O Casulo Edição 11 - Jornal de Poesia Contemporânea

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Expediente

Eduardo Lacerda

leonardo MAthias

Nathan Matos

Ricardo Escudeiro

Literatura, Resistência e Desobediência

É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte (Caetano Veloso)

Vivemos dias de retrocesso em nosso país. O recente golpe de Estado não só criou uma instabilidade política e social, como trouxe ao poder forças conservadoras, ansiosas em retirar ainda mais direitos: sociais, trabalhistas, econômicos e culturais.

Esta não é uma publicação política, nem partidária, embora Drummond já tenha antecipado que o nosso tempo é tempo de partidos, de homens partidos . É uma publicação literária, mas decidimos (mesmo correndo risco de alguma censura, já que é uma publicação com patrocínio - para os números 11 e 12 - da Secretaria de Estado da Cultura do Estado de São Paulo) marcar nossa posição: desejamos um país melhor e mais justo para todos e todas.

Resistir e Desobedecer , nossos temas amplos, gerais e irrestritos em quase 100 páginas dedicadas à poesia e a alguns questionamentos sobre literatura e cultura.

Aproveitamos para agradecer a todos e todas que durante o último ano nos enviarem textos e poemas (recebemos centenas de colaborações de todo o país).

Desejamos ótimas leituras e, principalmente, diálogos e encontros entre aqueles que acreditam que amar e mudar as coisas ainda nos interessa mais.

“A pesia é um time que só perde” Territórios em disputa. A resistência das cartoneras, poemas poemas ENTREVISTA MATÉRIA MATÉRIA 04 44 22 08-21 28-43

“Procurar novos poetas hoje é um ato de resistência: contra a massificação, contra o aparelhamento, contra os grupinhos que se formam na literatura.”

A frase vem de um dos sujeitos que mais entendem dessa decantação assimétrica do joio de tantos tipos de trigo na poesia contemporânea: Frederico Barbosa, 56 anos, que foi diretor da Casa das Rosas – Espaço Cultural Haroldo de Campos de Poesia e Literatura por quase 12 anos e, desde meados de 2016, coordena as atividades culturais do Instituto Equipe. Frederico Barbosa, 56 anos, sobretudo poeta – dos grandes, com Jabuti na estante e uma bibliografia consolidada.

Seguinte: o Edu [Eduardo Lacerda, editor da Patuá e deste Casulo, dono da Patuscada, e amigo deste entrevistador] disse que o tema do jornal vai ser resistência...

Vou dizer um poema do Lau Siqueira, chamado ‘Aos Predadores da Utopia’. Sei de cor. “Dentro de mim/ morreram muitos tigres.// Os que ficaram/ no entanto/ são livres”. Este é poema. Acho o mais significativo poema dos poetas de minha geração. É muito forte. E tem muito a ver com essa questão da resistência. É do cacete. Quantos tigres não morreram dentro de mim? Quantas decepções recor-

rentes em todos os sentidos – politicamente, literariamente, pessoalmente? É um poema que diz muito.

Encontrar novos poetas é um ato de resistência por si só?

Seg uramente. Talvez pelo fato de que na literatura todo mundo perde, ninguém ganha dinheiro com poesia mesmo. Então as pessoas querem pelo menos o reconhecimento. Aí usam grupos como artifício e vem as autopromoções.

Como identificar alguém que realmente faça literatura – discernindo-o daquele que apenas gosta de escrever?

É difícil. Em primeiro lugar, acredito que ele tem de aceitar a ideia de discutir seus textos. Porque nenhum poeta nasce pronto. Todo mundo aprende. A primeira coisa é ver se a pessoa é capaz de discutir o texto, se consegue receber bem a crítica. Mas não tem nenhuma fórmula. Eu detesto fórmula. Tive um professor que dizia que poema bom é aquele que tem muita carga metafórica. Eu rebati que então [o músico] Wando [1945-2012] era o melhor poeta do mundo. Afinal, em sua música ‘Fogo e Paixão’ ele nos apresenta uma sucessão de metáforas sem fim, mas na verdade uma sucessão de lugares comuns.

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Em entrevista ao Casulo, o poeta Frederico Barbosa comenta resistências, fracassos, cita o melhor goleiro do futebol mundial e lembra de poetaços como Gregório de Matos e poetastros da estirpe do presidente Temer
“A poesia é um time que só perde”
ENTREVISTA

O que é um bom poema, então?

Existem vários fatores. É preciso ver como a linguagem é articulada nele, qual sua capacidade para surpreender o leitor, como ele trabalha com a sonoridade, o ritmo, enfim, existem vários critérios.

Critérios um tanto subjetivos para um crivo que vem sendo perpetrado pelos grupinhos...

Sem dúvida. Em 1949, quando o [filósofo] Albert Camus [1913-1960] veio ao Brasil, pediram para que o maior poeta do Brasil na época o recebesse no Rio de Janeiro e o levasse a conhecer a cidade. Naquele ano, todos os grandes modernistas, com exceção do Mario [de Andrade, morto em 1945], que morreu muito jovem, estavam vivos. Quem foi o cicerone do Camus? Um sujeito chamado Augusto Frederico Schmidt, um poeta que ninguém mais lê. Era um poeta importante na época, mas muito fraco. Por outro lado, era milionário e dono da editora Schmidt, que publicava todos os outros caras. Ou seja: tinha muita influência.

De certa forma, exemplos que persistem em todas as épocas...

Sem dúvida. Veja o Paulo Bomfim. É um poeta horrível, que não faz o menor sentido. A única vez em que concordei de fato com o Mário Chamie [1933-2011] foi quando eu administrava a Casa Guilherme de Almeida e tive de participar de um evento na Academia Paulista de Letras. O Guilherme de Almeida [1890-1969] também foi um poeta muito fraco, de quinta categoria; por outro lado, era um tradutor interessante. Pois o tal evento era uma homenagem a ele. Bomfim começou a falar sobre o Guilherme de Almeida. Mário se levantou no meio e soltou um “nunca ouvi tanta bobagem junta”, pegou suas coisas e foi embora. Quase que eu fui embora também.

A Academia, como instituição, é a resistência desse status quo, da pose literária?

No mundo das academias predomina a mediocridade. Ali, as pessoas incensam os poetas, só que

por outras razões. Não porque são grandes poetas, mas porque o cara é juiz, é importante do judiciário e tal, e por aí vai.

O mundo literário está cheio de poetastros...

Neste momento deve haver alguém elogiando a verve poética de nosso presidente ilegítimo [Michel Temer, do PMDB, que publicou o livro ‘Anônima Intimidade’ em 2012, quando ainda era vice-presidente]. Deve ter gente dizendo que ele é o maior

poeta do mundo... Esse clubismo generalizado é péssimo para a literatura, as pessoas só leem os amiguinhos. O cara acha que o Paulo Bomfim é um bom poeta porque o conceito que ele tem de poesia é aquele.

No meio desse contexto, como é buscar os verdadeiros poetas?

Buscar gente boa me dá muita alegria. Também me dá muita alegria ajudar gente boa. Eu também tive ajuda de gente importante. Quando eu tinha 15 anos, comecei a escrever poesia e tinha em casa um grande leitor, um dos melhores que este País já teve [Frederico é filho de João Alexandre Barbosa, 1937-2006, ensaísta e crítico literário]. Hoje em dia, o advento da internet ajudou na busca de novos autores – antes, só se lia quem você conhecia ou quem já tivesse sido publicado.

Quem foram seus grandes incentivadores, além do seu pai?

