
Expediente: Amanda Vital

Andreas Chamorro
Diego Alves
Eduardo Lacerda
Pricila Gunutzman
Ricardo Escudeiro
Sheila Gomes
Capa, projeto gráfico, ilustrações e diagramação: Alessandro Romio
POESIA, TRANSGRESSÃO EOCUPAÇÃO
Ésimbólico que, próximos do fim de 2022, no Brasil desse momento, tão esfacelado pelo projeto de destruição – incluindo uma criminosa gestão da pandemia – camuflado de governo que operou nos últimos anos e do qual ainda padeceremos e sofreremos resquícios por um tempo, mas que, felizmente, foi derrotado nas urnas, lancemos dois números novos do jornal “O Casulo”, já pela história do jornal em si, já pela semântica do nome. E o termo “simbólico” aparece aqui não gratuitamente, a nossa emancipação enquanto humanidade passa mesmo pela retomada dos sistemas de simbolização das diversas formas de cooptação que tais sistemas sofrem, especialmente em tempos, como estes últimos e atuais, tenebrosos e de retrocessos. Para muitos de nós, por vezes, para atravessar estes tempos, casulos são necessários. Cada leitura, ou releitura, que nós fazemos de um poema torna-o, de cada vez, um outro e novo poema. Coloca e tira do casulo, que protege, mas também transforma, um sujeito (lírico) outro. Faz com que esses sujeitos continuem-se. Também nesses tempos, em que visões de mundo caducadas, conservadoras, querem retomar e impor determinismos, querem pautar o retrocesso, querem a destruição de direitos por vezes já precários e a duras penas conquistados, transgredir e ocupar é necessário. “Sair do casulo” é gesto imagético, mas não só, dos bons para dar conta desse momento, que é de transgredir, ocupar de volta ou pela primeira vez os lugares que nos sãos caros para o exercício pleno das nossas humanidades. “Transgredir” e “Ocupar”, como atos contínuos, que é para não acomodar jamais. Nós, operários das ferramentas da simbolização, não podemos nos dar ao luxo de deixar cessar a inquietação, o estranhamento, no Outro e em nós mesmos. E cada uma das diversificadas e plurais engenharias poéticas presentes nesses dois números, e na história do Casulo, dão conta desse gesto.


da
9 P O E M A S 10
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Nascida em Minas Gerais, a literatura apareceu cedo na vida da escritora Cidinha da Silva. Ela era adolescente quando começou a rascunhar os primeiros textos. Mas foi apenas na fase adulta que publicou o primeiro livro: “Cada Tridente em Seu Lugar”, pela Mazza Edições.

De lá pra cá, já são 20 volumes publicados nos mais diversos gêneros: crônicas, contos, romance, dramaturgias e obras infanto-juvenis. Editora e fundadora da Kuanza Produções, por onde também divulga e comercializa suas obras, Cidinha também já realizou dezenas de palestras e oficinas promovendo a literatura contemporânea negra e compartilhando sua vivência no mercado editorial independente.
Escreveu peças encenadas por companhias como Capulanas Cia de Arte Negra e Os Crespos, dramaturgias que podem ser encontradas no livro O teatro negro de Cidinha da Silva. Já teve textos estampados em importantes vestibulares nacionais, como o da Unicamp (Universidade de Campinas) e USP (Universidade de São Paulo).
Neste papo sincero e cheio de reflexões sobre o fazer literário, Cidinha conta sem romantização como foi o processo de focar na literatura e quais desafios encontrou pelo caminho. Foi no segundo livro, o “Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!” (Mazza Edições), que ela entendeu que queria “criar histórias, inventar linguagem, trazer poesia para a prosa”.
As tentativas nem sempre foram bem sucedidas nesses primeiros momentos. Mas, em 2009, ela tem a grande virada de chave e entende como seguir sua trajetória profissional na escrita, a partir do terceiro livro publicado, “Os nove pentes d’África” (Mazza Edições), que a desafiou como os demais não haviam ainda desafiado.
“No primeiro livro, eu me achava uma “artivista”, como disse, então me bastava um texto razoavelmente bem escrito, me importavam muito o tema e a robustez dos argumentos. No segundo livro eu quis fazer algo diferente do primeiro, mas tinha mais arrogância do que técnica para escrever. No terceiro livro eu entendi o quanto de dedicação, de leitura crítica e de reescrita um texto literário exigia. Gostei do resultado do trabalho e a partir dali tive certeza de ser escritora”, conta.
Para a autora, a trajetória profissional na escrita exige foco e o desenvolvimento de três pilares fundamentais, que ela descreve como “plano de voo, projeto literário e plano de carreira”.
