inventados. A única solução vislumbrada por ele foi escrever sobre a própria vida, as pessoas com quem ele convivia, seu cotidiano, e tentar reconstituir alguma verdade e uma certa materialidade à sua literatura.

Os limites do real

Um dos efeitos da escrita autobiográfica sobre os leitores é despertar a curiosidade acerca da veracidade do que é narrado. É comum que 30

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os autores de autoficção sejam abordados com esse tipo de pergunta – muitas vezes envergonhada. “Quanto disso que eu escrevi é real e quanto é ficcional é uma pergunta muito difícil de se responder, difícil de se determinar e de precisar quanto. Eu sei que o ponto de partida é sempre o que está no real: é sempre a relação, é sempre a biografia, mas as coisas se distorcem sem que eu queira”, diz Fuks. Trabalhar com a memória é lidar com fantasmas. Obras como a de Fuks reconstituem o passado por meio de fragmentos de discursos, de palavras que se distorcem, de imagens sujeitas à ressignificação a cada novo olhar. É nessa intangibilidade da realidade pelas lembranças e da linguagem que se imprime a marca ficcional da autoficção. “A percepção de que o que eu consegui descrever ali nunca seria sequer próximo do real era evidente o tempo todo e me pareceu, de novo, que a forma mais honesta de lidar com isso era expondo, era dando na vista, fazendo o leitor compartilhar dessa desconfiança”, diz Fuks.

Para o escritor, a autoficção acaba trazendo uma outra concepção de ficção que já não se assemelha à invenção. O que a caracterizaria não seria mais o ato de inventar, mas o de construir algo a partir das ruínas e das sobras de memórias, sentimentos e impressões.

A vida dos outros

Uma das críticas mais recorrentes à autoficção é direcionada ao narcisismo inerente ao gênero. É verdade que muitas das escritas de si contemporâneas apontam para o respectivo umbigo – que o digam as redes sociais –, mas nem sempre. Em seu livro mais recente, Mutações da literatura no século xxi, a crítica Leyla Perrone-Moisés contesta essa visão. Ela destaca o sentido que a prática teve no passado entre os gregos (mencionado anteriormente) de cuidado de si para então cuidar dos outros e da pólis. A autoficção pode não estar fechada em si e falar ao outro pela linguagem literária. É o que acontece em A resistência. Sebastián quer contar a história de seu irmão e de seus pais, mas só é capaz de fazê-lo através do próprio olhar. Para que a ponte com o outro seja possível, ele se problematiza, questiona o próprio relato e investiga sua identidade sem cessar.

CAMILO GOMIDE é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e mestrando em literatura e crítica literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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A ficção fantástica e as subversões do cotidiano

Metamorfoses do real por Nelson de Oliveira

Éditions Gallimard. La Métamorphose, 2000.

Quero que você, querido leitor, se apaixone. Esse é o objetivo deste artigo.

Na juventude, ligado mais aos quadrinhos, à TV e ao cinema, eu não era nem a sombra do leitor que me tornaria na idade adulta. Nessa época de descobertas, os livros ainda habitavam um universo distante. Mas, seguindo a dica de um professor, li um conto curto de Lygia Fagundes Telles que me arrebatou. Foi no sétimo ano, no coração do ensino médio. O conto intitula-se A caçada e tem apenas seis páginas. Numa loja de antiguidades, um homem está fascinado − praticamente hipnotizado − por uma tapeçaria quase se desfazendo de tão velha. A cena representada pelo tapeceiro é de uma caçada: um arqueiro de arco retesado, apontando para uma touceira, seguido de outro caçador em segundo plano. Conversando com a velha proprietária da loja, o protagonista comenta que a tapeçaria parece cada vez mais nova, mais nítida. O homem sente mal-estar, delira com a cena, devaneia, imaginando uma suposta conexão misteriosa entre sua essência e a da tapeçaria. 33

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Virginia Herrera. Julio Cortázar, s.d.

Ele sai da loja, mas a obsessão não sai dele. Em casa, tem um pesadelo. No dia seguinte, volta à loja, que se transforma, vira um bosque, surgem os caçadores e ele − o protagonista da história − é flechado. Esse resumo condensa o enredo do conto, mas não faz justiça ao talento poético da grande ficcionista, sem o qual esse enredo não teria tanta força. Lygia é mestre na linguagem literária. Toda a sua obra é um enlace perfeito entre enredos surpreendentes e linguagem refinada. No dia em que li A caçada, a grande literatura começou a acontecer também para mim. Nesse dia fiquei fã da autora e decidi conhecer devagar, sem pressa, tudo o que Lygia já havia publicado. Seus romances são ótimos, mas seus contos são sensacionais. É na ficção curta que Lygia realiza todo o seu potencial inventivo. Outro conto que me arrebatou foi As formigas, de apenas sete páginas. Nele, duas primas universitárias, uma de direito (a narradora) e a outra de medicina, alugam o sótão de um velho sobrado. O inquilino anterior também era estudante de medicina e deixou um caixotinho com ossinhos humanos, “no ângulo em que o teto quase encontra com o assoalho”. A estudante de medicina logo percebe que é o esqueleto de um anão. De madrugada, surge uma fila de formigas, cruzando todo o piso e entrando num buraco do caixotinho. As primas dizimam as formigas. Porém, no dia seguinte, a estudante de medicina nota que o esqueleto está sendo montado misteriosamente. Mais um dia se passa, as formigas voltam e o esqueleto já está quase todo montado. Nessa madrugada, assustadas, sem pensar duas vezes, as primas fazem as malas e vão embora.

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Minha paixão pela ficção fantástica começou com esses e outros contos de Lygia Fagundes Telles − Seminário dos ratos, O noivo e A fuga, por exemplo −, em que somos conduzidos para uma realidade a princípio familiar, que logo descamba para o insólito. Os contos fantásticos de Lygia abriram as portas de um salão assombroso, cheio de autores fascinantes: Juan Rulfo, Borges, Cortázar, Virginia Woolf, André Carneiro, García Márquez, Murilo Rubião, José J. Veiga, Hilda Hilst, Victor Giudice, Lygia Bojunga, Jorge Miguel Marinho… Incluindo, é claro, o todo-poderoso mestre dos mestres: Kafka.

Inseto pioneiro

Foi numa entrevista de Lygia Fagundes Telles que li pela primeira vez o nome de Kafka. Mas demorei certo tempo pra correr atrás de seus livros, talvez temendo um encontro terrível. Na verdade, penso que foi a nuvem negra de Kafka quem me procurou e seduziu, não o contrário. Seu livro mais conhecido, A metamorfose, é um romance bem curto, de apenas oitenta páginas, mas potente feito uma bomba atômica. Certa manhã, o caixeiro-viajante Gregor Samsa acorda metamorfoseado num monstruoso inseto e revoluciona a literatura universal. Que tipo de inseto? O narrador não diz exatamente. Mas, de acordo com a descrição apresentada nas primeiras páginas do romance, Vladimir Nabokov, escritor e entomologista, estudioso de insetos, afirma que Gregor se transformou num besouro gigante. Além de ótima leitura, A metamorfose é uma saborosa aula sobre ficção fantástica. Aliás, quase toda a obra de Kafka é um catálogo de exemplos realmente exemplares. Com o feiticeiro tcheco, nós aprendemos que a ficção fantástica apresenta ao menos dois ingredientes fundamentais que, reunidos, diferenciam esse gênero dos demais gêneros literários: a subversão das leis da natureza e a inflexão filosófica. No mundo oferecido pela ficção fantástica a causalidade, a força da gravidade, a biologia, a geologia, a atmosfera, enfim, o tempo, o movimento planetário, os minerais, as plantas e os animais, as pessoas e as estações do ano funcionam total ou parcialmente de modo estranho. Tudo o que se comporta de determinada maneira em nosso mundo, tudo o que nos é familiar, no mundo da ficção fantástica comporta-se de modo excêntrico, não familiar. A segunda característica fundamental da ficção fantástica − a inflexão filosófica − é importante pra diferenciá-la de suas irmãs: a ficção sobrenatural e a ficção científica. Num conto, numa novela ou num romance fantásticos, tudo gira em torno da mais pura reflexão ontológica, existencial, não contaminada por argumentos teológicos ou científicos. 35

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Se o leitor reparar bem, verá que em A metamorfose a transformação em si, de homem em inseto, não é o foco da narrativa. A questão central do romance de Kafka é a fragilidade do indivíduo e do equilíbrio doméstico em nossa sociedade competitiva e, por isso, estratificada. Nem mística nem científica, mas uma questão social, filosófica. Quando percebe que deixou de ser uma pessoa, Gregor não gasta um minuto sequer meditando sobre como isso foi possível. Sua primeira e única preocupação é com a má situação financeira da família. Ele teme perder o emprego, pois sua demissão seria terrível principalmente para as pessoas que dependem do seu esforço: o pai e a mãe idosos, e a irmã adolescente. Aos olhos de todos − personagens e leitor −, a metamorfose de Gregor é análoga a um acidente incapacitante, mas possível no mundo em que vivemos. Para a família Samsa, o filho antes provedor tornou-se um estorvo com o qual todos precisam aprender a lidar. O inseto atrapalha, faz sujeira, não ajuda em nada, assusta as pessoas… Dois meses depois, após uma grande desavença, Gregor finalmente morre. A partir desse momento, a narrativa ganha cores mais otimistas. Afinal, o estorvo acabou. Do ponto de vista da família, é até possível dizer que a história tem um final feliz.

Conhecida também por realismo mágico ou realismo maravilhoso, nos anos 1960 e 1970 a ficção fantástica de língua espanhola conquistou o mundo todo. A partir dessa época, o universo onírico e fabuloso de Juan Rulfo, Borges, Cortázar e García Márquez começou a ser traduzido para dezenas de idiomas. Na realidade impressionante oferecida por esses ficcionistas, pessoas voam ou atravessam paredes, conversam com espíritos, vivem dezenas de séculos, viajam no tempo, transformam-se em animais ou objetos, visitam as matrizes do espaço-tempo, tudo isso sem muito alarde, corriqueiramente. O fato é que não existem certezas naturais e perenes nessa literatura. Do mesmo modo que na obra de Kafka, a inflexão filosófica ocorre também na obra desses autores justamente porque a subversão das leis da natureza não pede nem recebe qualquer tipo de explicação ou justificativa mística ou científica. (Lembre-se, caro leitor: se houvesse uma explicação místico-religiosa, seria ficção sobrenatural. Se houvesse uma explicação científico-tecnológica, seria ficção científica.) Juan Rulfo deu vida a uma cidade-fantasma alimentada por rancores e arrependimentos em Pedro Páramo. Borges desenhou esquemas ilusórios

Erik Desmazieres. The Library of Babel, 2000.

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baseados na noção de infinito em A biblioteca de babel, Funes, o memorioso, O aleph e tantos outros diamantes imaginários. García Márquez redimensionou a cultura rural, arcaica, em Um senhor muito velho com umas asas enormes, O afogado mais bonito do mundo e Cem anos de solidão. Um dos contos mais fascinantes de toda a ficção fantástica sul-americana é Carta a uma senhorita em Paris, de Cortázar, talvez o autor mais urbano e cosmopolita de todos. Numa carta deixada à amiga Andrée, o narrador-protagonista de nome não revelado confessa que de tempos em tempos vomita um coelhinho. Andrée foi para Paris e emprestou seu apartamento por quatro meses ao narrador. Porém, bastou ele se mudar pra lá, os coelhinhos começaram a surgir com incômoda frequência. Já são dez coelhinhos, enquanto o desafortunado protagonista escreve a carta. A maior dificuldade é escondê-los da governanta. O final da carta mostra o desespero do narrador quando surge o décimo primeiro coelhinho. Os animaizinhos estão destruindo os móveis e os livros, e a sua paz interior. A solução do problema é atirá-los da sacada do apartamento e em seguida se jogar, pondo fim à tortura. Entre os inúmeros admiradores desse conto de Cortázar está o brasileiro Jorge Miguel Marinho, que homenageou o mestre argentino escrevendo uma afetuosa paródia da Carta a uma senhorita em Paris. No conto de Jorge, intitulado No quarto com duas pequenas notáveis, uma mulher, cujo nome não ficamos conhecendo, grava uma fita de despedida que será deixada para quando sua amiga Manu voltar de Londres. A narradora conta duas situações. Primeiro o reaparecimento de Carmen Miranda e Elis Regina, que alugaram o apartamento da frente e estão decididas a voltar a gravar disco. Depois um fato íntimo e antigo, ligado a seu período menstrual: ela finalmente revela à amiga que, desde a adolescência, a cada vinte e oito dias seu corpo libera flores vermelhas. Mas esse intervalo vem diminuindo rapidamente, o apartamento vai transbordando de flores vermelhas, e, mesmo com a ajuda das pequenas notáveis, a mulher já não consegue mais disfarçar sua inconveniente condição.

