Frankenstein, de Mary Shelley

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FRANKENSTEIN

♦ Informações sobre o autor e a obra

Para o jovem cientista Victor Frankenstein, o

♦ Curiosidades

mundo é um grande segredo a ser revelado. A

♦ Contexto histórico e literário

curiosidade infinita, a vontade de aprender como

♦ Escritores e personalidades da época ♦ Cronologia do autor

funcionam as leis da natureza e o êxtase sentido durante todo o processo de estudo e criação são os motivos que o levam a conceber uma estranha criatura. Porém, o resultado desse ambicioso projeto deixa o jovem transtornado, e sua vida começa a sofrer graves reveses. Frankenstein é considerado um dos primeiros romances de ficção científica da literatura universal. Na época em que foi lançado, início do século XIX, poucos sabiam que tinha sido escrito por uma mulher. Tendo belas paisagens europeias de pano

FRANKENSTEIN

com

OS C I S S Á L C DOS L UNIVERSA

MARY SHELLEY

ALMANAQUE

ÃO COLEÇ

Este volume apresenta

MARY SHELLEY

de fundo, a trama evoca sensações humanas como

“Dr. Frankenstein foi o modelo de todos os personagens de cientistas loucos que vieram depois. Ele bancou o mestre da vida e da morte, mas era um covarde. Em vez de cuidar da sua criatura, desmaiava cada vez que precisavam dele. Nesse aspecto, nós também fomos mais sortudos que o monstro. Se chegamos até aqui, é porque nossos ‘pais/ criadores’ não nos abandonaram. A lua de mel entre pais e filhos logo acaba. Quanto melhor andamos com nossas próprias pernas, mais eles somem. Onde foram parar aqueles super-heróis, imensos e poderosos, que tínhamos sempre por perto? Na verdade, os adultos não estão longe, seguem dando ordens, opiniões, até fazendo elogios. Só que já não confiamos no amor deles.” Diana Corso, psicanalista

o medo pelo desconhecido e a compaixão pelo diferente. Uma aventura gótica que nos faz pensar

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ainda nos limites éticos da ciência.

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ENSTEIN mary shelley

FRANKENSTEIN Tradução e adaptação

Rodrigo Machado Ilustrações

Flávio Grão

1a· edição

São Paulo — 2019

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Copyright © Rodrigo Machado, 2019 Todos os direitos reservados à EDITORA FTD S.A. Matriz: Rua Rui Barbosa, 156 — Bela Vista — São Paulo — SP CEP 01326-010 — Tel. (0-XX-11) 3598-6000 Caixa Postal 65149 — CEP da Caixa Postal 01390-970 Internet: www.ftd.com.br E-mail: projetos@ftd.com.br Diretor de conteúdo e negócios Gerente editorial Editor Editora assistente Coordenadora de produção editorial Preparadora Revisores Editor de arte Projeto gráfico Diagramadora Supervisora de iconografia Pesquisadora iconográfica Diretor de operações e produção gráfica

Ricardo Tavares de Oliveira Isabel Lopes Coelho Estevão Azevedo Camila Saraiva Letícia Mendes de Souza Ibraíma Dafonte Tavares Huendel Viana e Elisa Martins Daniel Justi Aeroestúdio Jussara Fino Elaine Bueno Rosa André Reginaldo Soares Damasceno

Tradução e adaptação de Frankenstein, Mary Shelley, Penguin Classics, 2014, ISBN 978-01413-933-91. Mary Wollstonecraft Shelley, escritora inglesa, nasceu em Londres em 30 de agosto de 1797 e faleceu em 1o de fevereiro de 1851, em Chester Square, Londres. Filha da feminista Mary Wollstonecraft e do filósofo William Godwin, foi autora de contos, ensaios, diários de viagens e do romance Frankenstein: ou O Prometeu moderno (1818), considerado um dos primeiros romances de ficção científica da literatura universal. Rodrigo Machado é paulistano. Desde criança é leitor voraz, principalmente de histórias de aventuras. Dedica-se atualmente à tradução e à adaptação de livros infantis e juvenis. Entre os livros que traduziu e adaptou estão A Ilha do Tesouro, As aventuras de Robin Hood e Canino Branco.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Shelley, Mary, 1797-1851. Frankenstein / Mary Shelley ; tradução e adaptação Rodrigo Machado ; ilustrações Flávio Grão. – 1. ed. – São Paulo : FTD, 2019. Título original: Frankenstein (Penguin Classics). ISBN 978-85-96-02174-6 ISBN 978-01413-933-91 (ed. original) 1. Ficção inglesa I. Machado, Rodrigo. II. Grão, Flávio. III. Título. 19-23558

CDD-823 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura inglesa 823 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

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SUMÁRIO A chave para descobrir os clássicos 6

por Luiz Antonio Aguiar

Almanaque 11 Convite à leitura 26

por Diana Corso

Primeira carta  31 Segunda carta  33 Terceira carta  35 Quarta carta  37 PARTE 1 CAPÍTULO 1 47 CAPÍTULO 2 51 CAPÍTULO 3 56 CAPÍTULO 4 64 CAPÍTULO 5 69 CAPÍTULO 6 76 CAPÍTULO 7 82 CAPÍTULO 8 90

PARTE 2 CAPÍTULO 1 99 CAPÍTULO 2 104 CAPÍTULO 3 111 CAPÍTULO 4

118

CAPÍTULO 5

125

CAPÍTULO 6

130

CAPÍTULO 7

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CAPÍTULO 8

142

CAPÍTULO 9 150

PARTE 3 CAPÍTULO 1 157 CAPÍTULO 2 163 CAPÍTULO 3 169 CAPÍTULO 4 177 CAPÍTULO 5 185 CAPÍTULO 6 192 CAPÍTULO 7 198

As aparências enganam 216

por Rodrigo Machado

Quem é Rodrigo Machado 219 Quem é Flávio Grão 221 Créditos das imagens 223

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A CHAVE Esta coleção convida você a participar de grandes aventuras: mergulhar nas profundezas da Terra, erguer sua lança contra feiticeiros e gigantes, conhecer os personagens mais fantásticos e mais corajosos de todos os tempos. Algumas dessas aventuras farão sucesso e vão lhe possibilitar novas maneiras de enxergar a vida e o mundo. Farão você rir, chorar — às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Revelarão segredos sobre você mesmo. E o levarão a enxergar mistérios do espírito humano. Outras ficarão na sua memória por anos e anos. No entanto, você poderá reencontrá-las, não somente nas prateleiras, mas dentro de si mesmo. Como um tesouro que ninguém nem nada jamais tirará de você. Você ainda poderá presentear seus filhos e netos com essas histórias e personagens. Com a certeza de estar dando a eles algo valioso — que lhes permitirá descobrir um reino de encantamentos. É isto que os clássicos fazem: encantam a vida de seus leitores. No entanto, sua linguagem, para os dias de hoje, muitas vezes pode parecer inacessível. Afinal, não são leituras

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VE PARA

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DESCOBRIR OS CLÁSSICOS

corriqueiras, comuns, dessas que encontramos às dúzias por aí e esquecemos mal as terminamos. Os clássicos são desafiantes. Por isso, esta coleção traz essas obras em textos com tamanho e vocabulário adaptados à atualidade, sem perder o poder tão especial que elas têm de nos transportar, de nos arrebatar para dentro da história. A ponto de poderem muito bem despertar em você a vontade de um dia ler as obras originais. Tomemos como exemplo a obra Robinson Crusoé: o navio do sujeito naufraga. Com muito esforço, ele nada até uma ilha que fica fora das rotas de tráfego marítimo e se salva. É o único sobrevivente. Ao chegar à praia, estira-se na areia, desesperado, convencido de que jamais retornará à civilização e disposto a se deixar morrer ali. Muita gente poderia dizer que essa história não apresenta elementos dramáticos para os dias de hoje, pois dispomos de diversos recursos para evitar que esse tipo de situação aconteça. Com mapas, rastreamento dos navios por satélites, equipes de busca munidas de super-helicópteros e computadores ultramodernos, ele logo seria resgatado. E... a história acabaria.

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No entanto, somos cativados pela luta desse homem, que foi privado de tudo o que conhecia e isolado do mundo durante quase trinta anos. A gente se envolve com o personagem; somos tocados pela sua força de caráter e pela sua persistência em reconstruir, pouco a pouco, a vida, criando, a partir do nada, um novo mundo. O espírito dessa obra não tem a ver com época ou recursos tecnológicos, mas com o dom de exibir o extraordinário. Não apenas o da fantasia, mas o do ser humano. Portanto, o extraordinário de cada um de nós. Os clássicos falam de amor, ciúme, raiva, busca pela felicidade como outras obras não falam. Vão mais fundo, ao mesmo tempo que são sutilmente reveladores. Não é à toa que atravessaram séculos (alguns, até milênios) e foram traduzidos para tantos idiomas, viraram filmes, desenhos animados, musicais, peças de teatro, histórias em quadrinhos. Existe algo neles que jamais envelhece, conserva-se intensamente humano. E mágico. Afinal, quem é capaz de ler Dom Quixote e não se divertir e se comover com o Cavaleiro da Triste Figura? Quem não torce para Phileas Fogg chegar a Londres, no dia e na hora marcados, e ganhar a aposta, depois de viajar com ele, superando obstáculos e perigos, nos 80 dias da volta ao mundo? Quem lê Os três mosqueteiros sem desejar, uma vez que seja, erguer uma espada junto com seus companheiros, gritando: UM POR TODOS E TODOS POR UM!? Os clássicos são às vezes mais vívidos do que a vida e seus personagens, mais humanos do que o ser humano, porque neles as paixões estão realçadas, e as virtudes e os defeitos de seus

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personagens são expostos com genialidade criadora, literária, em cenas que jamais serão esquecidas e falas que já nasceram imortais.

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Os clássicos investigam os enigmas do mundo e do coração, da mente, do espírito da gente. Eles falam de nossas dúvidas, de nossas indagações. Geralmente, não oferecem respostas, mas vivências que nos transformam e nos tornam maiores... por dentro. São capazes de nos colocar no interior do submarino Nautilus, vendo com olhos maravilhados prodígios imaginados por Júlio Verne em Vinte mil léguas submarinas. Ou nos levam à França do século XIX. Num piscar de olhos, estamos prontos para iniciar um duelo de espadas, noutro instante, intrigados, fascinados com a obsessão de Javert, um dos mais impressionantes personagens criados pela literatura. Assim como, em certos trechos, já nos vemos em fuga desesperada sofrendo com toda a injustiça que se abate sobre o herói de Os miseráveis. As traduções e adaptações desta coleção buscam proporcionar a você um acesso mais descomplicado aos clássicos, como se fosse uma chave para descobri-los, para tomar posse de um patrimônio. O melhor que a humanidade produziu em literatura. Luiz Antonio Aguiar Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-RJ. É escritor, tradutor, redator e professor em cursos de qualificação em Literatura para professores.

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ENSTEIN Y S HELLEY ALMANA

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QUE

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UMA VIDA ROMÂNTICA

Mary Shelley, por Samuel John Stump, de 1831

Mary Shelley tinha apenas 18 anos quando criou a horrenda criatura que ficou conhecida como Frankenstein. Ela não poderia imaginar que o seu monstruoso homem, que ela fez nascer em laboratório, percorreria a história e estaria até hoje vivo na nossa imaginação, amedrontando e cativando novos leitores e admiradores. E que um dia seu livro seria considerado a primeira obra de ficção científica. Quando foi publicado, em janeiro de 1818, com o título Frankenstein: ou O Prometeu moderno, o livro rapidamente conquistou o público e se tornou um best-seller. Mas, fato importante a ser destacado, o nome de Mary Shelley não aparecia na primeira edição. Poucos sabiam que por trás daquelas páginas vibrantes

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estava a mão de uma jovem mulher feminista, como sua mãe, e que havia pouco tempo fugira de casa com seu amante, o poeta romântico Percy Bysshe Shelley. Quando os dois se conheceram, ela tinha apenas 14 anos e vivia com o pai, o escritor e anarquista William Godwin, autor de um famoso e revolucionário tratado sobre justiça social publicado em 1793. Mary Wollstonecraft Godwin nasceu em Londres, em 30 de agosto de 1797, filha de um casal de pensadores radicais. Sua mãe, a filósofa feminista Mary Wollstonecraft, morreu poucos dias depois do seu nascimento, deixando, além da recém-nascida Mary, outra menina de um relacionamento anterior. Com ideias inovadoras e ousadas para a época e influenciados pela Revolução Francesa, seus pais eram bastante conhecidos no meio intelectual inglês. Como diria anos depois a jovem Mary – educada numa casa frequentada pela nata dos escritores ingleses, a exemplo dos poetas românticos Coleridge e Wordsworth –, seria difícil ela não se interessar por literatura e filosofia. Um desses visitantes era o jovem Percy Shelley, da segunda

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geração de poetas românticos, que frequentava a casa como se fosse um discípulo, inclusive ajudando financeiramente Godwin. Nessa época, o pai de Mary já havia se casado novamente com a vizinha Mary Jane Clairmont, que tinha um filho e uma filha. A relação da jovem escritora com esse poeta rebelde e defensor do amor livre acabou se tornando um escândalo: Percy, que era casado e tinha um filho, abandonou a esposa, Harriet, para fugir com Mary. Ele ainda não sabia que Harriet estava grávida de outra criança, que como o primeiro filho também não sobreviveria por muito tempo. Os amantes viveram como andarilhos pela Europa, acompanhados de Claire Clairmont, a filha da segunda esposa de Godwin. A primeira aventura dos três durou seis semanas, quando tiveram de retornar à Inglaterra de bolsos vazios. Sem dinheiro e morando em hospedarias, Mary perdeu o primeiro filho, nascido prematuramente. Em 1816, nasceu William (nome com o qual ela batizaria o irmão mais novo do personagem Victor Frankenstein), que viveu apenas três anos. Pouco tempo depois, o casal, mais uma vez acompanhado de Claire, saiu numa segunda viagem europeia, começando

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Percy Shelley, por Alfred Clint, de 1819

por Genebra, onde se encontraram com o poeta Lorde Byron. E Mary começou a escrever Frankenstein. De volta a Londres, em 1818, ela se casou oficialmente com Shelley, e seu romance foi publicado em três volumes. Pouco depois, recomeçaram as viagens, agora com destino à Itália. Além de Claire, o casal levou também os filhos William e Clara, e Allegra, filha de Claire e Byron. Mas a tragédia pessoal a esperava: seus dois filhos adoeceram e morreram, como também sua sobrinha. Nessa época, para escapar da depressão, ela escreveu outros dois romances, Matilda e Valperga. Em 8 de julho de 1822, aos 29 anos, Percy morreu afogado durante um naufrágio. Pelas leis italianas, ele teve de ser cremado na própria praia onde o corpo foi encontrado. Mary tinha apenas 25 anos. Ficou sozinha com o filho Percy Florence Shelley, nascido havia pouco. Sem ter

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como sobreviver na Itália, ela voltou para Londres em 1823. Além de 14 cuidar da obra do marido, editando minuciosamente seus poemas, ela passou a escrever biografias para uma enciclopédia, e também ensaios, contos, críticas e outros romances.

A escritora morreu em 1851, aos 53 anos de idade. Após sua morte, o filho descobriu entre seus guardados o coração calcinado do marido, que um colega salvara da cremação e entregara a ela, que o guardara amorosamente até o fim da vida.

◆ Ficção científica: É um gênero literário cujas origens remontam ao século XIX. Influenciadas por descobertas científicas como a eletricidade, além dos avanços na área da química, biologia e física, no início desse mesmo século, as narrativas que traziam componentes científicos como elementos-chave na trama começam a ser publicadas. Mary Shelley é uma das pioneiras no gênero. Além de histórias de monstros, muitos romances de ficção científica trazem outros gêneros junto, como a distopia, a fantasia, a aventura e o mistério. Grande parte das histórias se passa em sociedades futuras ou ainda em viagens interestelares de exploração de formas de vida inteligentes fora da Terra.

Pensei numa história capaz de evocar os medos misteriosos da nossa natureza e que despertasse um horror arrepiante. Mary Shelley, trechos da introdução de 1831

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Ordeno à minha horrenda criatura que siga adiante e viva. Mary Shelley, trechos da introdução de 1831

A ficção científica ganhou popularidade com ajuda do rádio, da televisão e das histórias em quadrinhos. No cinema, ganhou versões famosas a partir de romances, como o filme 2001: uma odisseia no espaço (1968), do diretor Stanley Kubrick, baseado no conto Sentinel of Eternity (1951) de Arthur C. Clarke; e Blade Runner (1982), de Ridley Scott, inspirado no romance Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968), de Philip K. Dick.

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ENCONTRO COM BYRON 16

Villa Diodati, onde morava Lorde Byron

Durante a temporada em Genebra, o casal Shelley acabou se encontrando com Lorde Byron (1788-1824), um dos grandes nomes do romantismo inglês, cuja vida amorosa e repleta de aventuras influenciou vários escritores europeus tanto quanto sua obra. Nessa época, ele morava numa mansão, chamada Villa Diodati, às margens do lago Léman. Os Shelley alugaram uma casa vizinha. O convívio entre os moradores acabou se estreitando, principalmente porque o verão foi marcado por fortes chuvas, impedindo os passeios ao ar livre.

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Num desses serões, em que liam, conversavam e discutiam, Byron sugeriu ao grupo — que contava também com a presença do médico John Polidori — que cada um escrevesse uma história de terror. Todos aceitaram o desafio. Byron esboçou uma história de mistério; Shelley mergulhou em suas lembranças de infância, mas acabou abandonando o projeto; o doutor Polidori pensou num personagem cuja cabeça era um crânio, mas também não deu prosseguimento (ele escreveria pouco depois um conto sobre vampiro, inspirado nas ideias

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de Byron). Mary, no entanto, preferiu continuar ouvindo as interessantes conversas daquele grupo, como uma discussão sobre o princípio da vida e sobre experimentos que poderiam reanimar um cadáver, como o galvanismo, teoria do

médico italiano Luigi Galvani sobre a bioeletricidade, ou eletricidade animal. Depois de algumas noites de insônia, pensando no terror que seria dar vida a um cadáver, ela concebeu sua criatura e seu criador: o doutor Frankenstein.

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◆ Galvanismo: Teoria criada pelo cientista e médico italiano Luigi Galvani. Num de seus experimentos com rãs mortas, ele percebeu que os músculos da perna do bicho se contraíam ao serem tocados por dois pedaços de metal. Ele chamou esse fenômeno de “eletricidade animal”, pois pensava que havia uma espécie de fluido vital, quando, na verdade, a reação era causada pelo metal.

A Liberdade guiando o povo, quadro de Eugène Delacroix, de 1830, em homenagem à Revolução Francesa

➔ A ERA DAS REVOLUÇÕES Mary Shelley viveu um período de grandes mudanças e agitações políticas e sociais, que reverberaram em sua obra, principalmente na

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concepção de Frankenstein. Esse período histórico que vai de 1789 a 1848, chamado pelo historiador Eric Hobsbawn (1917-2012) de “A Era das Revoluções”, marcou

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profundamente a história da humanidade, com fatos como a 18 Revolução Francesa, em 1789, e a Revolução Industrial na Inglaterra. Com o surgimento da indústria têxtil, a ciência e a tecnologia foram cada vez mais incentivadas. Um impulso importante foi o aperfeiçoamento da máquina a vapor, por James Watt, em 1765. Se a Inglaterra trouxe profundas transformações econômicas para a vida europeia, coube principalmente à França “fornecer o vocabulário e os

Frontispício do primeiro volume da Enciclopédia

temas da política liberal e radical-democrática para a maior parte do mundo”, como diz Hobsbawn. Sob a influência das ideias iluministas, a Revolução Francesa derrubou o Antigo Regime, dos privilégios feudais, abrindo caminho para o Estado democrático. Um dos marcos da revolução foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que pode ser sintetizada no ideal revolucionário de “liberdade, igualdade e fraternidade”.

◆ Iluminismo: Movimento filosófico e literário do século XVIII que se opunha ao obscurantismo, à superstição e à intolerância da Igreja e do Estado, colocando a razão no centro do conhecimento dos fenômenos do mundo. Também é conhecido como Século das Luzes e teve como grandes representantes Voltaire, D’Alambert, Diderot, Montesquieu e Rousseau, que participaram da escrita da famosa Enciclopédia, publicada em 35 volumes entre 1751 e 1772.

➔ ROMANTISMO Fruto das transformações sociais europeias, o Romantismo se desenvolveu do final do século XVIII até meados do século XIX, em oposição aos padrões clássicos e racionalistas anteriores, abrindo-se para uma nova concepção do homem, com a explosão da subjetividade. No lugar do predomínio da

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razão, o sentimento assumiu o comando das palavras e das formas literárias. Originando-se inicialmente na Alemanha e na Inglaterra, rapidamente chegou a outros países, como França e Itália. No Romantismo, o poeta parte do individual para atingir o universal, entra em conflito com o mundo real, sonha com a transformação da sociedade e com a liberdade, aprofunda-se na pesquisa de elementos culturais de seu país e sua história, e se funde com a natureza idealizada e pura. Os temas do amor, da religião e da sociedade o absorvem completamente. Além da literatura, o Romantismo engloba outras artes, como a pintura, a música e o teatro. Com o coração pulsando no centro de tudo, o artista genial e genioso é uma de suas fortes características. Poetas e romancistas como Goethe, Byron, Shelley, Musset, Balzac, Victor Hugo são apenas alguns nomes dessa intensa constelação literária que até hoje se faz sentir no nosso imaginário.

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O PRIMEIRO SCI-FI Considerado um romance gótico, Frankenstein deu um passo adiante na onda arrepiante começada com O castelo de Otranto, de Horace Walpole, de 1765, com seus castelos medievais, pesadelos terríveis e seres sobrenaturais. Ele abriu caminho para o que ficou conhecido, muito tempo depois, como ficção científica. Vários comentadores, como o escritor britânico Brian Aldiss (1925-2017), considerado um dos grandes mestres do gênero, enxergavam nas páginas de Mary Shelley um marco desse tipo de literatura. Para ele, a jovem escritora, sem abrir mão Frontispício ilustrado de uma edição de 1831 do terror tipicamente gótico, inseriu em sua narrativa a novidade da invenção científica. Seu doutor Victor Frankenstein não deixa de ser o arquétipo do cientista louco, obcecado por suas pesquisas e enclausurado em seu laboratório, onde procura dar vida a um corpo construído com restos de cadáveres. Ao roubar o fogo dos deuses, como um Prometeu moderno, ele se sente atormentado por sua invenção, que foge completamente de seu controle.

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O MITO DE PROMETEU 20

Prometeu e a criação do homem, esculpido em mármore no século III

Com argila e água, Prometeu criou os homens, que passaram a viver entre os deuses. Zeus pediu a Prometeu que definisse o que era dos mortais e o que era dos imortais. Prometeu então abateu um boi enorme, o esquartejou e o dividiu em duas partes, oferecendo uma a Zeus. Zeus escolheu a parte que lhe parecia a mais apetitosa, deixando a outra para os homens. O que ele não sabia era que o ardiloso Prometeu cobrira os ossos com a gordura e a carne com o couro e as sobras. Tapeado, Zeus vingou-se do titã escondendo o fogo dos homens. Nesse jogo de forças, Prometeu roubou uma centelha do Sol e a entregou aos homens. Com a ajuda de todos os deuses, Zeus contra-atacou: criou Pandora e a ofereceu a Prometeu, com uma caixinha que jamais poderia ser aberta. Ele não aceitou. Mas seu irmão Epimeteu encantou-se pela bela jovem e casou-se com ela. Certo dia, ela o convenceu a abrir a caixa e de dentro escaparam todos os males do mundo. Rapidamente a caixa então foi fechada, impedindo a saída apenas da esperança. Homens e deuses já não se assemelhavam. O último golpe de Zeus foi amarrar Prometeu no alto do monte Cáucaso, onde seu fígado, que tinha a capacidade de se reconstituir, era devorado diariamente por uma águia.

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O MONSTRO LEITOR

Durante seus anos de aprendizado, escondida em um abrigo — uma choupana grudada a um chalé —, a criatura de Mary Shelley observava a vida dos moradores da casa. E foi nesse atento exercício de observação que tomou conhecimento da linguagem dos homens, começou a nomear seus sentimentos e aprendeu a ler. Certa noite, encontrou três livros largados na mata: Paraíso perdido, de John Milton; Vidas paralelas, de Plutarco; e Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. Obras que a impressionaram, marcando-a profundamente.

Milton dita a suas filhas passagens de Paraíso perdido, quadro de Eugène Delacroix, de 1826

Plutarco, em ilustração para a edição francesa de Vidas paralelas, de 1565

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JOHN MILTON John Milton nasceu em Londres, em 9 de dezembro de 1608, e morreu em 1671. É considerado a glória da literatura inglesa, ao lado de Shakespeare, como disse o crítico Harold Bloom, para quem o poeta, autor do poema épico Paraíso perdido, tem poucos rivais na língua inglesa. Seu grande poema, que trata da criação do homem e da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, foi publicado em 1667, quando ele já se encontrava totalmente cego. Seu grande personagem dramático é Satã, que se rebela contra Deus. Esses elementos atraíram a atenção da criatura de Shelley, que se reconhecia em Satã por sua inveja e seu ódio aos protegidos de Deus. Milton, que teve a vida marcada pelas disputas políticas, também escreveu peças de teatro, tratados e panfletos republicanos. PLUTARCO Plutarco teria nascido no ano de 46 d.C. e morrido em 119 d.C., na cidade de Queroneia, na Grécia. Na juventude, foi estudar filosofia em Atenas, onde também se interessou por matemática, física, ciências naturais e medicina. Viajou pela Grécia e pelo Egito, e esteve várias vezes em Roma, tornando-se cidadão romano. Durante 20 anos, também foi sacerdote do Templo de Apolo.

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Deixou mais de 200 títulos escritos, mas sua obra mais importante é Vidas paralelas, na qual biografou grandes nomes da vida greco-romana, algumas vezes em pares comparativos, como Alexandre, o Grande, e Júlio César. A vida dos homens ilustres da Antiguidade foi uma fonte de conhecimento sobre a natureza humana — o ideal da virtude e a repugnância pela maldade — para a criatura criada por Victor Frankenstein.

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Goethe retratado por Johann Heinrich Wilhelm Tischbein em 1787

JOHANN WOLFGANG GOETHE Johann Wolfgang Goethe nasceu em Frankfurt, em 1749, e morreu em Weimar, em 1832. Sua primeira obra de grande impacto foi o romance Os sofrimentos do jovem Werther, publicado em 1774, que fez com que sua fama se espalhasse pelo mundo. Nessa narrativa epistolar, o apaixonado Werther exprime de modo exemplar, como diz o crítico Anatol Rosenfeld, “a dor do mundo de toda uma geração”. É um dos maiores representantes do movimento alemão Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), que foi marcado pela rebeldia e pelo irracionalismo, com alta voltagem emocional. É considerado um marco do romantismo, autor de obras fundamentais, como Fausto, obra de longa elaboração, cuja primeira parte foi publicada em 1809 e a última, em 1832.

AS ORIGENS DO DRÁCULA No mesmo serão na Villa Diodati, de Lorde Byron, outro personagem foi engendrado a partir daquelas conversas entre ele, Percy e Mary Shelley. Byron ensaiou um conto, cheio de mistério, mas foi o seu companheiro de viagem, o doutor John Polidori, quem escreveu o mais famoso deles: “O vampiro: um conto”, cuja publicação, em 1819, gerou certa controvérsia sobre a autoria, pois o texto foi publicado como sendo do grande e famoso poeta. No entanto, Polidori esclareceu em carta que ele mesmo o havia escrito.

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Essa pequena narrativa — em que o próprio Byron serviu de modelo para o assustador Lorde Ruthven — acabou servindo de inspiração para histórias de vampiros, como o famoso Drácula, de Bram Stoker (1897), que, por sua vez, foi fonte de vários filmes, como o clássico Nosferatu (1922), de F. W. Murnau.

Cena de Nosferatu, de F. W. Murnau, baseado em Drácula, de Bram Stoker

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O MITO CINEMATOGRÁFICO Quando se fala em Frankenstein, logo pensamos na figura de rosto retangular, de testa reta e cheia de grampos grosseiros, com o cabelo ensebado, grudado no alto da testa, além, é claro, dos dois pinos no pescoço. Essa imagem assustadora, fixada para sempre pelo ator Boris Karloff, ganhou o mundo no filme de James Whale, Frankenstein, de 1931, baseado no romance de Shelley. Foi nesse momento que o nome da criatura passou a ser o do Cartaz da primeira seu criador, o doutor Victor Frankenstein. Se o filme popularizou versão do filme o “mito moderno de Frankenstein”, como definiu o poeta e crítico Frankenstein, de 1931 José Paulo Paes, o personagem de Mary Shelley inspirou uma série de outros personagens no cinema, na televisão e até mesmo nos quadrinhos. Basta lembrar de Herman, do seriado televisivo Os Monstros, ou de Tropeço, o mordomo da Família Addams, ou ainda do super-herói dos quadrinhos O incrível Hulk. Enfim, clones ou replicantes que continuam alimentando o nosso imaginário — e talvez até a nossa realidade.

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1797 Nasce Mary Wollstonecraft Godwin, em 30 de agosto, filha de Mary Wollstonecraft e William Godwin. Em 10 de setembro, a mãe morre de infecção pós-parto, deixando, além da filha recém-nascida, outra filha de um relacionamento anterior. Mary Wollstonecraft, mãe de Mary Shelley, por John Opie, de 1797

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1801 24 Seu pai casa-se com a viúva Mary

Jane Clairmont, que tinha dois filhos, Charles e Claire.

1812 Num jantar em sua casa, Mary conhece o poeta Percy Shelley e sua esposa, Harriet. O jovem poeta é um discípulo do pai de Mary.

1814 Mary e Percy se apaixonam e, em julho, viajam para França, Suíça, Alemanha e Holanda, acompanhados de Claire Clairmont. Como Percy ainda está casado com Harriet, o pai de Mary corta relações com o casal. Sem dinheiro, os três voltam para a Inglaterra em agosto. Nasce o segundo filho de Percy com Harriet.

1815 Em janeiro, nasce prematuramente o primeiro filho de Mary, que vem a falecer seis semanas depois.

1816 Em janeiro, nasce o segundo filho de Mary, William. Em maio, eles viajam para a Suíça, quando se dá o famoso encontro com Lorde Byron, e Mary começa a escrever

Manuscrito de Frankenstein, com anotações à margem de Percy Shelley

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Frankenstein. O retorno para a Inglaterra será assombrado por notícias ruins: Fanny, sua meia-irmã, comete suicídio. Pouco depois, é a vez de Harriet, primeira mulher de Shelley, e que estava novamente grávida. Em dezembro, Mary e Percy se casam para que o poeta possa conseguir a guarda de seus filhos, mas esta lhe será negada.

1817 Mary termina a escrita de Frankenstein, que se tornará seu romance mais famoso, e passa a preparar a publicação de um diário de suas viagens com Shelley, que é lançado neste mesmo ano, anonimamente. Em setembro, nasce Clara, filha de Mary e Percy.

1818 Em março, sai publicado em três volumes Frankenstein: ou O Prometeu moderno, mas sem a assinatura da autora. Como o nome Shelley aparece na lombada, muitos pensam que a obra foi escrita pelo poeta. Walter Scott escreve uma crítica favorável, tomando Percy Shelley como autor. Mary lhe escreve uma carta esclarecendo a questão da autoria.

1819 Em junho, William Shelley morre de malária. Mary escreve Matilda, obra de temática incestuosa que ninguém

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quer publicar. O livro permanecerá inédito até 1959. Em novembro, Mary tem mais um filho: Percy Florence.

Começa a escrever artigos e contos curtos para jornais e revistas.

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1826 Publica The Last Man, um romance futurista, que se passa no ano de 2073. O livro, porém, não alcança o mesmo sucesso de sua obra-prima, apesar da crítica positiva.

O funeral de Percy Shelley, quadro de Louis Eduard Fournier, de 1889

1822 Em 8 de julho, Percy Bysshe Shelley e seu amigo Edward William morrem num naufrágio, na Itália, onde estavam vivendo. Seu corpo é cremado na própria praia onde é encontrado. Seus amigos ficam espantados com o fato de seu coração não queimar. Viúva aos 25 anos, Mary continua trabalhando nos seus escritos, mas também se empenha de corpo e alma na publicação da obra poética do marido.

1823 Mary volta para a Inglaterra com seu filho, Percy Florence. Publica Valperga: Or, The Life and Adventures of Castruccio, Prince of Lucca. Sai a segunda edição de Frankenstein, mas agora com o nome de Mary Shelley como autora.

1835 Publica o romance Lodore, considerado uma obra autobiográfica e de temática feminista. Saem também os primeiros volumes de Lives of the Most Eminent Literary and Scientific Men of Italy, Spain and Portugal, nos quais ela colabora com biografias sobre grandes escritores, como Petrarca, Boccaccio, Maquiavel e Cervantes.

1837 Publica o seu último romance, Falkner, no qual se debruça sobre a intrincada relação entre pai e filha.

1851 Mary Shelley morre em Londres no dia 1o de fevereiro, aos 53 anos de idade. A família consegue transportar do cemitério de St. Pancras os restos mortais de seus pais para que ela seja enterrada ao lado deles, no jardim da igreja de St. Peter, em Bouernemouth. Elaboração: Heitor Ferraz

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Mal abriu os olhos, o ser gigante criado pelo Dr. Victor Frankenstein descobriu que era um pavor. Nós temos mais sorte. Nascemos carecas e desdentados, mas mesmo assim costumamos achar bebês humanos fofos. Mas não dura muito. Somos como bonecos que ganham vida, queremos brincar em vez de brincarem conosco. Passamos a fazer as coisas sozinhos, espichamos, nascem pelos, espinhas, cheiros e timidez. Crescemos e às vezes nos sentimos medonhos. Depois que viramos adolescentes, os adultos nos dizem que estamos maravilhosos, que estamos com a aparência que todos queriam ter. Mas é raro quem acredite nisso. O jovem, quando se olha no espelho, só enxerga imper-

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feições. Passa um tempo se arrumando para ficar aceitável, então tira selfies para se convencer disso. Vai batendo uma vergonha do corpo, as portas do banheiro e do quarto se fecham, os adultos que nos faziam nos sentir lindos ficaram de fora. Quando enfim sozinhos pela primeira vez, nos enxergamos feios, estranhos, até deformados. Imagina se algum dia alguém vai achar “isso” irresistível… Dr. Frankenstein foi o modelo de todos os personagens de cientistas loucos que vieram depois. Ele bancou o mestre da vida e da morte, mas era um covarde. Em vez de cuidar da sua criatura, desmaiava cada vez que precisavam dele. Nesse aspecto, nós também fomos mais

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sortudos que o monstro. Se chegamos até aqui, é porque nossos “pais/ criadores” não nos abandonaram. A lua de mel entre pais e filhos logo acaba. Quanto melhor andamos com nossas próprias pernas, mais eles somem. Onde foram parar aqueles super-heróis, imensos e poderosos, que tínhamos sempre por perto? Na verdade, os adultos não estão longe, seguem dando ordens, opiniões, até fazendo elogios. Só que já não confiamos no amor deles. Se formos bem cuidados, podemos ser amorosos e inteligentes; mas, quando abandonados, nos tornamos piores que bicho. Por isso, o gigante de Frankenstein diz de nós. O monstro joga nos outros a culpa por tudo o que ele faz e sente.

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Como ele, mesmo depois de muito mimo, achamos que fomos desprezados, abandonados. Na verdade, somos nós que, de olho em tudo o que há de bom lá fora, vamos nos distanciando dos de casa. Esta história foi escrita há dois séculos e de lá para cá teve muitas versões. Virou peça de teatro, filme, a cada vez sendo contada de um jeito diferente. Esta criatura nunca morre, ela renasce para nos fazer pensar quando nos sentimos horrorosos, solitários e magoados. Os monstros da literatura existem para purgar nosso monstro interior e nos ajudar a nunca ser assim na vida real.