Para quem está se desenvolvendo enquanto escritora ou escritor, as dicas de Cidinha são valiosas e funcionam como um acender de luzes em meio a um túnel desconhecido. Sua trajetória pessoal inspira a seguir a caminhada pela escrita com os pés no chão. Leia a seguir a entrevista completa!
Jéssica Moreira: Quando foi que você começou a escrever? Quais eram os assuntos que escrevia?
Cidinha da Silva: Escrevo desde a adolescência, mas comecei a publicar algo que flertava com a literatura em 2006, um livro chamado “Cada tridente em seu lugar” (Mazza Edições). Era um livro de crônicas que tinha preocupações temáticas fortes, marcadas pelo período em que eu me entendia como “artivista”, alguém que colocava a arte a serviço da política. Escrevia muito sobre relações raciais e de gênero, esse era o foco central. Tinha um lado mais experimental (e mais interessante) no livro, composto por textos que passeavam pelas africanidades e queriam trazer tradições para o diálogo com a contemporaneidade.
Jéssica Moreira: Quando você se deu conta que gostaria de focar na literatura? Como foi essa virada de chave para a literatura? Quais foram os principais desafios do começo?
Cidinha da Silva: Foi no segundo livro, o “Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!” (Mazza Edições). Ali eu entendi que queria criar histórias, inventar linguagem, trazer poesia para a prosa. Não foi uma tentativa bem sucedida, exatamente. Escrevi um livro pretensioso e fraco. O que tentei fazer ali (2008) só consegui dez anos depois no livro “O homem azul do deserto” (Malê). Na real, eu não tinha ferramentas, precisei daquela década para conquistá-las e para aprender a usá-las.
A virada de chave foi no terceiro livro, de 2009, chamado “Os nove pentes d’África” (Mazza Edições), uma novela. Este livro me desafiou como os anteriores não fizeram, no campo da linguagem. No primeiro livro, eu me achava uma “artivista”, como disse, então me bastava um texto razoavelmente bem escrito, me importavam muito o tema e a robustez dos argumentos. No segundo livro eu quis fazer algo diferente do primeiro, mas tinha mais arrogância do que técnica para escrever. No terceiro livro eu entendi o quanto de dedicação, de leitura crítica e de reescrita um texto literário exigia. Gostei do resultado do trabalho e a partir dali tive certeza de ser escritora.
Jéssica Moreira: Para além de escritora, você também é editora, também realiza oficinas e várias rodas de conversa para divulgar sua obra, entre outras funções. Quais são os desafios que a pessoa que quer ser escritora encontra no Brasil de hoje?
Cidinha da Silva: Como resultado dessas atividades diversas que desenvolvo no ecossistema literário, umas por gosto, outras pelo imperativo da sobrevivência, creio que a pessoa que queira ser escritora profissional precisa desenvolver três coisas: Plano de voo, Projeto literário e Plano de carreira, no meu caso, nesta ordem. Esses, na verdade, são os eixos do curso “Vozes independentes no mercado editorial” que desenvolvi durante a quarentena e vou retomar em 2023. Aviso aos navegantes que esse título foi criado por mim, mas me surpreendi outro dia ao ver que ele se tornou nome de seção numa publicação importante, sem referência à minha formulação.
Creio que boa parte das pessoas está muito perdida e nem mesmo quer escrever, mas quer o que julga ser o glamour do mundo da escrita. O Plano de voo, então, é algo para baixar a bola, para se confrontar com a realidade e para fazer apostas mais razoáveis e factíveis. Por exemplo, se você quer publicar um livro, pergunte-se para que e por que fazê-lo. Seria para cumprir o vaticínio de ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro antes de morrer? Seria para bombar as vendas em livrarias? Seria para vender numa loja virtual que ninguém conhece? Você não quer vender, quer dar os livros para familiares, amigos e bibliotecas e depois disso quer ver sua cara nas resenhas literárias, cadernos de cultura dos jornalões? Seria para ser destaque nas feiras e festas literárias? Para dar close nas redes sociais? Seria porque você é genial e o mundo merece (humildemente) ter contato com a sua genialidade? São perguntas incômodas que precisam de respostas sinceras para a pessoa ter noção do que quer com um livro, do que almeja ao proclamar-se escritora. O Plano de voo funciona como um redutor de danos, na pior das hipóteses, uma forma de a pessoa que aspira escrever e publicar ter mais contato com a realidade do sistema editorial e livreiro.