Precursores brasucas

Infelizmente, a ficção fantástica brasileira − ou qualquer ficção brasileira − não participou do chamado boom da literatura latino-americana das décadas de 1960 e 1970. Apesar da inquestionável qualidade, livros escritos em português 38

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demoraram para ser conhecidos e bem recebidos nas feiras internacionais, onde os dados de ouro são lançados, decidindo o sucesso e o fracasso no mundo editorial. Foi por esse motivo − o preconceito contra a língua portuguesa − que o insuperável Murilo Rubião, talvez o nome mais forte de nossa ficção fantástica, ainda não fez sucesso na Europa e nos Estados Unidos. Um dos primeiros a aderir à insólita poética de Kafka, nosso Murilo foi o grande precursor do fantástico no Brasil. Sua obra ficcional − apenas trinta e três contos curtos − iluminou o caminho para sua geração e as seguintes. Ao longo de sua carreira, Rubião nos encantou com ao menos uma dúzia de obras-primas da imaginação literária, entre elas O edifício, A casa do girassol vermelho, Bárbara, O pirotécnico Zacarias, Os dragões e Os três nomes de Godofredo, meus contos preferidos desse autor magnífico. Sua ficção mais conhecida é Teleco, o coelhinho, em que acompanhamos o drama de uma criatura sem forma definida, que se metamorfoseia em coelho, cavalo, leão, pulga, canguru etc. Para o narrador-protagonista, o surto de metamorfoses de Teleco se deve à simples vontade de agradar às pessoas. O maior desejo dessa criatura inconstante, porém, é se transformar definitivamente num ser humano. Depois de muito atrito com o narrador, Teleco inicia um turbilhão caótico de metamorfoses e finalmente se transforma numa criança. Mas numa criança morta. Parceiro de Rubião, na fundação da ficção fantástica tupiniquim, foi o magistral José J. Veiga. Muito idiossincrático na linguagem, na temática e na cosmovisão, Rubião e Veiga habitavam territórios antípodas. As ficções do primeiro são sempre melancólicas e pessimistas, as do segundo são em geral afetuosas e nostálgicas. Das maquinações de Veiga, eu aprecio bastante o conto Quando a Terra era redonda. Escrito em forma de ensaio (à maneira de Borges), o texto comenta a tese defendida por dois cientistas − doutor Sorensen e professor Santiago − de que a Terra não é ou nem sempre foi chata, mas redonda. A primeira parte resenha o livro do doutor Sorensen, publicado postumamente por sua viúva, cheio de evidências que comprovam a tese de que a Terra era redonda, mas sofreu um lento processo de achatamento. A segunda parte resenha o longo artigo do professor Santiago, que propõe que a Terra nunca deixou de ser redonda, mas nós fomos condicionados a aceitar o dogma de que vivemos numa Terra chata.

Duas leituras

Todas essas narrativas subversivas podem ser lidas de duas formas: figurada ou literal. Não existem uma forma certa e uma errada, ambas são corretas. A leitura figurada verá nessas histórias insólitas uma alegoria da condição humana, uma recriação moderna de mitos antigos, cheia de símbolos. 39

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A leitura literal, por sua vez, verá as histórias reais de pessoas reais, porém de uma realidade muito mais fascinante que a nossa. De uma realidade paralela, ou de um mundo futuro, pré ou pós-apocalíptico, em que as leis da natureza são outras e os fenômenos fantásticos acontecem o tempo todo. Uma leitura é espelho mítico, a outra é janela diáfana. Confesso que minha paixão por esse gênero literário se deve muito mais a essa saborosa leitura literal. Dois autores brasucas menos conhecidos, mas igualmente talentosos, são André Carneiro e Victor Giudice. É com eles que encerro este breve artigo, cujo objetivo é compartilhar minha paixão antiga pela ficção fantástica e estimular sua leitura em larga escala, em nossa amada Pindorama. De André Carneiro, que também escrevia ótima ficção científica, eu recomendo enfaticamente A escuridão, considerado pelos especialistas seu conto mais importante. Nessa narrativa, um fenômeno sem explicação rouba vagarosamente a luminosidade do sol e das estrelas, e de qualquer coisa que emita luz, fagulha e calor luminoso. Nosso planeta fica às escuras. O fogo e a eletricidade deixam de aquecer a água e os alimentos. O protagonista, Wladas, e os habitantes de uma grande metrópole passam três semanas sem enxergar nada. O caos se instala. Muitos morrem, principalmente de fome. Wladas e seus vizinhos (um casal e duas crianças) são salvos por Vasco, um cego de nascença, que os leva ao Instituto dos Cegos, primeiro, e em seguida para a Chácara Modelo. No final da terceira semana de escuridão, a escassez de alimento chega ao limite. Quando já não há mais esperança de que as pessoas voltarão a enxergar, a escuridão começa a ceder e tudo volta ao que era antes. De Victor Giudice eu recomendo o brevíssimo O arquivo, de apenas três páginas. Esse conto é não apenas um dos melhores da ficção fantástica brasileira, mas um dos melhores contos de toda a nossa literatura. joão − assim mesmo, com inicial minúscula − é o funcionário exemplar de uma empresa. No primeiro ano, em reconhecimento ao seu valor, joão recebe uma redução salarial de quinze por cento. Dois anos mais tarde, outra recompensa: novo corte salarial, agora de dezessete por cento. Quatro anos depois, nova redução salarial, agora de dezesseis por cento, e um rebaixamento de cargo. De tempos em tempos, a qualidade de vida vai caindo. joão mora cada vez mais longe do trabalho, dorme mal, alimenta-se mal, veste-se mal etc. Aos sessenta anos, ao ter seu salário eliminado, joão pede a aposentadoria e sofre uma súbita metamorfose: transforma-se num arquivo de metal. 40

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Da mesma maneira que A caçada de Lygia Fagundes Telles fez comigo, muito tempo atrás, com este artigo eu espero ter despertado em você, querido leitor, o interesse por esse gênero tão fascinante. Despeço-me, deixando em tuas mãos apaixonadas − assim espero − um mapa precioso de leituras, com as obras que mais fortemente me impressionaram.

Leituras recomendadas KAFKA

A metamorfose F. SCOTT FITZGERALD

O curioso caso de Benjamin Button VIRGINIA WOOLF

Orlando: uma biografia BORGES

A biblioteca de Babel JUAN RULFO

Pedro Páramo CORTÁZAR

Carta a uma senhorita em Paris ANDRÉ CARNEIRO

A escuridão

GARCÍA MÁRQUEZ

MÁRIO DE ANDRADE

Macunaíma

ÉRICO VERÍSSIMO

Incidente em Antares MURILO RUBIÃO

Um senhor muito velho com umas asas enormes

Teleco, o coelhinho

ITALO CALVINO

O arquivo

LYGIA FAGUNDES TELLES

O abraço

JOSÉ J. VEIGA

No quarto com duas pequenas notáveis

O visconde partido ao meio A caçada As formigas

Quando a Terra era redonda

VICTOR GIUDICE LYGIA BOJUNGA JORGE MIGUEL MARINHO

NELSON DE OLIVEIRA é escritor e ensaísta, autor do romance Subsolo infinito, cujo narrador-protagonista, imitando Dante Alighieri, empreende uma fantástica expedição ao inferno.

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O quadrinista aos 20 anos, quando trabalhava como jornalista policial.

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Com energia de sobra, o pai da Turma da Mônica chega aos 81 anos com vigor físico, artístico e empresarial. E vê seus personagens estrelarem álbuns de luxo, reinterpretados por quadrinistas da nova geração.

Mauricio de Sousa: o mais bem-sucedido projeto editorial de HQ do país por Marcelo Alencar

Divulgação

O tempo nas histórias em quadrinhos avança num ritmo todo

peculiar, bem diferente daquele que parece voar no mundo real. Assim, crianças de papel criadas há mais de meio século, como a Mônica e o Cebolinha, mantêm o semblante, a anatomia e o comportamento pueris sem provocar espanto ou estranheza nos leitores. Mas há quem diga que a mesma lógica transcende as páginas impressas e se aplica ao cartunista e empresário Mauricio Araújo de Sousa, pai da turminha do Bairro do Limoeiro, que completou 81 anos no último dia 27 de outubro com fôlego e espírito de um garotão. Adepto da malhação e sempre sorridente diante das câmeras, o maior vendedor de gibis do Brasil cumpre uma agitada rotina de trabalho que inclui viagens de negócios, longas sessões de autógrafos em eventos literários e, 43

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claro, o cotidiano de sua editora, localizada na Lapa de Baixo, zona oeste da capital paulista. Dali Mauricio capitaneia um time de cerca de 400 funcionários. E suas decisões influenciam, indiretamente, outros 30 mil trabalhadores de empresas que licenciam seus personagens. Membro da Academia Paulista de Letras e detentor do cobiçado troféu Yellow Kid, conquistado em 1971 no Congresso Internacional de HQs de Lucca, na Itália, ele ainda faz questão de avaliar os roteiros dos gibis que levam sua logomarca, incumbência que divide com a filha Marina. Nada chega às bancas sem a aprovação do big boss e de seu braço direito, a esposa Alice Takeda, que atua como diretora-executiva dos Estúdios Mauricio de Sousa e examina os desenhos de cada página. Tamanha dedicação ajuda a explicar por que a Turma da Mônica detém mais de 80% do mercado nacional de gibis, ultrapassando a marca de um bilhão de exemplares vendidos. O expediente de suas revistas estampa também os nomes de outros familiares, como a diretora comercial Mônica, filha que inspira a dentucinha dona da rua, e o diretor de teatro Mauro, rebento que, no mundo da fantasia, responde por Nimbus, um garoto aficionado por meteorologia. Ao todo, são dez filhos gerados em quatro casamentos.

Empreendedorismo precoce

Não foi de mão beijada que Mauricio chegou onde está. Nascido em Santa Isabel, cidadezinha próxima a São Paulo, ele arregaçou as mangas desde a tenra idade, engraxando sapatos na barbearia do pai, vendendo na rua os doces caseiros elaborados pela mãe e entregando marmitas feitas por uma prima. Morador de Mogi das Cruzes por um bom tempo, acumulou prêmios cantando no rádio e, aos 14 anos, improvisou um cineminha no quintal de casa para exibir sua versão animada de As Aventuras de Pedro Malazarte, tipo folclórico de grande apelo cômico. Ao mudar-se para a Pauliceia, com 19 anos, o então postulante (autodidata) a quadrinista profissional reuniu amostras de seus desenhos e saiu pedindo emprego em cada redação de jornal que encontrou pelo caminho. Obteve uma vaga de repórter policial na Folha da Manhã, atividade que o ajudou a manter-se enquanto aprimorava o traço ainda incipiente. Foi apenas em julho de 1959 que ele viu publicada a primeira tira, estrelada pelo Franjinha e sua mascote, Bidu, no mesmo diário em que batia ponto. No ano seguinte, o cachorrinho azul ganhou revista própria pela Editora Continental. A primeira iniciativa revolucionária do autor ocorreu em 1964, quando já reunia Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali, Piteco, Horácio, Chico Bento, Jotalhão, Penadinho, Astronauta, Anjinho e a riponga Tina em seu portfólio: 44

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ele organizou um sistema de distribuição de tiras, como os dos syndicates americanos, visando atingir o maior número possível de jornais num perímetro de 100 quilômetros que tinha Mogi como epicentro. Funcionava assim: para um diário, ele oferecia gratuitamente o direito de publicação de suas gags – e ficava, em troca, com a matriz tipográfica que lhe permitia vender as mesmas tiras a baixo preço para outros informativos. Assim, por meio do “milagre da multiplicação dos clichês”, Mauricio formou uma clientela sólida e sempre crescente. A produção emergente possibilitou a contratação de auxiliares, aliviando sua carga de trabalho. Em termos. Uma vez provocado, Mauricio nunca fugiu da raia. Tamanha impetuosidade o levou a cometer sandices no começo da carreira. Em 1965, por exemplo, ofereceu-se à Editora FTD para criar livros infantis ilustrados. A empresa bancou a proposta, apresentando porém um desafio praticamente inexequível: a produção de três títulos de 64 páginas, mais as capas, em cinco dias úteis. À base de madrugadas em claro regadas por muito café, ele e a equipe diminuta entregaram A Caixa da Bondade, O Astronauta no Planeta dos Homens-Sorvete e Piteco a tempo de serem comercializados numa feira de livros. Esses conteúdos, esgotados durante décadas, foram relançados em 2015 pela Martins Fontes na antologia de capa dura Mauricio, o Início.

O mais amado

O segundo pulo do gato deu ainda mais visibilidade às criações do artista. Nos últimos anos da década de 1960, pouco antes de lançar a revista Mônica 45

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pela Editora Abril, Mauricio firmou um contrato para colocar sua turminha na TV, por meio de animações que anunciariam as goiabadas, geleias e outros enlatados da fabricante de alimentos Cica. Foi assim que o Jotalhão, associado a um extrato de tomate, tornou-se “o elefante mais amado do Brasil”. E que uma menina simpática, desenhada no estilo dos gibis, passou a ilustrar a embalagem das Ervilhas Jurema. Em 1976, um curta-metragem exibido à exaustão pela Rede Globo mostrou o Natal da garotada (na trama, todos unem esforços a fim de construir uma chaminé para o Papai Noel trazer presentes seguindo a velha tradição). A experiência, bem-sucedida, incentivou Mauricio a arriscar-se no cinema em 1981 com o longa As aventuras da Turma da Mônica, que obteve ótima receptividade de público. Hoje, é possível assistir regularmente aos episódios animados dos personagens de Mauricio no canal por assinatura Cartoon Network. E a parceria será renovada em 2018 com a série Bairro do Limoeiro, que aposta num visual retrô para embalar planos infalíveis e coelhadas em ritmo de videoclipe. A publicidade na telinha, somada aos sucessos em acetato e o licenciamento de produtos dos mais variados gêneros − desde brinquedos até peças de vestuário, passando por materiais escolares e itens de decoração de festas − só fizeram expandir o pequeno império (hoje, mais de 150 empresas comercializam cerca de três mil itens licenciados). Distribuídos pela agência Comic Art do italiano Rinaldo Traini, os quadrinhos de Mauricio invadi-

Imagem de um episódio da nova animação da Turma da Mônica, que foi exibido na CCXP 2016.