Diana Corso, psicanalista

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FRANKEN

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ENSTEIN

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Primeira carta

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À Sra. Saville, Inglaterra São Petersburgo, 11 de dezembro de 17... Ficará feliz ao saber que minha aventura começou sem nenhum grande desastre, apesar dos seus presságios sinistros. Cheguei ontem e logo quis assegurar à minha querida irmã que estou bem, cada vez mais confiante no sucesso desta empreitada. Já estou bem ao norte de Londres e andando nas ruas daqui sinto uma brisa fria que me enche de alegria. Essa brisa, que viajou desde as regiões para onde estou indo, traz um gosto antecipado daquele clima gelado. É um vento que me inspira e torna meus sonhos mais fervorosos e vívidos. Tento, sem sucesso, convencer-me de que o polo é um local gelado e desolado, mas sempre penso nele como uma região da beleza e da alegria. Lá o sol é sempre visível, apenas tocando o horizonte num esplendor perpétuo. Os navegantes anteriores contam que lá não há neve nem geada e se pode navegar em mar calmo até uma terra que ultrapassa em maravilha e beleza qualquer outra região já descoberta no mundo habitável. O que podemos esperar de um lugar onde a luz é eterna? Pode ser que por lá eu descubra que poder incrível atrai a agulha da bússola e possa esclarecer de uma vez seus comportamentos excêntricos. Tenho que saciar minha curiosidade ardente. Quero pisar em terra nunca tocada por pés humanos. Seria imenso o valor da descoberta, de uma passagem próxima ao polo para terras que hoje só são alcançadas depois de meses de viagem,

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ou o desvendar do segredo do magnetismo. Apenas uma jornada como a minha seria capaz de beneficiar a humanidade com essas descobertas. Sinto meu coração pulsar num entusiasmo que me eleva ao céu. Nada é mais tranquilizador que um firme propósito, um ponto onde sua alma possa fixar seu olhar. Essa expedição foi meu sonho favorito desde a infância. Li com ardor os relatos de viagens feitas para chegar ao norte do Pacífico através dos mares que circundam o polo. Essas visões perderam importância quando li pela primeira vez os poetas que me encantaram. Sabe que cheguei a me tornar um poeta, mas com o tempo percebi que não haveria lugar para meu nome no templo que abriga Homero e Shakespeare. Foi profunda a minha decepção, mas justo naquela época herdei a fortuna de meu primo, e meus pensamentos voltaram ao rumo anterior. Seis anos se passaram desde que decidi que realizaria esta empreitada. Comecei fortalecendo meu corpo. Acompanhei os baleeiros em várias expedições ao Mar do Norte. De propósito suportei frio, fome, sede e privação de sono. Com frequência trabalhei mais pesado que os marinheiros durante o dia e dediquei minhas noites ao estudo da matemática, da teoria da medicina e dos ramos da física que seriam mais úteis em minha aventura naval. Por duas vezes me engajei como oficial em um baleeiro groenlandês e correspondi às expectativas. Esta é a época mais favorável para se viajar na Rússia. Voa-se sobre a neve nos trenós daqui. O movimento é mais agradável que o de uma diligência inglesa. O frio não é excessivo se você estiver coberto com peles. Devo partir para Arcangel em duas ou três semanas. Meu plano é alugar ali um navio e contratar marinheiros acostumados à pesca de baleias tantos quantos forem necessários. Não pretendo zarpar antes de junho e não faço ideia de quando retornarei. Se tiver sucesso, serão muitos meses, talvez anos. Se falhar, poderá rever-me em breve, ou nunca mais. Adeus, querida Margaret. Que os céus lhe derramem suas bênçãos e me protejam. Seu afetuoso irmão, R. Walton

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Segunda carta

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À Sra. Saville, Inglaterra Arcangel, 28 de março de 17... Como o tempo passa devagar com todo este frio e neve! Ainda assim, mais um passo foi dado em minha jornada. Aluguei uma embarcação e estou recrutando marinheiros. Aqueles que já contratei parecem ser homens em quem posso confiar e com certeza são corajosos e destemidos. Mas tenho uma vontade que nunca pude satisfazer. Não tenho um amigo sequer, Margaret. Quando estou radiante com o sucesso, não há quem compartilhe do meu entusiasmo. Quando estou assolado pela decepção, ninguém se esforça em apoiar-me. Preciso limitar meus pensamentos ao papel, mas esse é um meio precário para comunicar sentimentos. Gostaria de ter ao meu lado um amigo com quem pudesse criar cumplicidade, com gostos e cultura parecidos, que pudesse conversar sobre meus planos e propor-me ajustes. Alguém que compensasse as falhas do seu pobre irmão! Sou impulsivo demais na execução e impaciente diante das dificuldades. Bem, são queixas inúteis, com certeza não encontrarei nenhum amigo no vasto oceano, nem em Arcangel, entre mercadores e marujos. No entanto, mesmo o coração mais rude pode nutrir algum sentimento nobre. Meu imediato, por exemplo, é um homem de coragem e recursos extraordinários. Conheci-o a bordo de um navio baleeiro e, ao saber que estava desempregado nesta cidade, contratei-o com facilidade para me ajudar nessa empreitada.

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O contramestre é uma pessoa de ótima disposição que se destaca no navio por sua gentileza e disciplina moderada. Tal característica, aliada à sua conhecida integridade e coragem destemida, fez com que eu quisesse muito contratá-lo. No papel de capitão, não poderia suportar a repulsa que sinto pela brutalidade que é usual exercerem a bordo. O inverno foi rigoroso e severo, mas muitos acreditam que a primavera começará bem cedo este ano, então talvez possamos zarpar antes do previsto. Não farei nada precipitado, conhece-me o suficiente para confiar em minha prudência e no cuidado que sempre terei quando a segurança de outras pessoas estiver sob minha responsabilidade. Será que a verei de novo, depois de atravessar mares imensos, retornando pelo extremo sul da África ou da América? Não ouso esperar tamanho sucesso, ainda que não possa encarar o outro lado dessa moeda. Continue a escrever sempre que for possível, pode ser que eu receba suas cartas nas ocasiões em que mais precise delas para levantar meu moral. Amo-a com muita ternura. Lembre-se de mim com afeto, caso nunca mais tenha notícias minhas. Seu afetuoso irmão, Robert Walton

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Terceira carta

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À Sra. Saville, Inglaterra 7 de julho de 17... Minha cara irmã, Escrevo estas poucas linhas com pressa para contar que estou em segurança e bem avançado em minha jornada. Esta carta deve chegar à Inglaterra por meio de um mercador que sai de Arcangel de volta para casa. Mais afortunado que eu, que talvez não veja minha terra natal por muitos anos. Estou, contudo, com o moral alto. Meus homens são corajosos e aparentam firmeza de propósito. Nem os lençóis de gelo flutuante que passam a toda hora, lembrando-nos dos perigos da região para onde rumamos, parecem desencorajá-los. Já chegamos a uma latitude alta, mas é o pico do verão, e, embora não sejam tão quentes como na Inglaterra, os ventos vindos do sul nos empurram em direção aos litorais que tanto desejo alcançar e sopram um calor renovador inesperado. Nenhum incidente até agora merece figurar numa carta. Uma ou duas ventanias mais severas e a descoberta de uma trinca no casco da embarcação são eventos que um marinheiro experiente mal pensa em registrar. Ficarei muito satisfeito se nada pior acontecer durante nossa jornada. Adeus, querida Margaret. Fique certa de que, se depender da minha vontade, não entrarei em perigo sem pensar. Serei frio, perseverante e prudente.

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Mas o sucesso deve coroar meu esforço. Por que não? Já cheguei bem longe traçando um caminho seguro por mares nunca mapeados, com as estrelas servindo de prova e testemunho do meu triunfo. O que pode parar o coração determinado e a vontade resoluta de um homem? Preciso encerrar esta carta. Que os céus a abençoem, minha amada irmã! R. W.

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Quarta carta

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À Sra. Saville, Inglaterra 5 de agosto de 17... Aconteceu algo tão estranho que preciso registrar, ainda que seja provável que nos vejamos antes que tenha esta carta em mãos. Na última segunda-feira, 31 de julho, ficamos presos no gelo, que se fechou em volta do navio, mal deixando espaço para flutuarmos. Nossa situação era preocupante, em especial por estarmos envolvidos por um nevoeiro muito denso. Tivemos de parar, na esperança de que algo mudasse o clima. Por volta das duas horas a neblina dissipou-se, e pudemos ver, espalhando-se em todas as direções, vastas e irregulares planícies de gelo que pareciam não ter fim. Alguns marinheiros suspiraram, e minha mente já começava a lidar com pensamentos ansiosos quando uma estranha visão atraiu nossa atenção. Notamos uma carruagem baixa sobre um trenó puxado por cães, seguindo em direção ao norte, a cerca de um quilômetro. Sentado sobre ela e guiando os cães, uma criatura com a forma de um homem, mas de estatura gigantesca. Observamos o rápido progresso do viajante com nossos telescópios até perdê-lo entre as irregularidades do gelo. Essa aparição causou muita admiração a todos. Estávamos a muitas centenas de quilômetros de terra firme, mas aquela visão parecia desmentir isso. De qualquer forma, presos no gelo, não havia como seguir sua trilha.

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Cerca de duas horas depois, ouvimos o ronco do mar, e, antes de a noite chegar, o gelo se quebrou e libertou nosso barco. Permanecemos ali até o amanhecer, temendo encontrar no escuro uma daquelas enormes massas de gelo que flutuavam por todos os lados. Aproveitamos para descansar algumas horas. À primeira luz, subi ao convés e encontrei todos os marinheiros ocupados com algo em um dos lados da embarcação. Pareciam falar com alguém no mar. De fato, à deriva sobre um grande pedaço de gelo, havia um veículo como o que víramos no dia anterior. Restava apenas um cão vivo, além de um homem a quem os marinheiros tentavam convencer a subir a bordo. Esse não era como o outro viajante solitário, que parecia um habitante selvagem de alguma ilha remota. Era um europeu. Quando apareci no convés, o contramestre disse: — Eis nosso capitão. Ele não permitirá que morra no mar. Ao notar minha presença, o estranho dirigiu-se a mim em inglês, com um sotaque estrangeiro: — Antes que eu suba a bordo, o senhor teria a gentileza de informar-me qual é o seu rumo? Pode imaginar o tamanho do meu espanto ao ouvir tal pergunta vinda de um homem naquela situação. Respondi que estávamos em uma jornada rumo ao polo norte. Ao ouvir isso, aparentou satisfação e concordou em subir a bordo. Seu estado era lamentável. Suas pernas estavam congelando e seu corpo, muito maltratado pela fadiga e pelo sofrimento. Nunca vi alguém tão castigado. Desmaiou assim que subiu a bordo, e o levamos para perto do fogão da cozinha, onde o embrulhamos com cobertores. Aos poucos foi melhorando, até conseguir comer um pouco de sopa. Precisou de dois dias para ter forças para falar, e muitas vezes tive medo de que as privações tivessem prejudicado sua razão. Instalei-o em meu camarote e dei-lhe tanta atenção quanto minhas tarefas permitiram. Nunca vi ninguém tão interessante. Em geral seus olhos expressam selvageria, até mesmo loucura, mas quando reage a algum ato gentil ou à

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mais simples assistência, toda a sua feição se ilumina e é como se recebesse um facho de bondade e doçura que nunca vi igual. Porém, quase sempre exibe um ar melancólico e desesperado, algumas vezes rangendo os dentes, como se oprimido pelo peso de um grande tormento. Quando se recuperou mais um pouco, tive muito trabalho para manter os homens afastados. Queriam fazer-lhe mil perguntas, mas não poderia deixar aquela curiosidade sem sentido atormentar sua recuperação. Contudo, uma vez o imediato indagou por que viera tão longe sobre o gelo naquele estranho veículo. Sua expressão logo assumiu um aspecto de profundo pesar, e ele respondeu: — Perseguindo alguém que fugia de mim. — E o homem que perseguia viajava da mesma forma? — Sim. — Então creio que o vimos. Pois um dia antes de o resgatarmos vimos um trenó com um homem sobre o gelo. Isso despertou a atenção do estranho, que fez uma série de perguntas sobre a rota do monstro, como se referia à criatura. Logo depois, quando ficamos sozinhos, ele disse: — Sem dúvida aticei sua curiosidade, assim como a de toda essa boa gente, mas é educado demais para fazer perguntas. — Seria muita impertinência e desumanidade da minha parte importuná-lo com um interrogatório. — Ainda que tenha me salvado de uma situação estranha e perigosa. Foi muito bondoso. Em seguida quis saber se eu achava que o outro trenó fora destruído pelo gelo ao se quebrar. Respondi que não podia afirmar com certeza, pois o gelo não havia se quebrado até a meia-noite, e o viajante poderia ter chegado a algum local seguro. A partir de então um novo estado de espírito animou sua figura. Quis ir ao convés para ver o estado do trenó em que viajava. Aconselhei-o a permanecer abrigado, pois ainda estava fraco demais para suportar o

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rigor do clima. Fiz a promessa de que sempre haveria alguém vigiando e que ele seria comunicado assim que qualquer objeto fosse avistado. Esse é o meu registro sobre essa estranha ocorrência até agora. A saúde do estranho parece melhorar de forma gradual. Da minha parte, comecei a apegar-me a ele como se fosse um irmão, e sua tristeza constante e profunda me enche de compaixão e piedade. Deve ter sido uma nobre criatura em seus melhores dias, sendo tão amável e encantador nesse atual estado miserável. Em outra carta duvidara que pudesse encontrar um amigo no vasto oceano. Mas achei um homem que, caso seu espírito não tivesse sido massacrado pela angústia, poderia acolher feliz como irmão de coração. Continuarei a manter este registro sobre o estranho, sempre que houver eventos a relatar.

13 de agosto de 17... Meu afeto pelo meu hóspede cresce a cada dia. Ele é muito gentil e sábio, sua mente é muito culta, e, quando ele fala, as palavras, ainda que pareçam escolhidas a dedo, fluem com rapidez e eloquência sem igual. Já se recuperou quase por completo, e está sempre no convés, parecendo procurar o outro trenó. Apesar de toda a sua tristeza, manifesta profundo interesse pelos projetos e afazeres dos demais. Conversou várias vezes comigo sobre minha empreitada, sobre a qual nada ocultei. Prestou atenção a todos os argumentos que me fazem otimista quanto ao sucesso da viagem, bem como a cada detalhe das medidas de segurança adotadas. Fiquei tocado pela simpatia com que se referiu ao ardor com que me disponho a sacrificar minha fortuna e até mesmo minha vida em busca de um objetivo maior. Respondi que a vida ou a morte de um homem é um preço barato a pagar pelo conhecimento que busco e pretendo compartilhar com a humanidade. Notei que, enquanto eu falava, um ar sombrio tomou conta de seu rosto. No início, buscou esconder essa emoção, mas acabou colocando as

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mãos diante do rosto, e as lágrimas escorreram entre seus dedos enquanto um gemido surgiu do peito. Parei de falar. Afinal ele disse: — Homem infeliz! Compartilha da minha loucura! Bebeu demais? Ouça-me! Quando conhecer minha história, ficará surpreso! Tais palavras, pode imaginar, excitaram demais minha curiosidade. Mas a intensidade da dor foi demais para figura tão debilitada, que precisou de muitas horas de repouso para se recuperar. Quando retomou o controle das emoções, pediu desculpas por ter cedido às paixões daquela maneira, e encaminhou a conversa para minha própria personalidade. Quis saber sobre a história da minha infância, que foi contada com rapidez, mas despertou várias reflexões. Contei sobre minha vontade de encontrar um amigo e do meu desejo por um convívio mais próximo com alguém com quem tivesse afinidade. — Concordo contigo — respondeu o estranho. — Uma vez tive um amigo que era a mais nobre das criaturas, então creio ser capaz de falar sobre a amizade. O senhor pode ter esperança, pois tem o mundo à sua frente e não tem razão para desespero. Mas eu perdi tudo e não tenho como recomeçar. Quando disse isso, assumiu um ar de dor conformada e serena que tocou meu coração. Mas manteve-se calado e retirou-se para o camarote.

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19 de agosto de 17... Ontem o estranho me disse: — É fácil perceber, capitão Walton, que sofri enormes infortúnios. Prometera a mim mesmo que a lembrança desses desastres morreria comigo. Mas o senhor fez-me mudar de ideia. Busca conhecimento e sabedoria, como já busquei, e não quero que a satisfação dos seus desejos acabe sendo como uma serpente que lhe pique como eu fui picado. Não sei se o relato sobre meus desastres terá utilidade, mas quando percebo que pode

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estar tomando o mesmo rumo, expondo-se aos mesmos perigos que me deixaram assim, imagino que haja algo a aprender com a minha história. Algo que sirva como guia em caso de sucesso ou consolo diante da falha. Prepare-se para ouvir ocorrências maravilhosas. Pode imaginar como fiquei satisfeito com a oferta. Fiquei ansioso por ouvir a narrativa prometida, em parte por curiosidade, mas também pelo forte desejo de melhorar sua situação, caso estivesse ao meu alcance. Expressei esses sentimentos em resposta. — Muito obrigado por sua compaixão — replicou —, mas ela é inútil, meu destino está quase cumprido. Falta só um evento, e depois poderei descansar em paz. Se puder contar minha história entenderá como isso é irremediável. Então disse que começaria a narrativa no dia seguinte, quando eu estaria de folga. Agradeci calorosamente. Resolvi que a cada noite, desde que não esteja assoberbado pelo trabalho, registrarei, tentando usar suas palavras o máximo possível, o que ele tiver me relatado durante o dia. Se estiver atarefado, ao menos tomarei notas.

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CAPÍTULO 1 47

Nasci em Genebra e minha família é uma das mais prestigiadas naquela República. Meu pai ocupou diversos cargos públicos com honra e reputação. Era respeitado por todos os que o conheciam, por sua integridade e atenção infatigável ao interesse público. Passou a juventude sempre ocupado com assuntos do seu país. Várias circunstâncias impediram que se casasse cedo, e tornou-se marido e pai de família quando sua vida já declinava. Como as circunstâncias desse casamento contam muito sobre seu caráter, não posso deixar de relatar como foi. Um dos seus amigos mais próximos era um mercador que, devido a alguns reveses, perdera a fortuna e mergulhara na pobreza. Esse homem, chamado Beaufort, era muito orgulhoso e teimoso, e não suportou seguir vivendo na pobreza e esquecimento onde antes desfrutara de prestígio e riqueza. De forma honrosa, após ter pagado suas dívidas, retirou-se com a filha para Lucerna, onde passou a viver anônimo, na miséria. Meu pai dedicava amizade sincera a Beaufort e ficou muito aflito com a situação. Sem perder tempo, procurou-o com a esperança de convencê-lo a usar seu crédito e ajuda para recomeçar a vida. Beaufort tomara algumas medidas para não ser encontrado, e só após dez meses meu pai descobriu seu paradeiro. Entusiasmado, dirigiu-se ao local, uma casa numa rua secundária perto do rio Reuss. Mas, quando entrou na casa, desespero e tormento o receberam. Três meses

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após ter se estabelecido ali, Beaufort adoecera e caíra de cama, abatido pelo ócio e pelo desânimo. A filha tomava conta dele com grande ternura e via desesperada que a pequena reserva, preservada do desastre financeiro pelo pai, ia ficando cada vez menor. Mas a coragem de Caroline Beaufort fez com que enfrentasse a adversidade. Trançando cestos de palha, conseguia ganhar o bastante para não morrerem de fome. Vários meses se passaram dessa forma. O pai só piorava e exigia cada vez mais cuidados dela, que já não conseguia ganhar o suficiente com seu trabalho. No décimo mês, o pai morreu em seus braços, deixando-a órfã e miserável. Esse golpe derradeiro acabou por derrubá-la. E ela então deitou-se aos pés do caixão do pai e começou a chorar, bem na hora em que meu pai entrava na casa. Ele veio como um anjo protetor para a pobre garota, a quem prometeu ajuda. Após o funeral do amigo, levou-a para Genebra e abrigou-a. Dois anos depois, Caroline tornou-se sua esposa. Havia uma diferença considerável de idade entre meus pais, mas esse fator parecia uni-los ainda mais. Como se quisesse compensar todo o seu sofrimento, meu pai fazia questão que todas as vontades de minha mãe fossem satisfeitas e tudo corresse de acordo com sua conveniência. Procurava protegê-la como um jardineiro protege uma planta frágil e exótica do vento rude. Durante os dois anos decorridos antes do casamento, meu pai tratou de encerrar todas as suas funções públicas, e logo depois da união foram em busca do clima ameno da Itália. Depois da Itália visitaram a Alemanha e a França. Eu, o mais velho dos seus filhos, nasci em Nápoles, e ainda pequeno acompanhei-os em suas viagens. Durante muitos anos fui filho único. Minhas lembranças mais remotas são sobre o carinho de minha mãe e o sorriso do meu pai enquanto me observava. Por um bom tempo cuidaram apenas de mim. Minha mãe queria muito ter uma filha, mas continuei sendo o único filho. Quando tinha uns 5 anos, durante uma excursão além das fronteiras da Itália, passaram

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uma semana às margens do lago de Como1. Sua bondosa disposição muitas vezes levava-os a entrar na casa dos pobres. Pois minha mãe, talvez devido ao que sofrera e como fora salva, tinha uma necessidade apaixonada de agir como o anjo da guarda dos aflitos. Durante uma dessas visitas, uma pequena choupana chamou sua atenção tanto pelo aspecto desolador quanto pelo estado miserável das crianças que brincavam em volta. Era o retrato perfeito da penúria. Um dia, quando meu pai viajava para Milão, minha mãe, acompanhada por mim, visitou esse local. Encontrou um camponês e sua esposa, abatidos pelo trabalho duro, distribuindo uma refeição escassa entre cinco crianças famintas. Entre elas havia uma que, mais que todas, atraiu a atenção de minha mãe. Era diferente das demais. Estas tinham olhos e cabelos escuros, enquanto a outra tinha cabelos claros e olhos azuis. Suas feições eram tão belas e doces que era impossível que alguém olhasse para ela sem pensar em uma criatura celeste. A camponesa, notando que minha mãe não tirava os olhos da menina, logo contou sua história. Não era sua filha, mas de um nobre milanês. A mãe era alemã e morrera ao dar à luz. A criança fora deixada para aquelas boas pessoas cuidarem quando estavam em uma situação melhor. Tinham se casado havia pouco tempo e o filho mais velho acabara de nascer. Ocorre que o pai da menina acabou caindo em desgraça e ninguém sabia se estava morto ou se apodrecia em uma masmorra na Áustria. Suas propriedades foram confiscadas e a menina se tornou uma órfã sem nenhuma posse. Continuou sendo criada pelos pais adotivos, onde florescia entre os irmãos.

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Lago situado na atual região da Lombardia, 49 no noroeste da Itália, próximo à fronteira com a Suíça. Suas águas são de origem glacial, ou seja, de neve derretida das montanhas que ficam entre a Suíça e a Itália.

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Quando meu pai voltou de Milão, encontrou-me na entrada de nossa vila, brincando com uma criança mais linda que o mais belo querubim jamais pintado. Depois de explicar-lhe a aparição, com sua permissão minha mãe convenceu os camponeses a entregarem a menina aos seus cuidados. Eles gostavam da pequena órfã. Sua presença fora-lhes uma bênção, mas seria injusto mantê-la naquela privação quando a Providência lhe trazia tamanha proteção. Consultaram o bispo da aldeia e o resultado foi que Elizabeth Lavenza passou a morar na minha casa e, muito mais que uma irmã para mim, veio a ser uma linda e amada companhia em todas as minhas ocupações e diversões. Nos chamávamos de primos. Mas nenhuma palavra ou expressão poderia descrever o tipo de relação que cultivamos.

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CAPÍTULO 2 51

Nossas idades eram bem próximas e crescemos juntos. Não havia entre nós nenhum tipo de disputa ou desunião. A harmonia dava o tom do nosso companheirismo, e a diferença e o contraste entre nossos temperamentos nos aproximavam ainda mais. Enquanto minha companheira contemplava e apreciava as aparições magníficas da natureza, eu me divertia investigando suas causas. Para mim, o mundo era como um segredo a ser revelado. Curiosidade, vontade de pesquisar e aprender sobre as leis da natureza, o êxtase sentido nesse processo, são algumas das sensações mais remotas de que tenho lembranças. Com o nascimento do segundo filho, sete anos mais novo que eu, meus pais abandonaram de vez a vida errante e estabeleceram-se em sua terra natal. Possuíamos uma casa em Genebra e uma casa de campo em Bellerive, na margem leste do lago, a menos de dois quilômetros da cidade. Passávamos mais tempo nesta última, em razoável isolamento. Meu temperamento sempre foi avesso a multidões, por isso preferia apegar-me a poucos. Era indiferente aos meus colegas de escola em geral, porém criei fortes laços de amizade com um deles. Henry Clerval era filho de um mercador de Genebra. Adorava empreender, trabalhar duro, e chegava a gostar do perigo. Lia muitos livros sobre cavalaria e romances. Meu gênio era às vezes violento, e minhas paixões, veementes. Por alguma razão, meu temperamento não era atiçado por desejos infantis, mas por minha vontade de aprender. Porém, não queria aprender

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Cidade medieval francesa, às margens do lago Léman, próxima à fronteira com a Suíça.

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Viveu entre 1486 e 1535 na região da atual Alemanha e foi autor de um tratado sobre magia e ocultismo, o De Occulta Philosophia libri tres, na época da Renascença.

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qualquer coisa. Eram os segredos da terra e do céu que queria descobrir, fosse a substância das coisas, o espírito da natureza ou os mistérios da alma humana. A alma de Elizabeth iluminava a nossa casa. Seu sorriso, seu olhar doce e sua voz aveludada eram uma bênção. Minha paixão pelos estudos poderia ter me tornado rabugento, mas lá estava sua gentileza a amainar meu humor. Sinto imenso prazer em lidar com essas lembranças da infância, antes que o infortúnio passasse a atormentar minha mente e mudasse suas visões brilhantes em reflexões sombrias. Além disso, ao pintar este meu retrato de criança, registro os eventos que me levaram a passos insensatos rumo ao meu tormento. Meu destino foi traçado pela filosofia da natureza. Dessa maneira, meu desejo nesta narrativa é mencionar os fatos que nutriram essa minha predileção. Quando tinha 13 anos de idade, partimos numa alegre excursão a Thonon-les-Bains2. A inclemência do clima nos confinou por um dia inteiro na hospedaria, onde encontrei um volume com a obra de Cornélio Agrippa3. Indiferente, comecei a ler sobre sua teoria, mas os fatos prodigiosos relatados logo me entusiasmaram. Cheio de alegria, contei sobre minha descoberta ao meu pai. Ele olhou descuidado para o título do livro e disse: — Ah, Cornélio Agrippa! Meu querido, não perca tempo com esse lixo. Se, ao invés desse comentário, ele tivesse encarado o desafio de me explicar que as premissas de Agrippa haviam sido implodidas por completo, e que um sistema moderno de ciência, apoiado na realidade e

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na experiência prática, fora introduzido, possuindo muito mais força que o anterior baseado em quimeras, eu teria deixado Agrippa de lado e retornado com o mesmo ardor aos meus estudos anteriores. Pode ser até que o curso dos acontecimentos nunca tivesse dado o impulso fatal que me levou à ruína. Mas o olhar desdenhoso de meu pai ao meu livro não deu a entender que ele sabia do que se tratava, e assim continuei em minha ávida leitura. Quando voltei para casa, a primeira coisa que fiz foi procurar pelas obras completas desse autor, e em seguida as de Paracelso e de Alberto Magno4. Li e estudei as fantasias selvagens desses autores com prazer. Pareciam um tesouro conhecido por poucos além de mim. Sempre fui imbuído de uma vontade irresistível de penetrar nos segredos da natureza e revelar os mistérios maravilhosos em torno da vida. Podemos dissecar, estudar anatomia, dar nomes, mas desconhecemos a razão para a vida. Nesse sentido, o mais culto dos cientistas sabe pouco mais que o mais simples dos camponeses. Decidido a penetrar mais fundo nos mistérios da natureza, acreditei em tudo o que esses autores afirmavam e me tornei seu discípulo. Pode parecer estranho que isso tenha acontecido em pleno século XVIII, mas, apesar de seguir o currículo das escolas de Genebra, eu era um autodidata no que se refere aos meus estudos preferidos. Meu pai não se interessava por ciências e prevaleceu minha inocência juvenil aliada à minha sede de conhecimento. Guiado por esses novos mentores, mergulhei na busca pela pedra filosofal e pelo elixir da vida, mas este último

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Paracelso era o pseudônimo de Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493-1541), médico, alquimista, físico e astrólogo suíço-alemão, autor do nome do elemento Zinco. Já Alberto Magno (c.1193-1280) foi um filósofo, astrólogo e teólogo católico da Idade Média. 4

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São também conhecidos como cordilheira do Jura. Trata-se de uma cadeia de montanhas ao norte dos Alpes, entre a França, a Suíça e a Alemanha.

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Nome dado ao conjunto de fenômenos responsáveis pela geração de correntes elétricas por meios químicos.

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logo concentrou toda a minha atenção. Riqueza era um valor menor, mas seria uma glória inimaginável caso pudesse eliminar a doença das preocupações humanas e tornar os homens imunes a tudo o que não fosse a morte violenta! Durante algum tempo lidei com esses sistemas obsoletos, misturando de forma amadora uma série de teorias contraditórias, vagando desesperado num atoleiro de conhecimento desencontrado, guiado por uma imaginação ardente e um raciocínio infantil, até que um acidente mudou o curso das minhas ideias. Quando tinha cerca de 15 anos, em uma temporada em nossa casa perto de Bellerive, testemunhei uma tempestade violenta e terrível. Ela veio por trás dos montes Jura5, e os trovões pareciam ecoar de todos os lados. Fiquei observando curioso e satisfeito seu progresso enquanto ela passava. Estava parado à porta de casa quando vi uma língua de fogo sair de um velho e magnífico carvalho, que ficava a menos de 20 metros. Quando o brilho passou, a árvore já tinha desaparecido! Em seu lugar só sobrara um toco queimado. Quando fomos ao local na manhã seguinte, encontramos a árvore despedaçada de forma singular. Não fora esfacelada pelo choque, mas reduzida a finas tiras de madeira. Nunca vira nada destruído daquele jeito. Antes disso não era familiarizado com as leis mais básicas da eletricidade. Nessa ocasião, visitava-nos um grande pesquisador de filosofia da natureza que, animado pela catástrofe, começou a explicar sua teoria sobre eletricidade e galvanismo6, que era uma novidade surpreendente para mim. Tudo o que disse

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ofuscou Cornélio Agrippa, Alberto Magno e Paracelso, senhores da minha imaginação. Por um daqueles caprichos da mente, passei a desprezar a história natural e todos os meus estudos até então. Nesse estado de espírito, entreguei-me por completo à matemática e aos ramos de estudo próximos a essa ciência. Como ela se sustentava em bases mais firmes, julguei que eram dignas da minha atenção. Nossas almas são construídas assim, por meio de pequenos acasos que nos levam à prosperidade ou à ruína. Quando olho para trás, pa­ rece que essa mudança de rumo era uma sutil sugestão do meu instinto de sobrevivência, um último esforço para evitar a tempestade que já estava escrita nas estrelas, pronta para me engolfar. Mesmo essa ajuda poderosa não foi suficiente. Meu destino era forte demais, e suas leis imutáveis já haviam decretado minha terrível destruição.

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CAPÍTULO 3 56

Quando completei 17 anos, meus pais resolveram que eu deveria me tornar um estudante na Universidade de Ingolstadt. Até então frequentara a escola de Genebra, mas meu pai achava que para concluir minha educação deveria conhecer outros costumes. Minha partida foi marcada para pouco depois, mas antes disso ocorreu o primeiro infortúnio da minha vida, como se fosse um presságio da minha desgraça. Elizabeth contraiu escarlatina e ficou muito mal. Enquanto esteve doente, muitos foram os argumentos usados para convencer minha mãe a não ficar ao seu lado. No início ela se submeteu aos apelos, mas, quando soube que a vida de sua favorita estava ameaçada, não foi capaz de controlar a ansiedade. Cuidou dela, e sua atenção vigilante triunfou sobre a doença maligna. Elizabeth foi salva, mas as consequências daquela imprudência foram fatais para sua protetora. No terceiro dia minha mãe adoeceu. Sua febre foi acompanhada por sintomas alarmantes, e o olhar dos médicos trazia o prognóstico do pior. Em seu leito de morte, a força e a bondade dessa mulher excepcional não a abandonaram. Segurando minhas mãos e as de Elizabeth, ela disse: — Meus filhos, minha esperança de felicidade repousava na união de vocês dois. Essa expectativa agora será o consolo de seu pai. Elizabeth, meu amor, você deve substituir-me junto às minhas crianças. Ai! Como lamento estar partindo tendo sido tão feliz e amada junto a vocês. Mas não devo pensar nisso agora. Prefiro pensar que um dia os reencontrarei em outro mundo.

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Morreu tranquila, e sua expressão transmitia afeto mesmo na hora da morte. Não preciso descrever o vazio e o desespero que tomam conta da alma diante de tamanha perda. É preciso muito tempo antes que estejamos convencidos de que aquela que vemos todos os dias e cuja existência parece ser uma parte de nós tenha partido para sempre. Minha partida para Ingolstadt, que tinha sido adiada, foi marcada de novo para algumas semanas depois. Parecia-me um sacrilégio abandonar a calma respeitosa daquela casa em luto e correr em direção à agitação da vida normal. Toda aquela tristeza era uma novidade para mim. Não queria me afastar dos que me restavam e, acima de tudo, desejava consolar minha querida Elizabeth. Enfim chegou o dia da minha partida. Clerval passou a última noite conosco. Tentara convencer sem sucesso seu pai a permitir que fosse comigo à universidade para estudar. Ele era um comerciante de mente estreita que via apenas inutilidade e ruína nas aspirações e ambições do filho. Henry lamentava não poder ter uma educação liberal. Falava pouco, mas quando falava era evidente sua firme, porém refreada, decisão de não viver restrito aos detalhes comezinhos do comércio. Pela manhã, quando desci para tomar a carruagem que me levaria, estavam todos ali: meu pai para me abençoar, Clerval para apertar minhas mãos mais uma vez, e Elizabeth para renovar seus pedidos para que lhe mandasse cartas com frequência. Atirei-me no carro que iria me levar embora e me afundei na melancolia. Eu, que sempre estivera cercado de companhias amáveis, estava só. Na universidade, teria de fazer novas amizades e ser o meu próprio protetor. Até então minha vida tinha sido doméstica e isolada, e novas caras me desagradavam. Assim foi meu começo de viagem, mas com o tempo meu espírito reacendeu e minhas esperanças foram renovadas. Em casa, muitas vezes achava difícil ficar num único lugar, desejando ganhar o mundo e deixar minha marca. Agora que meus desejos se tornavam realidade, seria tolice renegá-los.