O Projeto literário é ter uma ideia mínima da literatura que se quer produzir. Por exemplo, desde que comecei a escrever e publicar, estava nítido para mim que eu queria me diferenciar e me desgarrar de um modelo de literatura negra vindo dos anos 1980. Eram outras as coisas que eu queria escrever e também que queria ler, quando escritas por outras autoras e autores negros. Eu tinha essa consciência, mas o que eu queria mesmo fazer fui entendendo de maneira processual. Um livro que me ajudou muito a compreender o que eu queria de um projeto literário foi o “ Niketche: uma história de poligamia”, da moçambicana Paulina Chiziane. Quando li aquele livro pela primeira vez foi um alumbramento, dizia para mim mesma: é esse tipo de literatura que quero fazer. As questões que haviam me encantado no Niketche orbitavam uma linguagem que transcendesse a realidade das coisas baseadas no cotidiano, que tivessem criação, fabulação, que virassem do avesso o previsível, que não tivessem meu eu e minhas querelas como carro-chefe. Isso tudo me tensionou durante a escrita de “ Os nove pentes d’África”, foi um teste de fogo e consegui pular a fogueira sem me chamuscar. Sigo amadurecendo meu Projeto literário e hoje o defino como o líquido amniótico que me nutre, cujos entes formadores são: as tradições (africanas, afro-brasileiras, afro-indígenas, afro-diaspóricas), as africanidades, as orixalidades, as ancestralidades em diálogo e tensão com a contemporaneidade. Essas são as águas que irrigam as compostagens (ideia de Angélica Freitas) que realizo e devolvo ao mundo nos universos que construo.
O Plano de carreira é a materialidade, o que você vai fazer com seu Plano de voo e com seu Projeto literário para assegurar uma existência plena, vitoriosa e satisfatória (se a felicidade for impossível de alcançar) no ecossistema literário e livreiro. Tudo isso é minha cabeça de taurina-filha-de-Xangô em ação. Isso serve para mim, funciona para mim, pode não ser útil para outras pessoas.
Jéssica Moreira: Você diz que sua literatura é composta de “africanidades, orixalidades, ancestralidades e da tensão e diálogo entre tradições (africanas, afro-brasileiras,
dificuldades?
Cidinha da Silva: No preâmbulo da sua pergunta faltou dizer que falo de tensão e diálogo entre tradições E CONTEMPORANEIDADE. Em relação aos avanços da autoria negra fica parecendo que tínhamos uma meta comum a alcançar. Tínhamos? Quem traçou? Quem concordou? Eu me pergunto e te pergunto também. Me parece que a questão da maneira como está posta, está muito ligada à escola de literatura negra dos anos 1980 e a seus objetivos, uma literatura que se constituiu como um braço do Movimento Negro. Se isso for verdade, são as autoras e os autores que pertencem a esse grupo e têm essas metas quem tem autoridade para responder. Eu consigo falar sobre os meus avanços e aprendizados como escritora e aí precisaria falar do meu Plano de voo + Projeto literário + Plano de carreira, mas essa não foi a pergunta.
afrodiaspóricas, afro-indígenas)”. Quais são os avanços que as pessoas de autoria negra tiveram nos últimos tempos?
E quais são as maiores
Em relação às dificuldades enfrentadas pela autoria negra, farei uma listinha rápida, sem me deter em grandes explicações:
O racismo continua moendo toda a gente negra e sobreviver a ele rouba muito tempo da nossa existência, deixa pequenas e insuficientes nesgas para o sonho, os desejos, a realização plena como ser humano.
Constituir-se como escritora ou escritor negro é subverter a lógica que esvazia as pessoas negras dos atributos da intelectualidade, logo, você luta contra o mar da ignorância, da discriminação, dos privilégios brancos, tudo pensado e arquitetado para garantir a branquitude nos lugares de poder e mando. A palavra, escrita ou vocalizada, como sabemos, é um lugar de exercício de poder.
Como estamos fora de lugar e somos subalternizados, não fomos pensados para escrever, principalmente a partir do pensamento autônomo e altivo, e da livre criação artística. Tentam nos encaixotar de diferentes formas e definem um gradiente temático no qual podemos transitar. Isso está dado, é assim desde que o mundo racista é mundo racista e se transforma todos os dias como um monstro em mutação. O problema maior é quando comemos esse reggae e seguimos a cartilha deles.
Entender que a legitimidade do que eu digo ou denuncio não assegura a qualidade estética do que produzo.
Entender que o mercado é lugar de Exu e se somos gente de Exu, o mercado editorial, como todos os outros mercados, é nosso lugar como espaço de trocas e de circulação de saberes, de conhecimentos sobre o manejo da vida. Desse modo, gerenciar as moedas de troca no mercado é reapropriação de uma ciência que nos pertence.
Jéssica Moreira: Em um de seus textos no Medium, você diz que “não se apequena aos lugares de fala que o sistema racista tenta definir a você”. Como podemos ir além da representação quando falamos de autoria negra em nossa sociedade?