Aos 15, tinha um professor chamado Gilson Rampazzo, que até hoje faz o Laboratório de Redação do Colégio Equipe. Ele não gostava de tudo, era muito rigoroso, e tentar fazer algo que ele julgasse bom passou a ser meu parâmetro. Eu tive um círculo muito privilegiado por conta das amizades de meu pai. Outra referência era o poeta Sebastião Uchoa Leite [1935-2003]. Eu ia ao Rio e ficava na casa dele, mostrava meus poemas – e suas críticas eram sem o menor tato, ele dizia quando achava que estava uma porcaria; era bom porque eu sentia que ele me levava a sério como escritor. Já o [tradutor, escritor e ensaísta] Boris Schnaiderman [1917-2016] foi o primeiro a publicar um poema meu, em uma revista que ele editava. O [poeta] Haroldo [de Campos, 1929-2003] também leu vários poemas meus, conversava sempre comigo sobre poesia e tal. Tive o privilégio de ter essas pessoas em torno de mim. Deste caldo veio minha formação. Por isso que não nego minha opinião quando novos escritores me procuram. Mas a pessoa precisa se despir do ego, ter a maturidade para entender que eu estou falando

do texto e não dela. Infelizmente, muitos autores têm dificuldade de discernir essas coisas; há quem se ofenda, fique com raiva.

A poesia é um time?

Eu estava lançando um livro em 2001 e o poeta Ulisses Tavares voluntariosamente começou a espalhar convites, chamar pessoas. Quando disse a ele que não estava entendo o motivo de tamanha ajuda, ele rebateu com uma frase lapidar: “Na estreita praia da poesia, a vitória de um é a vitória de todos”. Adorei essa frase e é muito verdade. Se você levantar aqui [estávamos em um restaurante no bairro das Perdizes] e perguntar quem lê poesia, não vai ter ninguém. Mas, no meio literário, fica todo mundo brigando. Eu aprendi uma coisa com o melhor goleiro da história do futebol mundial [Marcos, que defendeu o Palmeiras ao longo de toda a sua carreira]. Na época, o Palmeiras vivia uma péssima fase, priscas eras em que ainda não éramos eneacampeões nacionais. Aí o time tinha perdido 10 jogos seguidos e um repórter perguntou a ele se o problema era que os jogadores não se davam bem. Ele respondeu que, pelo contrário, todos eram amigos, o clima era ótimo – o problema é que quando o time perde, as brigas aparecem; e não são as brigas que causam as derrotas. Isso tem a ver com a poesia: é um time que só perde, porque é algo que não tem valor para esta sociedade consumista, capitalista. Então é um time fadado ao fracasso, sempre. [por WhatsApp, dias depois, Frederico complementou: “A poesia é o Íbis da cultura. O pior time do mundo, com os jogadores mais maus-caracteres.”]

Há um cerceamento dos gostos, em se tratando de literatura?

Sempre gostei demais do Augusto [de Campos]. Acho que ele é o maior poeta vivo deste País e concorre com João Cabral [de Melo Neto, 1920-1999] e Gregório de Matos [1636-1696] ao posto de maior poeta que o Brasil já teve. Muitos não entendem e me criticam por esta escolha. Certamente se minha

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paixão fosse um Drummond [Carlos Drummond de Andrade, 1902-1987], um poeta que eu sempre curti mas que é mais unanimidade nacional, eu não teria tanta oposição, afinal é quase impossível você encontrar alguém que não goste de Drummond. Por outro lado, eu não consigo entender como alguém gosta de Adélia Prado. Não acho nada, não consigo achar poesia no que ela escreve. Se alguém conseguir me provar que ela é uma ótima poeta, eu vou agradecer porque vai me acrescentar algo, vou ficar feliz. Mesma coisa com o Ferreira Gullar [1930-2016], que eu acho medíocre. Mas do jeito que as coisas são, o texto acaba virando só um pretexto para aparecer. Então chega um ponto em que o Frederico Schmidt é considerado melhor do que um Drummond, um João Cabral. Aí não dá... Tudo por causa das relações pessoais.

Mas é preciso resistir. É preciso resistir?

A questão da resistência é muito mais “resistência pelo texto” do que qualquer outra coisa. Eu já falei que hoje em dia estou numa fase em que não quero mais ajudar ninguém. Porque eu me sinto traído por várias pessoas que eu ajudei, que buscam me esconder, como se fosse demérito. Eu falar que o Sebastião me ajudou, que o Haroldo me ajudou, isso por acaso tira os meus méritos? Não consigo achar isso. As pessoas querem achar que todo mundo é self-made man.

Escrever é resistir?

Tem vários poetas contemporâneos hoje que acham que ser poeta é ficar no bar, beber e escrever sobre isso. Gente que quer ser o [Charles] Bukowski [1920-1994] do século 21 mas o texto acaba sendo só um pretexto. É o mesmo que o cara tomar LSD e achar que vai tocar guitarra como o Jimi Hendrix. Sob tal efeito, é capaz de ele achar mesmo, mas só ele. O Hendrix era bom pra caramba não porque tomava LSD, mas porque treinava, vivia para isso. É o mesmo com a literatura.

Qualquer um pode ser poeta?

Sim. Eu não acredito em dom, eu não acredito em talento. Para mim, é trabalho, é treino. Acredito que qualquer um pode ser até Picasso, se quiser. As pessoas gostam de dizer que existe dom e talento para não sofrerem. Do ponto de vista da literatura, acho que a primeira coisa que um pretenso autor precisa se perguntar é por que ele quer escrever. Se for só uma questão de ego, melhor desistir. Se for só para mostrar ao mundo o que sente, também.

Por que você escreve?

Eu não escrevo por nenhuma razão boa. Minhas razões são sempre ruins. O [Ignácio de] Loyola Brandão falava que, para ele, escrever era se vingar, porque ele não era bom em esportes, não era o mais bonito da escola, não era o mais legal. A ele, sobrava a literatura. E ele precisava se vingar de algum jeito. Eu concordo.

Peripoética

(in Fábrica de Carapuças)

Nunca confie num poeta de quinta que se reputa conhecedor da poética.

Se realmente conhece a matéria e ainda assim não é poeta que presta, falta-lhe caráter. Ética.

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lê pouco, gosta de lichias geladas e contempla o lusco-fusco com olhos de gavião.

eu me acuerdo de ti

quando impiedosamente arrancávamos pedaços daquela parede cor de gin

quando eu lentamente perdia as unhas, tentando em vão descascar lichias sem machuca-las

aquela casa errada; e teu pedido de adiamento da renovação do aluguel agarrada ao vaso de jibóias, menos cobras que o nosso amor fast food e a saliva pouca de um sexo quase automático chá preto descafeinado e alguma poesia torta de hilda ou ana as que me traziam dúvidas, claro a pela cerca mas tão longe feito aquele samba em irajá como desejava uma samambaia antiga sem ter que podar uma folha sequer

apenas observar seu crescimento expansivo dizendo “olha pra mim, porra!” e você não olhava

tampouco percebia a calcinha nova ou a depilação meticulosamente feita

prum valentine’s day barato

naquele motel em vila isabel ou a memória de nós duas, tão carregada de ausência e daquele sorriso magro

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NACONTRAMÃO DAGRAVATA

àsvezeslendoocânone mebateumavontadedesersujeitolíriconeutro bem-resolvidoótimo.

motocontínuo

porqueseeufossebem-resolvidapoderiatentarresolvertodososproblemasdomundo. masantes sequerdeterminaro raciocínio meuúterobatenaporta: essemês não

seunomeaolado omeu nome remontanocontratodealuguel aoutros contratos renovaaantigaesperade queentrenossosescombrosdenovoencontraremos omeu nome aoladoseunome

tem20anoseé belorizontinaderaiz. Publicou,emnovembrode2015, seuprimeirolivro,“POÉTIQUASE”, pelaEditoraLetramento.Ospoemas acimasão inéditos.

BrunaKalilOthero JorgedeBarros

JorgedeBarrosédoABCpaulista, filhodeimigrantes pernambucanos. Éantropólogo,professorepoeta. Jásedestacouemalgunsprêmios literários,masapesardosseus35anos,nuncapublicou livronemaprendeuadirigir.

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HOMEM-SEQUELA

Não chove não chove mais.

A água agourenta já não molha as asas abertas do heroi e não há heroi algum.

O espectro boêmio do dever ronda esta carcaça desde 1918 embriagado da velha história “choram as mães e as namoradas”.