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ram parte da Europa nos anos 1970; na mesma época, com uma pequena ajuda de Ozamu Tezuka, então uma lenda viva dos mangás, com quem o autor brasileiro partilhava amizade e admiração, o dinossaurinho Horácio chegou ao disputadíssimo mercado editorial japonês. Mônica e companhia também se espalharam pela América Latina. Por aqui, as tiragens dos gibis escalaram patamares inéditos até que, no início da década de 1990, o Instituto de Verificação de Circulação (IVC) constatou que os dez best sellers das HQs impressas no país eram todos do autor, na época publicando pela Editora Globo. Seus gibis agora saem pela multinacional Panini, que acrescentou ao catálogo periódicos como Turma da Mônica Jovem e Chico Bento Moço, impressos em preto e branco, com formato diferenciado e dirigidos a leitores adolescentes, além de graphic novels luxuosas em que quadrinistas da novíssima geração revisitam personagens como Astronauta, Chico Bento e Coelho Caolho, dando a eles uma interpretação pessoal. E os roteiristas e desenhistas dos estúdios, que costumavam ter seus trabalhos editados de forma anônima, vêm finalmente recebendo os devidos créditos. Embora possa dar a impressão de que tem o toque de Midas, transformando em ouro tudo aquilo em que encosta mesmo em tempos de crise, Mauricio de Sousa também coleciona revezes em sua trajetória. Prova disso são os cancelamentos dos selos As Tiras Clássicas da Turma da Mônica, que pretendia coletar em livretos todas as gags publicadas originalmente em jornais (a interrupção se deu no volume 7, que trouxe material de meados dos anos 1970) e Turma da Mônica – Coleção Histórica, cujas caixas reuniam edições fac-similares dos primeiros gibis da galerinha (a procura aquém do esperado decretou o fim da série no número 50), além da revista periódica do Ronaldinho Gaúcho, que parou na 100a edição. Mais grave que isso tudo, no entanto, foi a dívida acumulada de R$ 40 milhões, em 2010, como consequência da má gestão do Parque da Mônica, complexo temático então instalado no Shopping Eldorado, próximo à Marginal Pinheiros. Débito renegociado em 2013, o centro de diversões foi reaberto dois anos depois no Shopping SP Market.

Arte em quadrões

O cartunista e empresário cultiva o hobby de pintar e esculpir seus personagens parodiando obras-primas da arte universal − esses trabalhos, que hoje decoram as instalações da sede de seus estúdios, já compuseram a mostra Mauricio 50 47

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Anos, alusiva ao meio século de carreira do autor, no Museu Brasileiro de Escultura, e foram reproduzidos nos livros História em Quadrões, volumes 1 e 2. Outra celebração marcante originou a intervenção urbana Mônica Parade, no cinquentenário da personagem, dois anos atrás: nos mesmos moldes da Cow Parade, diversos artistas plásticos foram convidados a colorir e customizar meia centena de esculturas de 1,6 m da garotinha de força descomunal e pavio curto. A exposição itinerou por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

Mônica nas telas

Mauricio não para. Durante a terceira edição da Comic Con Experience (CCXP), megaconvenção de quadrinhos realizada em dezembro de 2016 em São Paulo, ele anunciou, entre várias novidades, duas empreitadas cinematográficas estreladas por atores de carne e osso. Turma da Mônica Jovem − O Filme, com viés mais engajado e apelo ambientalista, vai apresentar a antenada youtuber Ramona e o garoto Geek, cujo nome fala por si. E Turma da Mônica − Laços, dirigido por Daniel Rezende e inspirado nos quadrinhos homônimos dos irmãos Vitor e Lu Cafaggi, colocará em xeque a amizade da criançada ao longo de uma batalha contra uma poderosa corporação. Vale lembrar que, desde 1997, Mauricio mantém um instituto que leva seu nome e desenvolve campanhas de cunho social, educativo e institucional. Esse caráter de sua obra rendeu à Mônica o título de Embaixadora da Unicef em 2007. A baixinha gorducha e seus coleguinhas estão em todas as mídias − inclusive teatro e internet − e, se depender dos planos e da capacidade realizadora de seu criador, continuarão nos corações e mentes de muitas gerações de fãs. Certamente, com a mesma carinha alegre e despreocupada de quem dispõe de todo o tempo do mundo.

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Um amor de família Nem todas as criações de Mauricio de Sousa se mantêm em pauta. Não há, pelo menos por enquanto, nenhum lançamento que contemple a tira Os Sousa. Desconhecida pelos novos leitores, a série de gags diárias circulou em jornais como a Folha da Tarde entre 1968 e 1989 e, de início, inspirou-se na realidade do próprio artista. Repletas de referências à boêmia e à infidelidade conjugal, as piadas miravam o público adulto. No atual contexto em que prevalecem as posturas politicamente corretas, muitas delas seriam classificadas como machistas e, por vezes, misóginas. Quem rouba a cena em Os Sousa é o bon-vivant Mano, caricatura de Márcio, irmão caçula de Mauricio falecido em 2011. Márcio, que trabalhou como argumentista de HQs, criou tipos como Rolo e o Louco. E teve como amigos, na infância passada em Mogi, os meninos que originaram Cebolinha e Cascão.

No fim de 2016, Mauricio de Souza visitou a SESI-SP Editora e foi recebido pelo editor-chefe, Rodrigo de Faria e Silva, que mostrou a crescente coleção de HQs.

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minientrevista

Com a palavra, o pai da turminha

O senhor não aparenta, de jeito nenhum, a idade que tem. As histórias em quadrinhos são sua fonte de juventude? Com certeza. Acho que sou um dos personagens de 7 anos de idade da turminha clássica. Todo ano eles fazem 7 anos novamente. Bem, fazer o que gosta nos rejuvenesce a cada dia. O senhor tem muitos herdeiros de carne e osso e também uma vasta galeria de tipos de papel. Com base nessas experiências, dá para avaliar o que é mais complicado: criar filhos ou personagens de HQs? Todos são filhos que queremos que cresçam e tenham sucesso na vida. Os de carne e osso são mais autônomos e cada qual com a riqueza de suas características pessoais. Os de papel até que dão pra controlar mais, só que os leitores são pais também e fazem o sucesso de cada um. Existe uma lenda segundo a qual o dinossauro Horácio é a sua criação favorita e que somente o senhor o desenha. Há alguma verdade aí? Nesse caso, os leitores não devem esperar que haja uma graphic novel estrelada por ele e assinada por outro autor? O Horácio é mais um dos meus filhos de papel que amo como os outros cerca de 300. Mas tem uma linha filosófica parecida com a minha e por isso é mais difícil de passar para outro autor fazer. Alguns acertam uma parte e eu dou uma mexida para arredondar o roteiro. Mas no 50

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caso das graphics é outra formatação que passa pelo estilo e ideia do autor que irá produzi-la. Aguardem pra ver. A Turma da Mônica Jovem vai envelhecer um dia? O senhor vê, a longo prazo, a baixinha dentuça cercada de filhos e netos? Esse é um dos nossos projetos mais ambiciosos. Está sendo formatada a Turma da Mônica Adulta para daqui a uns três a quatro anos. Os personagens começarão com cerca de 25 anos e a cada ano farão aniversário, envelhecendo, ou evoluindo, ao mesmo tempo que seus leitores. Será um folhetim ao estilo novela que fala o que está acontecendo no mundo em tempo real.

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O sucesso de seus personagens inspirados em jogadores de futebol depende, de algum modo, do desempenho em campo desses atletas? Que futuro o senhor projeta para o gibi do Neymar? Temos uma história com personagens reais do esporte que é inédita no mundo. Veja que não acontece dessa forma em outras produções adaptadas pelo planeta. Para que isso dê certo como o Pelezinho, Ronaldinho Gaúcho e Neymar, de início, é claro que está bem atrelado ao personagem real. Mas como falamos de uma época da infância de cada um, o personagem virtual vai criando seu mundo na imaginação do leitor e vai descolando do real que está adulto. Depois de um tempo a revista se sustenta, como a do Neymar. Pelezinho e Ronaldinho Gaúcho são publicadas agora em edições especiais.

MARCELO ALENCAR é jornalista. Foi editor no Grupo Abril, colaborou em O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, chefiou a reportagem da Gazeta Esportiva e editou conteúdos educativos na Fundação Padre Anchieta. Atualmente, traduz quadrinhos Disney para a Editora Abril. No biênio 2011-2012, presidiu a comissão organizadora do Troféu HQ Mix.

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estante de hqs

A mulher leopardo SCHWARTZ E YANN série “O SPIROU DE...”

Ano de 1946, Bruxelas. Uma implacável onda de calor abate a capital belga, ainda muito marcada pela Segunda Guerra Mundial. Sobre os telhados, uma mulher leopardo é perseguida por dois inquietantes robôs que se assemelham a gigantes pigmeus. A sua chegada agirá como um eletrochoque em Spirou e Fantasio, pois a estranha criatura irá levá-los para uma grande aventura africana em busca de um artefato roubado de sua tribo!

O mensageiro O chifre do verde-cinza Rinoceronte SCHWARTZ E YANN série “O SPIROU DE...”

1942. Bruxelas está ocupada. O coronel alemão Von Knochen, principal hóspede do hotel Moustic, onde trabalha Spirou, está prestes a encurralar uma das mais importantes redes da resistência belga. Spirou e Fantasio conseguirão impedir esse plano diabólico? Poderão enganar o coronel e escapar das garras nazistas?

FRANQUIN série “SPIROU E FANTASIO”

O novo bólido da Turbot desperta muita inveja: ladrões roubam projetos, sabotam fábricas, tramam perseguições mirabolantes... E lá vão nossos heróis Spirou e Fantasio, até a África, tentar recuperar os projetos do veículo!

Spirou O diário de um ingênuo

Gus 1. Nathalie

ÉMILE BRAVO série “O SPIROU DE...”

Com Gus, Christophe Blain nos leva ao Velho Oeste profundo. Cada episódio tem como pano de fundo as histórias de amor de Gus e seus comparsas. Entre pequenos mal-entendidos e dificuldades do dia a dia de um cowboy, tudo segue com muito humor, malícia e inteligência: Gus é uma maravilhosa surpresa.

1939. Como um adolescente que trabalha na portaria de um hotel pode se revelar e se tornar o jovem aventureiro que conhecemos? De onde vem sua amizade infalível com Fantasio? E quem é Fantasio? E Spip? Por trás de todas essas perguntas se esconde um terrível trauma que nos afetará a todos...

CHRISTOPHE BLAIN

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Valentine (vol. 1) VANYDA

O livro apresenta nossa pequena heroína adolescente e sua luta para encontrar o seu lugar. Neste primeiro volume, Valentine volta às aulas, reencontra suas amigas e começa a descobrir os segredos da juventude.

Púrpura PEDRO CIRNE E MÁRIO CÉSAR

Em 1952, no interior de Angola, a avó do escritor Pedro Cirne contraiu a doença púrpura. Disseram a ela que não tinha cura... Mas tinha, e ela viveu por mais de seis décadas desde então. Morou em Portugal e no Brasil, contando muitas histórias − inclusive esta: nem tudo é o que parece.

Verões felizes 1. Rumo ao sul! ZIDROU E JORDI LAFEBRE

Esta série não tem brigas sangrentas nem complôs internacionais. Ela fala da vida, a vida real. A vida – bonita – das pessoas que, durante o ano, trabalham duro para pagar as férias de verão. Com a família Faldérault, vamos sair de férias!

Entre quatro contos FERNANDES E GILMAR

Retrato, Fresta, Melodia e Jazigo são histórias que se passam em um mesmo bairro e narram a rotina de duas famílias vizinhas. Em episódios, a narrativa transita entre a delicadeza do cotidiano de uma vizinhança, as relações de pais e filhos, a despedida e a saudade. 53

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pop

O pop do clássico & o clássico do pop por Luiz Antonio Aguiar

Marco Battaglini. Esto quod es, s.d.