Cidinha da Silva: Abordando e estudando as autoras e autores negros e sua respectiva obra, de maneira singular, como costuma se fazer com as outras autorias não-negras. A não ser que a autoria em questão reivindique o pertencimento a um grupo estético e, ou, político, nesse caso, podem ser lidas em bloco, ou também, se os teóricos debruçados sobre os trabalhos enxergarem ali traços comuns que permitam a formação de um conjunto com características similares. Contudo, não é o que ocorre, o mais fácil tem sido mesmo nos enclausurar em caixinhas. Já fiz inúmeras feiras e festas literárias e posso contar as vezes em que alguém me entrevistou tendo estudado meu trabalho, como fazem com os colegas brancos. As perguntas dirigidas a mim, quase sempre são em número inferior àquele dirigido aos colegas brancos. São abordagens genéricas, tratam de um bloco monolítico “escritora negra”, querem que eu fale em nome de um coletivo, seguem a agenda das coisas convencionadas para perguntar a uma escritora negra (estou cansada e nem vou dizer que coisas são essas; já houve outra entrevista em que enumerei as perguntas-clichê que me fazem).
Eu tenho 20 livros publicados, alguns deles premiados (O mar de Manu; Um Exu em Nova York); alguns deles selecionados para políticas públicas de formação de acervo do governo federal (Os nove pentes d’África; Um Exu em Nova York; Oh, margem! Reinventa os rios!); outros distribuídos pelas políticas de formação de acervo de estados e municí-
pios Brasil afora (#Parem de nos matar!; O homem azul do deserto; Sobre-viventes!, Baú de miudezas, sol e chuva); outros estão em grandes clubes de leitura; outros têm significativas vendas no varejo. Isso tudo parece não ser nada, não enseja perguntas específicas. Por quê? Porque meus interlocutores não se dão ao trabalho de ler o que eu escrevo para compreenderem meu percurso criativo-literário, as mudanças do meu pensamento ao longo do tempo. Eles fossilizam a mim e à maioria de nós, escritoras e escritores negros, nos dilemas superficiais da representatividade, à exceção de nomes como Ana Maria Gonçalves, Marilene Felinto, Ana Paula Maia, Nei Lopes, Paulo Lins, Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Roberta Estrela D’Alva, para ficar nos que me lembro agora.
Quem escreve e publica 20 livros que se sustentam nas próprias pernas, que têm trajetórias vitoriosas e algumas delas singulares no mercado editorial brasileiro, mereceria perguntas mais instigantes, caso seu trabalho fosse lido. Mas, isso não acontece e, por essas e outras, estou escrevendo um livro onde discuto essas questões e que sairá pela Patuá (honra e alegria me definem) em 2023, o “Para nós, nunca houve tempo bom, não pode haver tempo ruim” (rumo a meio milhão de livros em circulação). Aguardem, espero merecer a leitura atenta e crítica de vocês.
Quer conhecer mais sobre o trabalho de Cidinha da Silva? Siga-a nas redes sociais: instagram.com/cidinhadasilvaescritora/
Jéssica Moreira é jornalista e escritora. É autora de VÃO: trens, marretas e outras histórias (Editora Patuá, 2021). Participou das coletâneas Chão Vermelho (Editora Urutau, 2021) e Longe de Monte Carlo (Publicação Independente, 2020). Foi aluna da turma de poesia de 2020 do CLIPE, da Casa das Rosas. É uma das autoras do livro Heroínas dessa História: Mulheres em busca de justiça por familiares mortos pela ditadura (Editora Autêntica, 2020), Queixadas: por trás dos 7 anos de greve (Publicação Independente, 2013). Também é uma das organizadoras da FLINO (Festa Literária Noroeste). É cofundadora e uma das diretoras do veículo jornalístico Nós, mulheres da periferia. É mentora e foi repórter da Agência Mural de Jornalismo das Periferias. É coautora do Blog Morte Sem Tabu, da Folha de S.Paulo. É produtora de conteúdo na TV Globo. Conheça mais nas redes sociais: @jessicaapmoreira


“N. ARRANCOU MINHA MÃO DE ESCREVER.”
N. arrancou minha mão de escrever. doeu, foi deslumbrante. gosto quando a literatura me sangra pelos olhos (lágrimas de cristo). quero compor um poema. sou destra.
N. arrancou minha mão de escrever. tento com a esquerda, não dá tempo e o poema foge.
a vontade de escrever é dor de membro fantasma.