Choram os homens também por cima de bíblias e corpos amolecidos e cartuxos de Thompson.

Choro às vezes em salas de cinema ao lembrar do tanque e dos homens do tanque e da obrigação de morrer.

Suor, gordura queimada, pele rasgando e cedendo não pensei na minha mãe no mundo só havia eu e os homens no tanque e os outros que eram homens como eu embora chorassem em outra língua.

Sobre pedras e sementes

Coisas silenciadas

Respiram como um peito

De um pássaro

Na véspera do voo

Como o pólen disperso

Na imensidão

Como o milagre

Escrito no fruto

E no pão

A semente arde

Em seu estado de pedra

Como uma hora que não tarda

Inclino-me

Às pedras dormentes

Pousadas

Graciosas ao longo

De um rio

No leito da estrada

E adivinho

A graça da semente

Que na pedra

Sonha

Ser grão

E arde

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Fernanda Cimetta Lopes Sandra Fonseca tem 19 anos e escreve com a mão direita.

QUIROMANCIA SIMPLIFICADA

as linhas das mãos estão mais dadas à costura. para saber do futuro com o outro: batam palmas.

vai dar certo se enroscar.

nasceu em São Paulo, em 1989. Publicou “Formol”, em 2014, pelo Selo DoBurro. Anda em círculos para não se perder.

as outras já foram embora de noite sou Rei do parquinho

mamãe mandou ficar sentado no banco da praça balão pra achar graça eu volto te buscar

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Domingo no parque
André Oviedo

AUTO-RETRATO I

Eu não sou somente este rosto jovem sou também este corpo magro estes pulmões doentes este ser descrente.

Eu não sou somente estas cicatrizes na testa braço e perna sou também e principalmente a lembrança delas.

Eu não sou somente este sorriso e estes olhos míopes minha gente sou também humano e tenho (como vocês) cáries nos dentes.

Eu não sou somente este sexo masculino sou também os momentos de carinho e a ausência deles quando se utiliza o recurso das mãos e da mente.

Eu não sou somente o que como e o que bebo sou também o que excreto no banheiro. Eu não sou somente um amontoado de órgãos sou também a função de cada um deles isoladamente.

Eu não sou somente as palavras e os atos sou também (e antes) os gestos que os/as determinaram.

Eu não sou somente o caminhar e o seu contrário sou também o percurso no escuro. Eu não sou somente poeta seus estetas sou também funcionário público.

52, mineiro de Ervália, na Zona da Mata, possui nove livros publicados entre poesia e prosa.

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Milton Rezende

Fenda

ignorava conselhos, Há tempo o menino ficou lá fora. Espera, espreita a barra da porta, mas já não pode passar.

Todos os longos anos de preparo –escola, dentista, boxe –e a busca pelos jogos de montar, pelo seio roído da mãe que já foi.

Uma vida de busca e solidão, a passagem do peito fechada:

só o túmulo aberto da infância.

Virginia Finzetto

é paulistana, jornalista, escritora e editora de livros. Desde 2004, tem seus poemas publicados em seu blog, nas redes sociais e no Livro da Tribo.

Clarissa Macedo

doutoranda, publicou

O trem vermelho que partiu das cinzas e Na pata do cavalo há sete abismos (prêmio nacional da Academia de Letras da Bahia).

DEVASSA

ignorava conselhos, aceitava qualquer bagulho dirigindo seus olhos para a complacência que seu fígado não processava, porque o perfeito e o mais que perfeito só existiam em um tempo verbal que o amor desse coração desregrado, na real, nem sempre decorava amava e sofria, sem ponto e travessão, engatava um verso em outro, e foi assim até a exaustão

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planeta dentro da barriga

quando a barriga é um planeta de um único habitante e ele se mexe e cresce em seu universo líquido feito de tecido endométrio e de sonhos preso pelo cordão de carne o único habitante escuta os ruídos e sente o seu planeta oscilar mas não se preocupa com isso é curioso e divertido e ele gira em seu interior feito um astronauta sem gravidade o cordão umbilical preso à nave o habitante sorri de olhos cerrados não é preciso abri-los para ver o mundo ele o inventa e a vida é só sentido no planeta dentro da barriga até o nascer nascer é dor é contração e expulsão quando sou as forças e os elementos das minhas entranhas parir é ser uma estrela que explode vulcão

água e sangue e mucosa e o habitante nasce de olhos fechados cortam-lhe o cordão de carne que o prendia ao seu início e ele chora como só os mamíferos choram estica o corpo frágil e enrugado depois o encolhe aninha-se para começar a viver em um mundo feito cheio de raízes amarras e defeitos

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Viviane de Santana Paulo (São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta.

Das Guerras

Todo ensejo que orvalha da alma Vem metralhar quem passa.

E olha...

Tua fé

Já não é.

Eu amiúdo Versos

Para que não vá

Sem um doce (se quer).

Gritamos.

Sujo tua roupa

Com leite materno

Enrolo tua alma

À minha,

Nada por perto para se agarrar.

Filho,

O que sobra da coragem São pequenas ervas daninhas, Que nascem dos olhos

Dos que choram demais.

CASA

o ovo quadrado que habito nasceu da cloaca de cálculos frios, da quantidade e peso de concreto e músculos

ergueu-se a torre contra o crepúsculo estratagema de astutos a sorte a favor deles os engenheiros melhor: o sol incidindo no terreno.

quanto tudo isso hoje importa? quem se lembra?

No meu cubo de sombras no meu fresco casulo no ovo quadrado que habito abrem-se janelas para o infinito.

Camila Passatuto é escritora e jornalista, autora de Inventário da Solidão (poemas, Giordano, 1998), do infantil O Travesseiro Mágico (Giostri, 2013) e de Vênus em Escorpião (Patuá, 2016). Mantém um site: malufuria.wordpress.com

Luíza Mendes Furia

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27 anos.

A DEUSA

Quando deus adormeceu ela tomou conta de tudo Deusa para todo serviço lava, passa, cozinha, dá referência

Enquanto ela ordena o mundo cuida do código camponês e traduz o chão, o mar começa a ser mar dentro dela

Úmida para servir, ela fala com peixes brotam-lhe escamas Na cama vê o dia aparecer sem projeto ou esboço

Para ela a vida se desenha naquilo que se chama fundo do poço

Ana Maria Lopes

carioca de nascença e candanga de coração. Poeta por ofício e jornalista de profissão. Dois livros publicados – Risco e Conversa com Verso – e muita participação em jornais e blogs.

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o passar inexorável do tempo sempre inútil [ou imóvel] me tirou a pressa:

observo [nas linhas esculpidas pela troca de carícias entre os ventos e a pele] meu breve enternecer

Nasci em Itapetininga, no interior de SP, e cresci nômade. Sou bailarina, coreografo [entre]linhas em publicações digitais há mais de dez anos e guardo em mim a visão dos corpos de baile dispostos nas estantes de inúmeras visitas a bibliotecas públicas nas quais ensaiei os primeiros elevés, que traziam os livros para o alcance das minhas mãos. Retiro das coxias os poemas que pretendo abandonar no palco, para que finalmente deixem de ser meus.

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Caminho pelas ruas pedindo licença por ser mulher

Caminho pela casa da mãe pedindo licença por ser triste

Caminho entre os amigos pedindo licença por ser criança

Caminho entre os amores pedindo desculpa por ser simples

E no arrebol, quando o coração em claroescuro desdobra e acelera em trottoir

Coloco meu casaco ocre, busco na noite

pés pra caminhar.

luz de vértice

a luz da manhã renasce nos vértices como quem despe a borda da íris. dela, acalanta e oprime – a um só tempo –o itinerante que o eterno toca em notas menores.

cresce rasante num rastro de sombras; num riscado de cores e corte.

cresce – ciliar e submersa –feito limalha de noite.