Era uma vez um ór�ão

Uma das razões do enorme sucesso da literatura pop, especialmente entre leitores jovens, é o legado que seus escritores tomam como referência. O pop é o descendente e o herdeiro da literatura clássica. Vejamos... Um garoto órfão, maltratado pela família que o adotara, parecendo incapaz de sobreviver ao bullying que o cerca. No entanto, a história dá uma reviravolta. Algo é revelado sobre o seu passado, que o encaminha para se tornar alguém muito especial. Qualquer adolescente sabe que esse é início de Harry Potter, da J.K. Rowling. Mas essa trama foi testada e aprovada por um sucesso da literatura inglesa de 1837 – Oliver Twist, de Charles Dickens: um clássico. Já acusaram Rowling de ter plagiado Oliver Twist. Entretanto, dificilmente Dickens terá sido o primeiro a bolar histórias em que o leitor é ganho, no primeiro capítulo, ao ser levado a se compadecer de um personagem (criança) sofredor. Convém ainda evitar a especulação de que ambas as obras derivam de um mesmo arquétipo. O conceito de arquétipo implica noções complexas de inconsciente coletivo, algo que, grosso modo, é replicado inadvertidamente. No que nos distraímos, o cabalístico arquétipo nos possui. Pelo contrário, trata-se, sim, de um processo deliberado, e exigente, de transmissão de legados literários. 55

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Linhagens literárias

Para rastrear a linhagem da literatura pop – que circula, hoje, em gêneros como policial, fantasia, aventura, terror, amor, suspense e mistério, humor e paródia, entre outros –, a primeira noção proposta é de que nada na literatura nasce de chocadeira. Antes de alguém de se tornar um escritor, foi (e provavelmente continuará sendo) um leitor. É no mundo dos livros que desenvolve seu gosto pelo que vai escrever um dia. Daí, temos obras que conquistam leitores, alguns dos quais se transformarão em escritores que vão escrever obras que conquistarão outros leitores. As referências passam para o futuro escritor (que geralmente nem sabe ainda que será esse seu ofício) na medida em que elege suas obras e escritores favoritos, vinculando-se, assim, a uma linhagem. Não se trata, portanto, nem de copy-paste, nem de um vírus residente em nosso subconsciente. É um processo cultural, material, entre pessoas e livros. Quem quiser ler um relato de como leitores se transformam em escritores, vá a Como e por que sou romancista, de José de Alencar, que cita suas referências: Walter Scott (Ivanhoé), Fenimore Cooper (O último dos moicanos), Alexandre Dumas (Os três mosqueteiros) e outros. E daí imagine como e por que surgiu O Guarani. Não existe escritor que não tenha vindo da própria literatura. A não ser em casos quase extraterrestres. Todo escritor tem seus ascendentes. E, se sua obra torna-se referência, deixa um legado – gera descendentes. Foi assim que o pop nasceu do clássico.

Nhaca de pirata não é moderno

É difícil definir o que é literatura pop. Existem diversas caracterizações e juízos de valor. Mas, ao defini-la como a que mais consistentemente explora a referência dos clássicos, aponta-se sua diferença em relação a toda uma literatura igualmente difícil de delimitar, que já se chamou de vanguarda, moderna (ou modernista) e erudita, mais ou menos produzida entre as décadas 1920 e 1960, embora cultuada até hoje.1 Há vários momentos em que o Modernismo repudia os autores que o antecederam. Um deles é a crítica desdenhosa que a requintada romancista Virginia Woolf e seu grupo disparavam contra Robert Louis Stevenson. Os modernos, com amplo espaço nos jornais literários da época, aproveitavam toda oportunidade para desqualificá-lo. Por quê? Bem... Toda sucessão de movimentos literários é conflituosa. No entanto, crucial era o fato de que os modernos praticavam uma prosa-poética 1 Falta neste artigo, por praticidade, uma tentativa de definição do que é um clássico, assunto muito controverso. A carência fica em parte suprida pela citação de obras. Já a oposição entre a chamada Literatura Popular e a Erudita, está em Luiz Braz, Alexandre Dumas e a Guerra dos Livros, em Ponto 5 – Março 2014.

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Marco Battaglini. Good Artists Copy; Great Artisits Steal, s.d.

pop que, entre outros aspectos, ousava enredos e personagens tão pouco densos, como se existissem apenas em meio à bruma sobre o Tâmisa, e prontos a se evaporar no que alguém se aproximasse. Como uma literatura dessas iria conviver com as narrativas eletrizantes de Stevenson e, especialmente, com um Long John Silver (ancestral muito mais manhoso e carismático de Jack Sparrow) que, mal surge, em A ilha do tesouro, e já é como se escutássemos sua voz enganosa e farejássemos seu hálito de bebida, quando não sua nhaca de pirata, de poucos banhos por ano e roupas sem troca? Orlando (1928), de Woolf, é um belíssimo personagem, mas de natureza diferente. Literal e literariamente falando, incompatibilidade de gênios.

No início, houve Homero

Se a Vanguarda, ou os Modernistas, pretendiam apresentar uma literatura diferente de tudo o que já se havia produzido, de propor textos que conferissem ao leitor a consciência de que estava tendo uma experiência estética e não participando da cena... e uma certa distância, ou estranhamento (essa expressão era muito usada) em relação ao que lia... os Clássicos e, no legado destes, os Pops, buscam justamente o contrário: o envolvimento do leitor. Cormoran Stryke não é Oliver Twist, nem Harry Potter, mas se trata de um genuíno maior abandonado. O chamado do Cuco (2013), policial assinado por Robert Galbraith – pseudônimo de Rowling, a mesma de Harry Potter –, apresenta Stryke como um alcoólatra, mutilado da guerra do Afeganistão – perdeu 57

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pop uma perna e usa uma prótese, com a qual convive pessimamente –, maltratado pela vida e por si mesmo, falido, recém-saído de um relacionamento pirante, e ainda por cima incapaz de reconciliar-se com seu passado – o pai é um astro do rock, teve uma noite com uma fã (uma groupie), ela ficou grávida, e ele não tomou conhecimento do filho; a jovem morre de overdose, quando Cormoran e uma irmã ainda eram crianças. Enfim, de cara, não dá para acreditar que ele seja um herói; muito menos, capaz de resolver algum caso que um cliente incauto lhe entregue. Mas tudo faz parte do truque. Em seu caos, Cormoran surpreende, mostrando-se um detetive e tanto. Seria inimaginável. A não ser para quem tenha a referência de um outro detetive... Que se mantém afetivamente imune às pessoas. Que ignora que a Terra seja redonda, já que não acredita que isso afete suas investigações. Que é um excelente violinista, embora só toque para si mesmo. Um doidão que, para apreender a determinar se uma vítima foi assassinada a porretadas, ou espancada depois de morta, o que deixaria pistas falsas, vira noites no necrotério – um de seus habitats mais naturais –, surrando cadáveres e observando os efeitos disso na pele morta. E que, quando não tem um caso para resolver, se entrega à melancolia e ao ópio. Esse é Sherlock Holmes. O excêntrico dos excêntricos. Na técnica folhetinesca em que Conan Doyle (a primeira novela, Um estudo em vermelho, saiu em 1847) escreve, somos, aos poucos e cada vez mais intrigados, inoculados por suas peculiaridades. Quando vemos, é tarde, caímos na arapuca, e o personagem nos conquistou. A composição da personalidade, do espírito, do emaranhado mental de Holmes, ou seja do que chamemos essa coisa esquisita que ele tem dentro de si, é fundamental para acompanharmos a investigação. Outro personagem daria outra história. Entretanto, se suas estranhezas nos cativam, suas falhas insinuam que corra algum risco, e nos vemos torcendo pelo seu bem. Holmes morre numa das histórias de Doyle. Contra a vontade do autor, os fãs forçam-no a ressuscitá-lo, anos depois. Nada mais pop do que fãs interferindo no destino de personagens, incapazes de suportar sua perda; e personagens tão amados, tão importantes na vida de seus leitores. Sem estranhamentos. Noutro viés, há personagens-detetives que parecem quase humanos. Sua peculiaridade é tratar dúvidas e fraquezas como assunto privado. Que não são da conta nem do mundo, nem do leitor. O que nos resta é temer que, submetida a cenas extremadas, a blindagem se esfarele. E aí está, por exemplo, Sam Spade, de O falcão maltês (Dashiel Hamett, 1929). 58

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Marco Battaglini. Ma dove cazzo sono?, s.d.

Enfim... Pode ser um pouco de invencionice afirmar que o Calcanhar de Aquiles seja ancestral da kryptonita. No entanto, essa manobra, típica nos clássicos e nos pops, de temperar o poder do herói com fragilidades, agrega empatia ao personagem e estimula as expectativas do leitor em relação ao destino dele. Nisso o pop Cormoran Stryke é um descendente legítimo do hoje clássico (mas na época pop à beça) Holmes, que por sua vez é um ancestral de Hercule Poirot, de Agatha Christie, e de Will Baskerville, o monge investigador de O nome da rosa (1980), um best-seller planetário, transposto para o cinema com Sean Connery no papel principal. O romance, de Umberto Eco, liberou a senha para levarem a sério (como literatura) as novelas policiais. O nome do protagonista é uma citação a O cão dos Baskervilles, caso investigado por Holmes. São, portanto, excêntricos; se fossem realistas (isso existe: uma realidade literária?), não teriam se tornado tão populares. Já no que toca aos ardis da trama... ... Ninguém estranha hoje em dia ver uma cena correr solta, sem um autor invasivo a lhe ditar um tom monocórdio, como numa ladainha. Ou que a 59

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ação conte a história, num prodígio de imitação, como o chamou Aristóteles. Ninguém se espanta ao dar com diálogos numa cena. Que os personagens briguem, se amem e se emaranhem em seus conflitos interiores, ou com o mundo. Devemos tudo isso a Homero, o gênio inovador que há cerca de três milênios, pelo que se estima, dotou a literatura (antes, somente hinos de louvor aos deuses) de capacidade de envolvimento/encantamento. E, no âmbito do terror, de nos fazer sentir terror, Homero é o primeiro, o fundador! No canto xi de Odisseia, Ulisses (em grego, Odisseu) desce ao Hades para obter a profecia do falecido adivinho Tirésias, que permitirá ao herói retornar a sua ilha de Ítaca. O Hades não é o inferno cristão. É pior. Não se reserva aos pecadores, mas traga os bons e os maus. Lá, espectros vagam nas trevas eternas, gemendo, privados da memória da vida que tiveram. Para os gregos, que tanto adoravam Apolo, deus do Sol, e imersos numa cultura em que o conhecimento e a arte provinham da memória (Mnemosine, a mãe das Musas), nada poderia ser mais antigrego (como antimatéria) do que o Hades. O terror mais profundo dos gregos era o Hades. Pois é onde Homero os lançará, cercados de espectros ávidos de sangue (único meio de recuperarem a memória) – ancestrais evidentes de todos os vampiros e zumbis. O terror mais profundo... Deixar o leitor imerso, desamparado, no seu horror primordial... Esta é uma das marcas resgatadas dos clássicos pelo terror do século xix, o gótico, o auge do gênero. Drácula, de Bram Stoker, parido naquela cena de Homero, é um velocirraptor, um predador de humanos, e ao mesmo tempo tão sensual, que alguns desejam suas dentadas, como se ele fosse, digamos, um Edward Cullen, de Crepúsculo.. E desde Homero até Stephenie Meyer que a nossa dificuldade de aceitar a mortalidade é tema proeminente do terror. Tanto que há sempre uma Bella, topando tornar-se uma morta-viva para permanecer jovem e linda para sempre... no caso, ao lado de seu vampiro vegetariano, usuário de filtro solar. E não se pode esquecer Stephen King, grande estrela da literatura pop desde Carrie, a estranha (1974). Seu vampiro de Salem’s Lot é o melhor chupa-jugulares fora de Stoker. King, professor de literatura, descendente confesso também de Poe e Henry James, deve ter lido autores como William Faulkner, sem falar nos beatniks e em O apanhador no campo de centeio (1951), de Sallinger, tão mais 60

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pop próximos dele, temporalmente, e que influenciaram muito sua geração. Entretanto não são essas as suas referências literárias. Ele escolheu outra linhagem. Seu recente Doutor Sono, continuação vinte anos depois de O iluminado – que, aliás, poderia se intitular O escritor e o monstro –, traz criaturas derivadas da praga vampiresca, que obtém a imortalidade à custa da prática de atrocidades.

Tudo pela história!

Quem bebe uma fórmula descoberta ao acaso e assim se transforma num monstro? Fácil... Mr. Hyde, em O médico e o monstro, de Stevenson. Mas estará tão distante do cientista que leva uma descarga acidental de raios gama e vira um gigante verde, conhecido como Hulk? Um e outro liberam a brutalidade que mais os aterroriza... aquela que pressente dentro deles mesmos. O dr. Jekyll e Bruce Banner são assombrados por seus mistérios íntimos. Não se transformam em outra pessoa... perdem controle sobre o demônio que os habita, que é parte inseparável deles mesmos... e que talvez habite todos nós. Essa é a ameaça do terror gótico/pop... Cada qual com seu Hades. Nessa mesma linha, Odisseia, épico ponteado de naufrágios e monstros marinhos, deixou legados para a criação de Robinson Crusoé (Daniel Defoe, 1719; sendo que Crusoé é ancestral do Perdido em Marte, filme de 2015), de Gulliver (Jonathan Swift, 1726), Moby Dick (Hermann Melville, 1851) e outros. Transferindo a exploração do desconhecido, do oceano (que então já não opunha desafios tão turvos) para o cosmos, transforma-se em 2001 – Uma odisseia no espaço (Arthur Clark, 1968). No seriado e nos longas Jornada nas estrelas. E na série que praticamente descobriu o Planeta Nerd e seus milhões de devotos habitantes: Guerra nas estrelas. E Percy Jackson não foi o único a ser incubado na mitologia grega. Temos também Neil Gaiman, em seu monumento pop, Deuses americanos (2002), thriller em que divindades de inúmeras mitologias se disfarçam em prosaicos cidadãos dos EUA. Elencar deuses egípcios, por exemplo, por sua afinidade com processos de mumificação, como donos de uma funerária, foi somente uma das gracinhas de Gaiman em honra de suas fontes. Em suma... A literatura pop, consoante com a literatura clássica, não é focada no autor, nem no seu virtuosismo nem em suas crenças, mas no leitor. É assim que dialoga conosco sobre o que torna a literatura importante para nós: do medo do fracasso aos terrores inconfessos, do amor e da paixão, da esperança e da depressão nossa de cada dia. Para tanto, prefere o texto funcional, que conta (e não dificulta) a narrativa; oferece-nos personagens por 61

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quem a gente torce (contra ou a favor), de quem a gente ri e com quem chora; e constrói enredos que nos pegam na veia. Por força de seu DNA, não tem compromissos com a mesmice cotidiana. Não aposta em moral da história, nem em explicações lógicas. Só não admite perder o leitor. É sedenta por cativá-lo, desde a primeira linha, para, a partir daí, fazê-lo sofrer e/ou sonhar. Por vezes, só para convencê-lo de que está seguro (Santa ilusão, Batman!), em um ambiente familiar. Mas, nisso, o transporta para onde nenhum homem jamais foi... Uma operação que exige deliberar o efeito de todo elemento posto em jogo. E vale tudo para o leitor vivenciar o que lê. Afinal, quem não desejaria ser aluno na Escola de Magias e Bruxarias de Hogwarts?