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Durante a fatigante viagem até Ingolstadt tive tempo de sobra para essas e muitas outras reflexões. Enfim a torre alta da igreja da cidade surgiu aos meus olhos. Desci e fui conduzido ao meu apartamento para passar a noite como quisesse. Na manhã seguinte, entreguei minhas cartas de apresentação e visitei alguns dos principais professores. O acaso, ou talvez o anjo da destruição que guiou meus passos desde que deixei a casa do meu pai, levou-me primeiro ao Sr. Krempe, professor de filosofia da natureza. Era um homem rude, mas impregnado dos segredos de sua disciplina. Fez-me várias perguntas a respeito do meu progresso nos diversos ramos da ciência. Respondi descuidado e com algum desprezo citei o nome dos principais autores que estudara. O professor me encarou e perguntou: — O senhor realmente gastou seu tempo estudando esses absurdos? Respondi que sim. O Sr. Krempe continuou: — Cada minuto, cada instante que gastou nesses livros foi perdido por completo. Encheu sua memória com sistemas obsoletos e termos inúteis. Meu bom Deus! Em que deserto o senhor vivia onde ninguém foi bondoso o bastante para lhe contar que essas fantasias têm mais de mil anos e não servem para nada? Não esperava, nesta época iluminada pela ciência, ainda encontrar um discípulo de Alberto Magno e Paracelso. Meu caro senhor, precisa recomeçar seus estudos da estaca zero. Assim dizendo, afastou-se e começou a escrever uma lista de vários livros que queria que eu procurasse. Dispensou-me avisando que no início da semana seguinte começaria um ciclo de palestras sobre filosofia da natureza em geral e que o Sr. Waldman, seu colega, daria aulas de química em dias alternados. Voltei para casa sem me sentir desapontado, pois já sabia da inutilidade dos autores rejeitados pelo professor. Contudo, não estava também motivado para recomeçar os estudos daquela disciplina. O Sr. Krempe era um homenzinho atarracado, de voz rouca e aspecto repulsivo, e não me inspirava a seguir sua trilha. A minha ingenuidade juvenil e a falta de um guia me levaram a desprezar as descobertas

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dos pesquisadores modernos e a me encantar com os delírios dos alquimistas. Além disso, não sentia simpatia pelos usos da moderna filosofia da natureza. Era bem diferente quando os mestres da ciência buscavam a imortalidade e o poder. Essas visões, ainda que fúteis, eram grandiosas. Agora, o quadro mudara. O pesquisador moderno parecia querer apenas aniquilar aquelas visões que tinham sido os pilares do meu interesse pela ciência. Queriam que eu substituísse quimeras grandiosas por conhecimentos triviais. Essas foram minhas reflexões nos primeiros dias em Ingolstadt, quando vim a conhecer a localidade e os meus vizinhos. Apenas na semana seguinte pensei sobre a conversa com o Sr. Krempe. Apesar de não ter a menor vontade de ir ouvir aquele sujeitinho presunçoso falar, lembrei-me do que dissera sobre o Sr. Waldman, a quem ainda não conhecera. Por curiosidade e por não ter mais o que fazer, fui até a sala de aula, onde, logo depois, chegou o Sr. Waldman. Este professor era muito diferente do seu colega. Parecia ter cerca de 50 anos, com uma aparência de grande bondade. Alguns cabelos grisalhos cobriam suas têmporas, mas os restantes eram quase negros. Era baixo e sua voz tinha uma doçura como nunca ouvira. Começou a aula relembrando a história da química e os vários progressos alcançados por diferentes cientistas, pronunciando os nomes dos mais importantes com fervor. Então, passou a tratar do estado atual da ciência e explicou muitos dos termos básicos. Depois de fazer uns poucos experimentos preparatórios, concluiu com um discurso de louvação à química moderna que nunca poderei esquecer: — Os antigos professores dessa ciência prometiam impossibilidades e não realizaram nada. Os mestres modernos prometem muito pouco. Sabem que metais não podem ser transmutados e que o elixir da vida é uma quimera. Mas esses filósofos, cujas mãos e olhos parecem servir apenas para mexer na sujeira e olhar em microscópios, realizaram verdadeiros milagres. Subiram aos céus, descobriram como o sangue

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circula e do que é feito o ar que respiramos. Adquiriram novos poderes quase ilimitados. Podem comandar os raios, simular terremotos e até mesmo zombar do mundo invisível com suas sombras. Essas foram as palavras do professor, ou melhor, as palavras do destino, pronunciadas para me destruir. Cada uma delas ia preenchendo minha mente com um pensamento, um conceito, um propósito. Se tanto já fora feito, muito, mas muito além, eu chegaria. Trilhando os passos já dados, iria me tornar um pioneiro de um novo caminho, explorando poderes desconhecidos, revelando ao mundo os mais profundos mistérios da criação. Não consegui fechar os olhos naquela noite. Experimentava uma sensação de revolução. Sentia que dali viria a ordem, mas não tinha força para controlá-la. Pouco a pouco, depois do amanhecer, o sono veio. Acordei, e a noite passada parecia apenas um sonho. Só sobrara a decisão de retornar aos meus antigos estudos e me dedicar a uma ciência para a qual acreditava ter um talento inato. No mesmo dia visitei o Sr. Waldman. Seus modos na intimidade eram ainda mais suaves que em público, pois uma certa dignidade em aula era substituída em casa por delicadeza e bondade. O relato que fiz sobre meus estudos anteriores foi bastante semelhante ao que fizera ao seu colega. Ele escutou tudo com atenção, sorrindo ao ouvir os nomes de Agrip­pa e Paracelso, mas sem demonstrar o mesmo desprezo que o Sr. Krempe manifestara. — Nós, os filósofos modernos, devemos a esses homens a maior parte das fundações do nosso conhecimento. O esforço desses homens geniais, ainda que na direção errada, acabou por beneficiar a humanidade. Escutei essa declaração, dita num tom sem nenhuma presunção, e afirmei que sua aula eliminara qualquer preconceito da minha parte contra os cientistas modernos. Expressei-me medindo as palavras, com a modéstia e o respeito devidos por um aluno ao seu professor, sem deixar escapar, por timidez, o entusiasmo com que encarava o estimulante trabalho a que pretendia me dedicar. Pedi seu conselho sobre quais livros devia procurar.

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— Estou feliz por ganhar um discípulo — disse o Sr. Waldman. — Se for tão talentoso quanto aplicado, não tenho por que duvidar do seu sucesso. Química é o ramo da filosofia da natureza em que os maiores avanços têm sido e já foram alcançados. Mas, caso queira ser um verdadeiro cientista e não um mero experimentalista, ouça meu conselho: não fique restrito ao estudo da química, dedique-se aos demais ramos da ciência, inclusive à matemática. Então me levou ao seu laboratório, onde demonstrou os usos dos diversos equipamentos, prometendo que poderia usá-los assim que tivesse aprendido o suficiente para não danificá-los. Deu-me uma lista de materiais que deveria comprar, junto com a lista de livros que solicitara, e me levou até a porta. E assim terminou um dia memorável, que selou o meu destino.

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CAPÍTULO 4 64

Desse dia em diante, a filosofia da natureza e a química, em particular, tornaram-se minha única ocupação. Li com ardor aqueles livros repletos de genialidade e sentido, escritos por modernos pesquisadores. Frequentei as aulas e cultivei relações com os cientistas da universidade. Acabei até descobrindo no Sr. Krempe uma tremenda fonte de bom senso e informações valiosas, ainda que coberta por fisionomia e maneiras desagradáveis. No Sr. Waldman descobri um amigo de verdade. Sua gentileza nunca se misturava com dogmatismo e suas instruções tinham um tom de franqueza e bom humor. Minha dedicação começou de forma instável e incerta, mas foi ganhando força com meu progresso, e logo se tornou tão ardente e motivada que eu passava noites inteiras trabalhando no meu laboratório até o amanhecer. Com tamanha dedicação, é razoável imaginar que meu progresso era rápido. Minha paixão causava espanto aos estudantes e minha proficiência impressionava os professores. Volta e meia o professor Krempe fazia uma pergunta irônica sobre Cornélio Agrippa, mas o Sr. Waldman exultava com meu progresso. Dois anos se passaram dessa forma, durante os quais não visitei Genebra, pois estava envolvido de corpo e alma na busca da descoberta que esperava fazer. Depois de dois anos de dedicação absoluta, fizera algumas descobertas que melhoraram o funcionamento de alguns instrumentos químicos, o que me rendeu algum prestígio e admiração na universidade. A essa altura, já sabia quase tudo sobre a teoria e a prática da ciência que

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as aulas dos meus professores podiam me ensinar. Como a residência em Ingolstadt não era mais necessária, pensei em retornar à minha cidade natal, quando aconteceu algo que prolongou minha estadia. Um dos fenômenos que mais atraíam minha atenção era a estrutura do corpo humano, ou, na verdade, de qualquer animal. Com frequência me perguntava em que momento ocorre o princípio da vida. Era uma pergunta ousada, mas o que seria da ciência sem a coragem para questionar seus mistérios? Superando qualquer dúvida que restasse, decidi me dedicar em particular aos ramos da ciência relacionados com a fisiologia. Caso não estivesse movido por um entusiasmo sobrenatural, o estudo dessa disciplina teria sido irritante e quase intolerável. Para examinar as causas da vida é preciso antes recorrer à morte. Aprendi anatomia, mas isso não era suficiente. Precisava entender como ocorria o declínio e a decomposição do corpo humano. Para compreender as causas da decomposição, precisei passar dias e noites em capelas mortuárias e cemitérios. Minha atenção era dedicada a coisas que são insuportáveis aos sentimentos humanos. Via como as delicadas formas iam dando lugar ao desgaste e como as larvas devoravam olhos e cérebros, tudo em busca da compreensão da passagem entre a vida e a morte e entre a morte e a vida. Até que entre toda essa escuridão nebulosa surgiu uma luz. Uma luz tão brilhante e maravilhosa, e ainda assim, tão simples, que enquanto eu estava atordoado com a imensidão do propósito que ela iluminava, perguntava-me como entre tantos homens geniais que buscaram esse conhecimento eu tivesse sido o destinado a descobrir esse tremendo segredo. Lembre-se de que não estou contando a visão de um louco. Meu trabalho passou por etapas consistentes. Depois de dias e noites de trabalho e fadiga incríveis, tive sucesso em descobrir a causa da criação e da vida. Mais do que isso, tornei-me capaz de reanimar matéria sem vida. O espanto que tive após a primeira experiência bem-sucedida logo deu lugar ao prazer e ao êxtase. Depois de tanto tempo de trabalho penoso, alcançar meu objetivo principal era o melhor prêmio para meu

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esforço. O que fora objeto de estudo de sábios desde a criação do mundo agora estava ao meu alcance. Vejo em seus olhos que está ansioso por conhecer o segredo que descobri. Meu amigo, isso não pode acontecer. Ouça meu relato até o fim e será fácil compreender por que devo preservá-lo. Não posso levá-lo, que é desprevenido e impetuoso como eu era, ao mesmo caminho de destruição e ruína. Aprenda comigo como esse conhecimento é perigoso. Quando descobri esse poder tão assombroso em minhas mãos, hesitei por um tempo sobre como empregá-lo. Ainda que possuísse a capacidade de reanimar a matéria, preparar toda a estrutura para receber a vida, com suas fibras musculares e veias intrincadas, era uma tarefa difícil que exigiria um volume inimaginável de trabalho. Fiquei em dúvida entre tentar criar um ser à minha semelhança ou algum de anatomia mais simples. Mas minha imaginação estava empolgada demais com o sucesso inicial para permitir que restasse qualquer dúvida sobre minha capacidade de trazer à vida um animal tão complexo e maravilhoso como um ser humano. O material que tinha não era suficiente para realizar meu objetivo, e me preparei para enfrentar todo tipo de revés. Nunca duvidei do meu sucesso. Foi com esses sentimentos que comecei a criar um ser humano. Percebi que teria mais espaço para trabalhar se fizesse uma criatura de dimensões gigantescas, por assim dizer, com dois metros e meio de altura e largura proporcional. Depois de tomar essa decisão e passar alguns meses coletando e organizando o material necessário, comecei. Ninguém pode conceber a mistura de sentimentos que se apossou de mim daquele momento em diante, como um furacão. Vida e morte se apresentavam como limites imaginários que eu precisava romper para despejar uma torrente de luz sobre a escuridão do nosso mundo. Meu propósito final era que, após conseguir reanimar a matéria sem vida, pudesse, com o tempo, passar a dominar a técnica de restituir a vida a corpos condenados ao desgaste após a morte.

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Esses pensamentos levantavam meu ânimo enquanto produzia com ardor incessante. O confinamento deixou minha face pálida e minha pele flácida, e a lua foi a testemunha de muitas madrugadas dedicadas à busca da natureza em seus esconderijos mais profundos. Quem poderia conceber os horrores da faina secreta em que profanava sepulturas e torturava animais vivos? Chego a tremer com a lembrança, mas naquele momento um impulso incontrolável me levava a avançar. Era apenas um transe passageiro, pois seu único efeito sobre mim foi que passei a enxergar as coisas com mais clareza. Depois que esse estímulo cessou, retomei meus velhos hábitos. Mas, enquanto durou, coletei ossos de capelas mortuárias e profanei os segredos do corpo humano. Numa câmara solitária no alto da casa, separada dos demais cômodos por um corredor e uma escada, mantinha minha oficina de criações nojentas. O necrotério e o açougue forneciam grande parte do material. Passei os meses de verão dessa maneira, entregue de coração, corpo e alma a um único propósito. Foi uma estação maravilhosa. Nos campos a colheita foi exuberante e a safra nos vinhedos foi excelente, mas eu estava cego a esses encantos da natureza. Os mesmos sentimentos que faziam com que não reparasse nessas cenas me levaram a esquecer meus amigos que estavam distantes e que não vira por um tempo. Sabia que meu silêncio os inquietaria e me lembrava muito bem das palavras do meu pai: “Sei que enquanto estiver em paz consigo irá pensar em nós com afeto e teremos notícias suas com regularidade. Qualquer interrupção na comunicação entre nós indicará que também estará negligenciando suas outras tarefas”. Sabia muito bem quais seriam os sentimentos do meu pai. Mas não conseguia desviar meus pensamentos do trabalho. Tentava adiar tudo o que fosse relacionado com meus sentimentos afetuosos até que o objetivo final fosse concluído. Na ocasião pensava que meu pai era injusto ao atribuir minha negligência a uma fraqueza da minha parte, mas agora estou convencido

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de que ele tinha razão ao pensar que parte da culpa era minha. Uma pessoa em equilíbrio deve sempre manter a mente calma e em paz, nunca permitindo que a paixão ou algum desejo passageiro perturbe sua tranquilidade. Mas me distraio dando lições de moral na parte mais interessante do meu relato, e seu olhar ansioso deixa isso claro. Inverno, primavera e verão passaram enquanto trabalhava, mas nem reparei na floração e na folhagem nova das árvores. Naquele ano, as folhas começaram a cair antes que terminasse minha tarefa, e a cada dia eu percebia o tamanho do meu avanço. Mas meu entusiasmo era confrontado pela minha ansiedade, e eu parecia mais um condenado ao trabalho escravo em uma mina do que um artista mergulhado em sua ocupação favorita. Todas as noites tinha febre e estava à beira de um ataque de nervos. Uma folha caindo me sobressaltava, e evitava meus colegas como se eu fosse culpado por algum crime. Às vezes ficava alarmado com a minha ruína física e mental.

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CAPÍTULO 5 69

Foi numa noite sombria de novembro que completei minha tarefa. Com ansiedade que mais parecia uma agonia, conferi pela última vez os equipamentos com os quais poderia provocar uma faísca de vida naquele ser inanimado aos meus pés. Já era quase uma da madrugada, a chuva batia fraca nas janelas e da minha vela já restava só um toco, quando, ao lusco-fusco da luz bruxuleante, vi o olho pálido da criatura se abrir. Ela respirou com força, e um movimento convulsivo agitou seus membros. Como posso descrever as emoções que senti diante daquela tragédia? Empregara todos os esforços para que o corpo fosse proporcional e o rosto fosse belo. Belo! Meu Deus! Sua pele amarelada mal cobria os músculos e veias, seu cabelo era negro e lustroso, seus dentes brancos como pérola, mas esses detalhes apenas aumentavam o horror do contraste com aqueles olhos macilentos e os lábios negros. Trabalhei duro por quase dois anos com o único propósito de infundir vida num corpo inanimado. Desejara aquilo muito além do razoável, mas, agora que tinha terminado, a beleza do sonho desaparecera e um horror descomunal tomou conta do meu coração. Incapaz de encarar o aspecto do ser que criara, corri para fora do cômodo e fiquei um tempão andando em meu quarto, sem conseguir dormir. Enfim o cansaço venceu a excitação e me atirei à cama de roupa e tudo, tentando ter uns breves momentos de esquecimento. Mas foi tudo em vão. É verdade que dormi, mas foi um sono perturbado por

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sonhos selvagens. Acordei cheio de horror, com a testa molhada de suor frio, os dentes batendo e os membros em convulsão. Foi quando vi o desgraçado. Iluminado pela claridade difusa da lua, o monstro miserável estava ao lado da cama com os olhos fixos em mim. Sua boca se abriu e ele murmurou alguns sons desarticulados enquanto uma careta distorcia seu rosto. Se falou algo, não escutei, e uma mão se esticou em minha direção, parecendo querer me deter, mas escapei escada abaixo. Escondi-me no pátio da casa, onde passei o resto da noite, agitado, atento ao menor ruído que pudesse indicar a aproximação daquele cadáver monstruoso a quem dera a vida. Ai! Nenhum ser humano poderia suportar aquela aparência horrorosa. Uma múmia ressuscitada não seria tão horrível como aquele infeliz. Ele era feio quando ainda estava inacabado, mas quando as juntas e os músculos puderam se mover, tornou-se uma coisa que nem o próprio Dante poderia conceber. Passei a noite arrasado. Às vezes meu pulso batia tão rápido que parecia sentir a palpitação de cada artéria. Em outros momentos quase desmoronava de tanta fraqueza e desânimo. Misturado a todo esse terror, sentia um desapontamento amargo ao ver sonhos que foram minha fonte de alimento e prazer transformando-se naquele inferno. A manhã triste e úmida chegou e revelou a igreja de Ingolstadt aos meus olhos cansados. O relógio da torre indicava a sexta hora. O porteiro abriu os portões do pátio que fora meu asilo naquela noite, e saí para a rua, andando com passos rápidos, tentando evitar a criatura que temia encontrar em cada esquina. Não ousava voltar ao apartamento e só pensava em me apressar pelas ruas, mesmo encharcado pela chuva que caía. Continuei andando desse jeito por um tempo, tentando, com o exercício, aliviar a carga emocional que carregava. Atravessava as ruas sem nenhuma ideia sobre aonde estava indo ou o que estava fazendo. Meu coração palpitava e meus passos eram irregulares. Acabei chegando em frente à estalagem que servia de parada para carrua­gens e diligências. Fiz uma pausa e, não sei bem por quê, fiquei

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alguns minutos com os olhos fixos em um coche que vinha em minha direção. Quando se aproximou, percebi se tratar de uma diligência suíça. Parou bem onde eu estava e assim que a porta foi aberta reconheci Henry Clerval: — Meu querido Frankenstein! — exclamou enquanto desembarcava. — Que alegria revê-lo! Que acaso feliz você estar aqui bem no momento da minha chegada! Nada poderia superar a alegria que senti ao ver Clerval. Sua presença me fez lembrar de meu pai, Elizabeth e todas as memórias domésticas. Segurei sua mão, e, por um momento, esqueci do meu horror e infortúnio. Pela primeira vez em muitos meses sentia-me alegre, calmo e sereno. Dei-lhe as boas-vindas do modo mais cordial e andamos em direção ao prédio onde eu estudava. Clerval continuou falando por um tempo sobre nossos amigos em comum e sua sorte em ter tido permissão para vir a Ingolstadt. — Deve imaginar como foi difícil convencer meu pai de que vale a pena aprender algo além da nobre arte da contabilidade. — Ver você me dá imenso prazer, mas, por favor, conte-me sobre meu pai, meus irmãos e Elizabeth. — Estão bem, felizes, mas um pouco preocupados por não ter notícias suas já faz algum tempo. Mas, meu querido Frankenstein — continuou, após parar e fitar meu rosto —, não havia reparado em sua aparência doente, tão magro e pálido. Parece até que não dorme há várias noites. — Você acertou. Andei tão envolvido no trabalho que acabei não descansando o necessário, como pode ver. Mas espero ter terminado minha tarefa. Eu tremia bastante. Não podia nem pensar, muito menos falar sobre o que acontecera na noite anterior. Andei num passo rápido e logo chegamos ao colégio. Tive então um pensamento que me deu arrepios. E se a criatura ainda estivesse lá, viva e andando por ali? Temia encarar o monstro, mas me apavorava muito mais que Henry o visse.

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Pedi que ele esperasse alguns minutos ao pé da escada e corri para o meu quarto. Senti um calafrio um pouco antes de abrir a porta, o que acabei fazendo num só gesto violento, após tomar fôlego. Entrei cheio de medo e encontrei o apartamento vazio. Mal podia acreditar na minha sorte, mas, depois de verificar que a criatura fugira, bati palmas de alegria e desci para buscar Clerval. Subimos ao meu apartamento. Eu não conseguia me conter. Não conseguia parar quieto num lugar, andava de um canto para outro, batia palmas e ria alto. No início, Clerval atribuiu meu entusiasmo à sua chegada, mas quando me observou com mais atenção percebeu um ar selvagem em meu olhar e ficou assustado com minha risada alta e descontrolada. — Meu querido Victor — gritou —, qual é o problema? Não ria desse jeito! Você está doente? Qual é a causa disso tudo? — Não me faça essa pergunta! — gritei de volta, tapando os olhos com as mãos, pois por um instante imaginei ter visto o espectro maldito no aposento. — Ele pode contar tudo! Socorro! Em meu delírio, imaginava que o monstro me sufocava. Lutei furioso contra um inimigo imaginário e caí desmaiado. Pobre Clerval! O que deve ter sentido? Um encontro que ele esperava com tanta alegria transformado em amargura de forma bastante estranha. Mas não testemunhei seu pesar, pois estava desfalecido e só recobrei os sentidos muito tempo depois. Era o começo de uma febre tifoide que me deixou acamado por vários meses. Durante todo esse tempo, Henry foi meu único enfermeiro. A silhueta da criatura a quem dera vida estava sempre diante dos meus olhos, e eu não parava de vociferar contra ela. Sem dúvida minhas palavras surpreenderam Henry. Primeiro pensou se tratar de delírios da minha imaginação perturbada. Mas acabou convencido de que havia ocorrido algum evento terrível e incomum diante da minha insistência no tema. Aos poucos, com frequentes recaídas que alarmavam e preocupavam meu amigo, minha saúde melhorou. Lembro-me da primeira vez

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que voltei a ter interesse no que acontecia ao ar livre. Percebi que as folhas caídas haviam desaparecido e que brotinhos surgiam nas árvores que sombreavam minha janela. Foi uma primavera maravilhosa, e a estação contribuiu bastante para minha recuperação. Os sentimentos alegres e afetuosos voltaram ao meu peito, minha tristeza desaparecera e logo estava tão bem-disposto como antes daquela paixão fatal. — Querido Clerval — exclamei —, você foi muito gentil e bondoso. Todo o inverno, em vez de ser dedicado aos estudos, foi consumido em meu quarto de doente. Como posso pagar essa dívida? — A dívida estará paga quando você ficar bom, se não ficar fazendo extravagâncias até lá. Mas já que você parece estar animado, podemos falar sobre certo assunto? Tremi. Um assunto! O que poderia ser? Será que trataria de algo que gostaria que nem imaginasse existir? — Acalme-se — disse Clerval ao notar minha alteração de humor —, não falarei mais nesse assunto se for causar agitação, mas seu pai e sua prima ficariam muito felizes se recebessem uma carta escrita por você. — Só isso, querido Henry? Lógico que meus primeiros pensamentos seriam para acalmar aqueles que amo. — Se esse é seu estado de espírito, meu amigo, então talvez fique feliz de ver esta carta que chegou faz alguns dias. — E pôs uma carta de Elizabeth em minhas mãos.

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CAPÍTULO 6 76

Meu primo mais que querido, Você esteve muito doente e nem as constantes cartas do querido Henry são suficientes para me tranquilizar sobre sua saúde. Você está proibido de escrever, mas precisamos de pelo menos uma palavra sua, querido Victor, para acalmar nossas apreensões. Por algum tempo imaginava que cada entrega dos correios traria essa palavra, e minha persuasão conteve meu tio de viajar até Ingolstadt. Consegui impedir que enfrentasse os rigores e perigos de uma jornada tão longa, ainda que muitas vezes tenha lamentado não poder fazê-la eu mesma. Mas isso terminou, Clerval me contou que está bem melhor. Aguardo ansiosa que você confirme esse fato com sua caligrafia. Fique bom e volte para casa. Encontrará um lar alegre e feliz, com pessoas que o amam com ternura. Seu pai vai bem de saúde e quer ter notícias suas. Você ia adorar estar acompanhando o desenvolvimento de nosso Ernest! Ele agora tem 16 anos e é muito ativo e bem-humorado. Deseja fazer serviço militar no exterior, mas não podemos deixá-lo partir, pelo menos até seu irmão mais velho voltar. Meu tio não aprecia muito a ideia de uma carreira militar num país distante, mas a verdade é que ele não é aplicado como você. Encara o estudo como um aborrecimento e prefere passar o tempo ao ar livre, escalando as montanhas ou remando no lago. Receio que se torne um inútil caso não possa seguir a profissão que escolher.

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Desde sua partida houve poucas mudanças além do crescimento de nossas crianças. O lago azul, os picos nevados, isso nunca muda, e creio que a calma do nosso lar e a satisfação em nossos corações também são reguladas pelas mesmas leis. Na verdade, apenas uma mudança ocorreu em nossa casa. Lembra-se como Justine Moritz entrou para a família? Talvez não, então vou relatar em poucas palavras como foi. Madame Moritz, sua mãe, era uma viúva com quatro filhos. Justine era a terceira entre os irmãos. A menina sempre foi a favorita do pai, mas, por uma estranha perversão, a mãe não a suportava e depois da morte do Senhor Moritz a tratava muito mal. Minha tia observava isso acontecer, e quando a menina fez 12 anos convenceu sua mãe a deixar que ela morasse conosco. Justine foi recebida em nossa família e aprendeu o ofício da criadagem, uma condição que em nosso país não pressupõe nem a ignorância nem o sacrifício da dignidade humana. Minha tia ficou muito apegada a ela, e isso explica por que se dedicou tanto a lhe dar uma boa educação. Essa dedicação deu retorno e Justine era a criatura mais grata no mundo. Não que ela ficasse dizendo isso, mas se notava em seu olhar o quanto adorava sua protetora. Devotava a maior atenção a cada gesto de minha tia, a quem tinha como modelo de excelência e tentava imitar os gestos e o fraseado, tanto que hoje me lembra muito titia. Quando nossa querida tia faleceu, todos estávamos muito ocupados em nosso próprio luto para reparar em Justine, que havia cuidado dela com todo o afeto. A pobre Justine ficou muito doente, mas ainda enfrentaria outras provações. Um a um, seus irmãos faleceram e sua mãe ficou sem filhos, exceto pela filha abandonada. A mente da mulher estava perturbada. Começou a pensar que a morte de seus favoritos era um castigo divino para punir sua parcialidade. Assim, alguns meses depois que você partiu para Ingolstadt, a mãe arrependida chamou Justine de volta para casa. Pobre menina! Chorou quando deixou nossa casa. Mudara muito desde a morte de nossa tia. O luto havia suavizado suas maneiras, que

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sempre foram muito vivazes. E morar na casa da mãe não era o ideal para recuperar a alegria. O arrependimento da pobre mulher não era muito convicto. Às vezes pedia perdão a Justine por suas indelicadezas, mas na maior parte do tempo a acusava de ter causado a morte dos irmãos. A constante irritação acabou destruindo madame Moritz, que agora descansa para sempre. Morreu com o primeiro frio mais intenso, logo no começo deste último inverno. Justine voltou para nossa casa, o que me deixa muito feliz. É muito inteligente e gentil, além de ser linda. Como já comentei, seus modos e expressões a toda hora me lembram titia. Não posso deixar de escrever sobre o pequeno e querido William. É muito alto para sua idade, com doces olhos azuis, sobrancelhas escuras e cabelo cachea­do. Quando sorri, aparecem covinhas nas bochechas, que são rosadas e sadias. Escrevi com o melhor estado de espírito, querido primo, mas a ansiedade toma conta de mim quando concluo. Escreva, queridíssimo Victor! Uma linha, uma palavra já será uma bênção para nós. Dez mil agradecimentos a Henry por sua gentileza, seu afeto e suas várias cartas. Nossa gratidão é sincera. Adeus, meu primo! Tome conta de você, e volto a exigir, escreva! Elizabeth Lavenza Genebra, 18 de março de 17...

— Minha querida Elizabeth! — exclamei ao ler sua carta. — Vou escrever de volta agora para aliviá-la de toda essa ansiedade. Escrevi, e essa atividade me causou enorme fadiga. Mas minha recuperação havia começado e continuou, até que duas semanas depois já conseguia deixar o quarto. Uma das minhas primeiras tarefas ao me recuperar foi apresentar Clerval aos diversos professores da universidade. Ao fazê-lo acabei me

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submetendo a algo como uma autoflagelação, açoitando feridas que ainda não haviam cicatrizado em minha mente. Desde aquela noite em que concluí meus trabalhos e começou minha tormenta, cultivei extrema antipatia à filosofia da natureza. Durante minha recuperação, a simples visão de um instrumento de laboratório me causava agonia. Ao notar isso, Clerval tratou de remover toda essa aparelhagem da minha vista. Também mudamos de apartamento, pois ele percebeu que eu tinha repulsa ao aposento que fora meu laboratório. Mas nada disso adiantava quando eu visitava os professores. O Sr. Wald­man me torturava enquanto louvava, de forma calorosa e gentil, minha admirável contribuição à ciência. Logo percebeu que eu não gostava do assunto, mas, sem poder adivinhar a causa real, atribuiu meus sentimentos à modéstia, e mudou o foco do meu progresso para a ciência em si. Quanto mais ele tentava me agradar, maior era o tamanho do tormento. Parecia ter arrumado todos os seus instrumentos, um por um, ao alcance do meu olhar, de forma a me condenar a uma morte lenta e dolorosa. Tremia com suas palavras sem coragem para demonstrar a dor que sentia. Clerval, que sempre foi muito hábil em perceber de imediato os sentimentos dos outros, desviou a conversa desse assunto, alegando como desculpa sua ignorância no tema. Agradeci a meu amigo do fundo do coração, mas não disse nada. Percebi que ficou surpreso, mas nunca tentou descobrir meu segredo. Da minha parte, apesar de todo o afeto e reverência que sentia por ele, nunca pude me convencer de compartilhar com ele aquele segredo que me atormentava. O Sr. Krempe não foi tão amável. Para minha condição sensível naquele momento, seus elogios ásperos e contundentes me causavam ainda mais dor que a aprovação benevolente do Sr. Waldman. — Que danado! — gritava. — Enganou a todos nós. Como alguém poderia imaginar que aquele rapaz que há poucos anos acreditava em Cornélio Agrippa como se fosse algo sagrado tenha se estabelecido como um dos destaques da universidade. É preciso fazer algo, do contrário logo estaremos todos suplantados por ele.

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Após observar minha cara de sofrimento, o professor continuou: — Ora, ora, o Sr. Frankenstein é modesto, uma excelente qualidade para um jovem. Jovens devem desconfiar de si mesmos, Sr. Clerval. Eu fui assim quando jovem, mas isso passa logo. O Sr. Krempe começou a se elogiar, o que mudou o rumo da conversa para algo menos desagradável. Clerval nunca compartilhou do meu gosto pelas ciências, e seu gosto literário sempre foi muito diferente do meu. Veio à universidade determinado a se tornar mestre em idiomas orientais, pois isso abriria portas que permitiriam que prosseguisse com seu plano de vida. Decidido a buscar a glória, voltou sua atenção para o Oriente e para o estudo do persa, do sânscrito e do árabe. Fui convencido com facilidade a seguir os mesmos estudos. O ócio sempre me causou irritação, e tudo o que eu queria era me afastar dos estudos anteriores. Era um alívio ser colega do meu amigo, e, além da instrução, encontrei consolo nas obras dos orientalistas. Tais ocupações tomaram todo o verão, e meu retorno a Genebra foi marcado para o final do outono. Contudo, diversos eventos atrasaram minha partida, e, com a chegada da neve e do inverno, as estradas ficaram intransitáveis e minha viagem foi adiada até o início da primavera. Lamentei esse atraso, pois estava ansioso por rever minha cidade e meus amigos queridos. Maio chegara, e, antes que a data da partida fosse marcada, Henry sugeriu uma caminhada pelos arredores de Ingolstadt para me despedir da região. Concordei com prazer, pois estava precisando de exercício. Perambulamos por duas semanas. Minha saúde e estado de espírito já estavam muito melhores e se reforçavam com o ar puro que respirava, os eventos que ocorriam em nosso caminho e as conversas com meu amigo. Os estudos haviam me isolado do convívio social, tornando-me insociável, mas a companhia de Clerval despertava meus melhores sentimentos. A sensação de apreciar a primavera era divina. Já não causavam tanta perturbação os pensamentos que tanto me atormentaram no ano anterior.

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Henry ficava contente com minha alegria e compartilhava dos mesmos sentimentos. Esforçava-se em distrair-me, falando sobre o que lhe ocorria a todo instante. Muitas vezes, imitando os autores persas e árabes, inventava histórias fantásticas repletas de pompa e paixão. Em outros momentos, repetia meus poemas favoritos ou me propunha debates nos quais argumentava com imensa habilidade retórica. Voltamos à universidade numa tarde de domingo. Os camponeses dançavam, e todos que encontrávamos pareciam alegres e felizes. Meu estado de espírito era ótimo, cheio de alegria e bom humor.

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CAPÍTULO 7 82

Ao chegar, encontrei a seguinte carta do meu pai: Meu querido Victor,

Bairro medieval da cidade de Genebra, na Suíça.

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É provável que tenha esperado impaciente pela carta que marcaria a data do seu retorno, e estive tentado a escrever umas poucas linhas, mencionando apenas a data em que estaremos esperando sua chegada. Mas isso seria uma gentileza cruel, e não ouso fazê-lo. Qual seria sua surpresa, meu filho, ao encontrar, em vez de uma recepção calorosa, apenas lágrimas e desgraça? Victor, não sei como relatar nosso infortúnio. Gostaria de prepará-lo para as notícias lamentáveis, mas sei que é impossível. Sei que seus olhos já varrem o resto da página, procurando as palavras que informarão sobre o horror. William está morto! Aquele doce menino, cujo sorriso deliciava e aquecia meu coração, tão gentil e alegre, foi assassinado! Não pretendo consolá-lo, vou apenas relatar as circunstâncias do ocorrido. Na última terça, dia 7 de março, eu, minha sobrinha e seus dois irmãos fomos andar em Plainpalais7. A tarde estava quente e agradável, e prolongamos nossa

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caminhada além do habitual. O sol já havia se posto quando pensamos em voltar e descobrimos que William e Ernest tinham se adiantado e não estavam conosco. Decidimos esperar, descansando um pouco, até que voltasse. Ernest chegou pouco depois, perguntando se havíamos visto o irmão. Contou que estavam brincando, que o irmão correu para se esconder, e que não conseguiu encontrá-lo por mais que procurasse. Tinha esperado durante um bom tempo, mas ele não retornara. Esse relato nos alarmou, e saímos em sua procura. Quando a noite caiu, Elizabeth ponderou que ele poderia ter voltado para casa. Mas, ao chegarmos lá, não o encontramos. Recomeçamos as buscas usando tochas, pois não poderíamos descansar enquanto nosso menino estava perdido e exposto ao frio e à umidade da noite. Eram cinco da manhã quando encontrei meu amado menino, que na véspera eu vira tão ativo e saudável, estirado na grama, lívido e imóvel, com a marca dos dedos do assassino em seu pescoço. Ele foi levado para casa, e a angústia no meu rosto revelou o ocorrido para Elizabeth, que ficou ansiosa para ver o cadáver. Tentei impedi-la, mas ela insistiu, e, ao entrar no quarto onde ele estava, examinou logo seu pescoço e exclamou: — Meu Deus! Matei minha querida criança! Desmaiou e foi um custo reanimá-la. Quando recobrou os sentidos, foi apenas para chorar e soluçar. Contou que naquela tarde William tinha conseguido convencê-la a deixar que usasse um valioso pingente que ela possuía com um retrato de sua mãe. Essa peça sumira, e sem dúvida foi a tentação que instigou o assassino. Não temos nenhuma pista dele por enquanto, mas não descansaremos enquanto não o acharmos. Mas nem isso trará de volta meu amado William! Venha, querido Victor, só você poderá consolar Elizabeth. Ela chora sem parar e se culpa de forma injusta por ter causado a morte, o que aperta ainda mais meu coração. Estamos todos tristes, e isso apenas reforça como precisamos do seu regresso. Venha, Victor, sem alimentar um desejo de vingança, mas com

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sentimentos pacíficos e gentis, que irão nos curar em vez de cutucar nossas feridas. Entre nesta casa em luto, mas traga bondade e afeto para os que o amam, e não ódio aos inimigos. Seu afetuoso e aflito pai, ALPHONSE FRANKENSTEIN Genebra, 12 de maio de 17... Clerval, que observava minha expressão, ficou surpreso ao notar o desespero que substituiu a alegria que demonstrei ao ter recebido notícias da família. Joguei a carta na mesa e cobri o rosto com as mãos. — Querido Frankenstein! — exclamou Henry, ao perceber que chorava amargurado. — O que houve? Qual o motivo de tanta tristeza? Fiz um sinal para que lesse a carta e comecei a andar pelo quarto em extrema agitação. Lágrimas saltaram dos olhos de Clerval também. — Amigo, não posso oferecer consolo, o desastre é irreparável. O que pretende fazer? — Partir de imediato para Genebra. Venha comigo me ajudar a arranjar os cavalos. Enquanto andávamos, Clerval tentou dizer algumas palavras de conforto, mas conseguiu apenas compartilhar da minha dor. Suas palavras, ditas enquanto andávamos apressados pelas ruas, ficaram marcadas na minha alma e mais tarde consegui me lembrar de cada uma delas. Mas, naquele momento, assim que os cavalos chegaram, apressei-me somente em subir no cabriolé e dei adeus ao meu amigo. Minha viagem foi muito melancólica. Primeiro queria chegar logo, para consolar meus familiares e compartilhar da mesma tristeza. Mas diminuí o passo ao chegar perto da minha cidade. Mal podia lidar com a variedade de sentimentos que se amontoavam em minha cabeça. Passei por paisagens da minha infância que não via fazia mais de seis anos. Quanto cada coisa podia ter mudado naquele período! O medo tomou conta de mim, e não ousei avançar.