ESPELHO
Zainne
Lima da Silva Taboão da Serra-SPDESERTO
nas pontas dos dedos, no rádio, na televisão –os dias de pedras e guerras a vida na tela não diminui o espanto de estar vivo, perdido em rabiscos deserto é imaginar o homem do futuro.
lança essa pedra como um míssil chama de amanhã em cada toque em cada caco faz amortecer a mão ruindo o vidro aquoso como num ecrã tudo o que é vivo e você ama vai se retorcer no dicionário novos contratos pra quem esquecer é impossível que esse tempo tenha imagem sã se essa poça e esse desgosto são nosso desdém tudo o que é vivo e você ama vai se contorcer é um exagero e é impreciso transcrever um fim nenhum reflexo é uma memória nem é inaugural quebra essa parte que é mais plana na água de um rio tudo o que é vivo e você ama pode ser fatal a mão avança sobre essas faces sem saber porquê é que morremos a cada gota na boca de nós como um narciso que afogasse só quem o desfez tudo o que é vivo e você ama vem se contorcer
João
NOVO CASAMENTO CAIPIRA
chuva de soja bênçãos de veneno corpos balançando atrás da caminhonete
Gabriel Felipe Jacomel São Paulo-SP
EXPANSÃO
crisântemo do mistério: pedra lançada ao mar e seus círculos concêntricos, novo amor que nasce desse amor que perece, universo que cresce na coroa das pétalas.
Giselle Vianna São Sebastião-SP
ESSA É A IMAGEM
“AGORA VOCÊ ESTÁ TÃO PEQUENA”
agora você está tão pequena que cabe na palma da mão
ele pode te esmagar Mari Matos São Paulo-SP
a mãe levanta o bambu e desenha uma linha tensa no alto depois olha o território o céu tecido na horizontal e proclama então a independência dessa casa Mariana Godoy Pacaembu-SP
AH, SÃO PAULO
Ah, São Paulo, você não me engana. Me deixa parada no caos quando promete andar mais que a luz. Me imerge no líquido do desgosto, sem o ar imaculado da sobrevivência. Você não me convence. Me diz pra ficar despreocupada com o metal na nuca, Mas ele está à vista dos que menos enxergam.
Ah, São Paulo, você me cansa. Fadiga do afinco de minhas pernas, Meio ao alinhamento com desconhecidas Por um serviço público medíocre. Você me enerva. Agastada fico com tantos problemas estagnados aspirando solução.
Ah, São Paulo, embora perto o desgoste, Só quando distancio meus dias dos seus Percebo o quanto o necessito. Nas terras longínquas do centro-oeste me perco no vazio do viver. Sem água, alimento, sem convívio ou tempo. Sem nada. Quando as indispensabilidades surgem, sua imponência reluz.
Ah, São Paulo. Se fosse Paulo não seria São. Se fosse outro não seria você. Se é você, é o que preciso.
Sandra Braik
Discente do curso de poesia da Fundação das Artes de São Caetano do Sul-SP
COSTELA DE ADÃO
Prove
Com teu nariz enxerido E olhos de achar isso ou aquilo De quem se pensa dono De caules, corpos Prove Da beleza monumental Verde escura Do coração gigante esburacado Que lhe oferece o pecado E descobre a verdade E lhe tira a pureza, pobre coitado! Prove
Do fruto vermelho, melancia-da-praia Semente venenosa, fruta Gogoia Bicho-do-mato Sem perna e sem braço No teu pescoço fraco Peçonhenta y planta bela Jiboia bola, grande Lua Que te carrega, homem Dono do mundo E com gosto, te afunda!
LICENÇA
o rio vai passar chora a cheia ribeira a queixar os maus-tratos em leito sangue fome abandono entalhada há séculos fia a nua costela a deflagrar as carnes ferida das queimas (não) esquecida da gente lambe as cicatrizes as margens de si o vento das tardes enfurecido sussurra rasgar a história e ouvir o silêncio
Márcia Plana Mauá-SPVELEIRO
DINOSSAURO DE PLÁSTICO
do alto da luminária me contempla, vos contempla, meu dinossauro de plástico e para maior pavor da criança que já fui ele brilha no escuro!
dinossauro, dinossauro, meu dinossauro de plástico, lembrete da evolução!
foi carbono, virou ossos, fez-se petróleo, então plástico, e voltou a ser dragão!