Referências bibliográficas AGUIAR, Luiz Antonio. Homero, aventura mitológica. Rio de Janeiro, Galera, 2014. CHRISTIE, Agatha. O misterioso caso de Styles – primeiro mistério de Poirot. São Paulo, Globo Livros, 2014. CONAN DOYLE, Arthur. Um estudo em vermelho. São Paulo, FTD, 2006. ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983. GAIMAN, Neil. Deuses americanos. São Paulo, Conrad, 2011. GALBRAITH, Robert (J.K. Rowling). O chamado do cuco. Rio de Janeiro, Rocco, 2013. STOKER, Bram. Drácula; SHELLEY, Mary. Frankenstein. STEVENSON, Robert Louis. O médico e o monstro. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001.

LUIZ ANTONIO AGUIAR é escritor com mais de 150 títulos publicados, prêmios no exterior e no Brasil – incluindo dois Jabutis em literatura para jovens. Mestre em literatura, palestrante, participa de programas como o Literatura Viva, do SESI-SP. Professor de literatura em cursos para formação de professores. Pela SESI-SP Editora lança, em 2017, Conexão Nova York, e sua continuação, O investigante, duas tramas com muita aventura, suspense e mistério – como todo pop de boa linhagem deve oferecer. Seu blog, em que mantém um debate permanente sobre literatura e publica aventuras em episódios, é o http://luizantonioaguiar.blogspot.com.br/. E seu site, onde pode ser encontrado todo o seu catálogo de obras e seu cardápio de palestras e oficinas, é o www.luizantonioaguiar.com.br. E-mail: literaturadoencantamento@gmail.com.

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educação

Oficina literária e pedagogia* por Gloria Pondé

Gelrev Ongbico. Flying Books, s.d.

Não há receita para se ensinar a aquisição da escrita, com criatividade.

Entretanto, a intimidade com a literatura ajuda muito a compreender as possibilidades de representação que a linguagem oferece. Mas é preciso que, antes do aluno, a professora seja ela mesma uma leitora experiente. Este é um dos grandes entraves para o sucesso da leitura: uma mediação competente motiva a criança para o livro. Mas, na maioria das vezes, a dieta de leitura da professora é bastante frugal ou inexistente. Em consequência disso, ela dificilmente é sujeito de sua fala, o que a impede de assumir um compromisso político e profissional diante da vida. Com isso, sua prática de leitura em sala de aula costuma ser reprodutora e autoritária, impedindo que as muitas vozes culturais perpassem as falas dos alunos. Partindo dessa constatação, para a formação técnica e política da professora utilizamos a oficina literária, na área da didática da literatura e do ensino da língua portuguesa. O termo oficina remete a uma atividade artesanal, de fabricação de sonhos e utopias, por intermédio do discurso. É, pois, um espaço coletivo, em que se transita entre o real e o imaginário, através dos jogos de linguagem. Pela semiologia literária, embarcamos numa viagem, que é por si mesma um método, em que vivenciamos todas as etapas de reconstrução de significados. Portanto, não cabe aqui descrever as várias metodologias de abordagem do texto literário, uma vez que cada texto e cada grupo de professoras requer um tipo diferente de abordagem. Mais importante do que a descrição é o modo de encarar o sistema literário: a produção, a mediação, a recepção e o processamento da obra, valorizando-se fatores contextuais como o leitor e a situação, conforme aconselha a ciência da literatura empírica. 65

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Para nós, a literatura deve estar sempre presente nas práticas pedagógicas, a fim de desestabilizar o esquema autoritário de comunicação e de ensino. Por isso, o método de trabalhá-la não pode ser o heurístico, que, segundo Barthes (1978), visa produzir deciframentos e apresentar resultados. O método deve ter por objeto a própria linguagem, que é também uma ficção, sem, contudo, ser uma metalinguagem propriamente dita, de acordo com o semiólogo francês. O leitor seguirá o método do discurso, isto é, a linguagem se refletindo em múltiplas facetas, como verificamos na obra de Marina Colasanti, que seduz o receptor com variações em torno do tema do desejo. Assim, o texto escolhe o leitor, pelo protocolo de leitura que apresenta. E há muitas maneiras de conseguir o passaporte para a obra; é necessário, entretanto, estabelecer uma articulação entre o seu horizonte de expectativas e as experiências do leitor. Essa é uma tarefa que o mediador deve exercer, com sensibilidade, mostrando algumas chaves para iniciar o leitor. Ensinar o gosto pela literatura é buscar uma maneira de apresentar um texto sem o impor, pois o opressivo, no ensino, não é o saber ou a cultura que veicula, mas a maneira autoritária com que é proposto. Assim, não se deve nem pensar em provas de avaliação da leitura do livro. Isso seria um grande retrocesso no processo de emancipação do leitor, já que um dos objetivos do método semiológico literário é o de diminuir o poder fascista da língua, que obriga a falar de determinado modo, para sermos entendidos. A linguagem literária ultrapassa a situação de comunicação usual para assumir o estatuto de expressão ou ato de desenrolar as idas e vindas de um desejo que o escritor apresenta e representa. Nessa direção, Roland Barthes (1978) define o ensino, afirmando: Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível. (p. 47)

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Concebendo o texto como teoria da ação, numa perspectiva construtivista, a oficina é o espaço de contato com o leitor real, tornando-se, pois, uma das competências da pedagogia. O sabor dela é temperado por grande dose de participação do receptor nos jogos de linguagem. Nesse tipo de ensino da literatura, é preciso legitimar a produção dos iniciantes, levando-os a enriquecerem o repertório junto aos especialistas, sem contudo tirar a importância de sua prática. Para isso, é necessário formular estratégias alternativas para o incentivo, a seleção e a avaliação dos textos. Desmontar o esquema simbólico de poder é uma das tarefas primordiais do ensino de literatura, baseado numa pedagogia lúdica. Para tanto, o trabalho com o texto literário, no cotidiano da sala de aula, é uma proposta metodológica centrada na pedagogia lúdica, ou seja, na polifonia e no dialogismo, em que se opera com um tipo de saber desprovido de ideologia, no jogo de criação com a linguagem (Paz, 1984). Pela intertextualidade e pelo imaginário, a obra sinaliza o percurso hermenêutico, conforme declara Marina Colasanti (1993): Sou uma alimentadora da imaginação. Uma acarinhadora da alma. Se o que escrevi não comoveu o leitor, não lhe sugeriu nada, se ele precisa perguntar a mim em vez de perguntar ao livro e a si mesmo, então eu errei. Não gosto de dar mensagens. Quando tenho alguma coisa a dizer, prefiro escrever um livro. (p. 87)

A literatura pós-moderna, encarada como cultura híbrida, tem, pois, uma significativa contribuição ao ensino da arte literária, pelos diferentes protocolos de leitura que apresenta. No caso do texto de iniciação, demonstramos que se trata de uma linguagem de inclusão de vários tipos de leitor, de estilos, de tempos e pontos de vista. Assim, a literatura infantil não deve ser excluída do contexto cultural geral, nem mesmo ser considerada subliteratura. Por intermédio dela, o mediador competente poderá estabelecer as articulações entre as formas simples e as complexas, o texto popular e o erudito, a música, as artes plásticas e a cultura de massa, enfim, todas as linguagens que atravessam a realidade. Com isso, possibilita ao receptor a elaboração de uma perspectiva crítica sobre o processo cultural em que estamos inseridos. A abordagem semiológica da literatura permite, ainda, o jogo com muitos estilos, gêneros e linguagens, principalmente se tomarmos por base um tema gerador. Com esse objetivo, selecionamos o núcleo temático da mulher para

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refletir sobre a iniciação literária. Nosso intuito foi o de demonstrar as possibilidades que a literatura oferece para a utilização do patrimônio histórico, artístico e das tradições populares. Com isso, oferece outras vias de inserção da cultura especializada na práxis diária da professora. Não é apenas a obra de Marina Colasanti que vem despertando o interesse das mestras. Muitas escritoras têm mantido um exitoso diálogo com o público escolar através da discussão do problema da mulher: Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Sylvia Orthof, Lygia Bojunga Nunes, Edi Lima e tantas outras. Aliás, um grande contingente de mulheres vem produzindo livros para crianças e jovens, nas últimas décadas, suplementando a perspectiva do leitor com uma visão desviante do poder dominante. Transformando as representações sociais da mulher em outros perfis mais adequados ao modo de vida pós-moderno, a literatura infantil contemporânea vem problematizando as mudanças ocorridas no imaginário feminino, como um discurso que aponta para o possível e não apenas para o existente, daí o seu caráter utópico. Na sua leitura profissional, que é muitas vezes de iniciação, a professora se depara com modelos distintos daqueles que já conhece a partir do folclore e experimenta uma sensação desestabilizadora de abertura para a alteridade. Na discussão do texto, em oficinas, identificamos o nível de interpretação da professora, segundo as categorias femininas de Rosiska Darcy de Oliveira, no livro Elogio da diferença (1991). Para essa socióloga, a condição da mulher está intimamente ligada à sua relação com a linguagem, que transparece na maneira como a pessoa se assume enquanto su­jeito. Desse modo, estabelece três categorias de fala para a mulher: a fala sofrida, enunciada por uma mulher conformada, submissa e ingênua; a fala da igualdade, que se caracteriza pela tentativa da mulher em ultrapassar os limites da ótica masculina de vida, na busca de superar seus próprios preconceitos e de viver em igualdade de condições com o homem; e a fala da diferença, que reconhece a complementaridade entre os sexos, sem hierarquização, acreditando numa convivência saudável, com a aceitação das diferenças de cada ser humano. Como uma teoria da ação, a prática da leitura literária, nas oficinas, transforma o olhar da professora, pela experiência com a linguagem; também permite diagnosticar os seus níveis de fala e ajuda-a a tornar mais complexo e crítico o seu discurso. Mexer com esse universo muito controlado pela sociedade implica discutir a feminização do magistério, mas também indagar o que faz o ensino das primeiras letras ser um espaço eminentemente feminino, cheio de conflitos escamoteados, ideologicamente. 68

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Para responder a essa questão, salientamos o sucesso da literatura infantil feminina junto ao público docente, no sentido de mobilizá-lo para a alteridade. Quando a professora se depara com uma leitura provocadora de identificação, descobre o poder transformador da literatura e, aí, aparece uma demanda reprimida das leitoras que, em muitos casos, nunca tiveram acesso ao livro, mas sentem necessidade da leitura. É o que temos comprovado no trabalho com oficinas de didática da literatura, junto a professoras de escola pública de municípios do interior, de periferia urbana e de grandes metrópoles. Pela prática textual, a professora se descobre mulher e percebe que tem uma voz historicamente sofrida, identificando-se com outros despossuídos de cidadania. A contribuição da literatura infantil de Marina Colasanti para a desfeminização do ensino é mostrar, pelo plano simbólico, a construção histórica da mulher. Referências bibliográficas BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1978. COLASANTI, Marina. Ana Z, aonde vai você? 2 ed. São Paulo: Ática, 1993. OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. 2 ed. O elogio da diferença. São Paulo: Brasiliense, 1991. PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

O livro A arte de fazer artes: como escrever histórias para crianças e adolescentes, de Gloria Pondé, será publicado em março pela SESI-SP Editora.

* Este estudo faz parte do ensaio A literatura na escola: uma questão de gêneros.