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Permaneci dois dias em Lausanne, nesse doloroso estado de espírito. Contemplava o lago. Suas águas eram plácidas. Tudo ao redor era calmo. E as montanhas nevadas não haviam mudado. Aos poucos, a beleza e tranquilidade do cenário restauraram minha energia, e retomei minha viagem rumo a Genebra. A estrada margeava o lago, que se estreitava nas proximidades da minha cidade. Pude distinguir com nitidez as encostas escuras dos montes Jura e o pico brilhante do monte Branco. Chorei feito criança. Foi imenso o prazer que senti ao ver de novo os riachos, as montanhas e, acima de tudo, aquele lago adorado! Ainda assim, enquanto me aproximava de casa, a tristeza e o medo me invadiram mais uma vez. A noite caía, não conseguia mais ver as montanhas escuras e fiquei ainda mais triste. O quadro era sombrio, e de alguma maneira sentia que meu destino era me tornar o mais desgraçado de todos os seres humanos. Que tristeza! Minha profecia até estava correta, mas nem sequer concebia a centésima parte da angústia que estava destinado a enfrentar. A escuridão era absoluta quando cheguei aos arredores de Genebra. Os portões da cidade já estavam fechados, e fui obrigado a passar a noite em uma aldeia a uns dois quilômetros e meio da cidade. Incapaz de dormir, resolvi ir ao local onde o pobre William fora assassinado. Como não podia passar pela cidade, fui obrigado a atravessar o lago em um barco para chegar a Plainpalais. Durante a curta viagem, vi os raios iluminando o topo do monte Branco em toda a sua beleza. A tempestade parecia se aproximar veloz, e, ao desembarcar, logo subi numa pequena elevação para observar melhor seu progresso. Ela avançou, os céus cobriram-se de nuvens, e logo senti a chuva caindo devagar em pingos pesados. Saí de onde estava e comecei a andar, ainda que a escuridão e a tempestade crescessem e os trovões explodissem com sons terríveis sobre minha cabeça. Os clarões dos relâmpagos me ofuscavam e iluminavam o lago, fazendo com que parecesse coberto de fogo. Aí, por um instante,

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tudo caía numa escuridão profunda, até que os olhos se ajustavam de novo. A tempestade, como é comum na Suíça, aparecia de repente por todos os lados, por cima das altas montanhas. Eu caminhava a passos largos enquanto admirava a tempestade, tão bela e terrível. Aquela batalha magnífica nos céus elevara meu espírito. Batia palmas e gritava, quando percebi na penumbra um vulto que se esgueirava por detrás de um grupo de árvores perto de mim. Parei e olhei com atenção. Não podia estar enganado. Um clarão iluminou o objeto e mostrou suas formas com nitidez. Sua estatura gigantesca e seu aspecto disforme e horrível revelaram de imediato que se tratava do monstro imundo e miserável que eu trouxera à vida. O que fazia ali? Será que fora ele, e tremi ao pensar nisso, o assassino do meu irmão? Assim que a ideia passou pela minha imaginação, convenci-me de que era verdade. Precisei me apoiar em uma árvore. O vulto me ultrapassou com rapidez e sumiu na escuridão. Nenhum ser humano teria matado aquela criança tão meiga. Ele era o assassino! Não havia dúvidas. Pensei em persegui-lo, mas teria sido em vão, pois outro clarão revelou a criatura pendurada entre as rochas de uma encosta quase vertical. Logo chegou ao topo e desapareceu. Fiquei sem ação. Os trovões pararam, mas a chuva continuava e tudo foi tomado por uma escuridão impenetrável. Minha mente estava revirada por eventos que havia muito tempo tentava esquecer. Todo o desenrolar de acontecimentos até a criação. A aparência do resultado do trabalho feito com as minhas mãos e vivo ao lado da minha cama. Dois anos haviam se passado desde a noite em que ele recebera a vida. Teria sido esse seu primeiro crime? Ninguém pode conceber a angústia que senti durante o resto daquela noite que passei, molhado e com frio, ao ar livre. Mas não era o clima inconveniente que me incomodava. Minha imaginação estava ocupada com a maldade e o desespero. Amanheceu e me dirigi à cidade. Os portões estavam abertos e me apressei até a casa de meu pai. Meu primeiro pensamento era revelar

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o que sabia sobre o assassino e iniciar imediata perseguição a ele. Mas parei para refletir sobre a história que teria de contar. Um ser que eu formara e dotara de vida me encontrara entre os precipícios de uma montanha inacessível. Lembrei-me também da febre tifoide que me abatera bem na época em que criei o monstro e que daria um ar de delírio a uma história tão improvável. Sabia muito bem que se ouvisse qualquer outro me relatar algo assim trataria isso como um sinal de loucura. Além do mais, de que adiantaria sair em perseguição da criatura? Quem poderia prender alguém capaz de escalar precipícios escarpados? Essas reflexões me convenceram a ficar em silêncio. Eram cerca de cinco da manhã quando entrei em casa e me dirigi à biblioteca para esperar que os outros acordassem. Haviam se passado seis anos desde o dia em que me despedira do meu amado pai em minha partida para Ingolstadt. Admirava um quadro com um retrato de minha mãe quando um pequeno retrato de William chamou minha atenção e me levou às lágrimas. Nesse momento, Ernest entrou. Apesar da alegria em nos rever, acabamos chorando juntos ao lembrar do querido William. Lágrimas incontidas caíam dos olhos do meu irmão enquanto um sentimento de agonia mortal tomava conta do meu corpo. Antes eu apenas imaginara a desolação do meu lar, e a realidade me atropelou como um novo e ainda mais terrível desastre. Tentei acalmar Ernest. Perguntei sobre meu pai e sobre minha prima. — Ela foi quem mais sofreu — Ernest disse. — Fica se acusando de ter causado a morte do nosso irmão, e isso a abateu demais. Mas agora que o assassino foi descoberto… — O assassino foi descoberto! Bom Deus! Como pode ser? Quem poderia tentar persegui-lo? É impossível, é como alguém tentar ultrapassar o vento ou confinar um rio a um canudo. E eu o vi! Estava solto ontem à noite! — Não sei do que está falando — respondeu meu irmão, com um ar de assombro. — Mas para nós a descoberta foi outra desgraça. Ninguém

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queria acreditar, e até agora Elizabeth não está convencida, apesar de todas as provas. De fato, quem acreditaria que Justine Moritz, tão amável e carinhosa, poderia ser capaz de crime tão horripilante? — Justine Moritz! Pobre menina, ela está sendo acusada? Mas é um engano, ninguém pode acreditar nisso. Ou acreditam? — Ninguém acreditava no início, mas surgiram diversas circunstâncias que nos deixaram convictos. E seu comportamento tem sido tão confuso que os indícios ganham um peso que não deixa margem para a dúvida. Mas ela será julgada hoje e você poderá ouvir toda a história. E contou-me que, na manhã em que foi descoberto o assassinato do pobre William, Justine tinha caído doente. Enquanto estava acamada, uma criada, ao mexer nas roupas que ela usava no dia do crime, descobriu em um dos bolsos o pingente com o retrato de nossa mãe que todos acreditavam ter sido a motivação do assassino. A criada foi logo contar a descoberta para outro dos empregados, que, sem consultar ninguém da família, procurou a polícia. Justine, ao ser acusada, comportou-se de maneira tão confusa que acabou confirmando as suspeitas e sendo presa. Era uma história singular, mas minhas convicções não foram abaladas, e, muito sério, afirmei: — Estão todos enganados. Sei quem é o assassino. Justine é inocente. Naquele momento meu pai entrou. A tristeza era profunda em seu semblante, mas ele se esforçou para me receber com alegria. Depois de nossos cumprimentos cheios de pesar, teríamos enveredado por outros assuntos se Ernest não tivesse exclamado: — Papai, Victor disse que sabe quem assassinou o pobre William! — Infelizmente também sabemos — respondeu meu pai. — Preferia permanecer sem saber em vez de encontrar tanta maldade e ingratidão em alguém que eu prezava tanto. — Meu querido pai, o senhor está enganado. Justine é inocente. — Se ela é, Deus há de protegê-la. Seu julgamento será hoje, e espero que seja absolvida.

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Essa fala me tranquilizou. Estava convencido no meu íntimo de que nem Justine nem qualquer outro ser humano era culpado daquele assassinato. Não temia, portanto, que alguma prova circunstancial fosse forte o bastante para condená-la. Logo Elizabeth se juntou a nós. Havia mudado desde a última vez que a vira. O tempo a tinha dotado de um encanto que superava a beleza de quando era criança. Lá estavam a mesma candura e a mesma vivacidade, agora aliadas a uma expressão cheia de sensibilidade e inteligência. Recebeu-me com afeto. — Sua chegada me enche de esperança, querido primo. Talvez consiga defender minha pobre Justine. Tenho tanta certeza de sua inocência quanto tenho da minha! Já não bastava termos perdido nosso amado menino. Se ela for condenada, perderei minha alegria de viver. Mas estou certa de que não será e que conseguiremos voltar a ser felizes, mesmo depois da morte do meu pobre William. — Ela é inocente, querida Elizabeth, e isso será provado — afirmei. — Não tenha medo e anime seu espírito com essa convicção de inocência. — Como você é gentil e generoso! Todos acreditam na culpa dela. E isso me dá arrepios. Ver tanta gente com tanta certeza de sua culpa me deixa sem esperanças e desesperada. Ela começou a chorar. — Querida sobrinha — disse meu pai —, enxugue suas lágrimas. Se ela é mesmo inocente, confie na justiça de nossas leis. Cuidarei para que não haja a mínima sombra de parcialidade.

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CAPÍTULO 8 90

Foram horas dolorosas até o início do julgamento, às 11 horas. Meu pai fora convocado como testemunha, assim como o resto da família. Toda aquela encenação de justiça me torturava. Ia ser decidido se a minha curiosidade doentia causaria aquelas duas mortes: uma delas, de um menino cheio de alegria e inocência, a outra, ainda mais grave, pois estava impregnada de infâmia que causaria horror para sempre. Justine era uma garota de valor, e tudo isso agora cairia no esquecimento devido a uma acusação injusta. E eu era o culpado! Se fosse possível, preferia ter assumido a culpa pelo crime, mas, como estava ausente quando ele foi cometido, tal confissão seria considerada como delírio de um louco e não poderia salvá-la. Justine estava calma. Vestia-se de luto, e seu ar solene a deixava mais linda do que nunca. Parecia confiante em sua inocência e não se abalava, mesmo debaixo do olhar de reprovação de tanta gente. Quando entrou no tribunal, olhou em volta e logo localizou onde estávamos sentados. Uma lágrima quase escorreu dos seus olhos, mas ela logo se recompôs, e um olhar de triste afeição reforçou sua absoluta inocência. O julgamento começou, e, depois que o promotor fez a acusação, várias testemunhas foram chamadas. Muitos fatos estranhos conspiravam contra ela de uma forma que tornava fácil acreditar em sua culpa. Ela tinha estado fora de casa a maior parte da noite do crime e pela manhã fora vista por uma feirante não muito longe de onde o corpo da criança assassinada seria encontrado pouco depois. A mulher indagou

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o que ela fazia ali e a resposta foi confusa. Voltou para casa por volta das oito e, quando questionada sobre onde passara a noite, respondeu que procurava pelo menino sumido e perguntou impaciente se alguém tinha notícias dele. Ficou desesperada quando viu o corpo e caiu de cama por vários dias. Quando, diante do pingente apresentado como prova, Elizabeth, com a voz trêmula, confirmou que era o mesmo que ela colocara ao redor do pescoço da criança menos de uma hora antes que dessem falta dela, um murmúrio de horror e indignação tomou conta do tribunal. Justine foi chamada para se defender. Com o desenrolar do julgamento, sua expressão foi se alterando e expressando surpresa, horror e angústia. Algumas vezes ela lutava contra as lágrimas, mas, quando teve a oportunidade de ser ouvida, juntou todas as forças e falou de forma clara, ainda que instável: — Deus sabe que sou inocente. Mas sei que meus protestos não bastarão para me absolver. Afirmo minha inocência baseada em uma explicação simples dos fatos que são levantados contra mim. Minha esperança é que o comportamento que sempre tive faça com que os juízes abordem os fatos com boa vontade. Então relatou que na noite em que o crime foi cometido, fora visitar, com a permissão de Elizabeth, uma tia que morava em uma vila nos arredores de Genebra. Quando voltava, por volta das nove horas, encontrou um homem que perguntou se ela sabia algo sobre o menino que estava perdido. Ela ficou alarmada com a notícia e passou várias horas procurando por ele. Os portões da cidade foram fechados e ela se viu obrigada a passar a noite em um estábulo ao lado de uma cabana. Passou a noite acordada, mas acreditava ter dormido alguns minutos logo antes do amanhecer, até que acordou ouvindo passos. O sol estava surgindo, e ela deixou o abrigo para voltar a procurar pelo meu irmão. Se chegou perto do ponto onde o corpo tinha sido encontrado foi por mero acaso. Não era nada absurdo ter respondido à feirante de forma confusa, pois havia passado uma noite em claro e

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não sabia nada sobre o destino do pobre William. Sobre o pingente com o retrato não tinha explicação. — Sei muito bem — continuou —, o quanto essa circunstância pesa contra mim, mas não posso explicá-la. Fico tentando imaginar situações em que o pingente pudesse ter sido colocado em meu bolso, mas não consigo. Foi o assassino que o colocou em meu bolso? Não sei como pode ter feito isso, e mesmo que tenha feito, não entendo por que teria roubado a joia para em seguida desfazer-se dela. Tenho pouca esperança, mas confio na justiça. Peço que ouçam alguns testemunhos sobre o meu caráter e avaliem se são convincentes o bastante para superar as suposições sobre minha culpa. Se não forem, serei condenada, mesmo que acredite na salvação por ser inocente. Várias testemunhas foram chamadas. Todas confirmaram que a conheciam havia bastante tempo e falaram bem dela. Mas o medo e o ódio motivado pelo crime do qual era acusada faziam com que temessem ir muito além disso. Vendo que nada daquilo ajudaria Justine na prática, Elizabeth, mesmo muito agitada, pediu permissão para se dirigir ao tribunal. — Sou prima do pobre menino que foi assassinado — disse. — Na verdade, sou praticamente sua irmã, pois fui criada e sempre vivi com seus pais, desde antes de ele nascer. Por isso, esta minha manifestação pode até parecer estranha, mas não consigo ver uma pessoa querida ser condenada dessa forma. Gostaria de dizer o que sei a respeito do seu caráter. Vivemos na mesma casa, uma vez durante cinco anos e depois por mais dois anos. Durante todo esse tempo ela foi a pessoa mais amável e bondosa que conheci. Cuidou de madame Frankenstein, minha tia, em seu leito de morte, com grande afeto e carinho, e em seguida cuidou de sua mãe de forma que inspirou a todos em volta. Depois disso voltou a morar na casa do meu tio, onde sempre foi amada por toda a família. Tinha forte ligação com o menino que foi assassinado e cuidava dele como uma mãe dedicada cuida do filho. Acredito e confio em sua total inocência. Não vejo como ela poderia cair na tentação de praticar

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tal ato. Se algum dia ela desejasse o medalhão que serve de prova principal, eu o teria dado a ela com muita alegria. Um murmúrio de aprovação se seguiu ao apelo simples, porém poderoso de Elizabeth. Mas foi uma reação à sua generosa intervenção e não a favor da pobre Justine, a quem a indignação pública se voltou com renovada violência, agora acusando-a da mais desprezível ingratidão. Minha agitação e angústia eram extremas durante todo o julgamento. Eu sabia que ela era inocente. Não conseguia suportar o peso da culpa, e, quando percebi que o clamor popular e as expressões dos juízes já haviam condenado a vítima infeliz, saí correndo em agonia. A tortura sofrida pela acusada não era como a minha. Ela era inocente, enquanto eu sofria com as garras do remorso cravadas em meu peito. Passei a noite atormentado. Na manhã seguinte, ao me dirigir ao tribunal, meus lábios e minha garganta estavam secos. Não tinha coragem de perguntar, mas, ao reconhecer-me, o funcionário adivinhou a razão da minha visita. Os votos haviam sido dados, e Justine fora condenada por unanimidade. Palavras não servem para expressar o desespero que tomou o meu coração. O funcionário do tribunal acrescentou que Justine já confessara sua culpa. Voltei para casa, onde Elizabeth quis saber sobre o resultado. — Minha prima — respondi —, a decisão foi a que já imaginávamos. Juízes preferem condenar inocentes a correr o risco de ver culpados escapando. Mas Justine confessou. Foi um golpe para Elizabeth, que tinha firme convicção da inocência de Justine. — Que tristeza! — disse. — Como poderei voltar a acreditar na bondade humana? Justine, a quem amei como se fosse uma irmã, como seria capaz de tamanha traição? Seu olhar parecia livre de qualquer crueldade e astúcia, mas ainda assim ela foi capaz de matar. Pouco depois ficamos sabendo que a condenada desejava ver minha prima. Meu pai foi contra, mas deixou que Elizabeth decidisse.

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— Sim — ela disse. — Irei, ainda que ela seja culpada. E Victor precisa me acompanhar, não posso ir sozinha. A ideia dessa visita me torturou, mas não tinha como recusar. Entramos na sombria cela de prisão e encontramos Justine sentada num canto sobre um pouco de palha. Tinha as mãos algemadas e, quando ficamos sozinhos, jogou-se chorando aos pés de Elizabeth. Minha prima chorou também. — Ai, Justine — ela disse. — Por que roubou de mim meu último consolo? Confiava em sua inocência e, ainda que estivesse atormentada, não estava tão triste como estou agora. — Você também acredita que seria capaz de tamanha maldade? — Sua voz era sufocada por soluços. — Levante-se, minha pobre menina — disse Elizabeth. — Por que você se ajoelha sendo inocente? Acreditava em sua inocência apesar de todas as evidências até ouvir dizer que tinha se declarado culpada. Tenha certeza, querida Justine, que nada pode abalar minha confiança, exceto sua confissão. — Confessei, mas menti. Confessei pensando que poderia obter uma absolvição. Fui pressionada com ameaças de excomunhão e do fogo do inferno caso não admitisse minha culpa. O que podia fazer? Foi num momento de fraqueza que admiti uma mentira e agora me sinto ainda mais desgraçada que antes. — Oh, Justine! Perdoe-me por ter duvidado de você. Por que confessou? Mas não chore nem tema a morte. Vou apelar e provarei sua inocência. — Não tenho medo da morte, essa dor já passou. Se você se lembrar de mim como alguém que foi condenada injustamente, fico resignada com o destino que me aguarda. Durante essa conversa me afastei para o canto oposto da cela, onde podia disfarçar a terrível angústia que me dominava. Nem a própria vítima, que estava à beira da morte, sentia agonia tão profunda e amarga. Ficamos várias horas com Justine, e foi com grande dificuldade que Elizabeth se despediu dela:

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— Queria morrer contigo. Não posso viver neste mundo de angústia. Justine assumiu um ar alegre, enquanto se esforçava para conter as lágrimas. Abraçou Elizabeth e disse numa voz embargada: — Adeus, minha querida Elizabeth, amada e única amiga. Que Deus a proteja e que esta seja sua última infelicidade. Viva, seja feliz, e faça os outros felizes. Na manhã seguinte, Justine foi executada. A comovente eloquência de Elizabeth não foi capaz de alterar a convicção dos juízes sobre a culpa da pobre sofredora. Meus apelos indignados e convictos em nada resultaram. Quando escutei suas respostas frias e toda aquela argumentação racional e insensível, a minha eventual declaração de culpa morreu nos meus lábios. Isso só faria que eu parecesse um louco e não teria efeito para revogar a sentença imposta a Justine, que acabou no cadafalso como assassina! Além das torturas sofridas pelo meu coração, havia ainda o luto profundo de Elizabeth. Isso também era culpa minha! A aflição do meu pai e a desolação daquele lar antes sempre sorridente, tudo isso era obra das minhas malditas mãos! E essas não seriam as últimas lágrimas daqueles miseráveis. Eu ainda seria o responsável por muitos tormentos infelizes!

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Fim da parte 1

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CAPÍTULO 1 99

Nada é mais doloroso para a mente humana do que a calmaria que vem depois que uma rápida sucessão de eventos mexe com os sentimentos. Justine morrera e descansava, mas eu estava vivo. O sangue pulsava em minhas veias, mas o desespero e o remorso oprimiam meu coração. O sono me abandonara, e eu vagava como um espírito maligno, pois cometera atos imorais, tão horríveis que eram indescritíveis. E estava convencido de que ainda havia muito a acontecer. Esse estado de espírito atacava minha saúde, que talvez nunca tivesse se recuperado por completo daquele meu primeiro choque. Esquivava-me dos olhares das pessoas, e qualquer som alegre me torturava. Meu único consolo era a solidão, profunda e sombria. Meu pai sofria enquanto observava toda aquela alteração no meu comportamento e tentou, com argumentos serenos, inspirar-me a ser forte e despertar em mim a coragem para afastar aquela nuvem negra que me envolvia. — Você acha, Victor, que não sofro também? — E seus olhos se encheram de lágrimas enquanto continuava. — Ninguém jamais amou uma criança como amei seu irmão. Mas, até mesmo para diminuir o sofrimento dos que se foram, não devemos cultuar a dor excessiva em nosso luto. Você tem esse dever também, pois tristeza demais impede o crescimento pessoal, a diversão e até mesmo a realização das rotinas essenciais do dia a dia. Esse conselho, ainda que sensato, não era aplicável à minha situação.

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Teria sido o primeiro a ocultar minha dor e a consolar meus amigos se o remorso e o terror não estivessem misturando amargura e pânico com outros sentimentos. Conseguia apenas responder ao meu pai com um olhar desesperado e tentava me manter fora de sua vista. Nessa época fomos passar um tempo em nossa casa em Bellerive, e apreciei bastante a mudança. O fechamento dos portões, sempre às dez horas, e a impossibilidade de ficar no lago depois daquela hora tinham tornado nossa estadia em Genebra muito irritante. Agora eu tinha liberdade. Com frequência, depois que o resto da família ia dormir, eu pegava o barco e passava várias horas navegando. Quando havia vento, armava as velas e ia para onde ele me levasse. Em outras ocasiões, depois de remar até o meio do lago, deixava o barco à deriva e me entregava a reflexões infelizes. Muitas vezes, quando a paz reinava ao redor e eu era a única fonte de inquietação além de algum morcego ou dos sapos que coaxavam quando me aproximava da margem, tinha a tentação de me jogar no lago silencioso para que a água envolvesse a mim e à minha tragédia para sempre. Mas era impedido ao me lembrar da heroica e sofredora Elizabeth, a quem amava com ternura. Pensava também em meu pai e meu irmão sobrevivente. Como poderia deixá-los desprotegidos e expostos à maldade do monstro que ficaria solto entre eles? Nessas horas chorava amargamente e desejava que a paz retornasse à minha mente para que eu pudesse ajudar minha família com palavras de consolo e alegria. Mas sabia que isso era impossível. O remorso acabava com qualquer esperança. Eu realizara atos irreparáveis e vivia em constante pavor de que o monstro que criara fizesse novas maldades. Tinha uma sensação sombria de que aquilo não acabara e de que ele ainda cometeria algum crime extraordinário, que chegaria a ofuscar o primeiro. Sempre havia o medo de que envolvesse alguma pessoa que eu amava. Não consigo descrever como detesto esse desgraçado. Quando pensava nele, meus dentes rangiam, meus olhos ardiam, e eu desejava com todo o fervor acabar com aquela vida que eu criara de forma tão descuidada. Ao refletir sobre seus crimes e maldade, meu ódio e

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sentimento de vingança não tinham limites. Queria reencontrá-lo e vingar a morte de William e Justine. O luto dominava nossa casa. A saúde do meu pai ficara abalada pelo horror dos eventos recentes. Elizabeth estava triste e sem ânimo para nada. Qualquer prazer lhe parecia um sacrilégio, e ela não era mais aquela criatura alegre que compartilhava comigo projetos para o futuro. A tragédia que se abateu sobre nós acabou com seus sorrisos. — Fico pensando, querido primo, sobre a morte infeliz de Justine. Não vejo o mundo da mesma maneira que antes, quando lia ou ouvia histórias sobre maldade e injustiça. Aqueles eram vilões antigos ou imaginários que pareciam remotos, mas o tormento agora entrou em nossa casa. Todos acreditaram na culpa daquela pobre garota. Enquanto isso, o assassino está solto por aí e talvez seja até respeitado por todos. Mas, mesmo que eu fosse condenada a sofrer no cadafalso pelos mesmos crimes, não queria trocar de lugar com esse desgraçado. Ouvia essas palavras em extrema agonia. Podia não ter cometido esses crimes, mas, na prática, eu era o real assassino. Elizabeth percebeu a angústia em minha expressão e, segurando minha mão com carinho, disse: — Acalme-se, querido. Fui afetada por tudo isso, mas não estou tão atormentada como você. Sua expressão é desesperada, e, de vez em quando, vingativa, de uma maneira que me arrepia. Querido Victor, livre-se desses sentimentos sombrios. Lembre-se dos amigos e das esperanças que temos em você. Perdemos a capacidade de fazê-lo feliz? Seriam essas palavras, ditas por quem eu amava tanto, capazes de fechar a ferida em meu coração? Enquanto ela falava, aproximei-me dela, cheio de terror. Era como se o monstro quisesse roubá-la de mim naquele exato momento. Manifestações de amor não adiantavam nada. Nem a ternura da amizade nem a beleza da natureza eram capazes de salvar minha alma da amargura. Às vezes podia suportar o desespero, mas em outras ocasiões o rede­moinho de emoções me levava a procurar algum alívio para meus

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Chamonix é uma das mais importantes estâncias turísticas de inverno da Europa, onde se encontra o famoso monte Branco.

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sentimentos intoleráveis no exercício e na mudança de ares. Foi durante um desses ataques de ansiedade que saí de casa sem aviso e parti em direção aos vales alpinos, procurando esquecer minha amargura naquela paisagem magnífica. Fui direto para o vale de Chamonix8, que visitava com frequência na juventude. Seis anos haviam se passado desde a última vez. Eu estava destroçado, mas nada tinha mudado na paisagem. A primeira parte da viagem foi feita a cavalo. Em certo momento aluguei uma mula, de passo mais firme e menos sujeita a se machucar nas trilhas irregulares. O clima estava ótimo. Estávamos em meados de agosto, cerca de dois meses após a morte de Justine. Minha alma sentia um certo alívio à medida que descia pelo vale, cercado por montanhas imensas e precipícios. Depois, quando subi do outro lado, o vale assumiu um ar ainda mais magnífico. Castelos em ruínas pendurados no topo de montanhas cheias de pinheiros, o impetuoso rio Arve e as casinhas escondidas entre as árvores e espalhadas por toda parte formavam uma paisagem de beleza singular. Tudo isso era emoldurado pelos poderosos Alpes, com suas pirâmides brancas brilhantes que pareciam não pertencer a este mundo. Passei pela ponte de Pelissier, onde a ravina formada pelo rio se abria à minha frente, e comecei a subir pela montanha. Logo depois entrei no vale de Chamonix, ainda mais maravilhoso e sublime, porém não tão belo e pitoresco como o de Servoux, que acabara de atravessar. Também era demarcado pelas montanhas nevadas, mas não se viam castelos

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em ruínas ou plantações. Geleiras imensas se aproximavam da estrada. Ouvi o estrondo de uma avalanche e acompanhei ao longe a nuvem levantada com sua passagem. A imponente cúpula do monte Branco dominava o vale. Durante essa travessia fui invadido por uma sensação de prazer havia muito esquecida. Uma curva no caminho ou algum objeto percebido e reconhecido me lembravam de dias alegres e joviais. O vento sussurrava em meus ouvidos o recado da natureza para que parasse de sofrer. Mas logo depois essa influência gentil parava, e mais uma vez me encontrava em luto e entregue à tristeza. Esporeava o animal, como se pudesse fugir galopando dos meus medos, ou, em momentos mais desesperados, apeava e me jogava sobre a grama, esmagado pelo horror. Afinal cheguei à hospedaria na vila de Chamonix e me recolhi, exausto de fadiga física e mental. Por um breve instante fiquei à janela, observando os pálidos relâmpagos que brincavam sobre o monte Branco e ouvindo o rugido do rio Arve, que seguia seu curso barulhento lá embaixo. Esses sons serviram como uma canção de ninar, pois, quando deitei a cabeça no travesseiro, o sono logo tomou conta de mim como uma bênção que me permitia esquecer tudo.

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CAPÍTULO 2 104

Passei os dias seguintes vagando pelo vale, perto da nascente do rio Arveyron, que surge de uma geleira e depois avança, devagar, desde o alto da montanha até o fundo do vale. Encostas íngremes se levantavam à minha frente, e a parede de gelo parecia estar pendurada sobre mim. Alguns poucos pinheiros se espalhavam em volta, e o silêncio solene daquela gloriosa cena era quebrado apenas pelo estrondo de algum enorme fragmento de gelo que despencava. Aquelas cenas sublimes e magníficas davam o maior conforto que meu coração seria capaz de receber. Faziam com que me libertasse dos sentimentos menores e serviam para aplacar e suavizar minha dor, apesar de não serem capazes de acabar com ela. Recolhi-me para dormir. Meu sono foi leve. Sonhei com as grandes montanhas nevadas, o pico brilhante, os pinheiros nas encostas, a ravina assolada pelo vento, a águia planando entre as nuvens, todos reunidos à minha volta, convidando-me a ficar em paz. Onde estavam quando despertei no dia seguinte? Tudo o que inspirava a alma voou com o sono, deixando apenas a melancolia a sombrear os pensamentos. Chovia forte e um forte nevoeiro escondia o cume das montanhas. Mesmo assim, tentaria penetrar o véu enevoado para contemplá-las pelas nesgas entre as nuvens. O que era um pouco de chuva e vento? Minha mula foi trazida à porta, e resolvi subir ao cume do Montanvert. Lembrava-me do efeito causado em mim quando vi pela primeira vez aquele tremendo mar de gelo. Na ocasião me senti pleno de um êxtase sublime, que deu

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asas ao meu espírito. Resolvi ir sem guia, pois conhecia bem o caminho e a presença de outra pessoa arruinaria a grandiosidade da cena. A subida é íngreme como um precipício, mas é possível vencê-la por um caminho em zigue-zague. É uma paisagem terrivelmente desoladora. Por todo lado é possível perceber o resultado da passagem de alguma avalanche, com árvores caídas no chão, umas destruídas por completo, outras penduradas sobre pedras ou outras árvores. À medida que se sobe, o caminho é cortado por ravinas de neve por onde rolam traiçoeiros blocos de gelo. Uma dessas é perigosa em particular, pois o menor som, como alguém falando em voz alta, produz uma onda sonora suficiente para jogar a destruição bem na cabeça do tagarela. Os pinheiros não são altos nem exuberantes, mas sombrios, e dão um ar severo à paisagem. Olhei para o vale abaixo. Extensos nevoeiros se elevavam para formar as mantas que cobriam as montanhas do lado oposto. A chuva caía do céu escuro e reforçava a melancolia presente naquela cena. Era quase meio-dia quando cheguei ao alto. Por algum tempo me sentei sobre a rocha que se debruça sobre o mar de gelo. Uma neblina envolvia tanto a geleira como as montanhas ao redor. Pouco depois uma brisa dissipou a nuvem, e eu desci até a geleira. A superfície é muito irregular, com altos e baixos como as ondas de um mar agitado e toda cortada por fendas profundas. A faixa de gelo tem pouco mais de um quilômetro de largura, mas levei cerca de duas horas para cruzá-la. A montanha do lado oposto é uma rocha perpendicular e nua. De onde estava agora podia ver o Montanvert e, atrás dele, o majestoso monte Branco. Fiquei abrigado em um recuo da rocha, contemplando aquela paisagem formidável e maravilhosa. O mar, ou melhor, o imenso rio de gelo serpenteava entre as montanhas ao redor. Os picos nevados brilhavam ao sol por entre as nuvens, e meu coração, antes aflito, agora se enchia de algo parecido com alegria. Foi quando, de repente, vi a silhueta de um homem, a alguma distância, vindo em minha direção com uma velocidade sobre-humana. Saltava sobre as fendas que eu contornara cheio de cuidado. Ao se aproximar,

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vi que sua estatura excedia a de um homem. Fiquei atordoado. Minha vista ficou turva e quase desmaiei, mas logo fui reanimado pelo vento gelado. Quando a forma se aproximou um pouco mais, percebi, numa visão terrível e repugnante, que se tratava do desgraçado que eu criara. Tremi de raiva e horror, e decidi esperar que chegasse mais perto para então enfrentá-lo em combate mortal. Logo pude ver seu semblante angustiado e sua expressão cheia de maldade. Sua feiura descomunal era insuportável, mas eu estava tão cheio de raiva e ódio que nem liguei para isso e o recebi com palavras de repulsa e desprezo: — Monstro! Como ousa se aproximar e confrontar meu desejo de vingança? Fuja, inseto vil! Ou melhor, fique, para que possa transformá-lo em pó! — Já esperava essa recepção — disse a criatura. — Todos odeiam os desgraçados. Logo, devo ser odiado, pois sou o mais desgraçado entre todos os seres vivos! Até você, meu criador, detesta e abomina a minha existência, eu que sou ligado a você por laços que só podem ser dissolvidos se um de nós for aniquilado. Pretende me matar. Como pode brincar assim com a vida? Cumpra seu dever para comigo e retribuirei da mesma maneira para contigo e o resto da humanidade. Se aceitar minhas condições, prometo que partirei em paz. Mas, se recusá-las, vou saciar a fome de morte com o sangue de todos os seus amigos restantes. — Monstro abominável! Desgraçado! As torturas do inferno são um castigo suave demais para seus crimes! Faz cobranças sobre meu dever para contigo! Venha então para que eu possa acabar com a vida que criei! Minha fúria não tinha limites. Saltei sobre ele, impulsionado por todos os sentimentos que podem lançar alguém contra outro. Ele se esquivou com facilidade do ataque e disse: — Tenha calma! Ouça o que tenho a dizer, antes de descarregar sua raiva em mim. A vida até agora tem sido um acúmulo de angústias para mim, mas gosto dela e pretendo defendê-la. Lembre-se de que me criou muito mais poderoso que você. Sou mais alto, e minhas juntas

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são mais elásticas. Mas não lutarei com você. Sou sua criatura e serei gentil e obediente ao meu senhor, desde que também faça sua parte. Ao menos você, Frankenstein, me deve justiça, para não falar em clemência e afeto. Lembre-se de que sou sua criatura. Deveria ser seu Adão, mas acabei sendo este anjo caído, sem direito à alegria. Por onde vejo felicidade, sei que dela estou excluído. Fui bondoso e compreensivo, e minha desgraça me transformou em inimigo. Faça-me feliz e seguirei o caminho da virtude. — Vá embora! Não quero mais ouvir sua voz! Não pode haver convi­vência entre nós dois, somos inimigos. Vá, ou então lute comigo até que sobre só um de nós. — Como posso convencê-lo? Nenhuma súplica vai conseguir um olhar generoso sobre a criatura que implora por bondade e compaixão? Acredite em mim, Frankenstein, fui bom, minha alma se encheu de amor e humanidade, mas estou sozinho, miseravelmente sozinho. As montanhas desertas e as geleiras desoladas são meu refúgio. Vaguei por aqui durante vários dias. As cavernas no gelo, que todos temem, são minha morada. Se a humanidade soubesse da minha existência, faria como você e buscaria minha destruição. Por que eu não deveria odiar aqueles que me abominam? Não farei acordos com meus inimigos. Sou um desgraçado, e eles devem compartilhar da minha desgraça. Mas está ao seu alcance me recompensar e livrá-los de um monstro que, dependendo da sua decisão, pode fazer mal, não só a você e à sua família, mas a centenas de outros que estarão no caminho do seu furacão furioso. Deixe a compaixão afastar esse desprezo que sente por mim. Ouça minha história: depois de escutá-la, pode resolver se me abandona ou se tem pena de mim. Mas me escute. Qualquer culpado, mesmo o mais sanguinário, tem direito, pelas leis humanas, a se defender antes de ser condenado. Não peço para ser poupado. Se depois de escutar minha história ainda quiser destruir sua criação, faça-o se for capaz. — Por que insiste em me lembrar desses acontecimentos que me causam calafrios quando penso ser o desgraçado que os causou? —

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respondi. — Monstro repugnante, maldito seja o dia em que viu a luz pela primeira vez! Malditas sejam estas mãos que lhe deram forma, mesmo que sejam as minhas! Você me desgraçou além do imaginável. Não tenho forças para pensar se sou justo contigo ou não. Vá embora! Alivie-me da visão de sua forma abjeta. — Esse é o alívio que posso oferecer, meu criador, para poupá-lo dessa visão que abomina. — Ao dizer isso, pôs suas mãos abomináveis sobre meus olhos, o que repeli com violência. — Mesmo assim não pode me ouvir nem me conceder sua compaixão. Em nome das virtudes que já tive, exijo sua atenção. Ouça minha história. Ela é longa e estranha, e aqui é frio demais para você. Venha para meu abrigo no alto da montanha. O sol ainda está bem alto, e, antes que ele baixe no horizonte e vá iluminar outras terras, você terá ouvido minha história e poderá decidir. Está em suas mãos se deixarei a humanidade em paz para sempre ou se me tornarei o flagelo de suas pessoas queridas e responsável por sua ruína fulminante. Disse isso e avançou pelo gelo. Eu o segui, sem falar nada. Enquanto o acompanhava, ponderei seus argumentos e resolvi ouvir sua história. Em parte era levado pela curiosidade, e a compaixão reforçava minha decisão. Até então, supunha que ele fosse o assassino de meu irmão e estava ansioso para confirmar ou descartar essa opinião. Além disso, pela primeira vez sentia os deveres de um criador para com sua criatura e como deveria tentar lhe trazer felicidade antes de lamentar sua maldade. Esses motivos me levaram a concordar com sua demanda. Cruzamos o gelo e subimos pela pedra do lado oposto. O ar estava frio e a chuva começava a cair de novo quando entramos no abrigo. O patife parecia exultante enquanto eu estava deprimido e cabisbaixo. Mas concordei em escutá-lo. Sentei-me junto ao fogo que meu odioso companheiro acendera. Ele começou sua história.