Mauro Bartolomeu Batatais-SP
Meu peito se abre E se enche de água Transbordo esse rio Que habita em mim Sob a minha pele Bailam gotas desse mar Água-doce, rio, riacho Tudo o que me preenche Acolhe e renasce Em minha boca Sinto o gosto dos respingos de sal Trazidos pela brisa do vento Que me envolve e o Sol Que alumia meu corpo Une o sentir ao viver E experimentar Essa dança-sonho de água E calor-ternura Sinto a tua presença E ouço meu coração bater Fecho os olhos E estou na imensidão Meus pés não tocam o solo Navego e levanto minha bandeira Sou livre
Isabella Milena São Paulo-SPTRADUÇÃO
Como farei um poema Se o que estou escrevendo É uma larga declaração Do acesso ao Incêndio E por trás de uma fantástica faíscaEstou vendo a luz Sinuosa Que ecoa pela Estrada Há um motor imóvel (Que) TRANS-LUZ O ANO (Mas) hoje é dia Stefani Costa Águas da Prata-SP
BABEL DOS BANDEIRANTES
o céu logo estaria envidraçado se a arquitetura de São Paulo fosse projetada a partir da Av. Paulista e tudo que é mato se resumiria nos jardins verticais da Av. 23 de maio de todo modo ainda existiria gente que procura comida no chão Ricardo Morais de Castilho Ferraz de Vasconcelos-SP
LABAREDAS
contemplo as ranhuras e as rugas irregulares provocadas pela brasa do tempo pela dança das labaredas ardendo sobre a lenha seca pelo atrito cortante das pedras e das perdas causadas por corpos opostos ásperos e abrasivos que desbastam em camadas fios e lascas removendo vestígios definindo vincos reafirmando vínculos regenerando o viço na saliência verde das veias
COMO ESCREVE O POETA
Aprecio o ímpeto vanguardeiro da poesia, capaz de produzir tão bela imagem da frágil lágrima que percorre a íris da leitora apaixonada; aprecio a utopia lírica que os poetas alimentam em suas almas, o teatro de constelações e suas produções, perpetuadas em verbetes que retratam a vida e a morte, o amor e o ódio, a guerra e a paz.
Ivete Nenflidio Santo André-SP
O MUNDO É UM LUGAR LINDO
O mundo é um lugar lindo porque ainda podemos escutar MC Kaio no ônibus porque recarreguei o cartão roxo do metrô porque hoje você me fecha a porta do carro na cara e amanhã me abraça sem pressa
O mundo é um lugar lindo porque Björk gravou Vespertine em 2001 e em 2021 posso ouvir de seus sonhos recorrentes porque estalei cinco vezes os dedos e por cinco segundos perdi o sinal porque amanhã posso morrer e eu nunca nunca quero morrer

O mundo é um lugar lindo porque você usou um macacão abóbora e por mais que eu não saiba o nome de tantas cores pude dizer que era lindo em sua pele aquele macacão laranja porque anteontem preparei um macarrão com tomates e sardinhas sem nunca ter plantado nada além de feijões no algodão molhado porque há três anos meu celular vibrou uma amiga em amarelo me ensinou a preparar curry e eu tinha celular
O mundo é um lugar lindo porque podemos amar a beleza das cidades feias e o feio das cidades belas porque O’Hara me lembra que a cada instante só posso viver em um lugar porque antes mesmo dos imperativos geográficos nossos encontros se deram no acaso
O mundo é um lugar lindo porque é a medida do que é lindo porque não tem sentido algum ou porque tem seu próprio sentido que eu propositadamente ignoro
“DEIXAREI O DIA ESCORRER POR MIM”
deixarei o dia escorrer por mim sou uma paleta de cor gigante sou um brinquedo inflável de criança um palhaço que ri e cospe e chora e goza de noite sossegado eu terei sempre um pé atrás ali onde habita o all star vermelho cintilante sempre um pé atrás, meu amor não se iluda, pois é assim que se sustentam paredes endométrias é assim que se ama no país onde eu nasci com pausa pra ouvir a irmã contar piadas enquanto se lava a louça do almoço com uma dor cultivada em sementes no signo solar da mãe que vê morrer a primeira professora da filha a professora que salvou a filha é assim que se ama no país onde nasci com prantos que inundam as pistas de dança de todos os bailes e com o erguer das taças até o cume das montanhas nevadas pra celebrar os pedaços que perdi no caminho eu perdi todos os pedaços no caminho. eu sou um suspiro breve eu sou um assobio sem som eu sou uma lápide sem corpo amor, mas adivinha só eu sangro eu cuspo em hemorragia todas as cores do arco-íris.

HERMES
E, por fim, a vida é isto: isso.
Nada além do que há e do que pode vir a ser. Nada! Contenta com o chão sob teus pés e com os astros em órbita. O líquido não toma senão a forma da fôrma em que está contido. Exatamente! Derrama a palavra no copo e embriaga do seu sema: semente. Doces ilusões: a redoma é indestrutível!
Tange o que é tangível e guarda o que não é: abstrato, absurdo. De onde a matéria-prima? Que régua e compasso? Um sopro, e a ferida aberta. Ave!