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XII
é artista e pesquisadora do corpo em dança e poesia. Publicou “Anotações sobre o azul” (Editora Patuá, 2016.). Nathan Sousa

Acidente poético

Tá lá o poeta estendido no chão sem carteira assinada, sem plano de saúde atropelado por um ônibus que não parou Não parou para a poesia passar voou livro para todo lado quebrou o sonho em sete partes as vísceras de seu discurso estão à mostra Já aglomeram muitos curiosos Tem gente filmando no celular Chama o Samu, 190 Parou o trânsito vira o caos Parece que o cara tá mal O poeta caído no chão ninguém chega para ajudar do seu bolso um poema novo escorre incompleto como aqueles ali olhando para ele Tá sangrando poesia para todo lado a polícia chega com a sirene a toda a turba aproveita para gritar Uma senhora começa a chorar não é a mãe mas é a única a acudir ajoelha nas páginas dos livros e abraça o poeta destroçado O poeta ali morre não morre mas a poesia era aquela mulher corajosa com um amor na mão viu que o homem ali caído podia ser um filho dela filho que ela nunca tivera mas na EJA, depois do trabalho descobriu na leitura um novo processo onde tudo que sonha é possível E os homens do Samu vinham com a maca enquanto a polícia cercava o local os celulares registravam tudo Corre aí, dá oxigênio para o poeta que ele pode sobreviver vamos levar para o Pronto-Socorro que gente assim merece viver merece viver

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Wagner
escritor, jornalista, curador, gestor cultural, MC, compositor e diretor artístico do músico Raul de Souza. Lançou
livros “Cidade em transe” (2015), “Viagem a Minas Gerais” (2013), “Torpedos” (2012), “Mobimento –Educação e Comunicação Mobile” (2012) –finalista do Prêmio Jabuti 2013 e “Turnê do Encantamento” (2009), dentre outras publicações. | www.merije.com.br
Merije é poeta,
os

guia prático de como não ser mulher em qualquer século

ter abruptas hemorragias mais conhecidas como quedas por fornicações histéricas três horas da manhã, travesseiro em chamas os pijamas também.

pra-quem-você-liga - escolha indolor. lembrar certeza é faca na jugular ou talvez anel na mão esquerda dá no mesmo não dá?

no ultrassom o cisto comover bem mais do que um teste de farmácia às pressas no banheiro do bar. aqui nem fantasma de homem tem permissão pra chutar costelas. placentas arquitetadas nas meninas dos olhos das meninas correm risco de vez ou outra dinamites sobrepostas em cima das carcaças dos amantes herdados de noites passadas mas nunca amor nunca.

ersatzspielerin

teimo em não acender a luz, encalhadas sem saber se quem – eu ou o mundo é suplente de algo primevo se o que existe é a tensão ou degrau de recursividade.

o violento da memória é a retenção do vazio. penso em palavras multiportantes, como não me escapa fazer: merimnologia, ou: considerar é arder. mermeridade, ou: ansiar é condenar-se. metameridade, ou: a parte pelo todo.

palavras me procuram, procuram a nós porque as salvamos de um desígnio adjunto e nos lançamos aos fins da tensão.

me vejo merócrina, exocito e a elas entrego qual impostora estertorada o grau primeiro das coisas.

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Natasha Felix maíra mendes galvão nasceu em 1996. Cursa o segundo ano de Letras na Universidade de São Paulo nas horas vagas. é tradutora, revisora e poeta. mora em turnos entre são paulo, alto paraíso e brasília.

Odeserto repousaemminhabocavertoaaspereza desuastempestadesdeareia nós:sinônimodeabismo.

Clarãoafome–avederapina–fitaoquenos desalimenta, cadafareloquenosconsome: osásperosgrãos depão,deguerras,deprêmios,dedinheiro,depoder...caberiatudonumsóclarãodeespantoou numbaterdeasassovinas? afome,demodo inclemente, matacompílulasdeculpa, deexíliose silêncios cortantes! umsonhodecapadejornal:emfasedeinapetênciaeautoflagelo, afomesuicida-se,comumagarfada,nofundodavasilhaemquejantavavazios.

CarvalhoJunior

JussaraSantos

naturaldeCaxias-MA,autordolivro Dançadosdísticos (Patuá,2014).

VencedordoTroféuNauro Machado dePoesia(UEMA/2015). [professorcarvalhojunior@gmail.com]

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das Cartoneras

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Por Ellen Maria Vasconcellos fotografia fabiana turci | armando carmino | lucia rosa | douglas diegues

O movimento editorial cartonero não para de crescer e se multiplicar: já atingiu ao menos vinte e um países, e só na América Latina, há mais de trezentas cartoneras contabilizadas em toda sua extensão. Elas recebem esse nome por utilizar o papelão ( cartón , em espanhol) para a produção das capas dos livros. E as editoras trabalham como um coletivo de pessoas que se reúne para fazer livros artesanais e de baixo custo, com o objetivo de driblar o sistema mercadológico editorial, que encarece o valor do livro e dificulta as relações entre o autor, o livro e o leitor. Com o valor gasto reduzido na produção, a democratização do texto se torna regra número um: autores menos conhecidos têm seus textos em circulação, leitores anônimos conseguem adquiri-lo. A primeira dessas editoras surgiu em 2003 e hoje elas são tantas que se tornaram até objeto de estudo nas universidades, com teses e livros que investigam como foi que este fenômeno surgiu e por que razão não tem nenhuma pretensão de acabar.

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Não é de hoje que as editoras cartoneras surpreendem o mundo. Elas reivindicam uma nova relação entre o autor, o livro e o leitor, e uma nova visão sobre a produção e distribuição dos livros.

Mas vamos por partes. A primeira cartonera foi fundada em Buenos Aires, na Argentina, em 2003: a Eloísa Cartonera . Criada por Washington Cucurto, Javier Barilaro e Fernanda Laguna, em resposta à grande crise financeira que assolou todo o país desde o “corralito”, o colapso político e econômico de 2001, hoje a Eloísa Cartonera é uma editora independente e autogerida. Mas a fundação da editora, mais que fazer livros, fez e faz política. Para que os livros pudessem chegar às mãos e aos olhos de qualquer leitor, em uma fase onde o livro era praticamente vendido como artigo de luxo, a Eloísa Cartonera passou a dialogar com carrinheiros que catam papelão do lixo e cooperativas de reciclagem do bairro de La Boca, em Buenos Aires. Pagando mais que as empresas de reciclagem pelo material coletado, a editora integrou os próprios catadores na produção editorial, para que estes não só elaborassem a capa dos livros, com papelão, tintas e colagens, mas montassem o livro inteiro, com ilustrações e páginas coloridas. O texto era fotocopiado, o que barateava ainda mais a reprodução em série, e a costura era feita ali mesmo. Cada livro se tornava um objeto exclusivo, e de baixíssimo custo. Resultado: uma ideia que deu certo. Hoje, a Eloísa já conta com mais de 250 livros publicados com autores de toda América e mantém um grupo fixo de trabalho.

Aqui no Brasil, o nascimento da Dulcinéia Catadora , o primeiro coletivo cartonero do país, surgiu em 2007 com uma parceria com a própria Eloísa Cartonera , na 27ª. Bienal de São Paulo. Em uma entrevista pessoal, Lucia Rosa, fundadora da Dulcinéia Catadora junto com Peterson Emboava, ela me conta que: “Nos primeiros anos, a Dulcinéia funcionou numa sala cedida, em Pinheiros e reuniu jovens, alguns deles filhos de catadores, de famílias de baixa renda; alguns em situação de vulnerabilidade.” Hoje, este trabalho em cooperação com o Movimento Nacional dos Catadores de Reciclagem funciona em outro espaço, no centro de São Paulo, ao mesmo

tempo em que o coletivo desenvolve uma proposta de itinerância.