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CAPÍTULO 3 (conforme contado pela criatura)

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É com grande dificuldade que me lembro dos primeiros dias da minha existência. Todos os eventos daquele período parecem confusos e indistintos. Uma estranha variedade de sentimentos me invadiu e passei a ver, sentir, ouvir e cheirar de uma vez só. Demorou bastante para que conseguisse diferenciar meus vários sentidos. Aos poucos, lembro bem, uma luz forte pressionou meus nervos até me obrigar a fechar os olhos. A escuridão tomou conta e fiquei preocupado, mas isso passou logo, assim que abri os olhos e a luz voltou a me invadir. Andei mais um pouco e experimentei grandes mudanças em minhas sensações. Antes, estivera rodeado por corpos escuros e opacos, que não podia tocar ou examinar, mas agora podia vagar em liberdade, contornando ou evitando qualquer obstáculo. A luz ficou cada vez mais opressiva, assim como o calor que me assolava enquanto andava, então procurei um lugar onde houvesse uma sombra para me abrigar. Esse local foi o bosque perto de Ingolstadt, onde me deitei perto de um riacho e acabei adormecendo. Estava escuro quando acordei. Senti frio também e fiquei meio assustado, estando tão sozinho. Antes de deixar seu apartamento, ao sentir frio, cobri-me com algumas roupas, mas essas eram insuficientes para me proteger do orvalho noturno. Eu era um pobre infeliz abandonado. Não sabia de nada, mas sentia a dor me invadir. Sentei-me e chorei. Logo uma luz suave tomou o céu e me deu uma sensação de prazer. Fiquei de pé e vi uma forma radiante surgindo entre as árvores.

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Maravilhado, fitei a lua. Ela se movia bem devagar e iluminava meu caminho. Aproveitei para sair em busca de frutos silvestres. Ainda sentia frio quando, debaixo de um grande carvalho, encontrei um capote com o qual me cobri. Sentei-me. Tudo parecia confuso. Percebia a luz e a escuridão, e sentia a fome e a sede. Inúmeros sons vibravam em meus ouvidos, e de todos os lados vinham diferentes cheiros. O único objeto que eu conseguia distinguir era a lua brilhante, e fixei meu olhar nela com prazer. Muitos dias e noites se passaram e a lua parecia ter diminuído de tamanho quando comecei a entender meus sentidos. Via com clareza o riacho limpo que me dava água e as árvores que me ofereciam sombra com suas folhagens. Fiquei maravilhado quando descobri que o som agradável que sempre deliciava meus ouvidos vinha da garganta daqueles animais alados que volta e meia bloqueavam a luz do sol. Comecei também a observar com mais atenção as formas ao redor. Às vezes tentava imitar o canto agradável dos pássaros, mas não conseguia. Outras vezes queria expressar minhas sensações do meu próprio jeito, mas os sons toscos que saíram de mim acabavam me assustando. A lua sumiu do céu para depois, novamente em uma forma reduzida, ressurgir e voltar a iluminar a floresta. Meus sentidos, a essa altura, já eram bem distintos e todos os dias minha mente recebia novas ideias. Meus olhos se acostumaram com a luz e passaram a perceber a real forma dos objetos. Podia distinguir um inseto de uma planta, e pouco depois já diferenciava os tipos de planta. Descobri que o pardal emitia somente notas grosseiras enquanto o melro e o tordo eram melosos e sedutores. Um dia, quando sentia muito frio, achei uma fogueira abandonada por alguns mendigos e fui surpreendido pelo calor que encontrei ali. Excitado, enfiei as mãos nas brasas ardentes, mas logo as recolhi com um grito de dor. Que estranho, pensei, que a mesma coisa possa causar efeitos tão opostos! Examinei a fogueira e, para minha alegria, constatei que era formada por madeira. Logo coletei alguns galhos, mas eles estavam molhados e não queimavam. Fiquei frustrado e me sentei,

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contemplando o fogo. A madeira úmida que pusera junto ao fogo secou e se inflamou. Pensei a respeito e, depois de tocar em diversos galhos, descobri a razão e passei a me ocupar coletando grande quantidade de lenha. Quando a noite chegou, meu grande medo era que o fogo se apagasse caso eu dormisse. Cobri com cuidado a fogueira com lenha seca e folhas, e por cima de tudo coloquei alguns ramos úmidos. Em seguida, estendi meu capote e me deitei no chão, entregando-me ao sono. De manhã, logo ao acordar tratei de examinar a fogueira. Descobri-a, e uma brisa suave cuidou de soprar e acender uma chama. Percebi isso também, e inventei um leque de galhos, que usava para reavivar as brasas adormecidas. Quando a noite retornou, notei com satisfação que o fogo, além do calor, oferecia luz e também podia me ajudar com a comida. Os mendigos haviam deixado alguns restos assados, muito mais saborosos que as frutinhas catadas dos arbustos. Tentei preparar minha comida daquela maneira, colocando-a sobre as brasas acesas. Descobri que as frutas silvestres se estragavam desse jeito, mas que as castanhas e as raízes ficavam bem melhores. No entanto a comida passou a escassear, e com frequência passava o dia inteiro procurando em vão por algumas bolotas para matar um pouco da fome. Quando percebi isso, resolvi deixar o lugar que habitara até então e procurar outro onde minhas poucas necessidades pudessem ser mais bem atendidas. Nessa mudança, minha grande perda seria deixar para trás o fogo descoberto por acaso e que não sabia como produzir. Pensei durante várias horas a esse respeito, mas nenhuma das minhas ideias foi suficiente para resolver o problema. Cobri-me com o capote e parti pelo bosque em direção ao sol poente. Perambulei por três dias e afinal encontrei um descampado. Nevara bastante durante a noite anterior e os campos estavam brancos. A paisagem era desoladora e meus pés estavam gelados. Eram cerca de sete horas da manhã e me dediquei a procurar comida e abrigo. Enfim percebi uma pequena cabana, sobre uma elevação. Era uma nova visão para mim e examinei a estrutura com grande

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curiosidade. A porta estava aberta e entrei. Um homem idoso se sentava junto ao fogo, onde preparava seu desjejum. Ouvindo um som, virou-se. Ao me ver, soltou um grito e saiu apavorado porta afora, correndo veloz pelo campo. Tanto sua aparência, diferente de tudo o que já vira, como sua disposição me encantaram, mas o que me deixou maravilhado de verdade foi a cabana. Ali a neve e a chuva não conseguiam penetrar, o chão era seco. Aquilo me parecia algo divino e extraordinário. Comi com avidez a refeição que o homem preparava, feita de pão, queijo, leite e vinho. Este último, contudo, não apreciei. Então, tomado pela fadiga, deitei sobre um pouco de palha e caí no sono. Era meio-dia quando acordei e, atraído pelo calor do sol, que brilhava sobre o chão todo branco, decidi retomar minha jornada. Guardei os restos da refeição em uma pequena bolsa que encontrara e continuei viagem pelos campos durante várias horas, até que, ao entardecer, cheguei a uma vila. Tudo parecia milagroso! Casebres, cabanas e construções majestosas me causavam cada vez mais admiração. Os legumes nas hortas, bem como o leite e o queijo que vi nas janelas de algumas cabanas, abriram meu apetite. Entrei em uma das casas mais bonitas, mas assim que passei pela porta uma criança gritou de horror e uma das mulheres desmaiou. Toda a vila se agitou, alguns correram, outros me atacaram, até que, seriamente machucado pelas pedras arremessadas contra mim, escapei para o descampado e acabei encontrando refúgio em uma pequena choupana. Ela era muito simples e parecia uma ruína quando comparada às casas que havia visto na vila. Essa choupana dividia parede com uma outra cabana de aparência bem mais limpa e agradável. Mas, depois da experiência anterior, não ousei entrar. Meu abrigo era um canil sem uso, feito de madeira e tão baixo que eu mal podia ficar em pé. O chão era de terra, mas estava seco e ainda que o vento entrasse por inúmeras frestas, aquele lugar acabou se revelando uma ótima proteção contra a neve e a chuva. Deitei-me feliz por ter encontrado um abrigo, ainda que miserável, contra a inclemência do clima e principalmente contra a barbaridade humana.

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Assim que amanheceu, esgueirei-me do canil para poder ver a cabana adjacente e descobrir se poderia continuar usando a choupana onde tinha dormido. Ela ficava nos fundos da cabana maior e era ladeada por um cercado com porcos e uma lagoa de água limpa. Um dos lados era aberto e foi por ali que eu havia entrado na noite anterior. Fechei com galhos e pedras todas as frestas por onde eu poderia ser visto, de uma maneira que fosse possível removê-los quando precisasse entrar e sair. Depois de arrumar meu abrigo e cobrir o chão com palha limpa, recolhi-me, pois vi ao longe o vulto de um homem, e ainda me lembrava bem de como fora tratado na noite anterior. Antes disso, todavia, para matar minha fome, tinha roubado um pedaço de pão e uma caneca com a qual poderia beber a água que corria perto do meu abrigo de forma mais conveniente que usando as mãos. O chão era um pouco elevado e por isso se mantinha seco, e a proximidade da chaminé da cabana aquecia o ambiente. Com essas necessidades básicas atendidas, decidi que ficaria ali até que algum fato novo me fizesse mudar de ideia. Aquilo parecia um paraíso comparado à floresta gelada, minha residência anterior, com a chuva pingando dos galhos e o chão encharcado. Comi satisfeito o pão e estava a ponto de remover uma tábua e sair para buscar um pouco de água quando ouvi passos. Olhei por uma fresta e vi uma jovem com um balde na cabeça, passando em frente à minha choupana. Era muito nova e tinha modos gentis, bem diferente de todos os outros camponeses que encontrara. Suas roupas eram modestas: uma saia azul de tecido grosseiro e um casaquinho de linho. Seu lindo cabelo estava penteado em tranças, sem nenhum adorno. Parecia paciente, porém triste. Perdi-a de vista até que, cerca de 15 minutos depois, reapareceu equilibrando na cabeça o balde que agora estava quase cheio de leite. Parecia incomodada com o peso. Um jovem veio ao seu encontro, aparentando grande desânimo. Balbuciou alguns sons com um ar melancólico, pegou o balde e o levou de imediato para dentro da cabana. Ela o seguiu, e desapareceram. Em seguida, mais uma vez vi o jovem, agora levando

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algumas ferramentas enquanto atravessava o campo atrás da cabana. A moça também estava ocupada, às vezes dentro de casa, outras vezes no quintal. Examinando minha moradia, descobri, na parede que ela dividia com a cabana maior, uma janela que agora estava fechada com tábuas. Numa das tábuas havia uma rachadura quase imperceptível, porém suficiente para que enxergasse por ela. Pela fresta era possível ver um pequeno cômodo, muito limpo, mas quase sem móveis. Em um canto, perto de uma pequena lareira, sentava-se um velho, com a cabeça apoiada nas mãos, parecendo desolado. A jovem, antes envolvida na arrumação da cabana, sentou-se ao seu lado e passou a se ocupar com algo que tinha retirado de uma gaveta. O velho pegou um instrumento e começou a tocar, produzindo sons mais doces que o canto do rouxinol. Era uma cena linda, até mesmo para mim, pobre desgraçado que nunca presenciara nada tão belo. Os cabelos grisalhos e a expressão bondosa do velho conquistaram meu respeito, e as maneiras delicadas da jovem despertaram meu amor. Enquanto ele tocava, ela começou a chorar. Ele só percebeu isso quando ela começou a soluçar alto. Ele disse alguma coisa e a linda criatura se ajoelhou aos seus pés. Ele a ergueu e sorriu com tamanha gentileza e afeto que senti emoções peculiares e poderosas, numa mistura de dor e prazer que ainda não tinha experimentado. Era diferente da fome e do frio, do calor ou da comida, e me afastei da janela, incapaz de lidar com tais emoções. Pouco depois o jovem voltou, carregando uma pilha de lenha nos ombros. A moça o encontrou junto à porta e levou parte da lenha para dentro da cabana, onde alimentou a lareira. Então ela e o jovem se afastaram para outro canto do cômodo, onde ele lhe mostrou um pão e um pedaço de queijo. Ela pareceu satisfeita e saiu para o quintal em busca de algumas verduras e raízes, que colocou para ferver numa panela sobre o fogo da lareira. Ela retomou o trabalho enquanto o jovem saiu para a horta onde passou a cavar e colher raízes. Depois de cerca de uma hora, a jovem se juntou a ele e ambos retornaram para dentro da cabana.

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Durante esse tempo o velho ficara pensativo, mas, quando os outros rea­pareceram, assumiu um ar mais animado e sentaram-se para comer. A refeição foi rápida. A jovem passou a se ocupar mais uma vez da arrumação da cabana. O velho saiu para andar em frente da cabana e tomar sol por alguns minutos, amparado pelo rapaz. Nada podia ser tão belo como o contraste entre aquelas criaturas admiráveis. Um era idoso, com cabelos grisalhos e uma expressão radiante de amor e bondade. Por sua vez, o jovem esbelto e elegante aparentava tristeza e desânimo. O velho voltou para a cabana e o jovem, com ferramentas diferentes das que usara pela manhã, dirigiu-se ao campo. O sol logo se pôs, mas, para minha grande admiração, descobri satisfeito que os moradores da cabana podiam prolongar a luz com lampiões e que o pôr do sol não encerraria aquela experiência prazerosa que era contemplar meus vizinhos humanos. À noite, os dois jovens se ocuparam de várias maneiras que não consegui entender, e o velho mais uma vez pegou o instrumento que produzia os sons divinos que haviam me encantado pela manhã. Assim que terminou, o jovem começou a emitir sons monótonos que em nada lembravam a harmonia do instrumento do velho nem o canto dos pássaros. Depois descobri que estava lendo em voz alta, mas naquela época não sabia nada sobre letras e palavras. A família, depois de se ocupar por pouco tempo, apagou as luzes e se retirou para descansar.

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CAPÍTULO 4 (conforme contado pela criatura)

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Fiquei deitado sobre meu leito de palha sem conseguir dormir. Pensei sobre o que havia ocorrido durante o dia. Os modos gentis haviam me causado o maior impacto e desejava juntar-me a eles sem ousar fazê-lo. Lembrava-me muito bem do tratamento que tinha sofrido dos aldeães selvagens na noite anterior e decidira ficar quieto, observando e tentando entender suas motivações. Os moradores despertaram na manhã seguinte antes do nascer do sol. A moça arrumou a cabana e preparou a refeição. O jovem saiu após essa refeição. A rotina desse dia foi a mesma do anterior. O rapaz esteve sempre ocupado ao ar livre e a moça realizou várias tarefas dentro de casa. O velho, que logo percebi ser cego, passava as horas tocando seu instrumento ou meditando. Não eram felizes por completo. Com frequência os jovens se afastavam e pareciam chorar. Não via razão para sua tristeza, mas era profundamente afetado por ela. Se criaturas tão amáveis eram infelizes, não à toa eu, um ser solitário e imperfeito, era um desgraçado. Mas por que essas pessoas gentis estavam tristes? Tinham uma casa agradável e todo o conforto, pelo menos aos meus olhos. Tinham uma lareira para aquecê-los no frio, provisões deliciosas para matar a fome, estavam vestidos com roupas excelentes e, acima de tudo, desfrutavam da companhia uns dos outros, podendo se relacionar e trocar olhares afetuosos e gentis. O que suas lágrimas significavam? Expressariam dor? A princípio não sabia como responder a essas

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perguntas, mas o tempo e minha constante atenção acabaram explicando esses enigmas. Muito tempo se passou até que descobrisse que uma das causas da apreen­são daquela amável família era a pobreza. Alimentavam-se apenas dos legumes e verduras da horta e do leite de uma vaca, que era muito pouco durante o inverno, quando seus donos mal conseguiam forragem para mantê-la. Creio que passaram bastante fome com frequência, principalmente os dois jovens. Muitas vezes os vi servirem comida ao velho sem terem reservado nada para si mesmos. Esse gesto carinhoso sensibilizou-me. Tinha me acostumado a, durante a noite, roubar um pouco dos seus suprimentos para meu consumo. Mas, quando descobri que causava sofrimento aos moradores da cabana, parei com isso e passei a satisfazer-me com as frutinhas, castanhas e raízes que catava na floresta vizinha. Descobri também outras formas de ajudá-los. Percebi que o rapaz gastava grande parte do dia coletando lenha para a lareira, e durante a noite eu costumava pegar suas ferramentas, que logo aprendi a usar, e trazia para casa madeira suficiente para vários dias. Lembro que, na primeira vez que fiz isso, a jovem, ao abrir a porta pela manhã, foi tomada de espanto ao ver uma grande pilha de lenha do lado de fora. O rapaz juntou-se a ela, também expressando surpresa. Observei, com satisfação, que ele não foi à floresta naquele dia, usando o tempo para fazer reparos na cabana e cultivar a horta. Aos poucos fiz uma descoberta ainda mais importante. Constatei que possuíam um método para comunicar suas experiências e sentimentos uns com os outros usando sons articulados. Percebi que os sons pronunciados podiam causar prazer ou dor, sorrisos ou tristeza, na mente e na expressão dos ouvintes. Era de fato algo divino, e passei a desejar com ardência tornar-me capaz do mesmo. Mas ficava confuso sempre que tentava. Com grande esforço, depois de passar várias luas em meu esconderijo, descobri os nomes dados aos objetos mais comuns nas conversas. Aprendi como usar as palavras “fogo”, “leite”,

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“pão” e “lenha”. Aprendi também o nome dos moradores. O rapaz e sua companheira tinham vários nomes, mas o velho apenas um, que era “pai”. A moça era chamada de “Ágata”, “irmã” ou “filha” e o rapaz era “Félix”, “irmão” ou “filho”. Não posso descrever a alegria que senti ao descobrir o significado de cada um desses sons. Distinguia várias outras palavras que ainda não era capaz de entender ou usar, como “bom”, “querido” ou “triste”. Passei o inverno desse modo. A gentileza dos moradores conquistou minha afeição. Quando estavam tristes, sentia-me deprimido e quando estavam alegres, eu compartilhava dessa alegria. Via poucos humanos além deles, mas, quando acontecia de algum estranho entrar na cabana, suas maneiras ásperas e atitude rude apenas realçavam os modos educados dos meus amigos. O velho, eu notava, tentava encorajar os filhos e afastar sua melancolia. Ágata ouvia respeitosa, algumas vezes com os olhos cheios de lágrimas, que tentava disfarçar. Mas eu notava que suas feições e seu tom de voz pareciam mais animados depois de ouvir o incentivo do pai. Não era assim com Félix, que sempre era o mais triste do grupo. Mas, se sua expressão era sempre a mais aflita, sua voz era mais animada que a da irmã, principalmente quando se dirigia ao velho. Creio que durante o dia ele trabalhava para um fazendeiro nas redondezas, pois muitas vezes ficava fora o dia inteiro e de noite, ao voltar, não trazia lenha. Outras vezes, trabalhava na horta, mas como havia pouco o que fazer devido ao clima frio da estação, também lia para o velho e Ágata. A leitura intrigou-me bastante no início. Imaginei que encontrasse no papel sinais correspondentes às palavras que falava e passei a desejar ardentemente compreender isso também. Mas como seria possível se nem conseguia entender os sons que correspondiam aos sinais? Contudo, evoluí bastante, mas não o suficiente para acompanhar qualquer tipo de conversa, ainda que empregasse toda a minha atenção nessa tarefa. Logo decidi que, mesmo que desejasse muito expor-me aos

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habitantes da cabana, não ousaria tentar uma aproximação antes de dominar sua linguagem por completo. Com esse conhecimento seria possível convencê-los a ignorar minha aparência disforme, da qual tinha tomado consciência diante do contraste apresentado aos meus olhos o tempo todo. Admirava as formas perfeitas dos moradores da cabana, sua graça, beleza e corpos delicados. Mas fiquei aterrorizado quando vi a mim mesmo numa poça de água limpa! Primeiro recuei, sem poder acreditar que era eu refletido no espelho. Quando acabei convencido que sou o monstro que sou, experimentei as mais amargas sensações de desânimo e vergonha. À medida que o sol foi esquentando e os dias ficando mais longos, a neve sumiu, e vi as árvores nuas e a terra queimada. A partir de então, Félix tinha mais o que fazer e os dolorosos sinais de fome extrema desapareceram. Sua comida, como descobri depois, era rústica porém saudável, e eles dispunham de quantidade suficiente. Vários tipos novos de plantas brotaram na horta conforme a estação avançava. O velho, amparado pelo filho, andava todos os dias ao meio-dia, quando não chovia, como descobri que chamavam quando o céu derramava água. Isso acontecia algumas vezes, mas o vento sempre tratava de secar a terra, e o clima tornou-se bem mais agradável do que antes. A rotina em meu abrigo era sempre a mesma. Durante a manhã acompanhava o movimento dos moradores e quando estavam envolvidos em ocupações diversas, eu dormia. O resto do dia era dedicado a observar meus amigos. Quando se recolhiam para descansar, se houvesse lua ou a noite estivesse estrelada, saía para a floresta e coletava minha comida e lenha para a cabana. Quando voltava, sempre que era necessário, limpava a neve do caminho que usavam e fazia algumas tarefas que tinha visto Félix executar. Depois, esse trabalho realizado por mãos invisíveis causava grande admiração aos moradores, e nessas ocasiões ouvi mais de uma vez pronunciarem as palavras “divino” e “boa alma”, mas não entendia o que significavam.

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Meus pensamentos haviam se tornado mais ativos, e eu desejava entender a motivação e os sentimentos daquelas criaturas fascinantes. Queria saber por que Félix parecia tão infeliz e Ágata tão triste. Pensava, veja só que tolice, que seria capaz de trazer de volta a felicidade para aquelas pessoas merecedoras. Quando sonhava, as formas do pai cego e admirável, da gentil Ágata e do excelente Félix flutuavam à minha volta. Encarava-os como seres superiores, que seriam os senhores do meu destino. Criei mil situações em minha imaginação, nas quais eu me apresentaria a eles e eles me receberiam. Imaginei que sentiriam repulsa, até que, com maneiras gentis e palavras cordiais, conseguiria ganhar sua boa vontade e, mais tarde, seu amor. Esses pensamentos me inspiraram, reanimando meu empenho na arte da linguagem. Minhas cordas vocais são rudimentares, é verdade, mas maleáveis. Mesmo que minha voz não fosse doce como a deles, conseguia dizer as palavras, conforme as ouvia, com alguma facilidade. Minhas intenções eram afetuosas, e mesmo que minhas maneiras fossem rudes, eu merecia um tratamento melhor que pancadas e xingamentos. As chuvas agradáveis e o calor suave da primavera mudaram muito a aparência da terra. Homens, que antes dessa mudança pareciam estar escondidos, espalharam-se, ocupados em diversos tipos de cultivo. Os pássaros cantavam alegres e as folhas começaram a brotar de novo nas árvores. Minha alma animou-se com a aparência encantadora da natureza, o passado ficou apagado na memória, o presente era tranquilo, e o futuro iluminado por raios brilhantes de esperança e antecipações de alegria.

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CAPÍTULO 5 (conforme contado pela criatura)

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Chego agora à parte mais interessante da minha história. Relatarei eventos que despertaram em mim sentimentos que, a partir do que eu era, tornaram-me o que sou hoje. A primavera avançava veloz, o clima era agradável e não havia nuvens no céu. O que antes era deserto e sombrio agora estava radiante com as mais lindas flores e folhagens. Meus sentidos eram presenteados com milhares de odores deliciosos e belas visões. Foi num desses dias, quando meus camponeses descansavam do trabalho, com o velho tocando o violão e seus filhos escutando, que observei que a expressão de Félix estava ainda mais melancólica. Suspirava com frequência, a ponto do pai parar com a música e questionar a causa da tristeza do filho. Este respondeu num tom alegre, e o velho recomeçava a música quando bateram à porta. Era uma dama a cavalo, acompanhada por um camponês. Ela estava vestida de um traje escuro e coberta por um grosso véu negro. Ágata fez uma pergunta, respondida pela estranha com uma única palavra, dita de forma doce: o nome de Félix. Sua voz era musical, mas diferente das vozes dos meus amigos. Ouvindo seu nome, Félix veio correndo até a dama, que, ao vê-lo, jogou o véu para trás e revelou sua rara beleza. Seu cabelo era negro e brilhante, penteado com cuidado, e seus olhos eram escuros. Tinha um porte esbelto, feições delicadas e bochechas rosadas. Félix pareceu encantado e satisfeito ao vê-la. Qualquer traço de tristeza desapareceu de seu rosto, que passou a expressar uma alegria

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intensa, num êxtase de que eu nem podia acreditar que fosse capaz. Seus olhos brilharam e suas faces enrubesceram de alegria. Ela parecia estar sentindo diversas emoções. Derramando algumas lágrimas dos lindos olhos, estendeu a mão para Félix, que a beijou entusiasmado e a chamou de sua doce árabe. Ela não pareceu entendê-lo, mas sorriu. Ele a ajudou a desmontar e, dispensando o guia, conduziu-a para dentro da cabana. O rapaz e o pai conversaram, e a jovem estrangeira ajoelhou-se aos pés do velho e teria beijado sua mão, mas ele fez com que ela se levantasse e deu-lhe um abraço afetuoso. Logo percebi que, ainda que a estrangeira pronunciasse sons articulados e parecesse ter uma linguagem própria, os moradores da cabana não a entendiam e ela tampouco os entendia. Faziam sinais que eu não conseguia compreender, mas vi que sua presença espalhou alegria pela cabana, afastando a tristeza como o sol dissipa a névoa da manhã. Ágata, sempre gentil, beijou as mãos da amável estrangeira e, apontando para o irmão, fez sinais que pareciam dizer que ele estivera triste até ela chegar. Manifestaram essa alegria durante as horas seguintes, mas eu não era capaz de entender o porquê. Descobri, vendo que os moradores repetiam sons que a estrangeira imitava, que ela estava tentando aprender sua linguagem. Logo ocorreu-me a ideia de usar as mesmas instruções com o mesmo propósito. A estrangeira aprendeu cerca de 20 palavras nessa primeira aula, muitas das quais eu já tinha entendido, mas aprendi algumas outras. Quando caiu a noite, Ágata e a árabe recolheram-se bem cedo. Ao se sepa­rarem, Félix beijou as mãos da estrangeira e disse: — Boa noite, querida Safie. Ele continuou sentado por um bom tempo, conversando com o pai sobre sua amável hóspede. Desejei com ardor entendê-los e investi nisso toda a minha capacidade mental, mas foi impossível. Félix foi trabalhar na manhã seguinte. Depois que Ágata terminou seus afazeres, Safie sentou aos pés do velho e, pegando seu violão, tocou melodias tão maravilhosas que me fizeram chorar de emoção. O velho

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parecia encantado e disse alguma coisa que Ágata tentou explicar para Safie e que parecia expressar que ela e sua música causavam nele uma grande alegria. Os dias agora transcorriam na mesma tranquilidade de antes, com a única diferença de que a alegria substituíra a tristeza no semblante dos meus amigos. Safie estava sempre alegre e feliz. Ela e eu progredimos rapidamente no aprendizado da linguagem e em dois meses eu já conseguia compreender a maior parte das palavras ditas pelos meus protetores. Nesse meio-tempo, o solo queimado cobriu-se de vegetação e as encostas verdes ficaram salpicadas de inúmeras flores, cheirosas e bonitas. O sol estava mais quente e as noites amenas, e minhas caminhadas noturnas eram fonte de enorme prazer, ainda que fossem encurtadas porque o sol se punha mais tarde e nascia mais cedo. Pois eu nunca ousava expor-me à luz do dia, temeroso de receber o mesmo tratamento que experimentara na primeira aldeia que visitei. Passava meus dias atento, disposto a dominar logo a linguagem, e fico orgulhoso em dizer que progredi mais rápido que Safie, que entendia muito pouco e falava com um sotaque carregado, enquanto eu era capaz de entender e imitar quase todas as palavras que eram ditas. Enquanto minha fala melhorava, também aprendi a ciência das letras conforme era ensinada à estrangeira, e isso abriu para mim um vasto campo de deslumbramento e prazer. O livro que Félix usou para instruir Safie chamava-se Ruínas dos impérios. Eu não teria entendido seu conteúdo se Félix, enquanto o lia, não desse explicações a cada minuto. Dessa forma adquiri um conhecimento básico da história e uma visão sobre os vários impérios da atualidade. Consegui compreender os hábitos, os sistemas de governo e as religiões de diversas nações. Essas narrativas maravilhosas inspiraram-me com estranhos sentimentos. Como o homem podia ser tão poderoso, virtuoso e magnífico, e ao mesmo tempo tão cruel e egoísta? Ora parecia ser um instrumento do mal e outras vezes era fonte de tudo o que é nobre e divino. Por

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muito tempo não consegui compreender como uma pessoa poderia chegar a matar seu semelhante, nem entendia a necessidade de existirem leis e governos. Mas, quando ouvi detalhes sobre a ocorrência de chacinas, meu deslumbramento cessou e fui tomado pelo nojo e pela repulsa. Cada conversa dos moradores da cabana agora abria para mim um mundo de maravilhas. Ouvi sobre a divisão da propriedade, a riqueza imensa e a pobreza miserável, posição social, descendência e nobreza. Essas palavras levaram-me a olhar para mim mesmo. Aprendi que pertencer a uma nobre linhagem e riqueza eram as coisas mais importantes para as pessoas. Um homem podia ser respeitado com apenas uma dessas, mas, sem nenhuma delas, salvo raras exceções, seria considerado vagabundo e escravo, condenado a empregar seus esforços em prol dos lucros daqueles poucos privilegiados! E o que eu era? Ignorava por completo a minha origem e o meu criador, mas sabia que não tinha dinheiro, amigos ou qualquer tipo de propriedade. Além disso, era dotado de um aspecto hediondo e deformado. Nem sequer podia ser considerado humano. Era mais ágil que eles e podia sobreviver com uma dieta mais pobre. Suportava o frio e o calor extremos com menos sofrimento, e minha estatura superava bastante a deles. Quando olhava em volta, não via nem ouvia falar de ninguém parecido comigo. Seria eu, então, um monstro do qual todos fogem e a quem todos desprezam? Não posso descrever a agonia causada por essas reflexões. Tentei afastá-las, mas o sofrimento só cresceu com o conhecimento. Ai, se tivesse permanecido em minha floresta, sem conhecer ou sentir nada além das sensações de fome, sede e calor! Outras lições bateram ainda mais fundo. Ouvi sobre a diferença entre os gêneros e sobre o nascimento e o crescimento das crianças e como o pai vibrava com os sorrisos dos filhos menores. Aprendi como toda a vida e a atenção de uma mãe é dedicada aos seus filhos e como a mente dos jovens expandia-se e adquiria conhecimento. Ouvi sobre irmãos, irmãs e todas as diversas relações que ligam um ser humano aos outros em laços naturais.

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Mas onde estavam meus amigos e parentes? Nenhum pai havia observado minha infância, nenhuma mãe havia me abençoado com sorrisos e carinhos. Nas minhas lembranças mais remotas eu já tinha o mesmo tamanho e as mesmas proporções. Nunca havia visto ninguém parecido comigo ou que quisesse ter alguma relação comigo. O que eu era? Essa questão me assombrava e a resposta vinha apenas em forma de gemidos.