MIRANTE
derretendo a paisagem os olhares miram-se longínquos sob o calor dos silêncios na aurora dos penhascos miram-se das canções e dos invernos os olhares nos extremos da paixão
o céu das bocas silenciosas com cantigas de não de nunca mais alimentam serpentes nos vasos de flores então eles compreendem existir é cenário móvel construção que desaba sobre as coisas havidas Ernani Fraga Praia Grande-SP
ESSAS MALDITAS VEZES
Tem vezes que a loucura domina a minha mente e que o vazio me preenche.
Tem vezes que as palavras não podem me aliviar e eu me perco sem parar, sinto meu coração se acelerar e tenho medo disso nunca acabar.
Tem essas vezes, que eu juro para você, eu não posso suportar, o mundo me espancou tanto que a coisa mais difícil tem sido se levantar.
— A poesia tem sido a minha única âncora.
CASULO
Inventei de fazer sol Dourar esta couraça carcomida Onde, lânguida Enclausuro uma ferida Transversal
Num instante o ocre se esvaiu E a sombra do casulo destruído Estancava coágulos No cerne da carne
Eufórica Inventei de lapidar as infrequências Na intenção de frequentá-las Em silêncio
Nunca mais proferi palavra.
Tainá Chagas São José dos Campos-SP
Bianca Estrela Jacareí-SP
UM OUTRO TORSO
Pois um outro torso há muito me acompanha Cabelos, nuca, algo das costas, indícios Como a promessa de um seio desvela, mas não. Não há entrega do desejo. A face oculta.
Ana Cristina Rossetto Discente do curso de poesia da Fundação das Artes de São Caetano do Sul-SP

“NA FALTA DO TORSO, FICOU O ROSTO OPACO”
Na falta do torso, ficou o rosto opaco Boca que fala sem sentir, moradia da incoerência Gigante buraco, falhas promessas Palavras jogadas ao vento
Na busca de suprimentos, alimentando fartamente os desejos Aproveita do que é sincero É perceptível o que tem e o espaço em branco Visível a falta que faz um coração humano Anna Andrade Discente do curso de poesia da Fundação das Artes de São Caetano do Sul-SP

SINCRONICIDADE
o rio Mogi Guaçu existe mas ninguém vê mais tímido no resto da floresta dos antigos lamaçais
ambiente agradável de pescarias e conversas bagres e cascudos em suas tocas invisíveis o passado consumiu: o vale visto da rodovia a correnteza e os afluentes as salamandras as rãs saltadoras saborosas os lírios nos terrenos ribeirinhos as rosas vermelhas mínimas os pernilongos sempre com fome os sítios vendidos por preço vil as canoas e as armadilhas as pequenas ilhas de pedra escura os pés presos no barro os amigos perdidos para sempre
J.A. Gonçalves Holambra-SPLIÇÃO
Pelos desvios, caminhos periféricos do rio, suas veias finas e pulsantes fundadas por sulcos e pedras, à desaguar em lama, gota a gota; e nesse movimento constante, carregar em si - num revérberotoda a lírica de uma flor de lótus.
Lucas Luiz Guararema-SPVIVA ÁGUA
Viva água. Viva! Água não dá mais na mata. Mercúrio liberou o veneno da serpente. Homem branco mata A nascente. Mata verde, mata água pura. Homem branco vive sob o chumbo da fortuna. Morreram bumba meu boi e a passarada. Passaram o boi e a boiada. Ninguém fez nada. Ficou o pó vermelho na estrada.
Sofro com minha cara negra, indígena vermelha, preta, pintada.
Eu sou Tapuia, Guarani, Tupinambá, Sou negro quilombola Quero água para bebê. Quero água para Moriá. Branco mata a mata, Mata ê-ê.
Sateré Mawé não tem mais ê-idi para pescar. Não tem mais o que beber. Não tem mais ê-idi pra se banhar. Homem branco não sabe: Não vai mais chover. Aan Iamana iraanê. Destruíram nossa enhetá. Nossa gente não tem mais onde morar. Que será da nossa vida? Tupana, que tristeza dolorida, Que vontade de chorar.