Com o objetivo de fazer uma linha editorial artesanal sem nenhuma hierarquia, trabalhando todos juntos sempre em posição de igualdade, a Dulcinéia Catadora , além de participar de feiras e projetos com comunidades carentes, promove oficinas de confecção no Brasil e no mundo, tanto para a formação de novos núcleos cartoneros, quanto para os que já existem e estão em busca de mais pessoal instruído para este trabalho. O coletivo ganhou uma visibilidade tamanha que só a Biblioteca do Congresso em Washington, nos Estados Unidos, conta com um acervo de mais de cem livros da Dulcinéia Catadora . Também nos Estados Unidos, a Biblioteca de Wiscosin conserva uma coleção de mais de mil livros cartoneros, de centenas de coletivos de todo o mundo. Aqui no Brasil, a Biblioteca do Memorial da América Latina, em São Paulo, mantém um espaço reservado para os livros cartoneros, não só nacionais, mas de dezenas de produções literárias de nossos hermanos . Lucia Rosa confirma o que vamos aprendendo: “O importante é o acesso aos livros. Conquistar novos espaços”.

Quanto ao nome das cartoneras, é bastante curioso que a maioria delas receba um nome feminino: Eloísa Cartonera, Dulcinéia Catadora, Olga Cartonera, La Sofía Cartonera, Katarina Cartonera, Severina Catadora, Juanita Cartonera; ou que ao menos o substantivo seja feminino: La Joyita cartonera, Sereia Cantadora, La Vieja Sapa , a recém criada Malha Fina Cartonera , etc... É uma reivindicação e uma mudança no sistema tradicional que vigora também no mercado de produção e distribuição dos livros. Sobre o batizado da Dulcinéia Catadora , Lucia Rosa diz: “No nosso caso, Javier, que fazia parte do Eloísa, sugeriu que escolhêssemos um nome feminino. Dulcinéia é o nome de uma catadora que trabalha na Coo pamare, uma mulher que admiro. Como também nos faz lembrar de Dulcinéia, de Miguel de Cervantes, a decisão foi unânime.”

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No Nordeste do Brasil, vemos este fenômeno ganhar ainda mais força pela falta de editoras na região e, principalmente, pela falta de oportunidade que os artistas locais têm de serem publicados. Como vimos, o ativismo social faz parte da essência das cartoneras. Uma das primeiras cartoneras que surgiram por lá, e que hoje tem bastante relevância é a Mariposa Cartonera, que em 2013 no Recife, foi fundada por Wellington de Melo. Hoje já são tantas ( Severina Catadora, Cartonera del Mar, Vento Norte Cartonero, Comissão Cartonera, Carolina Cartonera , etc.) que foi criada, inclusive, a Liga Cartonera , um coletivo das editoras cartoneras, com o fim de se autoajudarem e se autopromoverem na dis-

tribuição de seus trabalhos, além do contato com as cooperativas de reciclagem e de costura. O trabalho é sempre colaborativo, e é preciso que todos os envolvidos compreendam e participem dessa lógica, não só do processo de produção, mas em todo o ciclo da economia solidária e sustentável, na formação de novos leitores, na divulgação e circulação dos livros e da proposta.

Passados mais de dez anos desde o surgimento da primeira cartonera, o que nos chama muito a atenção deste projeto é, justamente, a co-edição , na qual duas ou mais editoras cartoneras fazem uma parceria e publicam o mesmo livro. Assim, as editoras se fortalecem e se apoiam na divulgação de

um determinado texto e autor em regiões diferentes, ou até mesmo, em línguas diferentes. São alternativas que mantém vivos não só o próprio objeto livro, mas também a ideia do trabalho coletivo. A Malha Fina Cartonera , editora criada na faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, por exemplo, começou justamente com um projeto de co-edição com a Mariposa Cartonera e a Yiyi Jambo .

A Yiyi Jambo , uma das cartoneras mais representativas no país, e que já publicou Wilson Bueno, Josely Vianna Baptista, Manoel de Barros, Ricardo Aleixo, entre outros grandes, foi fundada em 2007, por Douglas Diegues, já bastante conhecido pelo seu trabalho literário de produção e tradução com o

portunhol selvagem, uma língua de fronteira (e também de resistência) entre o português, espanhol, guarani, inglês e o que mais tiver graça. Em entrevista pessoal, Douglas me conta, em seu característico portunhol selvagem, que dois de seus livros saíram nesse processo de co-edição: “O livro Triple frontera dreams saiu em versión pocket por Yiyi Jambo, Katarina Kartonera y Eloisa Cartonera . Depois foi lançado o Tudo lo que você non sabe es mucho más que todo lo que você sabe por seis cartoneras de seis países diferentes: México, Chile, Peru, Argentina, Espanha e Brasil”.

A Yiyi Jambo possui sede própria em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, e disponibiliza para quem

quiser chegar um belíssimo acervo cartonero. “É uma delícia fazer um livro de poesia cartonero com las propias manos. Las capas nunca se repetem. Y los livros não tem preço: podem custar entre 10 reais y 5 mil reais. Você põe o preço. Quem quiser pagar, que lo pague. És uma arte muito livre.” – comemora Douglas Diegues.

É bastante comum que os livros tenham preços flexíveis, quando falamos de cartoneras. A Dulcinéia Catadora , por exemplo, pede somente sete reais por livro. Não é nada comparado ao preço de um exemplar nas grandes lojas e livrarias do país. Hoje, há editoras cartoneras com inúmeras propostas: de ampliar o discurso ideológico em relação a questões de gênero ou de classe, por exemplo; de fortalecer o ensino de literatura e artes nas escolas, com uma proposta educativa integrada à comunidade; de trabalhar com indígenas ou algum setor específico da população, para que, dessa forma, o livro não só dê voz às pessoas que antes não eram ouvidas, mas para que a leitura alcance um público que também não tinha acesso ao material, etc. Se cada livro é único, cada leitura também é.

O controle do número de editoras cartoneras na América Latina praticamente se perdeu: O movimento coletivo ganhou muita força e não há um só país da América sem ao menos uma cartonera fazendo a diferença. Alguns nomes são: Sarita Cartonera, Yerba Mala Cartonera, LuzAzul, Patasola Cartonera, Santa Muerte Cartonera. Na Espanha (e não só por lá), existe inclusive um movimento de montar essas cartoneras dentro do sistema carcerário. A penitenciária de Zaragoza é uma delas.

Ali, além do livro montado pelos internos, o texto também é escrito por eles: uma série de antologias de poemas, contos e crônicas já foram produzidas e distribuídas em todo o país. A França é um dos países da Europa que mais abraçou a ideia: há coletivos cartoneros nos país inteiro, sendo as mais conhecidas Cephisa Cartonera, La guêpe e a Babel

Cartonnière . Na Suécia, a Poesía com C surgiu surpreendente; em Moçambique, a Kutsemba Cartão é a cartonera mais conhecida, e até na China o movimento já se estabeleceu: a Mil Hojas cartonera Sobre a proporção que as editoras cartoneras estão tomando no mundo, Douglas Diegues diz: “La editoras cartoneras podem contribuir muito ainda com la desmistificación de la literatura, de la lectura y del livro. Podem salvar la vida de muitas pessoas também. Podem trazer mais liberdade para el arte de publicar livros. La coisa está apenas começando y después del libro cartonero, los livros nunca mais serão los mesmos”.

Já não há mesmo dúvidas de que os livros nunca mais serão os mesmos. As cartoneras chegaram para ficar, para fincar e resistir.

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para o personagem José Arcadio, do romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez

no princípio era o pêndulo arrefecendo suspeitas

depois a prodigiosa ordem a trotar na assombrosa mecânica do mundo

desfeitas as perfeições em nome da semelhança criou-se no tumulto a crença insepultável num deus infotografável com um cheiro de alfazemas

agora

diante de um pelotão de fuzilamento aprendeu: o amor não cura aflições.

nasceu em Marabá, no Pará. É poeta e professor e já publicou diversos livros, também coordena alguns projetos voltados à promoção do livro e leitura.

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Airton Souza

sarau

faço leituras noturnas em voz alta, bem pausadamente, para todas as cadeiras de minha casa.

o silêncio nelas é como

o homem nelas, em ruídos de pausa

já não se arrasta no chão

Vinícius Mahier

natural de Campo Belo (MG), é graduando em Letras pela UFSJ. Escreve em nopasseiointimo.blogspot.com. “ Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo ”.