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CAPÍTULO 6 (conforme contado pela criatura)

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Algum tempo passou até que eu aprendesse a história dos meus amigos. O nome do velho era De Lacey. Descendia de uma rica família da França, onde vivera por muitos anos. Sempre fora respeitado pelos superiores e amado pelos semelhantes. Seu filho fora educado para servir à pátria, e Ágata portava-se como as damas da mais alta distinção. Poucos meses antes da minha chegada, viviam em uma cidade grande e exuberante chamada Paris, rodeados por amigos e usufruindo tudo o que o mérito, o intelecto refinado e o bom gosto, acompanhados de uma razoável fortuna, podiam proporcionar. O pai de Safie fora a causa de sua ruína. Era um mercador turco que habitara Paris por muitos anos até que, por razão que não consegui descobrir, tornou-se um incômodo para o governo. Foi levado à prisão no mesmo dia em que Safie chegara a Paris para juntar-se a ele. O julgamento resultou em pena de morte. A injustiça dessa sentença era escandalosa, e toda Paris indignou-se, pois parecia que sua religião e fortuna, e não o crime do qual era acusado, haviam sido as causas da condenação. Félix comparecera por acaso ao julgamento. Seu horror e sua indignação foram incontroláveis quando ouviu a decisão da corte. Fez naquele momento um juramento solene de libertá-lo e buscou meios de fazê-lo. Depois de várias tentativas sem sucesso de entrar na prisão, acabou encontrando, numa parte da construção que não era vigiada, uma janela gradeada reforçada que servia para deixar entrar um pouco de

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luz na cela do desafortunado condenado, que, acorrentado, aguardava desesperado pelo dia da execução. De noite, pela grade, Félix avisou ao prisioneiro sobre seus planos de ajudá-lo. O turco, espantado e satisfeito, esforçou-se em reforçar a vontade do libertador prometendo recompensa e riqueza. Félix recusou as ofertas com desprezo, mas, quando viu a amável Safie, que tinha permissão para visitar o pai e demonstrara toda sua gratidão, não pôde deixar de pensar que o prisioneiro tinha um tesouro que recompensaria por completo todo o trabalho e o risco da empreitada. O turco logo percebeu o efeito que sua filha causara no coração de Félix e tratou de garantir ainda mais seus interesses com a promessa de conceder sua mão em casamento, assim que chegassem a um local seguro. Félix era nobre demais para aceitar tal oferta, ainda que a possibilidade desse desfecho muito o alegrasse. Durante os dias seguintes, enquanto os preparativos para a fuga do mercador avançavam, o zelo de Félix era estimulado por várias cartas da encantadora jovem, que conseguiu expressar seus sentimentos na língua do rapaz com a ajuda de um velho criado do pai que sabia francês. Agradecia-lhe de forma ardente pelos esforços dedicados a ajudar o pai e, ao mesmo tempo, lamentava seu próprio destino. Tenho cópia dessas cartas. Como estavam sempre nas mãos de Félix ou Ágata, encontrei formas de copiá-las para treinar minha escrita. Antes de partir, eu as deixarei contigo como prova do meu relato. Por enquanto, vou apenas resumir o essencial contido nelas. Safie relatava que sua mãe era uma árabe cristã, capturada e feita escrava pelos turcos. Devido à sua beleza, conquistara o coração do pai de Safie, que se casara com ela. A jovem falava com entusiasmo da mãe, que, tendo nascido livre, desprezava a escravidão em que vivia. Ela educou a filha nos princípios de sua religião e ensinou-lhe a aspirar a uma independência e cultura que são proibidas às muçulmanas. Essa senhora faleceu, mas suas lições ficaram gravadas na memória de Safie, que tinha enjoos só de pensar no retorno à Ásia, onde ficaria confinada

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entre os muros de um harém. A perspectiva de casar-se com um cristão e permanecer em um país onde mulheres podiam ocupar um lugar na sociedade era encantadora para ela. O dia da execução foi marcado. Porém, o condenado fugiu na noite anterior, e antes que amanhecesse já estava a muitos quilômetros de Paris. Félix conseguira passaportes em nome de seu pai, de sua irmã e de si próprio. Comunicara seu plano ao primeiro, que o ajudara fingindo partir em viagem e escondendo-se com a filha em uma parte obscura de Paris. Félix conduziu os fugitivos através da França até Lyon e depois até Livorno, onde o mercador decidiu esperar por uma oportunidade favorável para dirigir-se a algum território sob domínio da Turquia. Safie resolveu permanecer com o pai até o momento de sua partida, e o turco renovou a promessa de que ela poderia juntar-se ao seu libertador. Félix ficou com eles na expectativa desse desfecho. Enquanto isso, desfrutou da companhia da árabe, que lhe demonstrava a mais terna afeição. Conversavam entre si com a ajuda de um intérprete, e muitas vezes apenas com olhares. O turco permitia essa proximidade e encorajava as esperanças dos jovens apaixonados, enquanto em seu íntimo fazia outros planos. Desprezava a ideia de ver sua filha casada com um cristão, mas temia a reação de Félix caso demonstrasse alguma indiferença. Sabia que ainda dependia do seu libertador, que poderia entregá-lo ao governo italiano. Fez de tudo para manter a farsa pelo tempo necessário e já tinha decidido que levaria a filha consigo quando partisse. Seus planos foram facilitados pelas notícias que chegaram de Paris. O governo francês ficara enfurecido com a fuga do condenado e não pou­para esforços para encontrar e punir o responsável. A conspiração de Félix logo foi descoberta, e De Lacey e Ágata foram jogados na prisão. As notícias chegaram a Félix, que teve de acordar de seu sonho apaixonado. Seu pai, cego e idoso, e sua gentil irmã estavam num calabouço infecto enquanto ele desfrutava da liberdade e da companhia daquela a quem amava. Torturava-se ao pensar nisso. Combinou com

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o turco que, caso este tivesse uma chance de fugir para a Turquia antes que Félix voltasse à Itália, Safie deveria ficar como pensionista em um convento em Livorno. Em seguida, despediu-se da amada e partiu apressado para Paris, onde se entregou às autoridades, esperando libertar De Lacey e Ágata com esse ato. Não teve sucesso. Ficaram presos por cinco meses antes do julgamento, que resultou na perda de sua fortuna e na condenação a um exílio perpétuo longe da terra natal. Conseguiram um abrigo miserável na Alemanha, na cabana onde os encontrei. Félix logo ficou sabendo que o mercador, por quem sua família havia sacrificado a fortuna e o prestígio, traíra sua honra e boa-fé e fugira da Itália levando a filha. Ainda por cima, insultara Félix, deixando uma ninharia em dinheiro para ajudá-lo em algum plano futuro. Esses eram os eventos que atormentavam Félix quando o conheci. Ele até poderia suportar a pobreza, mas a ingratidão do turco e a perda de Safie eram infortúnios mais amargos e irreparáveis. A chegada da árabe era um sopro de vida nova em sua alma. Quando a notícia de que Félix havia perdido sua fortuna e seu prestígio chegou a Livorno, o mercador mandou que a filha esquecesse o amado e se preparasse para voltar à terra natal. O caráter generoso de Safie foi insultado com essa ordem. Ela tentou argumentar com o pai, mas, irritado, ele deixou-a falando sozinha, reafirmando sua decisão autoritária. Poucos dias depois, o turco entrou nos aposentos de Safie e, cheio de pressa, disse acreditar que seu endereço em Livorno havia sido descoberto e que a qualquer momento seria levado às autoridades francesas. Por isso, havia fretado uma embarcação que zarparia em poucas horas rumo a Constantinopla. Pretendia deixar a filha aos cuidados de uma criada de confiança, até que pudessem ir encontrá-lo com o resto de suas posses, que ainda não havia chegado a Livorno. Quando ficou sozinha, Safie planejou o que faria naquela situação. Morar na Turquia causava-lhe horror, tanto por motivos religiosos como emocionais. Teve acesso a alguns jornais que seu pai deixou para

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trás e ficou sabendo do exílio de Félix e sobre onde passara a residir. Hesitou por algum tempo, mas acabou tomando uma decisão. Levando consigo algumas de suas joias e uma quantia em dinheiro, deixou a Itália com uma criada natural de Livorno que entendia seu idioma e partiu rumo à Alemanha. Chegou em segurança a uma vila a cerca de 80 quilômetros da cabana de De Lacey, quando a criada se sentiu gravemente doente. Safie cuidou dela com a mais devotada e afetuosa atenção, mas a pobre garota faleceu, e a árabe ficou sozinha, sem conhecer a língua do país ou os costumes da região. Acabou caindo, contudo, em boas mãos. A italiana havia mencionado o nome do local ao qual se dirigiam e, após a morte da criada, a dona da casa onde estavam hospedadas tratou de conseguir que Safie chegasse em segurança à cabana de seu amado.

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CAPÍTULO 7 (conforme contado pela criatura)

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Essa é a história dos moradores da cabana, que me deixou bastante impressionado. Aprendera, observando seu estilo de vida, a admirar suas virtudes e a desprezar a maldade humana. Eu ainda via o crime como um mal distante, e a bondade e a generosidade eram presenças constantes ao meu redor, instigando em mim o desejo de ter um papel no palco agitado onde tantas qualidades admiráveis eram apresentadas. Mas, para prestar contas do meu progresso intelectual, não posso omitir algo que ocorreu no começo de agosto daquele ano. Uma noite, durante minha costumeira visita ao bosque vizinho, onde coletava minha comida e a lenha que levava para meus protetores, encontrei no chão uma mala de couro com várias peças de roupa e alguns livros. Tomei posse da descoberta e voltei para meu abrigo. Por sorte os livros eram escritos no mesmo idioma que era usado na cabana. Tratava-se do Paraíso perdido, um volume de Vidas paralelas, de Plutarco, e de Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. Esses tesouros me deram muito prazer, e eu estava sempre a estudar e a exercitar minha mente com essas histórias enquanto meus amigos ocupavam-se de seus afazeres. Mal posso descrever o efeito desses livros. Em Os sofrimentos do jovem Werther, além do interesse gerado pela história simples e comovente, encontrei uma fonte inesgotável de reflexão e assombro. Enquanto lia, pensava sobre minha situação e meus sentimentos. Sentia-me semelhante e, ao mesmo tempo, estranhamente diferente daqueles indivíduos que ouvia conversando ou sobre os quais lia.

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Compreendia parte de seus sentimentos, mas faltava algo na minha mente. Eu não dependia de ninguém, nem me relacionava com alguém. Ninguém lamentaria minha destruição. Minha aparência era horrorosa e minha estatura, gigantesca. O que significava isso? Quem eu era? De onde tinha vindo? Qual era meu destino? Essas questões rondavam minha mente e eu não era capaz de respondê-las. O volume de Vidas paralelas, de Plutarco, continha as histórias dos fundadores das antigas repúblicas e produziu em mim efeitos muito diferentes. A imaginação de Werther ensinou-me sobre o desânimo e a melancolia, mas Plutarco fez com que eu fosse além do terreno desgraçado das minhas próprias reflexões para admirar e amar heróis do passado. Compreendi com dificuldade os reinos, vastas extensões de terras, rios poderosos e mares sem fim. Mas não conseguia me acostumar com a ideia de cidades e grandes aglomerações humanas. Li sobre homens públicos que governavam ou massacravam outros homens. Senti crescer dentro de mim um grande ardor pela virtude, bem como a repulsa à maldade, até onde podia compreender o significado desses termos, que relacionava ao prazer e à dor. Os hábitos dos meus protetores levaram-me a essa posição. Se meu primeiro contato com a humanidade tivesse ocorrido através de um jovem soldado em busca de glória e sangue, talvez eu pudesse ter sido impregnado de sensações diferentes. Paraíso perdido causou-me emoções distintas e bem mais profundas. Assim como os outros que chegaram às minhas mãos, li esse livro como se fosse uma história real. Mexia com todos os sentimentos de assombro e maravilha que a história de um deus onipotente poderia despertar. Muitas vezes relacionei situações ali descritas com as que vivera. Como Adão, eu não tinha relação com nenhum outro ser vivo, mas em outros aspectos sua realidade era muito diferente da minha. Ele fora criado pelas mãos de Deus para ser uma criatura perfeita, feliz e próspera, e seu criador tomava conta dele com carinho. Ele era capaz de conversar e aprender com seres superiores, enquanto eu era um desgraçado abandonado e solitário.

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Outra circunstância ganhava força e confirmava esses sentimentos. Logo depois da minha chegada ao abrigo, descobri alguns papéis no bolso da roupa que havia trazido do seu laboratório. No início não dei atenção a eles, mas, quando me tornei capaz de decifrar as letras ali encontradas, comecei a estudá-las com afinco. Era seu diário, escrito durante os quatro meses que antecederam minha criação. Você descrevia com minúcias cada passo dado no progresso do seu trabalho. Toda a história era entremeada por relatos de eventos domésticos. Com certeza você se lembra desses papéis. Aqui estão. Neles está relatado tudo o que se relaciona com minha origem maldita, com todos os detalhes da série de circunstâncias desagradáveis que resultaram na minha criação. A leitura me fazia passar mal. Amaldiçoava em agonia o meu criador e o dia em que recebi a vida. Por que criou um monstro tão horroroso que fez você mesmo sentir tanto nojo? Deus, por compaixão, fez os seres humanos belos e atraentes, segundo sua própria imagem, mas minha forma é um arremedo asqueroso da sua aparência. Essas eram minhas reflexões durante as longas horas de desânimo e solidão. Mas, ao contemplar o caráter generoso e amável dos moradores da cabana, convencia-me de que, ao saberem da minha admiração por suas virtudes, iriam ter piedade e superar minha aparência monstruosa. Será que expulsariam alguém que, ainda que disforme, viesse implorar por compaixão e amizade? Resolvi, ao menos, não entrar em desespero e empenhar-me, como fosse possível, para me preparar para uma conversa que decidiria meu destino. Adiei essa tentativa por vários meses, pois desejava o sucesso com ardor e tinha pavor de pensar na perspectiva do fracasso. Além disso, notava que meu entendimento aumentava um pouco a cada dia e não pretendia começar essa empreitada antes de ganhar mais uns meses de sagacidade. Nesse meio-tempo muitas mudanças ocorreram na choupana. A presença de Safie espalhou alegria entre seus moradores, e também notei que havia mais abundância. Félix e Ágata passavam mais tempo conversando ou dedicados ao lazer e eram ajudados nas tarefas

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por criados. Não pareciam ricos, mas estavam contentes e felizes. Seus sentimentos eram calmos e serenos enquanto os meus a cada dia ficavam mais agitados. O aumento do conhecimento apenas me revelou o renegado que eu era. Acalentava a esperança, é verdade, mas ela desaparecia quando contemplava minha imagem refletida na água, ou minha sombra ao luar. Tentava conter esses temores e me fortalecer para o julgamento que decidira enfrentar em poucos meses. De vez em quando permitia que meus pensamentos, livres da razão, vagassem pelo Paraíso. Mas eram apenas sonhos. Nenhuma Eva acalmava minhas aflições ou compartilhava emoções comigo. Eu estava só. Lembrava da súplica de Adão ao Criador. Onde estava o meu? Havia me abandonado, e eu o amaldiçoava com o coração amargurado. O outono passou e vi, com surpresa e pesar, as folhas caírem e a natureza assumir de novo aquele aspecto desolado que tinha quando contemplei a floresta e o luar pela primeira vez. Não me preocupava com o clima severo, pois suportava melhor o frio do que o calor. Mas sentia grande prazer com as flores, os pássaros e o ambiente alegre do verão. Quando me abandonaram, voltei toda a minha atenção para os moradores da cabana. Sua felicidade não diminuíra com a ausência do verão. Amavam e compreendiam uns aos outros, e suas alegrias não eram afetadas pelo clima. Quanto mais os via, mais desejava pedir por sua proteção e bondade. Meu coração implorava por ser reconhecido e amado por aquelas pessoas adoráveis. Receber olhares afetuosos era o limite máximo das minhas ambições. Preferia não pensar que poderiam virar os olhos com desprezo e horror. Os pobres que chegavam à sua porta nunca eram enxotados. É verdade que eu queria tesouros mais preciosos que simples comida ou descanso. Eu queria bondade e compaixão e julgava-me merecedor. O inverno avançou, e todas as estações haviam ocorrido desde que eu despertara para a vida. Minha atenção naquele momento estava voltada por completo ao meu plano de apresentar-me aos meus protetores. Imaginei diversas estratégias, mas acabei fixando-me em uma só:

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entrar na cabana quando o velho cego estivesse só. Tinha sagacidade bastante para perceber que minha aparência disforme era a causa principal do horror sentido pelos que haviam me visto. Minha voz, ainda que áspera, não tinha nada de terrível. Assim, pensei que, na ausência de seus filhos, poderia conquistar a boa vontade do velho De Lacey e dessa maneira conseguir um mediador para ser tolerado pelos meus protetores mais jovens. Um dia, quando o sol brilhava nas folhas vermelhas que cobriam o chão, Safie, Ágata e Félix partiram em uma longa caminhada pelo campo. O velho, por vontade própria, ficou sozinho na cabana. Quando os filhos saíram, ele pegou o violão e tocou várias melodias tristes e suaves. No início sua expressão era iluminada de prazer, mas aos poucos a tristeza foi tomando conta do seu rosto até que, pondo o violão de lado, entregou-se aos pensamentos. Meu coração bateu depressa. Havia chegado a hora do julgamento que realizaria meus desejos ou confirmaria meus temores. Os criados haviam ido a uma feira nos arredores. Tudo estava em silêncio, dentro e fora da cabana. Era uma oportunidade excelente. Porém, quando comecei a executar meu plano, minhas pernas bambearam e caí ao solo. Levantei-me de novo e, reunindo toda a firmeza de que eu era capaz, removi as tábuas que disfarçavam meu abrigo. Senti novo ânimo com o ar fresco e com disposição renovada aproximei-me da porta da cabana. Bati. — Quem é? — perguntou o velho. — Pode entrar. Entrei. — Com licença — disse —, sou um viajante necessitado de descanso. Seria muito grato se me permitisse ficar alguns minutos junto ao fogo. — Entre — disse De Lacey —, e tentarei satisfazer suas necessidades como for possível. Infelizmente meus filhos saíram, e como sou cego terei dificuldades para encontrar comida para você. — Não se preocupe. Tenho comida, só preciso de um pouco de calor e descanso.

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Sentei-me e o silêncio tomou conta. Sabia que cada minuto era precioso, mas não sabia como começar. O velho dirigiu-se a mim: — Como fala francês, imagino que seja um conterrâneo. Você é francês? — Não, mas fui educado por uma família francesa e entendo apenas esse idioma. Estou indo pedir proteção de alguns amigos, que amo de verdade e de quem espero receber auxílio. — São alemães? — Não. São franceses. Sou uma criatura infeliz e abandonada e não tenho parentes ou amigos em lugar nenhum. Essas pessoas adoráveis que procuro nunca me viram e sabem pouco a meu respeito. Estou cheio de medo, pois se isso der errado serei para sempre um renegado no mundo. — Não se desespere. Não ter amigos é mesmo muito difícil, mas o coração dos homens, na ausência de preconceitos ou egoísmo, está cheio de fraternidade, amor e compaixão. Confie em sua esperança, e, se esses amigos forem mesmo bons, tudo vai dar certo. — São bons. São as melhores criaturas do mundo. Mas, infelizmente, sentem preconceito a meu respeito. Tenho uma boa índole, nunca causei mal a ninguém e sempre procurei fazer o bem, mas um terrível preconceito embaça seus olhos e, onde deveriam enxergar um amigo sensível e bondoso, veem apenas um monstro detestável. — Isso é mesmo uma tragédia, mas, sendo inocente, não seria capaz de convencê-los do contrário? — Estou prestes a fazer essa tentativa, e é por isso que estou tão apavorado. Amo esses amigos com ternura. Durante os últimos meses tenho praticado diariamente boas ações para ajudá-los, mas pensam que quero lhes fazer mal e é esse preconceito que preciso superar. — Onde moram seus amigos? — Bem perto daqui. O velho fez uma pausa e depois continuou: — Se quiser confiar a mim os detalhes de sua história, talvez possa ajudá-lo a convencê-los. Sou cego e não posso julgá-lo pela sua aparência, mas há algo em suas palavras que me fazem acreditar na sua

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sinceridade. Sou um pobre exilado, mas teria grande prazer em servir de algum modo a outro ser humano. — Bom homem! Agradeço e aceito sua oferta generosa. Tenho esperança de que, com sua ajuda, não serei privado da companhia e solidariedade dos seus semelhantes. — Isso não pode acontecer! Também sou desafortunado. Fui condenado, junto com minha família, mesmo sendo inocente. Compreendo bem sua dor. — Como poderia agradecer-lhe, meu melhor e único benfeitor? Foi de sua boca que ouvi pela primeira vez uma voz gentil dirigida a mim. Serei grato para sempre, e sua humanidade me faz ter confiança em meu sucesso com aqueles amigos que estou prestes a encontrar. — Posso saber o nome e endereço desses amigos? Fiz uma pausa. Pensei que aquele era o momento decisivo que iria tomar de mim ou me assegurar uma existência feliz. Lutei em vão para reunir toda a força necessária para a resposta, mas o esforço acabou de vez comigo. Afundei na cadeira e suspirei. Naquele momento escutei os passos dos meus jovens protetores. Não tinha tempo a perder e, segurando o braço do velho, gritei: — É agora! Salve-me e proteja-me! Você e sua família são os amigos que procuro. Não me abandone na hora do julgamento! — Meu Deus! — exclamou o velho. — Quem é você? Naquele instante a porta da cabana se abriu e Félix, Safie e Ágata entraram. Quem poderia descrever o horror que sentiram ao me ver? Ágata desmaiou e Safie, incapaz de acudir a amiga, correu para fora da cabana. Félix saltou como um raio em minha direção e com uma força sobre-humana afastou-me de seu pai. Num acesso de fúria, jogou-me ao chão e golpeou-me com violência com um pedaço de madeira. Eu poderia ter arrancado seus braços e pernas como um leão destroça um antílope. Mas meu coração encolheu-se dentro de mim cheio de amargura, e recuei. Vi que ia repetir o golpe e, cheio de dor e angústia, saí da cabana para, em meio ao tumulto, refugiar-me no meu abrigo.

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CAPÍTULO 8 (conforme contado pela criatura)

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Maldito criador! Por que vivi? Por que, naquele mesmo instante, não tratei de extinguir a faísca da existência que me concedeu de forma tão desumana? Não sei. O desespero ainda não tinha tomado conta de mim, sentia raiva e desejava vingança. Poderia destruir a cabana e seus moradores, e seria um prazer deliciar-me com seus gritos e desgraça. Quando a noite caiu, deixei meu esconderijo e vaguei pelo bosque. Não temia mais ser descoberto e dei vazão à minha angústia com uivos terríveis. Era como uma besta selvagem que se liberta das correntes, destruindo os objetos no caminho enquanto disparava pela mata. Que noite miserável passei! As estrelas frias brilhavam de forma debochada e as árvores nuas balançavam seus galhos sobre mim. Aqui e ali um canto de pássaro quebrava o silêncio. Tudo, menos eu, parecia calmo ou alegre. Eu parecia carregar o inferno comigo e, não encontrando solidariedade, desejava destroçar as árvores e espalhar caos e destruição ao meu redor para depois sentar e apreciar a devastação. Mas essa sensação era um luxo de que eu não podia desfrutar. Estava fatigado pelo esforço físico excessivo e deitei na grama úmida me sentindo desesperado e impotente. Será que existiria, entre os homens, alguém que pudesse sentir pena ou me ajudar? Eu deveria tratar bem meus inimigos? Não. Naquele momento declarei guerra sem fim contra os humanos, e, acima de todos, contra aquele que me criou e me lançou nesta desgraça insuportável.

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O sol nasceu. Ouvi vozes, e sabia que não poderia voltar ao meu abrigo durante o dia. Então me escondi numa moita fechada, determinado a passar as horas restantes do dia refletindo sobre minha situação. A agradável luz do sol e o ar puro do dia me trouxeram alguma tranquilidade e, quando pensei sobre o ocorrido na cabana, não pude deixar de perceber que havia chegado a conclusões precipitadas. Com certeza havia sido imprudente. Aparentemente minha conversa despertara o interesse do pai sobre mim, e eu havia sido um tolo ao expor minha figura ao horror de seus filhos. Deveria ter me tornado familiar ao velho De Lacey e, aos poucos, me revelado ao restante da família, até que estivessem preparados para minha aproximação. Mas achava que os erros não eram irreparáveis, e depois de muita reflexão resolvi voltar à cabana, procurar o velho e, com meus argumentos, trazê-lo para o meu lado. Esses pensamentos me acalmaram e durante a tarde acabei caindo em sono profundo. Mas não consegui ter sonhos agradáveis. A cena horrível da véspera não parava de se repetir diante dos meus olhos. Acordei exausto, e como já era noite rastejei para fora do meu esconderijo e parti em busca de comida. Depois de saciar minha fome, dirigi-me pelo caminho habitual rumo à cabana. Tudo parecia em paz. Esgueirei-me para dentro do canil e fiquei em silêncio, esperando a hora em que a família costumava despertar. O tempo passou, o sol ergueu-se no céu, mas os moradores não apareceram. Tremi com medo de que algo grave tivesse ocorrido. O interior da choupana estava escuro e não se ouvia nenhum movimento. Não posso descrever a agonia desse suspense. Foi quando dois camponeses se aproximaram e passaram a conversar, gesticulando com vigor, sem que pudesse entender o que diziam, pois falavam o idioma da região, diferente do falado pela família. Mas logo depois Félix chegou com outro homem. Fiquei surpreso, pois sabia que Félix não deixara a cabana aquela manhã, e esperei ansioso para descobrir o significado daquelas aparições pouco usuais.

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— Você está levando em conta — disse-lhe o homem que o acompanhava — que deve me pagar três meses de aluguel e perderá toda a produção da horta? Não quero tirar nenhuma vantagem indevida e peço que reflita por alguns dias antes de tomar essa decisão. — Isso seria inútil — respondeu Félix. — Nunca mais poderemos viver em sua cabana. A vida de meu pai está em grande perigo devido à terrível circunstância que relatei. Minha esposa e minha irmã nunca vão se recuperar do horror. Peço que não argumente mais comigo. Tome posse de sua propriedade e deixe-me ir embora daqui. Félix tremeu com violência ao dizer isso. Os dois entraram na choupana, onde ficaram por alguns minutos, e depois partiram. Nunca mais vi ninguém da família De Lacey. Passei o resto do dia no meu abrigo em um estado de total desespero. Meus protetores haviam partido, quebrando minha única ligação com o mundo. Pela primeira vez fui tomado pelos sentimentos de ódio e vingança. Deixei-me levar pelo turbilhão de emoções e comecei a pensar na dor e na morte. Ao refletir sobre como haviam me desprezado e abandonado, a raiva tomava conta de mim, e, incapaz de machucar um ser vivo, eu dirigia minha fúria contra objetos inanimados. Durante a noite coloquei todo tipo de material inflamável em volta da choupana e, depois de ter destruído todo vestígio de plantação na horta, esperei impaciente que a lua se pusesse para começar minhas operações. Um pouco mais tarde começou a soprar um vento forte vindo da floresta, dispersando as nuvens que cobriam o céu. O vendaval soava como uma avalanche e produzia uma espécie de insanidade em mim, varrendo qualquer resto de razão ou reflexão. Pus fogo em um galho seco e comecei a dançar furioso ao redor da cabana. Assim que uma parte da lua já estava coberta, agitando minha tocha botei fogo na palha, nos gravetos e nas moitas que havia coletado. O vento atiçou o fogo e a choupana logo foi tomada pelas chamas. Assim que me convenci de que não seria possível salvar nada, deixei o local e busquei refúgio no bosque. Tendo o mundo ao meu dispor,

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resolvi me afastar do palco dos meus infortúnios. Mas para alguém odiado e desprezado, qualquer lugar é horrível. Até que pensei em você. Aprendera com seus papéis que era meu pai e criador. A quem mais poderia recorrer? Entre as lições dadas por Félix a Safie estava a geografia, e aprendera com eles sobre os diferentes países. Você havia mencionado Genebra como sendo sua cidade natal e resolvi seguir rumo a esse lugar. Mas que direção devia tomar? Sabia que devia viajar para o sudoeste, mas o sol era meu único guia. Não sabia os nomes das cidades por onde deveria passar nem poderia pedir informações, mas não me desesperei. Minha única esperança era o seu socorro, ainda que o ódio fosse meu único sentimento por você. Criador desalmado! Apenas contigo poderia buscar compaixão e reparação, e estava determinado a encontrar a justiça que implorei em vão aos outros seres humanos. Minha jornada foi longa e os sofrimentos, intensos. Já era final do outono quando deixei o local onde vivera até então. A natureza definhava à minha volta e o sol era cada vez menos quente. Sol e chuva eram presenças constantes. Rios poderosos estavam congelados, a superfície da terra estava nua e gelada, e eu não encontrava abrigo. Quanto mais me aproximava de sua moradia, mais forte era o sentimento de vingança em meu coração. Quando o sol começou a recuperar seu calor e a terra voltou a verdejar, ao chegar ao território suíço ocorreu algo que confirmou de modo especial a amargura e o horror dos meus sentimentos. Em geral, descansava durante o dia e só viajava quando a noite me protegia de qualquer olhar humano. Uma manhã, contudo, notando que meu caminho seguia por um bosque fechado, arrisquei-me a continuar minha jornada à luz do sol. O dia, um dos primeiros da primavera, alegrava até a mim com seus adoráveis raios de sol e o ar perfumado. Senti reviverem emoções de ternura e prazer que havia muito pareciam mortas. Surpreendido com essas novas sensações, deixei-me levar por elas e, esquecendo da minha solidão e deformidade, ousei sentir-me feliz. Pequenas lágrimas escorreram pelas minhas faces, e olhei agradecido em direção ao sol abençoado que derramava aquela alegria sobre mim.

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Continuei vagando pelas trilhas da mata, até chegar a um rio de águas fundas e velozes. Sem saber como atravessar, parei por um instante. Foi quando escutei vozes e escondi-me debaixo de um cipreste. Tinha acabado de me esconder quando uma jovem veio correndo em minha direção, rindo, como se estivesse brincando com alguém. Ela continuou a correr pela margem íngreme do rio até que, de repente, escorregou e caiu na correnteza. Saltei do meu esconderijo e, lutando com muito esforço contra a corrente, consegui arrastá-la de volta à margem. Estava desacordada, tentei reanimá-la, até que fui interrompido pela aproximação de um camponês. Provavelmente era a pessoa de quem ela fugia brincando. Ao me ver, disparou em minha direção e arrancou-a dos meus braços, fugindo para dentro do bosque. Sem nem saber bem por quê, segui-o apressado, mas, quando o homem notou minha aproximação, sacou uma arma e disparou contra mim. Caí ao solo, e meu agressor fugiu para a floresta. Esse foi o prêmio pela minha generosidade! Salvara um ser humano da destruição e como recompensa ganhei uma ferida dolorida. Os sentimentos de bondade e gentileza, que experimentara por um momento, deram lugar à raiva infernal e ao ranger de dentes. Inflamado pela dor, jurei ódio eterno e vingança contra toda a humanidade. Mas a agonia da ferida tomou conta de mim, meu pulso diminuiu e desmaiei. Por algumas semanas levei uma vida miserável na floresta, tentando curar a ferida. A bala atingira meu ombro, e não sabia se continuava lá ou se tinha saído pelo outro lado. De qualquer modo não havia como extraí-la. Meu sofrimento aumentava com a opressiva sensação de injustiça e ingratidão experimentadas. Todos os dias nutria um desejo profundo e mortal de vingança, como se isso pudesse compensar por si só todo o ultraje e a angústia que suportara. Depois de um tempo o ferimento sarou, e pude continuar viagem. O sol brilhante e a brisa suave já não amenizavam o esforço realizado. Qualquer alegria parecia um deboche que insultava minha tristeza, pois só fazia que eu sentisse não ter direito a nenhum prazer ou felicidade. Mas meu esforço estava perto do fim, e dois meses depois já estava nos arredores de Genebra.

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Cheguei ao anoitecer e escondi-me nos campos próximos à cidade, onde pude meditar sobre como me apresentaria a você. Estava esgotado pela fadiga e pela fome, e infeliz demais para apreciar a brisa noturna ou o espetáculo do pôr do sol. Um sono leve aliviou um pouco as dores dessa reflexão, até que fui despertado pela aproximação de uma linda criança que entrou correndo em meu esconderijo. De repente, pensei que aquela criaturinha ainda não era preconceituosa, pois não tinha vivido o bastante para estar impregnada do horror à deformidade. Se eu pudesse capturá-la e educá-la para ver-me como um amigo e me fazer companhia, não estaria mais sozinho nesta terra cheia de gente. Levado por esse impulso, agarrei o menino quando passava por mim. Assim que me viu, tapou os olhos com as mãos e soltou um grito agudo. Afastei as mãos do seu rosto e disse: — Por que está gritando? Não vou machucá-lo. Ouça-me. Ele lutou com violência. — Monstro! Deixe-me ir! — gritou. — Bicho feio! Você quer me comer e fazer em pedacinhos, seu ogro! Deixe-me ir ou conto tudo para o meu pai! — Menino, você nunca mais verá seu pai. Venha comigo. — Monstro horrível! Me solta. Meu pai é importante! Ele é o senhor Frankenstein e vai punir você! Não ouse me prender. — Frankenstein! Então você pertence ao meu inimigo, a quem jurei vingança mortal. Será minha primeira vítima. A criança ainda lutou e xingou-me com nomes que só aumentaram meu desespero. Apertei sua garganta para silenciá-lo, e logo depois o menino jazia morto aos meus pés. Contemplei a vítima, e meu coração pulsava exultante com aquele triunfo infernal. Bati palmas e exclamei: — Também posso criar desolação! Meu inimigo não é invulnerável. Sentirá desespero com essa morte, e mil outras tragédias ainda irão torturá-lo até sua destruição final.

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Quando parei para olhar para a criança, pude perceber algo brilhando em seu peito. Era um pingente com o retrato de uma mulher encantadora. Mesmo tomado pela maldade, senti ternura e atração por aquela figura. Por uns poucos instantes contemplei o retrato com prazer, mas logo depois minha raiva voltou. Lembrei que estaria privado para sempre das alegrias que criaturas tão belas podem propiciar. Pensei que, se pudesse me ver, aquela criatura cujo semblante eu contemplava mudaria aquele ar de bondade divina para uma expressão de nojo e aflição. Naquele momento, cheio de raiva, quase fui em busca de seres humanos para dar fim à minha vida tentando destruí-los. Em vez disso, limitei-me a extravasar minha agonia com gritos. Ainda tomado por esses sentimentos, saí do lugar onde havia cometido o assassinato para procurar outro esconderijo mais protegido. Acabei entrando em um celeiro que parecia vazio. Uma mulher dormia sobre um monte de palha. Era jovem, não tão bela como aquela do retrato, mas de aspecto agradável e cheia de vigor e saúde. Ali estava uma daquelas que traziam alegria para todos, exceto para mim. Curvei-me junto a ela e sussurrei: — Acorde, minha bela, seu amante está por perto. Aquele que daria a vida só para ganhar um olhar afetuoso de seus lindos olhos. Acorde, minha amada! A adormecida estremeceu, e um arrepio de terror percorreu meu corpo. Será que ela, ao acordar e me ver, me amaldiçoaria e denunciaria meu crime? Tive uma ideia terrível. E se ela pagasse pelo meu crime? Eu cometera o crime porque nunca teria o direito de receber o que ela podia me oferecer. O crime fora inspirado por ela, era justo que pagasse por ele! Graças às lições de Félix e às leis sanguinárias dos homens, eu sabia muito bem como agir com malícia. Curvei-me sobre ela e coloquei com cuidado o pingente em uma das dobras do seu vestido. Ela moveu-se de novo, e eu fugi. Durante alguns dias rondei o local onde esses eventos haviam ocorrido, às vezes desejando vê-lo, às vezes decidido a deixar o mundo e

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seus sofrimentos para sempre. Finalmente resolvi vagar rumo a estas montanhas, e por aqui andei a esmo, consumido por uma paixão ardente que só você pode aliviar. Não nos separaremos até que prometa atender ao meu pedido. Sou um desgraçado solitário. Nenhum ser humano vai me aceitar, mas alguém tão deformado e horrível como eu não me rejeitará. Minha companheira deve ser da mesma espécie e ter os mesmos defeitos. Você precisa criar esse ser.

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CAPÍTULO 9 150

A criatura terminou sua história e fixou os olhos em mim na expectativa de uma resposta. Mas eu estava estupefato, perplexo e incapaz de organizar minhas ideias de modo a entender a real extensão da proposta. Continuou: — Precisa criar uma fêmea para mim, com quem eu possa viver em harmonia com minhas necessidades. Você é capaz de fazê-lo e eu exijo isso. É um direito que não pode me recusar. A parte final de sua história havia renovado em mim a raiva que tinha desaparecido enquanto ele contava sobre sua vida pacífica junto aos moradores da cabana. Quando disse isso, fui incapaz de controlar a fúria que queimava dentro de mim. — Não o farei! — respondi. — Nem que fosse torturado! Pode me enxergar como o mais desgraçado dos homens, mas eu nunca me rebaixarei desse modo! E eu haveria de criar outra criatura como você, para juntos assombrarem o mundo? Vá embora! Já dei minha resposta. Pode até me torturar, mas nunca concordarei com isso. — Você está errado — replicou o monstro. — Sou maldoso porque sou um desgraçado. Não sou rechaçado e odiado por toda a espécie humana? Até você, meu criador, me despedaçaria em triunfo. Por que eu haveria de ter mais compaixão pelos homens do que eles têm por mim? Você não chamaria de assassinato se pudesse me jogar em um desses precipícios de gelo, destruindo o corpo que foi trabalho de suas próprias mãos. Devo respeitar os homens enquanto eles me desprezam?