GLORIA PONDÉ nasceu e morreu no Rio de Janeiro (24.JAN.1948 – 6.NOV.2006). Doutora em literatura brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi, por mais de vinte anos, professora na rede pública do Estado do Rio de Janeiro. Foi membro de equipes de seleção de livros para a FAE-MEC; coordenou análises bibliográficas infantojuvenis para a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), da qual foi diretora-executiva; instituiu e coordenou o curso de especialização em literatura infantil e leitura nas Faculdades de Letras da UFRJ e Faculdades de Educação e de Letras da UFF, tendo lecionado em ambas as instituições. Publicou livros de crítica literária e ensaios no Brasil e no exterior, bem como coordenou vários projetos editoriais. Foi uma das pioneiras no estudo da literatura infantil brasileira. Recebeu o Prêmio Silvio Romero, do Instituto Nacional do Folclore (1982), e o Prêmio FNLIJ “Os melhores programas de incentivo à leitura junto a crianças e jovens” (1994), Proale (Programa de Alfabetização e Leitura, realizado com a equipe da UFF). A Fundação Biblioteca Nacional instituiu o prêmio anual Glória Pondé (2007) para o melhor livro de literatura infantil. A FNLIJ instituiu o prêmio anual Gloria Pondé para o melhor livro teórico de literatura infantil e juvenil (2008).

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Rosa de luxemburgo dos trêfegos trópicos por Evandro Affonso Ferreira

Parte 1*

Ilustração de Aykut Aydogdu. (behance.net/ayknroses)

Ainda em casa, em seu eremitério de livre escolha. Havia ligado para

parceiro-às-vezes-trimestral-às-vezes-semestral desfazendo a farsa, dizendo que não havia viajado, confessando que ficara aquele tempo todo refletindo sobre a vida, a própria vida, e que continuaria assim sem saber exatamente mais quanto tempo. Ele? Ouvindo voz dela e lembrando ao mesmo tempo de sua língua-pétala, não disfarçou súbita e envergonhada ereção – estoico, entendeu tudo inclusive diálogo conciso, elíptico de desfecho abrupto, rechaçando súplicas dele implorando língua dela. Rosa trêfega agora recostada no sofá olhando para o teto – sensação estranha: parecia ver lá no alto frase em neon, perguntando, luminosa: FAZER? O QUÊ? Capitalismo? Ela mesma perguntou ela mesma respondeu: Desmoronando; Socialismo? Água de barrela; Religião? Mercantilismo místico; nós? Seres beligerantes. Tempos sombrios: Rosa tivera a sensação de que haviam quebrado todas as suas setas indicativas; de que haviam implodido todas as suas encruzilhadas; de que haviam quebrado todos os ponteiros de suas bússolas. Pensou, reflexiva, à semelhança de seu parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista: se Deus existisse possivelmente afixaria placa publicitária sobre o globo terrestre: PASSA-SE O PONTO. Não conteve o riso-imobiliário-estratosférico. Delirium-tremens, talvez; seja como for, letreiro luminoso parecia ainda estar lá no teto, interrogativo: FAZER? O QUÊ? Enxame de dúvidas continuava 71

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­ olteando o cérebro dela, Rosa trêfega. Dias permaneciam atafulhados de v estupores: haviam dizimado todas as suas perspectivas? Haviam trancado seu Sol no subsolo do Universo para atravancar futuros amanheceres? Aquele neon fantasmagórico estava fazendo Luxemburgo dos trópicos debater-se nas trevas da demência – sublevação dos tatibitates; manobras da surpreendência, do inesperado. Um dia, fugindo provisório de seu eremitério, andando aos emboléus, a trouxe-mouxe pelas calçadas do quarteirão vizinho, parou de repente diante de mendigo recostado no muro para perguntar de chofre: FAZER? O QUÊ? Resposta também viera abrupta: Voar! Ela? Indigente, à sua maneira, seguiu pensando em Ícaro. Apesar do vento forte, manhã não conseguia levar as inquietudes de Rosa trêfega – caminhava tendo nítida sensação de que haviam mudado a topografia da cidade transformando todos os caminhos em ruas-ribanceiras. Voar? Para onde, poeta? Rosa ainda presa nas malhas do enigmático; havia inventado para si mesma dilema circunscrito em duas palavras: ação audaz. Dias, semanas, meses às voltas com seus tatibitates canhestros; antecipando sinuosidades para os próximos próprios amanhãs; já estava quase se acostumando aos vertiginosos cambaleios interiores, aos ziguezagues da indecisão: Rosa-solilóquios-de-intermináveis-interrogações. Luxemburgo trêfega procurava inútil ser subterfúgio de si mesma – sim: Rosa-De-Sá-Carneiro: Onde estou, se não estou em mim? Apesar da ventania, teimava em caminhar pelas calçadas daquele quarteirão dos desafogos. Parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista, reflexivo, possivelmente diria que somos nossas próprias ruas-sem-saída. Rosa dos trópicos sentia-se amiúde seu próprio obscurecimento. Passando agora ao lado de banca de revistas, pensou na possibilidade de publicar nos jornais dezenas de pequenos anúncios-teaser: FAZER? O QUÊ? Riu da própria estultice. Continuava caminhando procurando quem sabe hocus-pocus qualquer para suprimir dúvidas, arrefecer tatibitates – fórmula mágica que pudesse impedi-la de tiranizar a si própria, de transformar sua vida numa questão metafísica. Parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista, reflexivo, possivelmente diria que vontade e ação não são uma só coisa. Ela, Rosa trêfega, cansada, sentou-se num banco de praça, ouviu canto dos pássaros, pensou nele, mendigo-alado-metafórico: Voar! Pensou também em nossa predisposição para vivermos guiados pelos deuses da imprudência; pensou tantas outras coisas, inclusive em sua língua-pétala roçando pênis de seus subservientes parceiros; e mais: que ela, Rosa, estava se tornando grande fardo para si mesma. Sensação de que precisava farejar lonjuras, se distanciar daquela Rosa-ela-mesma: reinventar-se. Agora? Caminhava outra vez e 72

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esgueirava-se nos seus tatibitates interiores e olhava os prédios e as árvores e as pessoas e aquele lufa-lufa metropolitano e sentia-se ela mesma um espantalho, o mais dubitativo de todos os espantalhos: FAZER? O QUÊ? Transfigurar-se, metamorfosear-se... Em quê? Em quem? Não, ela não queria repetir trajetória da Rosa-polonesa-ela-mesma noutra vida: história não se repete. Entanto, sabia que teorizar, palestrar, falar e não agir era ser subserviente ao lugar-comum. Sim: fazer algo transfigurador, louco e divino. Parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista, reflexivo, possivelmente diria que Rosa trêfega estava sendo austera demais consigo mesma; que estava impondo a si própria, inconsciente, talvez, o incognoscível. Rosa caminhava, sensação de que caminhava pelas calçadas do quarteirão vizinho para seguir os próprios instintos, ou, quem sabe, subserviente ao acaso – Rosa vivendo-andando a trouxe-mouxe, aos emboléus; instigava, sem perceber, as arteirices do destino, como se, de repente, houvesse acabado todos os perigos, todos os percalços da existência humana. Rosa queria punir Rosa – ambas: a polonesa e a tropical. Punição retroativa. Luxemburgo caminhava como se seus passos preparassem grandes ousadias para ela mesma; passos de repente resolutos; animou-se; com mais entusiasmo quando, depois de olhar para prédios gigantescos, pomposos, de escritórios de grandes corporações, dizer para si mesma: Mundo prostituto. Aquele adjetivo chegara recheado de pressentimentos estranhos: prostituto, prostituição, prostituir... Fiat lux? Abre-te Sésamo? Pensamentos, perguntas-fogos-fátuos que ela fizera a si mesma. Voltou para casa, deitou-se no sofá, ainda carregando a tiracolo todos os seus tatibitates, todas as suas dúvidas. Releu Lucrécio; de repente, páginas tantas, grifou este trecho lembrando-se ao mesmo tempo de Rosa-polonesa-ela-mesma-noutra- vida: Não perece completamente tudo aquilo que parece morrer, porque a natureza forma de novo uma coisa a partir de outra, e não permite que nada seja gerado senão com a ajuda da morte de outra coisa. Fechou o livro. Refletiu sobre a própria (atual) existência. De repente, outro acontecimento fantasmagórico: olhou para o teto e viu desta vez neon piscando-mostrando a palavra PROSTITUIÇÃO. Rosa-vidente novamente às voltas com a perplexidez. Fez para si mesma uma pergunta que havia chamado outra pergunta que havia chamado outra pergunta: Prostituição? Fazer? O quê? Pensou em ligar perguntando ao parceiro-às-vezes-trimestral-àsvezes-semestral: Prostituir... Posso? Não ligou, mas riu da própria estultice. Rosa dos trêfegos trópicos continuou vivendo dias, semanas atafulhados de tatibitates, de insuportáveis hesitações, tibieza de ânimo, não se determinava por coisa alguma, prendia-se nas teias em que ela havia tecido para si 73

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mesma, apoquentava-se com repetida-dúplice pergunta: Incorrer-me no desagrado? De que jeito? Luxemburgo dos trópicos insistindo-se em criar, impulsiva, o inopinado para ela própria. Rosa dos trópicos queria ir além da Rosa polonesa, mesmo que para isso tivesse que se meter numa camisa de onze varas, precisasse sucumbir-se aos seus impulsos: Luxemburgo-ação-extremosa abolindo todas as Rosas – sim: saturada de si mesma precisava abandonar metáforas, pertencer a linhagem daqueles que entram nos escaninhos do insondável, do submundo, talvez, aproximando-se, por assim dizer, do imponderável, eliminando oscilações – Rosa de Luxemburgo dos trêfegos trópicos ameaçando sair de seu próprio íntimo esconderijo; Rosa-agora-predeterminada, ou quase: sabia, sim, que iria se prostituir, mas... Onde? De que jeito? Entrando no subsolo nos meandros do capitalismo? Pleiteando cargos numa multinacional? Num Banco? Na Bolsa de Valores? Numa indústria armamentista? No mundo da informática? Sim: os tatibitates agora se afunilavam. Parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista, reflexivo, possivelmente diria que a prostituição é democrática: abarca os quatro pontos cardeais de todos os mundos, em acentuado relevo o mundo institucionalizado: político, religioso, empresarial, etecetera, etecetera, etecetera... Uma centena de eteceteras. Prostituir? De que jeito? Eis o novo mantra indagativo dela, Luxemburgo trêfega. Tarde dubitativa qualquer, viu, de repente, sombra-silhueta de mulher na parede. Assustou-se: mediúnica, havia percebido que se tratava de Rosa-ela-mesma-noutra-vida. Fantasma que desaparecera num átimo – não sem antes repreender sua, digamos, reencarnação: Decepcionante, decepcionante, você me decepciona. Luxemburgo dos trópicos não conseguiu conter seu ruborescer, envergonhando-se de si mesma. O que não a impediu de continuar dias seguidos se perguntando amiúde: Prostituir? De que jeito? Mas por que infligir tanto sofrimento, tanta tortura a mim mesma? Sim: qual o motivo daquela autopunição despropositada? Rosa agora desconhecia Rosa – in totum: não se excitava mais pensando na língua dela nos pênis deles, eventuais parceiros, mas na possibilidade de se prostituir... De que jeito? Rosa trêfega caía em êxtase com o próprio quase-destrambelho, com a quase-não-razão, com sua vontade de ultrapassar os próprios limites da imprudência, da destemidez. Rosa tornando-se estranha para Rosa; Luxemburgo fora da órbita de Luxemburgo; Rosa de Luxemburgo dos trópicos a poucos passos de corromper Rosa de Luxemburgo trêfega; Rosa exercendo nefasta influência sobre Rosa – sim, era questão de tempo: deuses do destino já haviam urdido uma trama, delineado-projetado nova vida para ela – ainda vivendo dias vertiginosos em seu eremitério de livre escolha; sim: 74

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questionando a superficialidade da própria existência, dos próprios atos, de suas ações-quase-nada-audazes, acreditando que deveria soltar a linha da carretilha para sua, digamos, pandorga empreender voos mais arriscados. Quanto mais o tempo corria mais ela se afeiçoava ao irracional, aos tormentos íntimos, às desavenças íntimas, às reconciliações momentâneas consigo mesma – Rosa se digladiando com Rosa: Prostituir? De que jeito? Luxemburgo dos trópicos depois de longa-insistente autoanálise havia descoberto que precisaria se vingar de Luxemburgo-ela-mesma-noutra-vida – sim: livrar-se de vez daquele peso antroponímico, daquele estigma reencarnacionista transcendendo ambas: a Rosa dos trópicos, a Rosa polonesa; livrar-se daquela sombra duplicada. Desvario? Não: Rosa de Luxemburgo dos trêfegos trópicos precisava mudar, radical, sua rota abrindo mão de pretéritos-ineficientes-altruísmos-teóricos. Sim, ser hostil aos passos do passado, farejar agora outros caminhos, possivelmente cheios de encruzilhadas, cujas bifurcações espreitam acasos diferentes – diria o reflexivo parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista. Sim, Rosa precisava desaprender teorias, precisava agir – ação audaz, diria a outra-Rosa-ela-mesma-noutra-vida. Luxemburgo dos trópicos sentia que era preciso abolir precauções, ficar à mercê, ao arbítrio da ventura, das improcedências. Rosa-rio pressentindo que iria se desaguar num mar turbulento – mesmo assim afeiçoava-se às incertezas, à inquietante vontade de decifrar o enigma que era ela mesma; obstinando-se em fazer-criar alguma situação para contrariar ambas as Rosas tornando-se uma outra, transgredindo acasos, destinos, invertendo roteiros, cavando novas-próprias veredas – mesmo sabendo que poderia perder o poder sobre si mesma cultivando aturdimentos vindouros, lançando mão da impetuosidade antecipando presságios, infligindo penas para seu novo-futuro-eu – sim: vingança por assim dizer antroponímica. Rosa asfixiando Rosa com os próprios tatibitates: Prostituir? De que jeito? Parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista, reflexivo, possivelmente diria para ela abandonar tudo, ir para as montanhas à semelhança de Zaratustra. Mas Luxemburgo dos trópicos estava próxima, muito próxima de outras ainda mais contundentes rupturas. Rosa insubordinando-se, armando revolta contra ambas as Rosas: ela-mesma-agora, ela-mesma-noutra-vida – metafísica da autovingança. Luxemburgo dos trópicos muitas vezes se entediava, melancolizava-se procurando incansável outra Rosa encafuada escondida nela mesma – preencher lacunas psicológicas, pensou, reflexiva, à semelhança dele parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista. Metamorfose angustiante, quase-inalcançável, aflitiva – sim: era enlouquecedor viver sob aquela atmosfera dubitativa; Rosa 76