DOMINGOS

As vagas rebentam na praia alegria e náusea dos banhistas

As barracas com seus cardápios de frutos do mar dão a ilusão de natureza morta

Os garçons e os ambulantes irrompem distraídos nos retratos de família e ganham seu quinhão de posteridade

A areia arquitetura da infância ergue castelos e duas mãos plenas de recomeço reconstroem os que a brisa leve desmorona

O domingo é cais onde aporta a semana

leite branco

para zilda quando pequeno observava a mãe na faina diária de lavar a lua bacia repleta de leite e estrelas e roupas inundadas de branco seus dedos poliam com exatidão o reflexo da orbe acalmavam impurezas de astros ressequiam o lamento das constelações no varal da noite durante um longo tempo minhas roupas abandonaram o olor da alfazema algumas partículas de big bang e cultivaram os buracos do universo assombrosamente eu me vestia de iluminado.

nascida em Pombal, sertão da PB, mora em João Pessoa e é Professora de Língua Portuguesa no RN. Por onde quer que ande, carrega na mochila um bloco de notas e um livro de poesia.

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Moama Marques Angel Cabeza é autor de Vidro de Guardados , poemas, e Sempre Existe um Último Momento , Crônicas. Poeta, cronista, produtor editorial e gráfico, possui textos publicados em antologias, como 29 de abril, O Verso da Violência e Qasaêd Ila Falastin — Poemas Para a Palestina.

Capricho

A poesia restará como pedra preciosa refém da rocha inacessível?

Germinará de um delírio entre súbitas guitarras andaluzas? Brincará de se esconder entre os pelos do teu púbis?

Mas o que, agora mesmo, inibirá o texto que se nega?...

recebeu o Prêmio Sousândrade de Poesia da Fundação Municipal de Cultura de São Luís (2010) – ISBN 978-85-61742-15-7

CONFIDÊNCIA

69 anos, fez parte da Catequese Poética nos anos 60, participou da 1ª

Bienal Internacional de Poesia e publicou 3 livros. No seu blog www.rubensjardim.com

divulga AS MULHERES POETAS...

Incapaz de ser o capataz de mim mesmo, vivo assim desarmado. Minha alma é uma poça d’água

mas reflete o mundo.

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Rubens Jardim Lenita Estrela de Sá

RESISTÊNCIA

a fome –ave de rapina –A fuligem que se desprendia no ar floculava em alvas penas: galo surrado e proletário. Cabisbaixa-se: centenas de milhares de decibéis agudos e metálicos e inflamáveis parecem oprimir o seu canto. O galo fita a paisagem monocromática com seu orgulho ferido e engasga. Um vultoso acúmulo de ar precede a explosão de seu canto de seu berro sua lamúria. Seria seu canto desnecessário? Antifuncional e contraproducente?

colares e badulaques

Incontáveis decibéis atmosferam-se enquanto o inútil, quase inaudível canto do sujo galo surrado sopra fiapos de cores ao vento.

Anderson Antonangelo

te dou todas as conchas de meu colar quando me faço mulher e mãe quando enceno as estórias de outras e me empresto como quem doa em troca de nada e de ninguém em troca de dar em suas mãos os meus colares e badulaques as conchas que vibram meu peito caem e caminham por outras mãos para deitar nas suas linhas traçadas de destinos é quando exponho a palma da minha mão e leio seu nome e nossos apelidos secretos leio os sertões de sua sede e minhas mãos ficam suadas enchente de sudorese excessiva porque te dou todas as conchas sendo manto de proteção aos animais juntando os cristais de carbonato de cálcio porque estudo e leio suas complexidades quando chora me vendo cantar e em cada concha e canto que faço é seu nome que está escrito estampado em meu peito é seu nome na minha garganta que te devolvo em troca de nada e de ninguém.

nasceu em 25 de novembro de 1983, é formado em jornalismo e cursa letras. É professor da área de língua portuguesa atualmente.

Pedro Bomba

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O utopista

ainda não é o outro lado, só mais adiante onde a luz não alcança e por isso nosso medo agora sem saber se no escuro há abismo ou espelho

(para Eduardo Lacerda) Vejo a poesia espalhada pelo caminho dos ventos, pelos meus olhos atentos, pela cidade asfaltada. Outro dia de folia, em que um homem é arcano de seu destino profano de se fazer melodia. Com a corda no pescoço e os dois pés na corda bamba se equilibra o utopista. Aos poucos ergue um colosso que em tinta e papel descamba –é o sonho que aqui se avista.

Andréa Catrópa

nasceu na cidade de São Paulo em 1974. É doutora em Teoria Literária e publicou o livro de poemas Mergulho às avessas (Lumme Editor : 2008).

Teofilo Tostes Daniel

O carioca Teofilo Tostes Daniel é autor de Trítonos –intervalos do delírio (Patuá, 2015) e Poemas para serem encenados (Casa no Novo Autor, 2008). Mora em São Paulo, onde vive, lê e escreve.

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(Editora Patuá –ProAC).

multimidiática e eletrônica.

Autora do livro Passos ao redor do teu canto

nasceu em São Paulo em dezembro de 1982.

Seu foco principal é trabalhar a linguagem

“o prazer do con_texto.”

e editora, o mesmo resultado obtido em sala de aula:

Maria Carolina De Bonis é nascida em São Paulo.

mas precisou ir além: hoje, busca na carreira de escritora

Ministrou aulas de Literatura Brasileira por quase 20 anos

PUC/SP , Sociologia e Política/ USP, e Ontopsicologia em SC.

O desejo desse desejo Outra vez.

Fiar invisível e minúsculo

Estudou Letras em Lorena, Comunicação e Semiótica na

Sílvia Schmidt

Sem quem aprenda a ficar sobre as rendas

Numa voz sem silêncio

Calo e escuto o poço me afundo

teu meu amor líquido.

Ao que não se esconde em ficção.

Após perder-te Entrego tudo

A ânfora com os líquidos Entregues ao mar.

não escrito/vindo: à [penas desejos dispersos ao léu

a consciência livre do poema

Assim ao caminho carregar

o verbo jogado ao céu da boca

Das páginas que viravam sozinhas

vazios -sem texto

De um verso que li e esqueço

aqueles riscos em papel origami

Aprendi a contemplar o náufrago

foram parar no lixo

Da lua maia sem der ramá-la

circunscritos

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pela Penalux, “Tudo é Beija-Flor”, escreve regularmente no blog: www.vestesdepalavras.blogspot.com)

pela Gryphon Edições em 2015 e lançou em janeiro de 2016,

em 2011, participou da antologia poética “Juiz de Fora ao Luar”

no livro de poemas “Exercícios de Olhar” editado pela FUNALFA

Literária pela Universidade Federal de Juiz de Fora, coautora

Universidade do Vale do Sapucaí e pós graduada em Teoria

(Lázara Dulce Ribeiro Papandrea, graduada em História pela

(Patuá, 2013) e Vão dos bichos (Patuá, 2015).

É autora dos livros O que esperar de uma flor amarela?

Lázara Papandrea nasceu em Vitória, Espírito Santo, em 1991.

ao sal dos tempos.

Izabela Orlandi

de areia

Como uma hera que se dilui

Penso-a ali presa aos ruídos do que flui

só vontade e o peito coberto

e sangue de ventos batidos.

nem nome nem beleza

com gosto de cascatas

olho cego, cavas vagas

Penso a pedra aprumada

Estática, desarrumada

não tinha treva nem cama

Ventrículo do nada

sua boca cobria o grito depois que gritava

Penso a pedra, pálida Partícula de tudo

cobria seus pés

APedra

ângela não levantava da areia

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À MEMORIA DE UM RIO

há um rio morto em meu rosto no meu asco no meu grito em minha boca há um rio seco há um rio sepultado em meu peito ―pântano de açoites― de escombro e espanto este rio é feito há um rio morto em meu rosto brejo sem acordes na sede que aos olhos lava e no peito dos homens dispersos: lama lodo larva

Para a moça que lê poemas palestinos a brincadeira da nossa infânci a montar o céu estrelado agora tem versão para Android você e eu chamávamos céuzinho o que hoje é pirambeira e riscos de desabamento no game a missão nos foi dada construir uma cidade num morro condenado céuzinho é um reino onde meninos palestinos mergulham e esquecem pedras triangulares e os próprios ossos num fundo de poço soterrado

Samara Volpony

Marcus Groza

(Arari/MA) é coautora do livro Poesia

Arariense: coletânea poética em rede. Vencedora do 4º Concurso Internacional Poesia Urbana /2014.