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Não aceitarei submisso essa escravidão abjeta. Revidarei todas as injúrias. Se não posso inspirar amor, causarei medo. Você, meu criador, será meu arqui-inimigo, a quem prometo um ódio implacável. Tome cuidado. Farei de tudo para destruí-lo até que seu coração esteja desolado a ponto de amaldiçoar o dia em que nasceu. Ao dizer isso, sua face contorceu-se de um modo horrível demais para os olhos humanos. Mas logo se acalmou e prosseguiu: — Quero ser razoável, pois a paixão só pode me prejudicar. Precisa entender que você é a causa desses excessos. Se alguém sentisse emoções bondosas a meu respeito, devolveria em dobro, pois por essa única criatura eu seria capaz de fazer as pazes com toda a humanidade! Mas deixo-me levar por sonhos abençoados que não vão virar realidade. O que lhe peço é razoá­vel e moderado. Peço uma criatura do sexo oposto, tão horrorosa como eu. É só um pequeno agrado, mas é tudo o que posso receber e fico satisfeito. Sim, é verdade, seremos monstruosos e viveremos em isolamento, mas assim seremos ainda mais ligados um ao outro. Nossa vida não será alegre, mas não faremos mal a ninguém e estaremos livres da desgraça que sinto agora. Meu criador, faça-me feliz! Deixe-me sentir gratidão por você, não recuse meu pedido! Fiquei comovido. Tremi ao pensar nas consequências de meu eventual consentimento, mas senti que havia alguma justiça em seus argumentos. Seu relato e os sentimentos expressos demonstravam tratar-se de uma criatura sensível. Além disso, sendo seu criador, eu devia a ele toda a felicidade que estivesse ao meu alcance. Ele notou minha mudança de espírito e continuou: — Se concordar, nem você nem qualquer outro ser humano jamais nos verá outra vez. Partirei rumo às vastas extensões da América do Sul. Meu alimento não é o do homem. Não mato minha fome com carneiros ou cabritos. Castanhas e frutas silvestres são suficientes. Minha companheira também será assim. Percebo que já não é insensível e vejo compaixão em seu olhar. — Você propõe — respondi — fugir para longe das moradias humanas,

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para viver em ambientes selvagens onde só terá feras como companhia. Como você, que sente falta do amor e da solidariedade dos homens, poderá suportar esse exílio? Acabará voltando para procurar pela bondade e encontrará o desprezo mais uma vez. Suas paixões malignas serão renovadas e então terá uma companheira para ajudá-lo em sua tarefa destrutiva. Não pode ser. Pare de argumentar, pois não posso concordar. — Como seus sentimentos são inconstantes! Agora há pouco parecia comovido com minha defesa, por que voltou a resistir aos meus apelos? Prometo que, caso me conceda uma companheira, eu me afastarei dos seres humanos e passarei a viver no lugar mais remoto e selvagem que encontrar. Minhas paixões malignas terão desaparecido, pois estarei repleto de solidariedade! Suas palavras causaram-me um estranho efeito. Tive pena dele e em alguns momentos senti vontade de consolá-lo. Mas, quando olhava para ele, quando via aquele corpo repugnante que se movia e falava, meu coração doía e eu era tomado pelo ódio e pelo horror. Tentei sufocar essas sensações. Não simpatizava com ele, mas não tinha o direito de privá-lo da pequena porção de felicidade que estava ao meu alcance conseguir. — Você jura — eu disse — ser inofensivo. Mas já demonstrou tanta maldade que não tenho como confiar no que diz. Como posso acreditar que não se trata de um ardil para aumentar seu triunfo e a extensão da sua vingança? — Pensa que estou de brincadeira? Exijo uma resposta. Se não tiver laços de afeto com nada, serei movido pelo ódio e pela maldade. O amor de outra criatura destruirá as causas dos meus crimes, e minha existência será ignorada para sempre por todos. Meu comportamento cruel é motivado pela solidão forçada que abomino, e minhas virtudes prevalecerão quando estiver vivendo em harmonia com uma criatura semelhante. Refleti por um tempo sobre o relato e os vários argumentos da criatura. Pensei na promessa de comportamento virtuoso que havia demonstrado no início de sua existência, e na posterior ruína de todos os sentimentos gentis devido à repugnância e ao desprezo que seus

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protetores lhe dirigiram. Seu poderio e suas ameaças tampouco ficaram de fora dos meus cálculos. Quem poderia enfrentar uma criatura que consegue sobreviver em cavernas e em geleiras e é capaz de esconder-se entre as cristas de precipícios inacessíveis? Depois de uma longa pausa, concluí que não tinha escolha. — Concordo com sua demanda, baseado no seu juramento solene de que deixará a Europa para sempre, bem como se afastará de qualquer povoa­mento humano, assim que eu lhe entregar uma fêmea que o acompanhará em seu exílio. — Eu juro! — gritou. — Pelo sol, pelo céu azul e pelo fogo do amor que arde em meu coração, juro que, se atender à minha súplica, enquanto eles existirem você nunca me verá de novo. Volte para casa e comece o trabalho. Vou vigiar seu progresso com imensa ansiedade, e pode ter certeza de que quando estiver pronto eu aparecerei. Dizendo isso, fugiu imediatamente, talvez com medo de que eu mudasse de ideia. Desceu a montanha mais rápido que uma águia e logo desapareceu entre as ondulações do mar de gelo. Seu relato levara o dia inteiro. Sabia que deveria apressar minha descida rumo ao vale, pois logo seria engolido pela escuridão. Mas meu coração estava pesado e meus passos, lentos. Era difícil manter a concentração para encontrar o caminho sinuoso e não escorregar montanha abaixo enquanto as emoções produzidas pelos eventos do dia ocupavam minha mente. Cheguei à vila de Chamonix depois do amanhecer. Não descansei e segui de imediato para Genebra. Voltei para casa, e meus familiares ficaram alarmados com a minha aparência selvagem e abatida, mas não respondi às suas perguntas e quase não falei nada. Sentia-me como num exílio, sem direito de gozar da simpatia deles mesmo que os amasse. Para salvá-los, eu me entregaria à tarefa que tanto me repugnava.

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Fim da parte 2

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CAPÍTULO 1 157

Primeiro os dias e depois as semanas foram se passando após minha volta a Genebra, e eu não conseguia reunir coragem para recomeçar meu trabalho. Temia a vingança do monstro desapontado, mas era incapaz de superar a repugnância causada pela missão. Sabia que só poderia construir uma fêmea após vários meses de estudo profundo e faina investigativa. Ouvira sobre algumas descobertas feitas por um filósofo inglês que poderiam ser úteis em minha empreitada, e às vezes pensava em pedir autorização junto a meu pai para visitar Londres com esse propósito. Mas me agarrava a cada pretexto para atrasar esse primeiro passo de uma tarefa que ia parecendo cada vez menos necessária. Minha saúde, que andara precária, havia melhorado, assim como meu espírito, quando não estava perturbado pela promessa feita. Meu pai via essa mudança com satisfação e começou a pensar em uma maneira de erradicar de vez a melancolia que volta e meia me acometia. Quando a nuvem negra ao meu redor tapava até a luz do sol, eu buscava refúgio na solidão absoluta. Passava dias inteiros sozinho no lago em um pequeno barco, olhando as nuvens e ouvindo o barulho das ondas, apático e calado. Eram raras as vezes que o ar fresco e o brilho do sol falhavam em me restaurar um mínimo de serenidade, e, ao voltar, respondia às saudações dos meus amigos com um sorriso largo e o coração mais aliviado. Foi depois de voltar de um desses passeios que meu pai, me chamando de lado, disse:

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— Fico feliz em perceber, querido filho, que voltou a ter prazer em viver e parece estar recomposto. Porém, mesmo assim, continua triste e sem vida social. Por algum tempo tentei imaginar por quê, mas ontem tive uma ideia e, se estiver com a razão, peço que me confirme. Ficar guardando esse segredo não servirá para nada e ainda poderá trazer mais angústia para todos nós. Tremi com violência com essa introdução, e meu pai continuou: — Confesso que sempre enxerguei seu casamento com nossa querida Elizabeth como a garantia de nosso conforto doméstico e estabilidade em minha velhice. Vocês são ligados entre si desde a mais tenra infância, estudaram juntos e parecem, nos gostos e interesses, feitos um para o outro. Mas o que parecia ser a base sólida do meu plano pode acabar sendo o motivo de sua destruição. Talvez você enxergue nela uma irmã, sem nenhum desejo de que ela venha a ser sua esposa. Ou então, pode ser que tenha conhecido e vindo a amar outra mulher, mas julgue-se comprometido com Elizabeth e tal dilema seja a causa desse seu desespero profundo. — Fique tranquilo, querido pai. Amo minha prima com ternura e sinceridade. Nunca conheci nenhuma mulher que me despertasse tanto afeto e admiração como ela. Minha esperança no futuro gira em torno da expectativa de nossa união. — Querido Victor, a forma como expressa seus sentimentos me dá o maior prazer que experimentei há muito tempo. Se pensa assim, com certeza seremos muito felizes, ainda que os acontecimentos recentes nos deixem tristes no momento. Mas quero afastar essa tristeza que toma conta de você. Diga-me, portanto, se faz alguma objeção à imediata realização desse casamento. Você é rico, e não será um casamento na sua idade que atrapalhará qualquer plano que tenha traçado para o futuro. Só peço que interprete minhas palavras com boa vontade e que confie em mim e seja sincero ao me responder. Ouvi meu pai em silêncio e por um tempo fui incapaz de dar uma resposta. Revolvi em minha mente uma série de pensamentos, num

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esforço para chegar a alguma conclusão. Que tristeza! A ideia de uma união com minha Elizabeth parecia horrorosa e desanimadora. Estava comprometido com uma promessa solene que ainda não havia cumprido e não ousaria quebrar. Se o fizesse, seriam diversas as tragédias impostas sobre mim e minha amada família! Seria capaz de dar uma festa com esse peso mortal sobre minha cabeça? Precisava cumprir minha missão e deixar o monstro partir com sua companheira antes de permitir a mim mesmo o prazer de uma união em que pudesse encontrar a paz. Lembrei também que precisaria ir a Londres ou então empenhar-me em uma longa troca de cartas com os filósofos daquele país, cujos conhecimentos e descobertas eram indispensáveis em minha empreitada atual. O método anterior para obter a inteligência desejada era lento e insatisfatório. Além disso, sentia uma aversão insuperável só de pensar em ocupar-me daquela tarefa repugnante na casa de meu pai, enquanto convivia com meus entes queridos. Sabia que poderiam ocorrer mil terríveis acidentes e que qualquer um deles horrorizaria aqueles a quem eu amava. Também sabia muito bem que seriam comuns as ocasiões em que perderia o autocontrole e toda a capacidade de disfarçar as sensações angustiantes que tomariam conta de mim durante minha perturbadora ocupação. Precisava afastar-me de todos que amava enquanto estivesse trabalhando. Cumprida a promessa, o monstro partiria para sempre. Ou, em minha fantasia mais otimista, algum acidente nesse meio-tempo poderia destruí-lo, libertando-me para sempre. Esses sentimentos ditaram minha resposta. Expliquei que queria visitar a Inglaterra, ocultando a verdadeira razão com um pretexto que não despertava suspeitas. Demonstrei ansiedade o bastante para convencê-lo rapidamente a concordar. Ficou feliz ao ver que me sentia capaz de realizar tal viagem, depois de tanto tempo tão deprimido. E tinha esperanças de que a mudança de ares e de divertimentos já bastasse para restaurar minha alegria de viver. Ficou a meu critério quanto tempo ficaria fora. Combinamos que seriam alguns meses, no máximo um ano. Num cuidado paterno, meu

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pai providenciou para que eu não viajasse sozinho. Sem me comunicar, com a ajuda de Elizabeth, conseguiu que Clerval fosse me encontrar em Estrasburgo. Isso interferia na solidão que pretendia para a realização de minha tarefa. Contudo, no início da viagem seria ótimo contar com a companhia do meu amigo. Ficou combinado que minha união com Elizabeth aconteceria logo após meu retorno. A idade de meu pai fazia com que ele fosse avesso a qualquer adiamento. Para mim, o casamento com Elizabeth representava a recompensa a que teria direito ao final do meu trabalho sujo, um consolo para meu sofrimento sem paralelo. Fazia os preparativos para a viagem, porém um sentimento me assombrava e me enchia de medo e agitação. Durante minha ausência, eu deixaria meus familiares desinformados sobre a existência de um inimigo e desprotegidos de seus ataques, caso ficasse irritado com minha partida. Mas ele havia prometido seguir-me aonde eu fosse. Será que me acompanharia até a Inglaterra? Essa ideia, embora apavorante, era tranquilizadora no que se referia à segurança de meus amigos. Sentia agonia ao pensar na possibilidade de o contrário acontecer. Mas procurei obedecer aos meus instintos, que naquele momento diziam que o monstro me seguiria. Foi no final de agosto que deixei mais uma vez minha terra natal. Joguei-me na carruagem que me levava embora querendo não pensar em nada. Levava meus instrumentos químicos na bagagem, e foi com amargura que tive essa lembrança. Tomado por pensamentos sombrios, passei por paisagens lindas e majestosas, mas meus olhos estavam vidrados e não viam nada. Só conseguia pensar no objetivo da minha viagem e no trabalho que teria que fazer para alcançá-lo. Depois de alguns dias de apatia e indolência, durante os quais percorri muitos quilômetros, cheguei a Estrasburgo, onde esperei dois dias por Clerval. Quando ele chegou, era enorme o contraste entre nós dois. Ele apreciava cada aspecto do terreno, alegre em ver a beleza do pôr do sol, e ainda mais feliz ao ver o nascer de um novo dia. Mostrava-me a mudança na coloração da luz do dia e a aparência das nuvens no céu.

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— Isso é que é viver! — gritava. — Mas você, querido Frankenstein, por que continua tão triste e abatido? Na verdade, eu estava ocupado por pensamentos sombrios e era incapaz de ver a trajetória da estrela vespertina ou o reflexo dourado da luz do sol no rio Reno. Você se divertiria muito mais com o diário de viagem de Clerval, que contemplava a paisagem com sensibilidade e prazer, do que com minhas reflexões. Eu, um desgraçado infeliz, assombrado por uma maldição que bloqueava qualquer possibilidade de diversão. Concordamos em descer o Reno em um barco, de Estrasburgo até Roterdã, onde poderíamos pegar um navio para Londres. Durante essa viagem passamos por muitas ilhas fluviais cheias de salgueiros e vimos belas cidades. Depois de passar por Mainz, o curso do Reno fica ainda mais pitoresco. O rio corre rápido, serpenteando entre as montanhas, que não são altas, mas escarpadas em lindas formas. Essa região, na verdade, apresenta paisagens muito variadas. Em um ponto você vê encostas acidentadas e castelos em ruínas, pendurados sobre precipícios inacessíveis, rodeados por florestas negras, com o rio escuro rugindo no fundo no vale, e, de repente, na curva do promontório seguinte, vinhedos verdejantes em colinas suaves em torno de um rio sinuoso com cidades populosas dominando a cena. Era a época das vindimas e ouvíamos os trabalhadores cantando enquanto deslizávamos rio abaixo. Até mesmo eu, deprimido e com o espírito perturbado por pensamentos sombrios, sentia satisfação. Deitei-me no fundo do barco e, enquanto fitava o céu sem nuvens, parecia absorver uma tranquilidade que não sentia fazia tempo. Se essas eram minhas sensações, quem poderia descrever o que Henry sentia? Parecia alguém transportado para uma terra encantada e sentia uma felicidade poucas vezes experimentada por alguém. — Já havia visto — ele dizia — as mais lindas paisagens do meu país. Visitei o lago Lucerna, onde as montanhas nevadas descem quase perpendiculares até a água. As montanhas suíças são mais majestosas e distintas,

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mas há um encanto nas margens deste rio divino que nunca vi igual. Veja aquele castelo pendurado sobre o precipício, e aquele outro na ilha, quase oculto entre a folhagem daquelas belas árvores. Veja agora aquele grupo de trabalhadores vindo por entre os vinhedos e a vila meio escondida pela montanha. Com certeza o espírito que habita e protege este lugar tem uma alma em maior harmonia com os homens do que aquele que empilha as geleiras ou se esconde nos picos inacessíveis das montanhas de nosso país. Clerval, amigo amado! Mesmo agora sinto prazer ao lembrar-me de suas palavras e reverenciar seu talento para descrever a poesia da natureza. Sua imaginação selvagem e entusiasmada obedecia à sensibilidade de seu coração. E onde está agora toda essa energia? Esse ser gentil foi-se para sempre? Será que sua mente, tão cheia de ideias e fantasias magníficas, só existe agora em minha memória? Não, não pode ser assim. Seu corpo físico pode ter desaparecido, mas seu espírito sempre acompanhará e consolará este amigo infeliz. Perdoe-me por este desabafo triste, todo este discurso inútil é um tributo tímido ao valor inigualável de Henry, mas acalma meu coração, transbordando da angústia motivada por essas lembranças. Continuarei meu relato. Depois de Colônia, descemos para as planícies da Holanda e, para ganhar tempo, decidimos prosseguir por terra o restante do caminho, pois o vento era contrário e a corrente do rio era lenta demais para nos ajudar. Nossa jornada deixou de percorrer paisagens tão interessantes, mas chegamos em poucos dias a Roterdã, de onde prosseguimos por mar até a Inglaterra. Foi numa manhã clara, no final de setembro, que vi pela primeira vez os penhascos brancos da Bretanha. As margens do Tâmisa, planas e férteis, ofereceram-nos paisagens diferentes. Enfim vimos as numerosas torres das igrejas de Londres, com a Catedral de São Paulo destacando-se entre todas, e a Torre de Londres, famosa na história da Inglaterra.

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CAPÍTULO 2 163

Faríamos de Londres nossa base e decidimos passar alguns meses nessa cidade famosa e maravilhosa. Clerval queria conhecer alguns dos homens geniais e talentosos que ali se destacavam, mas eu não me importava com isso. Estava ocupado em coletar toda a informação necessária para cumprir minha promessa e logo fiz uso das cartas de recomendação que trouxera comigo, endereçadas aos cientistas mais notáveis. Se essa viagem tivesse acontecido durante meus dias de estudo e alegria, teria experimentado um prazer formidável. Mas minha existência estava amaldiçoada e visitei essas pessoas com o único propósito de buscar as informações que poderiam fornecer-me sobre o assunto que me despertava um interesse terrível. Qualquer companhia me incomodava. A voz de Henry me acalmava, trazendo-me uma paz de espírito temporária. Mas qualquer outro rosto ocupado, desinteressante ou alegre acabava trazendo de volta o desespero para meu coração. Era como se houvesse uma barreira intransponível me isolando do resto das pessoas. Mas em Clerval eu enxergava um retrato do que eu havia sido. Ele era curioso e estava ansioso por ganhar experiência e instrução. Observar os costumes era uma fonte inesgotável de divertimento e aprendizado. Ele também perseguia um objetivo desejado havia muito tempo. Seu projeto era visitar a Índia. Conhecia seus vários dialetos e muitos aspectos de sua sociedade, e acreditava poder contribuir para incrementar as relações comerciais com a região. Apenas na Inglaterra poderia dar continuidade a seu plano. Estava sempre ocupado,

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e a única coisa que afetava sua satisfação era o meu desânimo. Tentava disfarçar o máximo possível, pois não queria afastá-lo de sua diversão naquele momento. Com frequência me recusava a acompanhá-lo, alegando algum outro compromisso. Começava então a coletar o material necessário para minha nova criação, e isso parecia uma tortura, como pingos de água caindo sem parar em minha testa. Depois de alguns meses em Londres, recebemos uma carta de uma pessoa da Escócia, que havia me visitado em Genebra. Falava sobre as belezas naturais de sua terra e nos convidava a estender nossa viagem até Perth, onde residia. Clerval estava ansioso por aceitar o convite, e eu, apesar de preferir evitar eventos sociais, desejava ver montanhas e rios de novo. Havíamos chegado a Londres no início de outubro e já estávamos em fevereiro. Concordamos em começar a jornada rumo ao norte no fim do mês seguinte. Não pretendíamos seguir viagem pela estrada principal até Edimburgo, mas antes visitar Windsor, Oxford, Matlock e os lagos de Cumberland, planejando terminar a viagem no final de julho. Empacotei meus instrumentos do laboratório e todo o material coletado, decidido a terminar meu trabalho em algum recanto obscuro nas terras altas do norte da Escócia. Deixamos Londres no final de março e passamos alguns dias em Windsor, vagando por sua magnífica floresta. Era um cenário novo para montanhistas como nós. Os carvalhos majestosos, a fartura de caça e as manadas de veados imponentes, tudo era novidade. De lá, partimos para Oxford, uma cidade que foi palco de vários acontecimentos importantes na história da Inglaterra. Adoramos refazer os passos de personagens históricos, e mais do que isso, a cidade em si é muito bonita e admirável. Os edifícios dos colégios são antigos e pitorescos, as ruas são magníficas e o rio Isis, que corre plácido entre campinas verdejantes, reflete as torres e as cúpulas da cidade por entre árvores centenárias. Eu apreciava a paisagem, ainda que esse prazer estivesse contaminado pela amargura causada tanto pela memória do que ocorrera como pela antecipação do futuro.

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Após passar um período considerável em Oxford, vagando por seus arredores, foi com pesar que deixamos a cidade em direção a Matlock, que seria nossa próxima parada. A área rural em torno da cidade lembrava bastante as paisagens suíças, só que em menor escala, e as colinas verdes pareciam sentir falta da moldura dos Alpes distantes, que sempre acompanham as montanhas cheias de pinheiros na minha terra natal. Depois, ainda viajando rumo ao norte, passamos dois meses nas regiões de Cumberland e Westmorland, onde me senti como se estivesse rodeado pelas montanhas suíças. Os pequenos trechos nevados que ainda se espalhavam pela face norte das montanhas, os lagos e os riachos que corriam impetuosos sobre os leitos rochosos eram visões familiares e queridas. O prazer de Clerval era muito maior que o meu. — Poderia viver aqui — disse-me certa vez. — Entre estas montanhas não teria por que ter saudades da Suíça e do rio Reno. Mas ele descobriu que os sentimentos de um viajante sempre estão divididos, pois, quando começa a desfrutar de algum repouso, sente-se obrigado a trocar o prazer do descanso por algo novo, que prende mais uma vez sua atenção e que vai acabar sendo trocado por outra novidade. Mal havíamos visitado os diversos lagos da região quando a data marcada para nosso compromisso na Escócia aproximou-se e tivemos que partir. Da minha parte isso não era problema. Até então havia negligenciado minha promessa por algum tempo e temia pelo desapontamento do monstro. Ele podia ter permanecido na Suíça, onde poderia lançar sua vingança sobre meus parentes. Essa ideia me perseguia e me atormentava a todo momento que pudesse desfrutar de paz e descanso. Esperava a chegada da correspondência com impaciência febril. Se houvesse algum atraso sentia-me um desgraçado e era assombrado por mil temores. Quando chegavam as cartas e eu identificava nelas as assinaturas de Elizabeth ou de meu pai, mal ousava ler o que continham, com medo do meu próprio destino. Às vezes imaginava que o monstro me seguira e poderia punir meu desleixo assassinando meu companheiro. Quando esses pensamentos me assolavam, não deixava Henry a sós em

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Um aglomerado de 70 ilhas ao norte da Escócia, sendo que cerca de 20 delas são habitadas. A maior ilha do arquipélago é The Mainland, onde fica a capital das ilhas, Kirkwall.

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nenhum momento, seguindo-o como uma sombra, para protegê-lo da fúria do meu inimigo. Sentia como se houvesse cometido um crime imperdoável. Estava exausto ao visitar Edimburgo, tanto física como mentalmente, e mesmo assim a cidade poderia ser interessante até para o mais desafortunado dos homens. Clerval preferiu Oxford, pois a antiguidade desta última agradava-lhe muito mais. Porém, a beleza e a organização da nova cidade de Edimburgo, seu castelo romântico e seus arredores, tudo isso compensava a mudança e enchia meu amigo de alegria e admiração. Mas eu estava impaciente para chegar ao final da viagem. Deixamos Edimburgo uma semana depois, seguindo pela margem do rio Tay até Perth, onde nosso amigo nos aguardava. Só que eu não estava com vontade de rir ou conversar com estranhos, muito menos com o bom humor esperado de um hóspede. Por isso contei a Clerval que queria seguir viagem sozinho pela Escócia. — Você deve divertir-se — eu disse —, e depois nos reencontramos aqui. Estarei ausente por um mês ou dois. Não tente mudar esse plano, apenas deixe-me em paz e sozinho por um tempo. Quando voltar, espero estar com o coração mais leve, mais de acordo com o seu estado de espírito. Henry tentou convencer-me a desistir, mas, vendo que não conseguiria, parou de insistir. Exigiu que escrevesse com frequência. Separando-me do meu amigo, decidi visitar algum ponto remoto na Escócia e terminar meu trabalho sozinho. Assim, atravessei as terras altas e fixei-me em uma das mais remotas das ilhas Órcades9. Era um

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local apropriado para minha tarefa, pouco mais que um rochedo no meio do mar, castigado pelas ondas por todos os lados. O solo árido mal sustentava a pastagem para umas poucas vacas tristes e um pouco de aveia para os habitantes, cinco pessoas no total, todas esqueléticas devido à dieta pobre. Verduras e pão, quando podiam se dar ao luxo, assim como a água potável, precisavam ser trazidos da ilha principal, a cerca de nove quilômetros. Em toda a ilha havia apenas três casebres miseráveis, um dos quais estava vago quando cheguei. Aluguei-o. Tinha dois cômodos, ambos em um estado deplorável. O teto tinha caído, as paredes não tinham reboco e a porta estava fora das dobradiças. Mandei que fizessem os reparos necessários, comprei alguns móveis e instalei-me. Os habitantes da ilha já estavam tão abatidos pela fome e pela pobreza que nem chegaram a ficar espantados com minha chegada. Assim, vivia sem ser perturbado ou despertar interesse. Nesse retiro dedicava minhas manhãs ao trabalho, mas durante as tardes, quando o clima permitia, costumava andar na praia pedregosa, ouvindo as ondas quebrando e correndo sob meus pés. Era uma cena monótona, porém em mudança constante. Pensava na Suíça, muito diferente daquela paisagem desolada e apavorante. Assim ocupava-me logo que cheguei, mas, à medida que o trabalho avançava, tornava-se cada vez mais horrível e irritante. Algumas vezes passava dias sem ser capaz de reunir forças para entrar no laboratório. Em outras ocasiões, trabalhava noite e dia, tentando terminar. Na verdade, tratava-se de uma tarefa nojenta. Durante meu primeiro experimento, uma espécie de entusiasmo frenético me cegava. Mas agora, com a cabeça fria, de vez em quando meu coração ficava enjoado com o que minhas mãos faziam. Dessa forma, entregue à mais detestável ocupação, imerso em uma solidão na qual ninguém desviava meu foco do trabalho, meus nervos ficaram desequilibrados. Comecei a sentir-me inquieto e nervoso. A todo momento temia encontrar meu perseguidor. Algumas vezes

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sentava-me com os olhos fixos no chão, receoso de levantar o olhar e encontrar aquele que tanto temia voltar a ver. Toda vez que estava longe dos outros habitantes da ilha, tinha medo de que viesse exigir sua companheira. Enquanto isso, dedicava-me ao trabalho, que já estava bem adiantado. Impaciente mas esperançoso, encarava seu término com uma mistura de maus presságios e um enjoo na alma.

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CAPÍTULO 3 169

Certa noite, estava sentado em meu laboratório, depois do pôr do sol, quando a lua acabava de despontar no mar. Não havia luz suficiente para minha ocupação, e fiz uma pausa, considerando se deveria interromper o trabalho ou continuar sem parar até terminar o que fazia. Enquanto fiquei ali, refleti sobre os efeitos do que estava fazendo. Três anos antes, estava envolvido da mesma maneira e criei um monstro cuja maldade sem paralelo despedaçara minha alma, enchendo-a para sempre do mais amargo remorso. Estava prestes a criar outro ser vivo, cujo temperamento desconhecia por completo. Ela poderia tornar-se dez mil vezes mais maldosa que seu companheiro e sentir prazer em matar e aterrorizar. Ele prometera afastar-se dos homens e esconder-se em desertos, mas ela não prometera nada. Poderia muito bem recusar-se a cumprir um acordo realizado antes de sua criação. Eles poderiam até sentir ódio um do outro. Será que a criatura que deplorava sua própria aparência não sentiria o mesmo ao ver sua companheira? E ela não poderia desprezá-lo comparando-o com a beleza humana? Ela poderia deixá-lo sozinho de novo, dessa vez irritado por ter sido rejeitado por um semelhante. Mesmo que deixassem a Europa e habitassem as regiões remotas do Novo Mundo, um dos resultados desejados pelo monstro seria ter filhos. Assim, uma nova espécie de monstros passaria a habitar o mundo, podendo ameaçar até a existência da espécie humana. Eu tinha o direito, em meu benefício, de lançar essa maldição sobre as gerações futuras?

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Pela primeira vez, sentia na alma a maldade da minha promessa. Tremi ao pensar que no futuro meu nome poderia ser amaldiçoado como uma peste, um egoísta que não hesitou em comprar a própria paz ao preço, talvez, da extinção de toda a raça humana. Tremi e senti o coração fraquejar quando vi o monstro surgir na janela, iluminado pelo luar. Um sorriso sinistro torceu seus lábios quando viu que me dedicava à tarefa que me impusera. Seguira-me em minhas viagens e agora vinha verificar meu progresso e exigir o prometido. Sua expressão transbordava malícia e traição. Pensei na loucura que seria cumprir minha promessa e, tremendo de ódio, fiz em pedaços o objeto do meu trabalho. O monstro me viu destruindo a criatura que poderia lhe trazer a felicidade e, com um grito maligno de desespero e vingança, retirou-se. Deixei o laboratório e, ao fechar a porta, fiz uma promessa solene de nunca retomar os trabalhos. Em seguida, cambaleando, fui para meu quarto. Estava só e não havia ninguém por perto para diminuir minha tristeza ou afastar-me dos meus piores pesadelos. Muitas horas se passaram, e permaneci junto à janela fitando o mar. Ele estava quase parado, pois os ventos haviam amainado. Toda a natureza repousava sob o luar. Alguns poucos barcos de pesca podiam ser vistos ao longe no mar, e de vez em quando uma leve brisa trazia o som das vozes dos pescadores. De repente, meus ouvidos foram atraídos pelo som de remadas perto da praia, até que alguém desembarcou perto da minha casa. Minutos depois ouvi minha porta ranger, como se alguém a abrisse com cuidado. Tremi da cabeça aos pés. Pressenti quem era e desejei acordar algum dos camponeses que viviam em uma cabana próxima da minha, mas fui tomado pelo pavor e fiquei paralisado onde estava. Ouvi então o ruído de passos no corredor. A porta abriu-se e o patife que tanto temia apareceu. Escancarando a porta, aproximou-se e disse numa voz abafada: — Você destruiu o trabalho que havia começado. O que pretende? Ousa quebrar sua promessa? Suportei sofrimento e tristeza. Deixei a

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Suíça contigo, rastejei pelas margens do Reno, entre os salgueiros de suas ilhas e sobre suas colinas. Habitei por vários meses nos matagais ingleses e nos descampados escoceses. Enfrentei fadiga incalculável, frio e fome, e você ousa destruir minha esperança? — Vá embora! Eu quebro minha promessa. Nunca criarei outro como você, com a mesma maldade e deformidade. — Maldito, até agora tenho argumentado contigo, mas demonstrou não ser merecedor da minha condescendência. Lembre-se do meu poder. Considera-se infeliz, mas posso trazer-lhe tamanha desgraça que não suportará mais sequer a luz do dia. Pode ser meu criador, mas sou seu senhor. Obedeça! — Meu momento de dúvidas já passou. Suas ameaças não podem mais me obrigar a cometer atos maldosos, mas confirmam minha determinação em não criar uma companheira para seus crimes. Como poderia, a sangue-frio, soltar no mundo um monstro que sente prazer com a morte e a desgraça? Vá embora! Estou decidido, e suas palavras só vão aumentar minha fúria. O monstro viu a determinação em meu rosto e rangeu os dentes, zangado e impotente, antes de gritar: — Então cada homem deve encontrar uma esposa para aquecer sua alma, cada besta deve encontrar seu parceiro, mas eu devo ficar sozinho? Tive sentimentos afetuosos, mas recebi de volta a repulsa e o desprezo. Você pode me odiar, mas tenha cuidado! Viverá triste e apavorado. Por que você poderia ser feliz enquanto eu me arrasto suportando o peso da minha desgraça? Pode ser que eu morra, mas antes você, meu tirano e carrasco, vai amaldiçoar o sol que testemunhará sua tristeza. Tenha cuidado, pois sou destemido e, portanto, poderoso. Vou vigiá-lo com a concentração de uma serpente, e posso picá-lo com meu veneno. Vai se arrepender dessas ofensas. — Pare com isso, demônio! Não envenene o ar com esses sons malignos. Já lhe comuniquei minha decisão, e palavras não me amedrontarão. Deixe-me! Não mudarei de ideia.

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— Está bem, irei embora. Mas lembre-se: estarei contigo em sua noite de núpcias! Dei um salto adiante e tentei agarrá-lo, mas ele conseguiu escapar e fugir correndo. Logo depois o vi em seu bote, que cortava a água, veloz e suave como uma flecha, até desaparecer entre as ondas. Tudo retornou ao silêncio, mas suas palavras ecoavam em meus ouvidos. Tomado pela fúria, queria partir oceano adentro em perseguição ao assassino. Perturbado, andava apressado de um lado para outro em meu quarto enquanto minha imaginação torturava meu cérebro com mil imagens angustiantes. Por que não o seguira para lutarmos até a morte? Havia permitido que partisse rumo à ilha principal. Tremi ao pensar quem seria sua próxima vítima. Foi quando lembrei de suas palavras: “Estarei contigo em sua noite de núpcias!”. Então esse era o prazo para a execução da minha pena. Isso não chegou a apavorar-me até que pensei na minha amada Elizabeth e em suas lágrimas quando eu fosse arrancado de seus braços de forma tão brutal. Lágrimas escorreram dos meus olhos, e resolvi que não cairia diante do meu inimigo sem uma luta feroz. A noite passou e o sol nasceu no oceano. Deixei a casa, cenário do horrível confronto da véspera, e andei pela praia. Se pudesse, passaria ali o resto dos meus dias, isolado, sem ser afetado por ataques de tristeza. Se voltasse, seria para ser sacrificado ou ver aqueles que mais amava morrerem nas mãos do monstro que criara. Vaguei pela ilha como um espectro inquieto, separado de todos que amava e devastado pela separação. Ao meio-dia, com o sol a pino, deitei-me na grama e fui tomado por um sono profundo que restaurou minhas forças. Quando despertei, voltei a sentir-me como parte da espécie humana. Passei a refletir sobre o ocorrido com alguma calma. O sol já havia baixado e eu continuava sentado na praia, matando a fome, que já era imensa, com um bolo de aveia, quando vi um barco pesqueiro aproximar-se. Um homem desembarcou e me trouxe um pacote com cartas de Genebra, além de uma de Clerval pedindo

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que fosse me encontrar com ele. Dizia que perdia tempo onde estava, pois recebera cartas de amigos londrinos que lhe pediam para retornar à cidade para completar a negociação em torno de sua viagem à Índia. Não podia mais adiar sua partida e pedia que lhe fizesse companhia durante o tempo que fosse possível. Essa carta me trouxe de volta à realidade, e decidi partir em dois dias. Porém, antes de deixar a ilha, precisava realizar uma tarefa sobre a qual não gostaria de pensar. Tinha que empacotar meus instrumentos do laboratório, e para fazer isso devia voltar ao cômodo onde havia trabalhado em meu abominável projeto. Na manhã seguinte, reuni coragem suficiente e destranquei a porta do laboratório. Os restos da criatura semiacabada que havia destruído estavam espalhados pelo chão. Com mãos trêmulas, transportei os instrumentos para fora do cômodo, mas refleti que não poderia deixar os restos do meu trabalho, pois isso causaria horror e levantaria suspeita entre os camponeses. Então, decidido a lançá-los ao mar à noite, coloquei-os em um cesto, junto com muitas pedras. Meus sentimentos haviam mudado muito desde a noite em que meu inimigo apareceu. Antes encarava minha promessa com tristeza e desespero, como algo que, fossem quais fossem as consequências, precisava ser feito. Agora, porém, era como se tivesse arrancado uma venda dos olhos e pela primeira vez enxergasse com clareza. A ideia de retomar os trabalhos não me ocorreu uma única vez. A ameaça que ouvira ainda pesava em meus ombros, mas estava claro que criar outro monstro seria um ato extremamente egoísta e deplorável. A lua nasceu entre duas e três da madrugada, e, colocando a cesta em um pequeno bote, naveguei cerca de sete quilômetros mar adentro. A solidão era perfeita, uns poucos barcos voltavam para terra, mas naveguei para longe deles. Sentia-me cometendo um crime terrível e queria evitar qualquer encontro com meus semelhantes. Em certo momento, a lua, que brilhava até então, foi coberta por uma nuvem espessa. Aproveitando o momento, lancei meu cesto ao mar.