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sussurrando nas profundezas de Rosa: Prostituir? De que jeito? Sim, poeta, o doce consolo da vingança; Luxemburgo trêfega não podia, não estava mais incapacitada de se livrar daquela predisposição mórbida: vingar-se de duas Rosas numa só cajadada; encarar agora de frente, não olhar de soslaio a fatalidade – Luxemburgo incitando abismo para Luxemburgo. Estaria querendo transformar seu próprio ser num leito de Procusto? – Perguntaria, reflexivo, parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista. Mas os deuses do destino continuavam inabaláveis, irredutíveis: já haviam traçado roteiro dela Rosa dos trêfegos trópicos; ela já ouvia seus coros báquicos, exuberantes, cheios de regozijos dionisíacos; sim: caminho dela já estava previamente determinado – embora, quando somos nosso próprio algoz, favorecemos ainda mais os projetos das divindades do acaso; sim: Rosa de Luxemburgo dos trópicos estava facilitando perspectivas perturbadoras. Eis o inesperado, a surpreendência acachapante: ativismo dela, Rosa de Luxemburgo dos trêfegos trópicos havia ido longe demais em seus empreendimentos deixando bilhete de despedida debaixo da porta dele, parceiro-às-vezes-estoico-às-vezes-epicurista, cujo texto era incisivo, elíptico e (por que não dizer?) poético: Eu, puta, vou à luta. Quase três anos depois de incertezas, atarantações, notícia alguma, sumiço absoluto, ele, ex-parceiro-às-vezes-trimestral-às-semestral, viu foto dela numa revista. Foto-legenda? ROSALUX: NOVA LÍDER DO MOVIMENTO REINVIDICATÓRIO DE TODAS AS PROSTITUTAS DO PAÍS. Sim: havia deixado tudo-todos para se engajar numa causa substantiva, substanciosa, abandonando seu, por assim dizer, eu-ativista-socialista para lutar pelos direitos profissionais da mais antiga profissão do mundo. Rosa trêfega havia dado adeus às teorias atafulhando sua aljava com setas fidelíssimas ao próprio alvo. Três anos conhecendo-trepando-lutando com homens abrutalhados, muito pouco afeitos à língua-pétala dela: o buraco agora era mais em baixo – se é permitido a esta altura da narrativa lançar mão de inoportuna, espirituosa frase de indiscutível chulismo.

* A parte 2 sairá na próxima edição.

EVANDRO AFFONSO FERREIRA é autor de vários romances, entre os quais Minha mãe se matou sem dizer adeus, prêmio APCA de melhor romance; O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotherdam, Prêmio Jabuti de melhor romance do ano; Os piores dias de minha vida foram todos, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e terceiro lugar no Prêmio Jabuti de Literatura.

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do novo contista

Ondina Rodrigo Novaes de Almeida

“Incrível, por certo os deuses mudaram de opinião acerca de Odisseu enquanto eu, entre etíopes, estava; já próximo está da terra feácia, onde lhe cumpre escapar do grande limite de agonia que o atinge. Mas creio que o perseguirei até se fartar de desgraça”. Isso dito, reuniu nuvens e o mar turvou, as mãos no tridente: atiçou todas as rajadas de todos os ventos e, com nuvens, encobriu terra e mar por igual; e a noite desceu do céu. (Odisseia, Homero)

Joseph Mallord William Turner. Snow Storm: Steam-Boat off a Harbour's Mouth, 1842.

Aquele momento entre o dia e a noite em que nossos olhos preci-

sam se adaptar, lusco-fusco a embaçar nossas retinas, uma estrada esburacada e um pneu do automóvel furado cerca de três quilômetros atrás. Parado no acostamento, descubro que não há estepe no porta-malas. Nenhum ladrão de carros confere o estado do pneu sobressalente ou a validade do extintor. Se abre o porta-malas é para procurar alguma coisa de valor, ou um cadáver, se for precavido — já ouvi histórias de cadáveres encontrados assim. A estrada serpenteia a orla marítima sobre um penhasco. De onde estou, vejo uma aldeia de pescadores uns dois quilômetros à frente. Vejo alguns barcos ancorados em um canto da praia. Abandono o automóvel no acostamento. Algumas estrelas já aparecem no céu azul-marinho. Não há lua. A aldeia parece deserta. Entro na única rua que segue da estrada à praia e ao ancoradouro. Um cachorro de pelos curtos bege claro passa por mim. Vejo um pequeno edifício de quatro andares com um letreiro que diz: Estalagem e Bar. Um aviso pendurado na porta manda entrar sem bater. Entro. Uma mulher está atrás do balcão. Às suas costas, algumas garrafas de destilados em prateleiras de madeira. Cadeiras de ferro pintadas de branco estão fechadas e encostadas em uma parede do salão. As mesas de ferro também pintadas de branco estão abertas e espalhadas pelo lugar. A mulher é gorda, tem uma pinta do tamanho de uma barata grande na bochecha. Ela pergunta o que eu quero. Peço um quarto e ela diz que não tem. Peço então uma dose de conhaque, apesar do calor. Faz muito calor, estou ensopado. Ainda assim bebo a dose de conhaque. Pergunto se há outro lugar onde 79

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eu possa pernoitar. Ela responde que não, não há outro lugar. Peço uma cerveja. Tenho sede. É uma sede filha da puta. Um velho me diz que existe um casebre subindo o rochedo perto do ancoradouro. Eu me pergunto de onde surgiu aquele velho. Ele estava aquele tempo todo sentado em um canto do salão, perto das cadeiras de ferro pintadas de branco. Eu me aproximo dele. Seus olhos inteiros são da cor das cadeiras, e desbotados como elas. É um velho cego. Pergunto como faço para chegar lá e quem vive nele. A mulher gorda grita do balcão que o casebre está abandonado, quem morava lá era Dona Alcíone, e Dona Alcíone morreu. Cento e cinco anos, morreu há duas semanas. Ela diz aos berros. O velho se oferece como guia. Aceito. Termino a cerveja, pago as bebidas e sigo o cego. No caminho não vejo mais ninguém, só o mesmo cachorro de antes passa por nós. Dona Alcíone não morreu. Diz o velho. Dona Alcíone voltou para as plêiades. O velho cego me deixa diante de uma escadaria íngreme entalhada no rochedo. O casebre está lá em cima. Ele diz e aponta para o alto. Ofereço umas moedas e ele não aceita. Então subo. A porta do casebre não está de todo fechada. Eu a empurro e espero que meus olhos se acostumem com a escuridão. Lembro-me de ter visto uma lanterna no porta-malas quando procurei o estepe. A lanterna ficou no porta-malas. Entro no casebre. Há uma cama, um fogão enferrujado de quatro bocas e um bujão de gás no chão ao lado, uma pia, uma mesa de madeira encostada na única parede que é de pedra, a do fundo, as demais são de barro, pedregulhos e cipó, e duas cadeiras, também de madeira. Há uma janela, além da porta. É de onde entra a tênue luminosidade da noite sem lua. Não há luz elétrica, candeeiro ou velas dentro do casebre. Pela janela vejo do lado da casa um chuveiro e um quartinho de madeira, imagino que tenha uma privada dentro. Também vejo o ancoradouro lá embaixo, os barcos agitados, a aldeia aparentemente deserta. Ouço um trovão e olho para o céu. Uma nuvem negra desce a montanha. Cheguei na hora, penso. Durmo e amanhã arrumo um jeito de sair daqui. Tiro os sapatos e fico com a roupa. O colchão não tem lençol e quase decido deitar no chão de pedra. Guardo meu revólver dentro de um dos sapatos e a carteira e o molho de chaves dentro do outro. Mal me deito e ouço um estrondo. Desta vez não me parece um trovão. Ouço outra vez. Corro para fora e olho para baixo. Vejo o ancoradouro, os barcos agitados e a aldeia aparentemente deserta. Vejo ainda algumas estrelas no céu. Penso nas plêiades. Lembro-me do velho cego que me guiou até aqui. Vejo a nuvem negra descer a montanha do outro lado da estrada. Entro novamente no casebre e espero que meus olhos se acostumem com a escuridão. Ela está sentada na cama. Ela se chama Soraia. Ela diz ter dezenove anos. Eu não quero confusão e a mando embora. Ela usa uma camisola semitransparente. Eu não quero confusão e a mando embora pela segunda vez. Ela se levanta e vem até mim. Eu não quero confusão e a mando embora pela terceira vez. Ela me beija na boca, depois sai correndo. Eu 80

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do novo contista

vou atrás. Ela desce a escadaria. Eu desço atrás. Ela ri alto. Eu grito que espere. Ela corre. Eu corro atrás. Ela pisa na areia branca e para. Eu a alcanço. Estamos descalços. Ela canta, ri, dança. Eu olho para ela. Ela corre novamente na direção de um barco pequeno encalhado perto da arrebentação e me chama. Soraia canta. O velho cego me diz que são sete irmãs. Eu me pergunto de onde surgiu aquele velho cego outra vez. Ele estava aquele tempo todo sentado em um canto da praia. Ele me diz para ter cuidado, uma tempestade se aproxima. Eu o deixo e vou atrás de Soraia. Soraia já está dentro do barco e me pede que o empurre para as ondas. O mar se encrespa. Ela ri alto. Eu empurro o barco. Soraia canta. Eu empurro mais e me jogo dentro do barco. Vamos, rema. Diz ela. Pego o remo no fundo do barco. Quando vejo, estamos longe da praia. A aldeia, o ancoradouro, o rochedo, a montanha, tudo longe, muito longe, menos a tempestade. A nuvem negra está agora sobre nós. Soraia agarra meu pescoço e me beija. Eu beijo Soraia e seguro sua cintura. Soraia aperta meu pescoço. Estamos sob temporal e não reparo que o barco enche de água. Soraia aperta meu pescoço mais forte. Eu não consigo respirar. Eu luto contra ela. O rosto de Soraia é o rosto de mil mulheres. A pele de Soraia são escamas. Soraia tem trinta e dois mil anos. Ela tenta me estrangular. O barco quase vira. Não sei se sou eu, se as ondas, se o temporal, Soraia é arremessada para fora do barco e some entre as ondas. Eu pego o remo e o mergulho violentamente, como se procurasse atingir no mar a cabeça daquele demônio. Eu remo o barco de volta para a praia que não vejo sob a tempestade. Entro na enseada e prendo a pequena embarcação perto dos barcos de pesca. Olho para a praia à minha esquerda e vejo Soraia cantando e rindo e dançando. Vejo um homem se aproximar dela. Eu sou o homem que se aproxima. O revólver! Corro até o rochedo e subo a escadaria. Entro no casebre e pego minha arma dentro do sapato. Volto para fora. Soraia está dentro do barco. Desço a escadaria correndo. Na metade do caminho, vejo o homem empurrar o barco na direção das ondas. Atiro. Um, dois tiros. O homem entra no barco. Alguém lá em cima dentro do casebre escuta um estrondo. Escuta uma vez, escuta duas vezes e sai para ver o que é. Vê o ancoradouro, os barcos agitados e a aldeia aparentemente deserta. Vê ainda algumas estrelas no céu e pensa nas plêiades. Lembra-se do velho cego que o guiou até lá. Vê a nuvem negra descer a montanha do outro lado da estrada. Então entra novamente no casebre e espera que seus olhos se acostumem com a escuridão.

RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA é jornalista, um carioca que vive e ama viver na cidade de São Paulo, e tem 40 anos. Tem publicados a ficção A saga de Lucifere (The Trinity Sessions — Cowboy Junkies, Ed. Mojo Books, 2009) e os livros Rapsódias — Primeiras histórias breves (contos, Ed. Multifoco, 2009), A construção da paisagem (crônicas, Ed. Sapere, 2012) e Carnebruta (contos, Ed. Oito e Meio e Ed. Apicuri, 2012). Site: http://www.rodrigonovaesdealmeida.com/

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lançamentos

Eventos das editoras SESI-SP e SENAI-SP

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3 1 1 Entrega do Troféu Jabuti 2016. Auditório do Ibirapuera – São Paulo – SP; 2 Martinho da Vila na Bienal do Livro de São Paulo. Anhembi – São Paulo – SP; 3 Lali (da série “Que monstro te mordeu?”) na Bienal do Livro de São Paulo. Anhembi – SP; 4 Jorge Miguel Marinho no lançamento do livro A grandeza das coisas miúdas. Livraria da Vila – São Paulo – SP; 5 Malas Portam no lançamento do Kit Malas Portam. Livraria Cultura – São Paulo – SP; 6 Suzana Ventura, Sílvia

Oberg, Helena Gomes e Giulia Moon no lançamento dos livros O caderno da avó Clara, O presente de Manzandaba e Histórias felinas. Livraria da Vila – São Paulo – SP; 7 Festa do Livro da USP. Cidade Universitária – São Paulo – SP; 8 Lançamento do livro Monstros do cinema na Feira do Livro de Porto Alegre . Porto Alegre – RS; 9 Lançamento do livro Um lugar chamado aqui. Livraria Cultura – São Paulo – SP.