Facebook: www.facebook.com/samara.volpony é palavrero e devoto do céu violado. Autor do livro Sossego Abutre (Ed. Patuá2015) e coeditor da Revista Saúva e da Revista Abate.

Contatos: E-mail: samaravolpony@gmail.com

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Corpos onde a cidade se repete

inútil tentar brigar com roteiro muito se desenha sozinho acato e aguardo as próximas cenas

protagonista não dá pra ser todo dia na trama da própria vida a gente faz todos os papéis tem dia de vilão e mocinha hoje? hoje aceitei figuração e me faço muitas mesmo sozinha

Casé Lontra Marques Janaína Moitinho

nasceu em Volta Redonda (RJ) e mora em Vitória (ES). Publicou Indícios do dia , entre outros livros. Do autor: caselontramarques.blogspost.com.br. educadora e aprendiz, poeta, paulista de alma mineira, acredita que poesia se faz e vive além das linhas e agradece os encontros, de páginas e caminhos.

Corpos onde a cidade se repete: (depois de derramar antigas bocas sobre outra água): quase elidem alguns órgãos alarmados — em meio às ferragens — no casulo do calendário? contaminamos um espelho com a casa que nos propaga: (sob sua solidão): contaminamos um desejo com a fala que nos escava — cotidianamente — deitar entre as horas na areia da íris

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amêndoas do tempo

a tarde mergulhou alta em você despencando no meu colo suas pestanas choradas o ar empoçado entorna devagarinho a lembrança costurada de mãos que voam alto enrolando em caracol seus cabelos lembro do teu velho dilúvio lúdico que veio num postal escrito na solidão de tuas mãos e ressoa aqui como os temporais cá na beira da estante entre um e outro postal dos nossos começos a noite cai nas horas do céu levando as amêndoas doadas de um dia lavando os segundos da nova horinha

aos olhos da madrugada as águas do dia escorrem na pia sem pingar mais chorados pois tratou dos lembrados num gole só o toalete de chão verde continuará gelado e nosso café de colher com amoras. ah, as amoras... ah, as amêndoas .. deixo pra colher em outra tarde quando os ventos respirarem breves quando os alentos repousarem leves. [a ranhura da porta não vai mais me acordar].

, carioca, produtora artística, letrista e poeta. Graduada em jornalismo e mestra em Letras pela PUC – Rio.

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face

palmilhar as entranhas da noite a cada estrela moça grávida de céu fronteira do infinito ponto a pulsar a asa da representação

no germe do ínfimo poema a palavra prenhe de universo

há enigma no pólen

das palavras

abro a caixa de viver

meu espírito vem só

minha consciência

vaga uma língua morta

fico a entretecer

o tempo

matéria palpável

fio a fio

erigir a face do engenhoso enigma

trama do imprevisível

nome: face esfinge face luz faz-se o verso explode das mãos uma galáxia o sentido inverso de uma lâmina

só faca a carne que rasga e sangra o poema que sangra e mata

Corpo

Re-encontro com as águas na maturidade diante de um corpo um tanto denso marcado pelo sofrimento um tanto fluido tatuado pelos sonhos mergulho profundo sobre mim mesma Lugar onde tudo é possível desde bater pernas a flutuar

João Augusto

é poeta e jornalista (e não o inverso)

Naturalidade: Bebedouro-SP

Tatiana Fernandes

mora em Santo André, é formada em psicologia pela UMC e pós graduada em Saúde Mental pela FMABC, participou da exposição Achados-Perdidos da Editora Alpharabio e zines: Sarau na Quebrada e Ave de Rapina.

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AS CABECEIRAS DE DEUS

Em São Sebastião das Três Orelhas, Ouvia o zumbido dos insetos alados Fritando na lâmpada à minha cabeceira.

Pequenas vidas de grandes feitos Atravessaram o vale ilesas, Ludibriaram inimigos ferozes, Sobrevoaram fogueiras nos quintais, Febris lançaram ovos, as larvas nas poças, Alimentaram-se de restos e excrementos.

Enquanto eu insone testemunha dos fatos Calculo o quanto posso e temo o mal de meus iguais Servindo-se de ganância e vaidade em banquetes, Vivendo como ultimados animais perenes. Mas eis que no anoitecer dos anos chegam à luz!

E as cabeceiras de Deus estão sempre acesas.

noite turva

um casal emplumado encarou a tempestade de ferrugem com a ternura de um abraço profundo. suportaram o assombro do céu e os ataques nervosos.

bateram-se contra às águas e os ventos como se o peito fosse de marfim e a coragem, uma armadura impermeável.

(o baile cambiante das pernas na regência dos trovões vorazes seguia em compassos de pavor)

o império turvo do céu rogava assombros em lastros de serpentes luminosas.

o casal lutou na rinha feroz da noite que não oferecia extremidade ou margem para abrigo.

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Chris Ritchie Demetrios Galvão nasceu em Santos, SP em 8/11/67, pai escocês e mãe brasileira, da família de Vicente de Carvalho. Escreve desde antes de saber escrever, desde os dez anos produz poemas, contos e romances. Teresina/PI – poeta e historiador. Autor dos livros: Insólito e Bifurcações. É editor da revista Acrobata e do blog Janelas em Rotação.

4 CENAS DO CÃO ANDALUZ

I por que um cão sangrento atravessa-nos à noite e reduz a lua com seu brilho no esgoto numa parca brancura disforme moldada ou uivo do mal agouro encarcerado/ sombra desfragmentada num osso de nossa própria (in) existência as vísceras repugnantes à mostra para consumo da matilha e suas fartas mandíbulas.

II

O ventre exaurido do parir eterno constante:

palavras, palavras, versos desarticulados/ disformes e tão orgânicos.

LEANDRO RODRIGUES

é professor de literatura e poeta em Osasco-SP, onde nasceu em 06/01/1976 e ainda hoje reside. É casado e tem um filho. Já publicou poemas em quase todos os principais sites e revistas literárias do país.

III

costumeiramente rasgados no cordão arrancado com navalha fria, afiada bem trabalhada.

IV no rescaldo de tudo o cão - o grito se deita - carne viva restos da pelagem moldura mórbida estática da sala de jantar imponente com seus móveis discretamente apoiados em calços vermelhos e nas sombras tortas desfocadas de todos aqueles animais mortos da família – empalhados o sangue que ainda respinga pisado.

Poema da meia-noite

é autora de Luas Novas e Antigas (edição da autora, 2009). Ensaios da Tarde, (Editora Coruja, 2012) e Eternidades na palma da mão (Editora Patuá, 2015).

Na passagem de um dia para o outro, fiquei presa na fresta que existe entre o desejo e a festa.

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bruxa moderna

a bruxa moderna tem um gato preto entre as pernas e uma estante cheia de poções literárias das mais poderosas pó de beauvoir sementes de ruiz asas de líria porto e magia negra de elisa lucinda ninguém a queima em fogueira alguma

ela é o próprio fogo da revolução

cozinhando versos - seus maiores feitiçosem um caldeirão.

maquinaria

crópole do meu mundo sem nem mais ver.

eu vou organizar essa falta de porrada; esse mais um vento não vai mais me assassinar

esquema de uma única linha para a decisão, todos estão em carne viva e só de se mexer já arde

talvez já seja a hora de vestirmos preto e usarmos óculos escuros - estarmos de luto por nós mesmos talvez já seja a hora, talvez já passou da hora

acrópole do meu mundo, te visito.