NAUFRAGAR NO
NEOLIBERALISMOo pirata toca sax no farol dói-lhe o dente do siso podre exalação na borrasca naufragar, no entanto, não é preciso e algumas coisas se perderam no caminho o pirata interposto sem caravela, sem brio com a cara maquilada nas janelas de ar bravio que algumas coisas se perderam casa, lona e alguns dentes o pirata pede socorro no farol quer deixar os motoristas contentes recolhe despojos das ruas risinhos d’escárnio quase lhe cortam a ponta do dedo esmagada pelo vidro elétrico, pede, um pirata esquálido Carolina Rieger Osasco-SP

A SOMBRA DA NAVALHA
Soluço seco em dia cinza As horas derretem no relógio da praça Passos ligeiros, buzina e fumaça A vida sorrateiramente passa
E o que restou de nós, entre os faróis? Arder de fome e malabares Isca e anzol em secos mares De água só a lágrima esparsa
A criança brinca com as latas E a mãe lamenta conhecer o tempo Saber do custo dos sonhos em movimento E a invisível solidão que mata

O último erro O primeiro fim No véu da noite Sobre a sombra da navalha
Dam Nascimento Itupeva-SP
FUTUROLOGIA
sou eu que sonho meus sonhos ou é o capitalismo sonhando por mim?
e depois que a máquina zerar o mundo e não estivermos mais aqui
que barata sonhará os sonhos que não tive quando o capitalismo deixar de existir? Caio Carmacho Piracicaba-SP
CORPO-LINGUAGEM
Ao mundo abstrato renuncio para concretizar-me em palavras.
A todos os deuses renego para cultuar-me entre linhas.
Costurei-me poesia – sou inteira cicatriz.
Eu só existo por escrito. Sobrevivo à flor do lápis. Bruna Baldez São Paulo-SP
AMORPHOPHALLUS TITANUM
Com a testa franzida enruguei-lhe uma vida
Um corpo rígido Um sorriso de frígido Uma têmpora atônita Uma técnica mnemônica e uma doença que é crônica:
Borboletas supersônicas devorando o intestino Hauanni Leite Araraquara-SP
MULHER-MARAVILHA
Deixa que eu levo Deixa que eu lavo Deixa que eu passo Deixa que eu pego
Só eu é que sei Só eu é que salvo Só há uma lei Sou eu o seu alvo
Ao final do dia Salvei todo o mundo Mulher-maravilha Derrotada, no fundo. Adassa Buschini Piracicaba-SP
OS MEIOS
Antes que por certeza da estagnação eles desliguem os aparelhos, penso que um só dia seria suficiente
Um só dia para zerar minha lista de tão antigos e inúteis desejos Repito cada um deles em minha cabeça sucessivamente
Enquanto isso a moça de branco verifica, no ambiente bem esterilizado, a disponibilidade de oxigênio como se eu já não estivesse ali
Como se eu jamais houvesse estado
Um dia para encerrar-me n’um quarto do Ritz com Ana Cristina
Um dia para tipografar cometas nos cotovelos da infância
Um dia para existir no sonho de um monge budista que dorme junto à pedra
Um dia para lamber a virilha amarga de Valéry
Um dia para regar com óleo de amêndoas o âmago enferrujado do teu silêncio
Um dia para meter o braço direito nas engrenagens da máquina do poema
Um dia para não esquecer-me dos fins
São José do Rio Preto-SP
DAS AMBIGUIDADES E DOS PANOS
Deus é um pano preto que me cobre Em fantasiadas manhãs de dona nobre Em mil e uma noites de maga ou santa.
Em um momento me encolhe Em reviravoltas, me agiganta. Um dia me é mortalha no outro, manta.
Ercilene Vita São Paulo-SP

“SEI TEU NOME E NÃO TE CHAMO”
Não posso competir com o extraviado desejo que se ocupa de despejar as âncoras na água — o espaço inevitável entre o casco e o porto sou eu. E as fendas que se alastram em nossas vidas se assemelham, sem o bordado dos lábios, com pequenas bocas espalhadas entre os objetos (livros, línguas, louças). Tem cais habitando a casa. Tem partidas não predestinadas. Tem chegadas que se anunciam pela precipitação de uma vespa cozinha adentro. E tem chegadas que se esticam até tornarem-se “dizer adeus quando chega”. Esta tarde, composta por bocejos, aconselha as pálpebras contra o dia, enquanto os objetos promovem, insistentes, mais uma vez, um levante. E passam a ocupar os lugares mais improváveis. Para dizer o menos. Sãos, os objetos pousam pela casa sem escrúpulo nenhum. Recorro à mão que insinua uma saudação — e que faz tudo perecer — para, inútil, tapar os abismos que se escondem por toda parte, com edifícios erguidos em homenagem ao instante. Quando o presente está contido em si mesmo. Prendi-me à cama. Então pude observar a dança que é uma manhã sem vigor. Em tardes como esta repetíamos, eufóricos, os cânticos regulares que o corpo produz. As coisas inadequadamente posicionadas. Nós ríamos pois tínhamos o canto. Éramos coisas fora de lugar guardadas no mesmo instante. Resistiam os porquês. Nós ríamos, aguados. E entendíamos de naufragar.
Pedro Moreira Itaí-SP