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unidades do sesi-sp

Americana

cat dr. estevam faraone Avenida Bandeirantes, 1000 Chácara Machadinho cep 13478-700 Americana – sp Tel: (19) 3471-9000 www.sesisp.org.br/americana

Araçatuba

cat francisco da silva villela Rua Dr. Álvaro Afonso do Nascimento, 300 J. Presidente cep 16072-530 Araçatuba – sp Tel: (18) 3519-4200 www.sesisp.org.br/aracatuba

Araraquara

cat wilton lupo Avenida Octaviano de Arruda Campos, 686 Jd. Floridiana cep 14810-901 Araraquara – sp Tel: (16) 3337-3100 www.sesisp.org.br/araraquara

Araras

cat laerte michielin Avenida Melvin Jones, 2.600 B. Heitor Villa-Lobos cep 13607-055 Araras – sp Tel: (19) 3542-0393 www.sesisp.org.br/araras

Bauru

cat raphael noschese Rua Rubens Arruda, 8-50 Altos da Cidade cep 17014-300 Bauru – sp Tel: (14) 3234-7171 www.sesisp.org.br/bauru

Birigui

cat min. dilson funaro Avenida José Agostinho Rossi, 620 – Jardim pinheiros cep 16203-059 Birigui – sp Tel: (18) 3642-9786 www.sesisp.org.br/birigui

Botucatu

cat salvador firace Rua Celso Cariola, 60 Eng. Francisco cep 18605-265 – Botucatu – sp Tel: (14) 3811-4450 www.sesisp.org.br/botucatu

Campinas I

cat professora maria braz Avenida das Amoreiras, 450 cep 13036-225 Campinas I – sp Tel: (19) 3772-4100 www.sesisp.org.br/amoreiras

Campinas II

cat joaquim gabriel penteado Avenida Ary Rodriguez, 200 B. Bacuri – cep 13052-550 Campinas II – sp Tel: (19) 3225-7584 www.sesisp.org.br/campinas2

Cotia

olavo egydio setúbal Rua Mesopotâmia, 300 Moinho Velho cep 06712-100 – Cotia – sp Tel: (11) 4612-3323 www.sesisp.org.br/cotia

Cruzeiro

cat octávio mendes filho Rua Durvalino de Castro, 501 Vila Ana Rosa Novaes cep 12705-210 – Cruzeiro – sp Tel: (12) 3141-1559 www.sesisp.org.br/cruzeiro

Cubatão

cat décio de paula leite novaes Avenida Com. Francisco Bernardo, 261 – Jd. Casqueiro cep 11533-090 – Cubatão – sp Tel: (13) 3363-2662 www.sesisp.org.br/cubatao

Diadema

cat josé roberto magalhães teixeira Avenida Paranapanema, 1500 Taboão – cep 09930-450 Diadema – sp

Tel: (11) 4092-7900 www.sesisp.org.br/diadema

Franca

cat osvaldo pastore Avenida Santa Cruz, 2870 Jd. Centenário cep 14403-600 – Franca – sp Tel: (16) 3712-1600 www.sesisp.org.br/franca

Guarulhos

cat morvan dias de figueiredo Rua Benedito Caetano da Cruz, 566 – Jardim Adriana cep 07135-151 – Guarulhos – sp Tel: (11) 2404-3133 www.sesisp.org.br/guarulhos

Indaiatuba

cat antonio ermírio de moraes Avenida Francisco de Paula Leite, 2701 – Jd. Califórnia cep 13346-000 Indaiatuba – sp Tel: (19) 3875-9000 www.sesisp.org.br/indaiatuba

Itapetininga

cat - benedito marques da silva Avenida Padre Antonio Brunetti, 1.360 – Vl. Rio Branco cep 18208-080 Itapetininga – sp Tel: (15) 3275-7920 www.sesisp.org.br/itapetininga

Itu

cat carlos eduardo moreira ferreira Rua José Bruni, 201 Bairro São Luiz cep 13304-080 – Itu – sp Tel: (11) 4025-7300 www.sesisp.org.br/itu

Jacareí

cat karam simão racy Rua Antonio Ferreira Rizzini, 600 – Jd. Elza Maria cep 12322-120 – Jacareí – sp Tel: (12) 3954-1008 www.sesisp.org.br/jacarei

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Jaú

cat ruy martins altenfelder silva Avenida João Lourenço Pires de Campos, 600 Jd. Pedro Ometto cep 17212-591 – Jaú – sp Tel: (14) 3621-1042 www.sesisp.org.br/jau

Jundiaí

cat élcio guerrazzi Avenida Antonio Segre, 695 Jardim Brasil cep 13201-843 – Jundiaí – sp Tel: (11) 4521-7122 www.sesisp.org.br/jundiai

Limeira

cat mario pugliese Avenida Mj. José Levy Sobrinho, 2415 – Alto da Boa Vista cep 13486-190 – Limeira – sp Tel: (19) 3451-5710 www.sesisp.org.br/limeira

Marília

cat lázaro ramos novaes Avenida João Ramalho, 1306 Jd. Conquista cep 17520-240 – Marília – sp Tel: (14) 3417-4500 www.sesisp.org.br/marilia

Matão

cat professor azor silveira leite Rua Marlene David dos Santos, 940 – Jardim Paraíso III cep 15991-360 – Matão – sp Tel: (16) 3382-6900 www.sesisp.org.br/matao

Mauá

cat min. raphael de almeida magalhães Avenida Presidente Castelo Branco, 237 – Jardim Zaíra cep 09320-590 – Mauá – sp Tel: (11) 4542-8950

Mogi das Cruzes – sp Tel: (11) 4727-1777

Pres. Prudente – sp Tel: (18) 3222-7344

www.sesisp.org.br/mogidascruzes

www.sesisp.org.br/ presidenteprudente

Mogi Guaçu

cat min. roberto della manna Rua Eduardo Figueiredo, 300 Parque Residencial Zaniboni III cep 13848-090 Mogi Guaçu – sp Tel: (19) 3861-3232 www.sesisp.org.br/mogiguacu

Osasco

cat luis eulalio de bueno vidigal filho Avenida Getúlio Vargas, 401 cep 06233-020 – Osasco – sp Tel: (11) 3602-6200 www.sesisp.org.br/osasco

Ourinhos

cat manoel da costa santos Rua Professora Maria José Ferreira, 100 Bairro das Crianças cep 19910-075 – Ourinhos – sp Tel: (14) 3302-3500 www.sesisp.org.br/ourinhos

Piracicaba

cat mario mantoni Avenida Luiz Ralph Benatti, 600 V. Industrial cep 13412-248 Piracicaba – sp Tel: (19) 3403-5900 www.sesisp.org.br/piracicaba

Presidente Epitácio

cil - carlos cardoso de almeida amorim Avenida Domingos Ferreira de Medeiros, 2.113 – Vila Recreio cep 19470-000 Pres. Epitácio – sp Tel: (18) 3281-2803

www.sesisp.org.br/maua

www.sesisp.org.br/ presidenteepitacio

Mogi das Cruzes

Presidente Prudente

cat nadir dias de figueiredo Rua Valmet, 171 – Braz Cubas cep 08740-640

cat belmiro jesus Avenida Ibraim Nobre, 585 Pq. Furquim cep 19030-260

Ribeirão Preto

cat josé villela de andrade junior Rua Dr. Luís do Amaral Mousinho, 3465 Castelo Branco cep 14090-280 Ribeirão Preto – sp Tel: (16) 3603-7300 www.sesisp.org.br/ribeiraopreto

Rio Claro

cat josé felício castellano Avenida M-29, 441 Jd. Floridiana cep 13505-190 – Rio Claro – sp Tel: (19) 3522-5650 www.sesisp.org.br/rioclaro

Santa Bárbara D'oeste

cat américo emílio romi Avenida Mário Dedini, 216 V. Ozéias cep 13453-050 S. B. D’oeste – sp Tel: (19) 3455-2088 www.sesisp.org.br/santabarbara

Santana de Parnaíba

cat josé carlos andrade nadalini Avenida Conselheiro Ramalho, 264 – Cidade São Pedro cep 06535-175 Santana de Parnaíba – sp Tel: (11) 4156-9830 www.sesisp.org.br/parnaiba

Santo André

cat theobaldo de nigris Pça. Dr. Armando de Arruda Pereira, 100 – Sta. Terezinha cep 09210-550 Santo André – sp Tel: (11) 4996-8600 www.sesisp.org.br/santoandre

Santos

cat paulo de castro correia Avenida Nossa Senhora de Fátima, 366 – Jd. Santa Maria 85

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unidades do sesi-sp

cep 11085-202 – Santos – sp Tel: (13) 3209-8210 www.sesisp.org.br/santos

São Bernardo do Campo cat albano franco Rua Suécia, 900 – Assunção cep 09861-610 S. B. do Campo – sp Tel: (11) 4109-6788 www.sesisp.org.br/sbcampo

São Caetano do Sul

cat pres. eurico gaspar dutra Rua Santo André, 810 Boa Vista cep 09572-140 S. C. do Sul – sp Tel: (11) 4233-8000 www.sesisp.org.br/saocaetano

São Carlos

cat ernesto pereira lopes filho Rua Cel. José Augusto de Oliveira Salles, 1325 – V. Izabel cep 13570-900 São Carlos – sp Tel: (16) 3368-7133 www.sesisp.org.br/saocarlos

São José do Rio Preto

cat jorge duprat figueiredo Avenida Duque de Caxias, 4656 V. Elvira cep 15061-010 São José do Rio Preto – sp Tel: (17) 3224-6611 www.sesisp.org.br/sjriopreto

São José dos Campos

cat ozires silva Avenida Cidade Jardim, 4389 Bosque dos Eucaliptos cep 12232-000 São José dos Campos – sp Tel: (12) 3936-2611 www.sesisp.org.br/sjcampos

São Paulo – Ae Carvalho

Sorocaba

www.sesisp.org.br/carvalho

www.sesisp.org.br/sorocaba

São Paulo – Catumbi

Sumaré

cat mario amato Rua Deodato Saraiva da Silva, 110 – Pq. das Paineiras cep 03694-090 São Paulo – sp Tel: (11) 2026-6000

cat antonio devisate Rua Catumbi, 318 – Belenzinho cep 03021000 – São Paulo – sp Tel: (11) 2291-1444 www.sesisp.org.br/catumbi

São Paulo – Ipiranga

cat roberto simonsen Rua Bom Pastor, 654 – Ipiranga cep 04203-000 São Paulo – sp Tel: (11) 2065-0150 www.sesisp.org.br/ipiranga

São Paulo – Vila das Mercês

cat sen josé ermírio de moraes Rua Duque de Caxias, 494 Mangal cep 18040-425 – Sorocaba – sp Tel: (15) 3388-0444

cat fuad assef maluf Avenida Amazonas, 99 Jardim Nova Veneza cep 13177-060 – Sumaré – sp Tel: (19) 3838-9710 www.sesisp.org.br

Suzano

cat max feffer Avenida Senador Roberto Simonsen, 550 Jardim Imperador cep 08673-270 – Suzano – sp Tel: (11) 4741-1661 www.sesisp.org.br/suzano

cat professor carlos pasquale Rua Júlio Felipe Guedes, 138 cep 04174-040 São Paulo – sp Tel: (11) 2946-8172

Tatuí

www.sesisp.org.br/merces

www.sesisp.org.br/tatui

São Paulo – Vila Leopoldina

Taubaté

cat gastão vidigal Rua Carlos Weber, 835 Vila lLeopoldina cep 05303-902 São Paulo – sp Tel: (11) 3832-1066 www.sesisp.org.br/leopoldina

Sertãozinho

cat nelson abbud joão Rua José Rodrigues Godinho, 100 – Conj. Hab. Maurílio Biagi cep 14177-320 Sertãozinho – sp Tel: (16) 3945-4173

cat wilson sampaio Avenida São Carlos, 900 B. Dr. Laurindo cep 18271-380 – Tatuí – sp Tel: (015) 3205-7910

cat luiz dumont villares Rua Voluntário Benedito Sérgio, 710 – B. Estiva cep 12050-470 – Taubaté – sp Tel: (12) 3633-4699 www.sesisp.org.br/taubate

Votorantim

cat josé ermírio de moraes filho Rua Cláudio Pinto Nascimento, 140 – Jd. Morumbi cep 18110-380 Votorantim – sp Tel: (15) 3353-9200 www.sesisp.org.br/votorantim

www.sesisp.org.br/sertaozinho

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Ilustração do livro Verões felizes 1. Rumo ao sul!, lançamento da SESI-SP Editora.


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