Luto

Não haverá outro dezembro como aquele em que beijei meu pai pela última vez, a testa fria de um homem morto.

Que ontem foi aquele em que, juntos, enfeitamos a árvore?

Amanda Vital

nasceu em Ipatinga, Minas Gerais, no ano de 1995. Cursa Letras na Universidade Federal da Paraíba e é autora do livro “Lux” (Ed. Penalux, 2015).

O silêncio é de ouro, me dizia. Sinto em mim cada quilate

Kátia Borges

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Victor Ávila Ferrasso nascido em 1996, é de São Paulo onde cursa Letras e Teatro.

O BAQUE

Quando chove ou quando esfria E quando a grana é apertada

Lembro dela, minha Mãe, dos seus carinhos Na espera pelo fim da madrugada.

Como pude, Deus do céu, cair assim Tão fundo e torto e também desajeitado No buraco fedorento que há em mim?

Entre duas correrias, um esforço: Recomponho minha vida novamente.

Lembro dela, minha Mãe, mulher valente Caio louco na sarjeta desgraçada.

Saio em busca de uma vida que sumiu. Viro a quadra outra vez, lá vem o risco. As palavras pelo avesso, engasgadas.

As feridas pelo corpo espalhadas Sou a placa que anuncia o próprio fim O maluco que me vê já sente o baque

Amanhã será também um trapo assim.

no ósculo dos incômodos revelou-se discretamente o crepúsculo de nossas rezas e um novo formato aos gastos caminhos sagrados que levavam ao desígnio dos dias

a porta aberta, talvez uma vida apenas o ribombar do som furioso em sua passagem dirá com certa destreza se em algum momento saberemos o esconderijo dos espaços menos opacos que povoam as certezas da madrugada

não seria curioso saber aonde andam os pecados?

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[arranhar no peito]
Marco Aurélio de Souza Arthur Bugelli é professor, doutorando em Estudos Literários pela UFPR e autor do livro de poemas E os desgarrados retornam para ti. Vive em Ponta Grossa/PR. é poeta viciado em prosa, que escreve como aprendeu a ler: sem entender ao certo, mas descobrindo magias.

TERRITÓRIOS EM DISPUTA

Relações entre cânone literário e Literatura Negra e/ou Afro-brasileira

No presente artigo abordaremos uma das modalidades de criação literária através da qual autoras e autores afro-brasileiros têm inscrito sua participação na vida social e na cena literária brasileira. Ao elegermos essa vertente como tema de nossa análise queremos explicitar o fato de que outras vozes poéticas navegam no mar da poesia brasileira contemporânea e, através de outras estratégias, também se ocupam das questões relativas à presença das culturas africanas na formação da literatura brasileira. Porém, em função do recorte proposto, nos restringiremos à linha de criação que se convencionou chamar de Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, fato que não esconde as divergências em torno do emprego dessa terminologia. É oportuno dizer que poetas e estudiosos contemporâneos definiram ou caracterizaram essa modalidade literária utili-

zando as possibilidades oferecidas pelos textos de criação (poesia e prosa) e de reflexão teórica (ensaios e entrevistas) produzidos por afrodescendentes e não-afrodescendentes.

O imbricamento de aspectos ideológicos e estéticos (tais como o entendimento da literatura produzida por autores negros como uma crítica aos mecanismos de exclusão vigentes na sociedade brasileira e a crítica aos padrões eurocêntricos empregados na construção de discursos sobre os negros brasileiros, respectivamente) têm multiplicado os modos de definição propostos para essa modalidade literária. Para se ter uma idéia da complexidade dessa questão terminológica, vale considerar a crítica que o poeta e prosador Cuti [Luiz Silva] estabelece ao abordá-la no capítulo 3 (“Negro ou afro não tanto faz”) da obra Literatura negro-brasileira , São Paulo, 2010. A partir das obras que a constituem, percebe-se que na base da definição e da caracterização da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira sobressaem duas instâncias que, de certa maneira, se entrelaçam: a primeira vinculada à experiência histórica e social do autor ou autora, e a segunda, à produção do texto como lugar de reflexão acerca dessa experiência.

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Quando o autor ou autora que se exprimem pensam a si mesmos como um sujeito negro, o texto se desdobra a partir daquilo que se vivencia como um sujeito negro na história, destacando-se aí a necessidade de se atualizar uma gama de discursos que a diáspora, a escravidão e a violência impediram de germinar. Por sujeito negro entenda-se o indivíduo que, mediante a análise das condições históricas que afetaram o seu grupo e a si próprio, instaura no texto literário a coincidência do sujeito lírico com o eu-que-se-quer-negro, aspecto que evidencia o aprofundamento do olhar crítico sobre realidade. A partir dessa definição do sujeito social, que se torna ator do próprio discurso, a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira se constitui,

simultaneamente, como elaboração artística e como convite à mobilização política dos afrodescendentes, que se organizam para reivindicar os seus direitos sociais.

No que diz respeito à produção do texto como lugar de reflexão acerca da experiência do sujeito negro, essa vertente literária pode ser caracterizada como uma literatura de fundação. Sob essa perspectiva, o fazer literário é apresentado como uma resposta específica de um grupo a circunstâncias históricas marcadas pelo embate entre diferentes segmentos da sociedade. Os autores e as autoras identificados com a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, ao mesmo tempo em que mapeiam os mecanismos de exclusão e as situações sociais adversas vividas

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pelos afrodescendentes, se empenham em estabelecer a crítica do modelo literário canônico. Por isso, como afirma o professor Eduardo de Assis Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais, “a conformação teórica da literatura ‘negra’, ‘afro-brasileira’ ou ‘afrodescendente’ passa, necessariamente, pelo abalo da noção de uma identidade nacional una e coesa. E, também, pela descrença na infalibilidade dos critérios de consagração crítica, presentes nos manuais que nos guiam pela história das letras aqui produzidas.”

Em termos gerais, os autores e autoras que se articulam em torno da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, além de enfrentarem os desafios próprios do fazer literário, se dão conta de que

sua atividade se estende para o território da vida real. Ou seja, ao participarem de simpósios, oficinas, debates e outros eventos, colocam em cena suas visões sobre a realidade brasileira e, mais especificamente, sobre as relações dessa sociedade com os indivíduos afrodescendentes. Não por acaso, na crítica ao modelo literário hegemônico e ao sistema editorial esses autores e autoras ressaltam o desinteresse de tais setores por uma vertente literária que punge as feridas sociais do país. Isso significa dizer que os autores e autoras da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira – assim como outros segmentos autorais que se sentem excluídos – estruturam formas específicas de expressão literária (num gesto de crítica ao enrijecimento das fronteiras do cânone literário

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nacional) e instituem formas alternativas de divulgação de suas obras (numa atitude de repúdio a certos canais editoriais que restringem a literatura à condição de objeto de consumo).

Ao alinhavarmos os argumentos que sustentam o modelo da Literatura Negra e/ou Afrobrasileira nos damos conta de uma situação paradoxal e instigante: o fato de vários autores e autoras se autodeclararem negros ou negras para articularem suas obras a partir das experiências do sujeito negro (aspecto étnico) e se engajarem na luta em defesa dos direitos desse segmento social (aspecto político) não tem sido suficiente para tornar uma unanimidade o emprego dos conceitos Literatura Negra e/ou Afro-brasileira. Apesar do conflito estabelecido entre os defen-

sores dessas terminologias e os que hesitam em aplicá-las, é justo ressaltar que tal discussão coloca em xeque os paradigmas da Literatura Brasileira, questionando-os em nome de outras realidades sociais e de outras formulações estéticas. A fissura nos muros do cânone literário nacional é salutar, pois coloca em evidência a diversidade sociocultural do país, ao mesmo tempo em que aponta para a necessidade de uma contínua negociação para que as alteridades sejam reconhecidas e respeitadas.

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Edimilson de Almeida Pereira é poeta, ensaísta, professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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