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Ouvi o som da água borbulhando enquanto o cesto afundava e depois afastei-me dali. O céu ficou nublado, uma brisa gelada começou a soprar do nordeste, cada vez mais forte. Ela me refrescou e me causou uma sensação tão boa que resolvi prolongar minha velejada. Fixei o leme num rumo direto, estiquei-me no fundo do barco. Nuvens escondiam a lua, tudo ficou escuro, eu ouvia apenas o som do barco cortando as ondas. O murmúrio acabou me dando sono, e logo depois dormia um sono profundo. Não sei por quanto tempo fiquei assim, mas, quando acordei, o sol já estava alto. O vento era forte, e as ondas ameaçavam a integridade do meu pequeno bote. Constatei que o vento que soprava do nordeste havia me afastado do ponto de onde havia zarpado. Tentei mudar o rumo, mas logo percebi que, se o fizesse, o barco ficaria cheio de água. Assim, o único jeito era ir a favor do vento. Confesso que fiquei aterrorizado. Não levava uma bússola, não havia terra à vista e eu conhecia muito pouco do local. Já estava navegando havia muitas horas e a sede começava a ficar insuportável, num prenúncio do sofrimento que viria a seguir. Algumas horas se passaram desse modo, mas aos poucos o sol caiu no horizonte, o vento virou uma brisa suave e o mar acalmou-se. As ondas pararam de quebrar, mas ficaram mais altas. Já estava enjoado, quase sem condições de conduzir a embarcação, quando avistei terra firme no horizonte ao sul. Estava quase esgotado de fadiga, mas essa visão inundou meu coração de calor e satisfação. Lágrimas rolaram dos meus olhos. Como nossos sentimentos podem mudar! Chega a ser estranha a paixão com que nos agarramos à vida mesmo nos momentos mais tristes. Improvisei mais uma vela com parte da minha roupa e, ansioso, corrigi o rumo em direção a terra firme. Ela parecia rochosa e selvagem, mas quando cheguei mais perto pude perceber terrenos cultivados. Vi navios perto da costa e me convenci de que estava de volta à civilização. Analisei com cuidado o contorno do litoral e pude identificar a torre

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de uma igreja por trás de um pequeno promontório. Devido à minha fraqueza, resolvi rumar direto para a cidade, onde poderia encontrar algum alimento com mais facilidade. Assim que contornei o promontório, vi uma pequena vila no fundo de uma enseada abrigada, onde entrei com o coração cheio de alegria. Enquanto estava ocupado recolhendo as velas e amarrando o barco, uma pequena multidão aproximou-se do local. Pareciam muito surpresos com minha aparição, mas, em vez de me oferecerem ajuda, cochichavam entre si, usando gestos que em outras circunstâncias poderiam ter me assustado um pouco. Imaginei que falassem inglês e dirigi-me a eles nesse idioma: — Bons amigos, poderiam dizer-me, por gentileza, o nome desta cidade? — Vai ficar sabendo logo, logo — disse um homem de voz rouca. — Talvez este lugar não lhe agrade, mas ninguém vai ligar para sua opinião, pode ter certeza. Fiquei bastante admirado ao receber resposta tão rude. E desconcertado ao notar as expressões zangadas de seus companheiros. — Por que está falando assim comigo? — respondi. — Não é costume dos ingleses receber estranhos com tanta animosidade. — Não sei qual é o costume dos ingleses — o homem respondeu. — Mas os irlandeses têm o costume de odiar os criminosos. Enquanto esse estranho diálogo continuava, notei que a multidão crescia. Os rostos expressavam uma mistura de curiosidade e raiva, o que me incomodou, e em certa medida, alarmou-me. Perguntei pelo caminho até uma hospedaria, mas ninguém respondeu. Comecei a me mover, e um burburinho cresceu entre a multidão que me seguia e cercava, até que um homem mal-encarado se aproximou, deu um tapinha em meu ombro e disse: — O senhor deve vir comigo para depor ao Sr. Kirwin. — Quem é o Sr. Kirwin? Por que preciso depor? Este não é um país livre?

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— Sim, é claro, livre para quem é honesto. O Sr. Kirwin é juiz e o senhor deve depor sobre a morte de um cavalheiro que foi encontrado assassinado aqui ontem à noite. Fiquei admirado com essa resposta, mas logo depois senti-me aliviado. Eu era inocente e isso era fácil de provar. Assim, segui o homem em silêncio e fui conduzido até uma das melhores casas da cidade. Estava quase desabando de fome e cansaço, mas, estando cercado por uma multidão, achei meios de reunir energia para que minha fraqueza física não fosse interpretada como receio ou sentimento de culpa. Não tinha a menor ideia da calamidade que me esmagaria em poucos minutos. Devo fazer uma pausa, pois precisarei de todas as minhas forças para me lembrar dos eventos aterrorizantes que estou prestes a relatar.

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CAPÍTULO 4 177

Logo fui levado à presença do juiz, um idoso gentil de modos calmos e suaves. Ele olhou para mim, contudo, com certa severidade, e depois, dirigindo-se aos demais, perguntou pelas testemunhas. Cerca de meia dúzia de homens se adiantou e um deles, indicado pelo juiz, começou a contar que saíra para pescar na véspera com o filho e o cunhado, Daniel Nugent, quando, por volta das dez da noite, observaram uma tempestade se armando ao norte e decidiram voltar para o porto. Era uma noite muito escura, pois a lua ainda não nascera. Não atracaram no porto, mas onde costumavam fazê-lo, perto da foz de um riacho, três quilômetros depois. Ele foi o primeiro a desembarcar, carregando parte do material de pesca, e seus colegas o seguiram um pouco mais atrás. Enquanto andava pela areia, tropeçou em algo e caiu no chão. Seus companheiros vieram acudi-lo e, com a ajuda de uma lanterna, descobriram que ele havia tropeçado no corpo de um homem, que parecia morto. A princípio acreditaram tratar-se do cadáver de algum afogado, lançado à praia pelas ondas. Mas em seguida constataram que as roupas estavam secas e que o corpo ainda estava quente. De imediato, levaram-no para a cabana de uma senhora que morava ali perto, onde tentaram, em vão, reanimá-lo. Era um jovem bem-apessoado, com cerca de 25 anos de idade. Parecia ter sido estrangulado, pois não havia nenhuma marca de violência além da marca escura de dedos em sua nuca. A primeira parte do testemunho não me despertara o menor interesse, mas, quando a marca de dedos foi mencionada, lembrei-me do

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assassinato de meu irmão e me senti bastante agitado. Minhas pernas tremeram e minha visão ficou embaçada, o que me obrigou a me apoiar em uma cadeira. O juiz observou esse movimento com atenção. O filho confirmou o relato do pai, mas, quando Daniel Nugent foi chamado, jurou que pouco antes da queda do seu colega havia visto um barco, com apenas um tripulante, próximo à costa, e, até onde podia afirmar, à luz de algumas poucas estrelas, era o mesmo barco do qual eu acabara de desembarcar. Uma mulher depôs, contando que vivia perto da costa e estava parada na porta de casa, esperando pela volta dos pescadores, cerca de uma hora antes de ouvir sobre a descoberta do corpo, quando viu um barco com apenas uma pessoa afastando-se na costa no local onde o cadáver seria encontrado. Outra mulher confirmou que os pescadores haviam trazido o corpo ainda quente para sua casa. Puseram-no em uma cama e esfregaram seus pulsos. Daniel ainda tentou buscar ajuda na vila, mas já era tarde demais. Vários outros homens falaram sobre meu desembarque e todos concordaram que, com o forte vento norte que soprara durante a noite, era provável que eu tivesse tentado enfrentá-lo sem sucesso por várias horas até ser obrigado a retornar ao ponto de partida. Depois de ouvir os testemunhos, o Sr. Kirwin solicitou que eu fosse levado até o local onde o corpo aguardava o sepultamento, para que pudesse observar os efeitos produzidos em mim pela visão. Essa ideia pode ter sido inspirada pela enorme agitação que eu demonstrava enquanto ouvia como o crime fora cometido. Assim, fui conduzido pelo magistrado e várias outras pessoas até a hospedaria. Não podia deixar de ficar abalado pelas estranhas coincidências que ocorreram naquela noite atribulada. Mas seguro de que andara conversando com várias pessoas na ilha onde morava no momento em que o cadáver fora encontrado, estava absolutamente tranquilo. Entrei no aposento onde jazia o cadáver e fui levado até o caixão. Como posso descrever o que senti? Até agora fico paralisado pelo

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horror e não posso pensar naquele momento terrível sem tremer de agonia. O interrogatório, o juiz e as testemunhas presentes, tudo isso foi varrido da minha mente quando vi o corpo sem vida de Henry Clerval. Fiquei sem ar e, jogando-me sobre o corpo, exclamei: — Querido Clerval, será que minhas intrigas mortais também privaram você da vida? Já destruí duas vidas, outras vítimas aguardam seu destino. Mas você, Clerval, meu amigo, meu benfeitor… Meu corpo não podia suportar tamanha agonia, e fui carregado para fora do cômodo com fortes convulsões. Tive febre em seguida. Fiquei de cama por dois meses, à beira da morte. Meus delírios, como fiquei sabendo depois, eram apavorantes. Eu me culpava pelo assassinato de William, de Justine e de Clerval. Às vezes, conclamava aqueles que cuidavam de mim a ajudar-me a destruir o inimigo que me atormentava. Em outros momentos, sentia os dedos do monstro apertando meu pescoço e gritava alto em agonia e terror. Minha sorte é que falava em minha língua natal e apenas o Sr. Kirwin entendia, mas meus gestos e gritos amargos bastavam para assustar os demais. Dois meses depois, acordando de um sonho, encontrava-me preso em um calabouço. Era uma manhã, lembro bem, quando despertei para a realidade. Esquecera-me dos detalhes ocorridos, só sentia que uma imensa desgraça se abatera sobre mim. Mas, quando olhei em volta e vi as janelas com grades, os ferrolhos, os cadeados e a sujeira do local onde estava, tudo voltou à minha memória e gemi amargurado. Esse som perturbou o sono de uma senhora que dormia numa cadeira ao meu lado. Era uma enfermeira, a esposa de um dos carcereiros. Sua expressão era muito dura e fria, e sua voz transmitiu total indiferença quando se dirigiu a mim em inglês: — O senhor está melhor agora? Respondi no mesmo idioma, com voz trêmula: — Creio que sim. Mas se tudo isso é verdade, se não foi um pesadelo, então lamento muito ainda estar vivo para sentir toda essa tristeza e horror.

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— Se o senhor se refere ao cavalheiro que assassinou — respondeu a velha —, era melhor mesmo que estivesse morto, pois aposto que não vai ter vida boa. Mas não tenho nada a ver com isso. Fui contratada para cuidar de sua saúde e fiz meu trabalho. Virei-me para o outro lado e refleti sobre minha vida. Às vezes eu mesmo duvidava de que fosse tudo verdade. Um médico veio e receitou medicamentos para a febre, e a velha os preparou para mim. Mas o absoluto descuido era claro no primeiro, e uma expressão de brutalidade era evidente no olhar da segunda. Quem estava interessado no destino de um assassino além do carrasco que seria pago por seus serviços? Logo descobri que o Sr. Kirwin demonstrava grande bondade. Ordenara que eu ficasse confinado na melhor cela na prisão, mesmo que a melhor fosse imunda, e providenciara o médico e a enfermeira. É verdade que raramente me visitava. O fato de ele desejar aliviar o sofrimento de todos os seres humanos não significava que tivesse interesse em ouvir a agonia e as lamúrias de um assassino. Vinha, portanto, de vez em quando para verificar se eu não estava sendo negligenciado, mas as visitas eram curtas e pouco frequentes. Um dia, enquanto ainda me recuperava, estava sentado em uma cadeira, com os olhos entreabertos e o rosto muito pálido. Sentia-me tomado pela tristeza e infelicidade, e muitas vezes pensava se não seria melhor buscar a morte em vez de desejar a vida em um mundo repleto de desgraça. Cheguei a pensar em declarar-me culpado e sofrer logo a punição da lei, menos inocente do que Justine havia sido. Esses eram meus pensamentos, quando a porta da cela se abriu e o Sr. Kirwin entrou. Seu rosto expressava simpatia e compaixão. Puxou uma cadeira para perto da minha e dirigiu-se a mim em francês. — Parece que este lugar lhe causa sofrimento. O que posso fazer para lhe dar um pouco mais de conforto? — Agradeço, mas não é a falta de conforto que me incomoda. Não há como sentir-me confortável em nenhum lugar do mundo. — Sei que a solidariedade de um estranho pode valer muito pouco

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para alguém assolado por tamanha tragédia. Mas o senhor poderá, assim espero, encerrar essa melancolia, pois, sem dúvida alguma, provas podem livrá-lo das acusações. — Esse é o meu menor sofrimento. Tornei-me, devido a uma cadeia de estranhos eventos, o mais desgraçado dos mortais. Perseguido e torturado como tenho sido, que mal a morte pode me trazer? — De fato, nada poderia ser tão triste e angustiante como os estranhos acontecimentos que lhe ocorreram. Por acaso, foi lançado neste litoral, conhecido por sua hospitalidade, e acabou sendo imediatamente acusado de assassinato e preso. A primeira visão apresentada aos seus olhos foi o cadáver de seu amigo, assassinado de maneira inexplicável e colocado por algum inimigo em seu caminho. Enquanto o Sr. Kirwin dizia isso, a despeito da agitação que senti ao lembrar desses eventos, também fiquei surpreso com o tanto que ele sabia a meu respeito. Suponho ter demonstrado esse espanto, pois ele se apressou em dizer: — Logo depois de o senhor ter ficado doente, trouxeram-me todos os papéis que estavam em seu poder. Examinei-os para tentar achar um modo de avisar seus parentes sobre seu infortúnio e estado de saúde. Encontrei diversas cartas, uma das quais descobri ser de seu pai, a quem escrevi de imediato. Isso foi há cerca de dois meses. Mas vejo que ainda está doente, tremendo de febre. Não deve sofrer com nenhum tipo de agitação. — Esse suspense é mil vezes pior que qualquer notícia. Conte-me logo. Que ato mortal foi encenado? Que morte devo lamentar? — Todos em sua casa estão bem — disse o Sr. Kirwin, com gentileza. — E alguém, um amigo, veio vê-lo. Não sei por quê, pois a ideia apresentou-se sozinha, sem nenhum fluxo de pensamentos, mas imediatamente imaginei que o assassino viera debochar da minha desgraça e insultar-me com a morte de Clerval, exigindo mais uma vez que eu atendesse seus desejos diabólicos. Levei as mãos ao rosto e gritei em agonia: — Não! Leve-o embora! Não posso vê-lo, não deixe que ele entre!

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O Sr. Kirwin pareceu confuso. Não pôde deixar de interpretar minha reação como uma confissão de culpa e disse, num tom severo: — Pensei que a presença do seu pai seria bem-vinda ao invés de causar tamanha repulsa. — Meu pai! — gritei, enquanto cada músculo e sentido relaxavam e a angústia dava lugar ao prazer. — Foi meu pai que veio me ver? Mas onde ele está? Por que não veio logo me ver? A mudança em meu estado de espírito surpreendeu e agradou ao magistrado. Talvez tenha pensado que minha primeira exclamação fosse um breve delírio e logo voltou ao estado de gentileza anterior. Levantou-se e deixou o cômodo, acompanhado da enfermeira. Em seguida, meu pai entrou. Naquele momento, nada poderia ter me dado mais prazer que a chegada do meu pai. Estiquei a mão para ele e gritei: — O senhor está bem? E Elizabeth? E Ernest? Meu pai acalmou-me, assegurando-me que estavam todos sãos e salvos. Tentou em vão levantar meu moral, mas logo percebeu que uma prisão não permite que se sinta muita alegria. — Que lugar horrível, meu filho! — disse, enquanto olhava com pesar para as janelas gradeadas e para a aparência imunda do aposento. — Viajou em busca de felicidade, mas parece que a tragédia o persegue. Pobre Clerval… O nome do meu amigo assassinado foi insuportável e desabei em lágrimas. — Ai, meu pai… — respondi. — O senhor tem razão, um destino horrível me persegue. Minha sina é viver para enfrentá-lo, do contrário teria morrido sobre o caixão de Henry. Não pudemos conversar por muito tempo, pois meu precário estado de saúde exigia precauções. O Sr. Kirwin entrou e ponderou que eu devia descansar um pouco, para não esgotar minhas forças. Mas a aparição do meu pai foi como a de um anjo bom, e minha saúde passou a melhorar de forma gradual.

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Assim que fiquei curado, fui tomado por uma melancolia sombria, que nada podia dissipar. A imagem de Clerval não saía da minha cabeça, sinistro e assassinado. Aproximava-se a data do meu julgamento. Já estava preso havia três meses, mas mesmo assim continuava fraco. Embora houvesse o risco de uma recaída, fui obrigado a viajar cerca de 160 quilômetros até uma cidade maior, onde ficava o tribunal. O Sr. Kirwin tratou de convocar as testemunhas e organizou minha defesa. Fui poupado de ser exibido em público como criminoso, já que meu caso nem sequer chegou ao tribunal que julgava crimes de morte. O grande júri rejeitou a denúncia, pois ficara provado que eu estava nas ilhas Órcades na hora em que o corpo do meu amigo foi encontrado. Fui libertado menos de 15 dias depois. Meu pai ficou entusiasmado ao ver-me em liberdade, livre do vexame de um processo criminal, podendo respirar o ar puro e autorizado a voltar para casa. Eu não compartilhava desses sentimentos, pois para mim as paredes de um calabouço ou de um palácio eram igualmente detestáveis. O meu gosto pela vida fora contaminado para sempre. Tudo o que conseguia ver à minha volta era uma escuridão densa e apavorante onde o único brilho visível era o de um par de olhos que me observava. Às vezes eram os olhos expressivos de Henry, abatidos pela morte. Outras vezes eram os olhos embaçados do monstro, como na primeira vez em que o vi, em meu laboratório em Ingolstadt. De vez em quando, é verdade, desejava alguma felicidade, e pensava com um prazer melancólico em minha prima querida. Ou então ficava sonhando acordado, com saudades, querendo rever o lago azul e o rápido Reno mais uma vez. Mas em geral meu estado de espírito era um imenso desânimo, e esses breves momentos de vontade de viver eram sempre interrompidos pela angústia e pelo desespero. Foram muitas as vezes que pensei acabar com tudo. Mas ainda havia uma tarefa a cumprir, e só assim pude juntar meus cacos e superar meu desespero egoísta. Era preciso voltar logo a Genebra, para vigiar aqueles que eu amava e esperar pelo assassino, pois,

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caso ousasse perturbar-me com sua presença, eu poderia pôr fim à sua existência. Meu pai queria adiar nossa partida, receoso de que não suportasse os rigores de uma longa viagem. Eu parecia um esqueleto, e a febre ameaçava o meu corpo noite e dia. Mas insisti tanto para que deixássemos logo a Irlanda, com tamanha inquietação e impaciência, que meu pai achou melhor ceder. Embarcamos em um navio com destino à Normandia, e foi com vento a favor que partimos.

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CAPÍTULO 5 185

A travessia chegou ao final. Desembarcamos no Havre e dirigimo-nos a Paris. Logo percebi que havia superestimado minha condição física e que precisaria repousar antes de prosseguir viagem. A atenção e os cuidados de meu pai eram incansáveis. Mas ele não sabia a origem do meu sofrimento e buscava métodos equivocados para tratar a minha doença incurável. Esforçava-se ao máximo para me fazer esquecer todos os eventos vividos na Irlanda, nunca se referindo a eles nem me pedindo para falar dos meus infortúnios. Com o passar do tempo, eu ia ficando mais calmo. A tristeza tinha seu lugar em meu coração, mas meus modos voltaram a ser calmos e serenos como eram antes da minha visita ao mar de gelo. Poucos dias antes de deixar Paris a caminho da Suíça, recebi a seguinte carta de Elizabeth: Meu querido amigo, Foi com enorme prazer que recebi a carta de meu tio, enviada de Paris. Você não está mais a uma distância formidável, e poderei vê-lo em menos de duas semanas. Primo querido, quanto você deve ter sofrido! Deve estar pior do que quando partiu de Genebra. Este foi o inverno mais triste, torturada como eu estava por uma horrível incerteza. Ainda assim, espero encontrar paz em seu rosto e que seu coração já não esteja vazio de carinho e tranquilidade.

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Contudo, tenho medo de que ainda existam os mesmos pensamentos que o fizeram tão infeliz no ano passado, talvez até aumentados pelo tempo. Não quero perturbá-lo neste momento, quando lhe pesam tantos infortúnios, mas uma conversa que tive com meu tio logo antes de sua partida exige alguma explicação antes que nos reencontremos. Explicação! Você pode estar pensando: o que Elizabeth precisa explicar? Se você de fato pensa assim, minhas perguntas estão respondidas e minhas dúvidas satisfeitas. Mas você está longe de mim, e é possível que você tema, ou até mesmo fique satisfeito com essa explicação. Então, se esse for o caso, eu não tenho como adiar escrever a você sobre isso. Enquanto esteve fora, muitas vezes quis fazê-lo, mas até agora não sentira coragem para começar. Você sabe muito bem, querido Victor, que nossa união sempre foi o plano favorito de seus pais, desde a nossa infância. Fomos ensinados a encarar isso como algo que aconteceria com certeza. Gostávamos de brincar juntos, quando crianças, e nos tornamos, acredito, amigos muito queridos. Mas irmãos e irmãs podem viver uma afeição divertida sem desejarem uma união íntima. Será esse o nosso caso? Diga-me, querido Victor, responda-me, peço que seja sincero, em nome da nossa felicidade: você ama outra pessoa? Você viajou. Passou vários anos de sua vida em Ingolstadt, e lhe confesso que no último outono, quando o vi tão infeliz, buscando a solidão, afastando-se da companhia de todos, não pude deixar de supor que talvez você lamentasse a ideia de nossa união e acreditasse estar devedor de um compromisso de honra para cumprir os desejos de seus pais, mesmo que esses fossem contrários à sua vontade. Mas essa não é a questão. Preciso confessar, meu amigo, que o amo, e que sempre que penso sobre o futuro, você é meu companheiro e amigo constante. Mas é em nome tanto da sua felicidade como da minha que declaro que nosso casamento só me traria infelicidade se não fosse motivado por sua livre escolha. Antes de tudo, quero que você seja feliz, meu querido Victor! Não deixe que esta carta perturbe sua tranquilidade. Não me responda amanhã, nem no dia seguinte, ou mesmo antes de vir, caso isso lhe

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cause dor. Meu tio mandará notícias sobre sua saúde, e na sua chegada bastará ver um sorriso em seu rosto, seja qual for a causa, para deixar-me feliz.

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ELIZABETH LAVENZA Genebra, 18 de maio de 17... Essa carta reavivou em minha memória aquilo que esquecera, a ameaça do meu inimigo: “Estarei contigo em sua noite de núpcias!”. Essa era minha sentença, e aquela noite fora a escolhida pelo monstro para me destruir e arrancar de mim qualquer possibilidade de felicidade que pudesse amenizar meu sofrimento. Nessa noite ele daria um desfecho a seus crimes com a minha morte. Bem, se assim fosse, uma luta mortal ocorreria, e, caso ele fosse o vitorioso, eu ficaria em paz e seu poder sobre mim terminaria. Se ele fosse derrotado, eu seria um homem livre. Ai! Que liberdade? A mesma que um camponês saboreia quando sua família foi massacrada diante de seus olhos, sua cabana queimada, suas terras arrasadas e ele é deixado a vagar sem rumo, solitário, sem dinheiro, porém livre. Assim seria minha liberdade, exceto pelo fato de que Elizabeth seria meu tesouro, que poderia equilibrar um pouco minha existência consumida pelo horror e pelo remorso que me perseguiriam a vida toda. Minha amada Elizabeth! Li e reli sua carta, e alguns sentimentos delicados invadiram meu coração e ousaram sugerir sonhos delirantes de amor e alegria. Refletia se meu casamento apressaria meu destino. Poderia ganhar alguns meses, mas, se o meu carrasco suspeitasse do atraso, com certeza encontraria outros meios de vingança, talvez ainda mais cruéis. Havia prometido estar comigo em minha noite de núpcias, mas não deu a entender que essa promessa significasse manter-me em paz até lá. Para mostrar que sua sede de sangue não fora saciada, matou Clerval logo após fazer a ameaça. Decidi então que, uma vez que minha união imediata com Elizabeth traria felicidade a ela e ao meu

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pai, as ameaças mortais do meu oponente não deveriam atrasá-la nem sequer uma hora. Foi com esse estado de espírito que escrevi para Elizabeth. Minha carta foi serena e carinhosa: Receio, minha querida, que ainda reste pouca felicidade no mundo para nós, ainda que só consiga enxergar em você a possibilidade de ter alguma alegria. Afaste esses seus medos, pois só com você imagino minha vida e em você deposito minha esperança. Tenho um segredo, Elizabeth, um segredo aterrorizante que vai lhe causar arrepios de horror quando eu o revelar. Então, em vez de surpresa com minha tristeza, apenas poderá imaginar como foi possível minha sobrevivência depois de tudo o que passei. Vou contar-lhe meu relato de tristeza e terror no dia seguinte ao do nosso casamento, pois, minha querida, devemos ter absoluta confiança um no outro. Peço que até esse dia não toque mais nesse assunto. Este é um pedido solene e ansioso, e sei que vai concordar com ele. Cerca de uma semana depois da chegada da carta de Elizabeth, voltamos a Genebra. A doce garota me recebeu com carinho e atenção. Ficou em lágrimas ao ver como estava abatido. Também notei mudanças nela. Estava mais magra e havia perdido muito da vivacidade que tanto me encantava. Mas sua gentileza e sua compaixão faziam-na a companhia perfeita para alguém tão triste e desgraçado como eu estava. A tranquilidade que eu vivia não duraria muito tempo. As lembranças traziam junto a loucura, e, quando pensava sobre o que havia acontecido, era possuído por uma verdadeira insanidade. Às vezes ficava furioso e explodia de raiva. Outras vezes, ficava prostrado e deprimido, sem falar ou olhar para ninguém, isolado em um canto, atormentado pela tristeza. Só Elizabeth era capaz de afastar-me desses abismos. Sua voz gentil trazia-me calma quando estava transtornado e inspiração quando entorpecido. Quando eu retomava a razão, ela tentava convencer-me a ser

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resignado. Ai! A resignação pode ser ótima para os desafortunados, mas não há paz para o culpado. A agonia do remorso envenena qualquer conforto que possa ser encontrado na dor extrema. Considerava meu inimigo quase invencível, e, desde que ele dissera as palavras “estarei contigo em sua noite de núpcias!”, considerei isso como algo inevitável. Mas não era da morte que eu tinha medo, se isso significasse poupar Elizabeth. Meu Deus! Se por um só instante eu tivesse imaginado a ideia diabólica do meu inimigo, teria me exilado para sempre de minha terra natal, vagando solitário pelo mundo, em vez de concordar com este casamento infeliz. Mas, como se possuísse poderes mágicos, o monstro impediu-me de ver suas reais intenções. Enquanto imaginava preparar minha própria morte, estava providenciado a de uma vítima muito mais querida. Quando a data do nosso casamento se aproximou, por covardia ou intuição profética, senti meu coração pesar. Mas escondi esses sentimentos sob uma camada de alegria que fazia meu pai sorrir, mas não conseguiu enganar o olhar sempre atento de Elizabeth. Ela ansiava por nossa união numa tranquilidade contente, mas não deixava de sentir uma pontinha de medo de que infortúnios do passado ainda pudessem ameaçar o que parecia um sonho bom. Os preparativos foram feitos, visitantes trouxeram votos de parabéns, sempre em clima de alegria. Tranquei minha ansiedade dentro do meu coração como pude, e procurei envolver-me nos planos de meu pai, ainda que servissem apenas como pano de fundo para minha tragédia. Meu pai agiu para que o governo da Áustria devolvesse parte da herança a que Elizabeth tinha direito. Uma pequena propriedade às margens do lago de Como lhe pertencia. Ficou combinado que logo após nossa união prosseguiríamos para a Vila Lavenza, onde passaríamos nossos primeiros dias de felicidade. Nesse meio-tempo, tomei todas as precauções para me defender caso o meu inimigo resolvesse atacar. Sempre carregava comigo pistolas

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Principal cidade na região da Alta Saboia, na fronteira com a Suíça, conhecida pelas suas águas minerais. 10

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e uma adaga e vivia em constante estado de atenção para prevenir qualquer cilada. Assim, consegui ter alguma tranquilidade. Elizabeth parecia feliz. Meu comportamento tranquilo contribuía bastante para acalmar seu espírito. Mas no dia em que eu realizaria meu desejo e selaria meu destino, ela ficou melancólica e tomada por um mau pressentimento. Talvez tenha se lembrado do terrível segredo que eu prometera lhe contar no dia seguinte. Depois da cerimônia, um grande grupo reuniu-se na casa de meu pai, mas ficou combinado que eu e Elizabeth começaríamos nossa viagem de barco, passando a noite em Évian-les-Bains10 para continuar viagem no dia seguinte. O clima era agradável, o vento favorável, todos sorriam em nossa embarcação nupcial. Aqueles foram os últimos momentos em que desfrutei de alguma felicidade. Viajávamos com rapidez. O sol estava forte, mas nos abrigávamos sob uma espécie de toldo e apreciávamos a beleza da paisagem. Segurei na mão de Elizabeth: — Parece triste, meu amor. Se você soubesse tudo o que sofri e o que ainda posso ter que suportar, desfrutaria comigo a calma e a liberdade serena que este dia pode me trazer. — Seja feliz, querido Victor — respondeu Elizabeth. — Não há nada, assim espero, para perturbá-lo. Se uma alegria jovial não está estampada em meu rosto, saiba que meu coração está satisfeito. Algo me diz que não devo depositar muita esperança no futuro que nos aguarda, mas procuro não dar ouvidos a essa voz agourenta. Veja como vamos depressa e como as nuvens tornam mais interessante a paisagem

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que já é bela. Veja também quantos peixes nadam nas águas límpidas, onde podemos enxergar até o cascalho do fundo. Que dia divino! Assim, Elizabeth procurou desviar seus pensamentos e os meus de qualquer tema deprimente. Mas seu humor oscilava. Em alguns momentos, a alegria brilhava em seus olhos, mas logo depois dava lugar a distrações e devaneios. Ao chegarmos às proximidades de Évian, o vento, que até então nos levara com extrema rapidez, virou uma leve brisa, suficiente apenas para perturbar a superfície da água e causar algum movimento na folhagem da margem que se aproximava, de onde sentíamos o perfume das flores. O sol desapareceu no horizonte assim que tocamos a margem, e senti de novo todos os meus medos, que em breve se agarrariam a mim e me oprimiriam para sempre.

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CAPÍTULO 6 192

Eram oito horas quando desembarcamos. Andamos um pouco pela praia, aproveitando a luz do crepúsculo, para em seguida nos recolhermos à hospedaria. Lá contemplamos a paisagem das águas, bosques e montanhas, cada vez menos visíveis na penumbra. O vento, que havia parado ao sul, agora soprava com violência do oeste. A lua atingira seu apogeu e começava a descer no céu. As nuvens passavam por ela, velozes como o voo do abutre, suavizando seu brilho. O lago refletia essa agitação formando ondas na superfície. De repente desabou uma tempestade. Estivera calmo durante o dia, mas assim que a noite baixou, mil temores despertaram em minha mente. Fiquei ansioso e em estado de alerta, e a toda hora levava a mão à pistola que trazia escondida junto ao peito. Qualquer ruído me aterrorizava, mas estava decidido a não me entregar sem luta. Elizabeth observou minha agitação por um tempo em um silêncio tímido e preocupado. Havia algo em meu olhar que lhe transmitia terror. Tremendo, perguntou: — Por que está tão preocupado? Qual é o seu medo, meu querido? — Tenha calma, meu amor — respondi. — Só por esta noite e estaremos a salvo. Mas ela será terrível, muito terrível. Passei uma hora nesse estado mental, quando de repente me dei conta de que minha esposa ficaria assustada com o combate que esperava para qualquer momento. Pedi-lhe que se retirasse e decidi

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que não a veria mais até que soubesse mais a respeito da situação do meu inimigo. Ela se recolheu, e eu fiquei por algum tempo andando pela casa, verificando todas as passagens e recantos que pudessem servir de esconderijo para meu adversário. Mas não encontrei nenhum sinal de sua presença, e estava começando a imaginar se algum acaso providencial não teria prevenido a execução das ameaças quando ouvi um grito horrível e agudo. Vinha do quarto onde estava Elizabeth. Ao ouvi-lo, entendi de imediato o que acontecera e fiquei paralisado. Podia sentir o sangue pulsar em minhas veias. Fiquei assim por um instante, até ouvir outro grito, quando corri para dentro do quarto. Que tragédia! Devia ter morrido ali! Por que sobrevivi para relatar a destruição da minha melhor esperança, a mais pura criatura no mundo? Lá estava ela, inanimada e sem vida, jogada sobre a cama, com a cabeça caída e as feições pálidas e retorcidas meio encobertas pelo cabelo. Para onde quer que eu olhe agora, sempre vejo essa mesma imagem. Por um momento perdi os sentidos e caí no chão desacordado. Quando recobrei a consciência, encontrei-me cercado pelo pessoal da hospedaria, todos mudos de horror. Mas seu terror era uma piada diante dos sentimentos que me oprimiam. Voltei para o quarto onde estava o corpo de Elizabeth, meu amor, minha esposa, tão querida e tão digna! Ela havia sido movida da posição em que eu a tinha encontrado. Parecia estar dormindo. Corri para abraçá-la, e a frieza e a rigidez do seu corpo me lembraram de que o que eu segurava em meus braços não era mais a Elizabeth que eu amara. Em seu pescoço era visível a marca assassina das garras do monstro. Enquanto eu ainda me agarrava ao seu corpo em desespero e agonia, olhei para cima. Mais cedo, as cortinas das janelas do quarto tinham sido fechadas, e senti uma espécie de pânico quando vi a luz pálida da lua iluminar o aposento. As cortinas estavam escancaradas e, com uma sensação de horror que não posso descrever, vi na janela a criatura mais repugnante e medonha. O monstro exibia um sorriso

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sinistro e parecia zombar de mim enquanto apontava para o cadáver da minha esposa. Corri para a janela e, sacando uma pistola, disparei. Mas ele se esquivou, pulou de onde estava e correu como um raio para dentro do lago. O disparo da pistola atraiu uma multidão para o quarto. Eu mostrei o ponto onde ele desaparecera, e saímos à sua procura usando barcos e redes. Em vão. Depois de várias horas, voltamos desanimados. Quase todos estavam convencidos de que havia sido fruto da minha imaginação. Mesmo assim, passaram a procurar por terra e grupos foram enviados em diferentes direções. Tentei acompanhá-los e cheguei a me afastar um pouco da casa, mas minha cabeça começou a girar e meus passos pareciam os de um bêbado, até que caí de exaustão absoluta. Meus olhos ficaram turvos e minha pele queimava com o calor da febre. Foi nesse estado que fui carregado de volta e colocado numa cama, quase inconsciente do que acontecera. Meu olhar vagava pelo quarto, como se procurando algo que eu houvesse perdido. Despertei depois de um tempo e por instinto arrastei-me até o quarto onde estava o cadáver de Elizabeth. Em torno da cama, várias mulheres choravam. Debrucei-me sobre o corpo e juntei minhas lágrimas tristes às delas. Durante esse tempo, nenhuma ideia distinta me ocorria, mas meus pensamentos viajaram por vários assuntos, refletindo de forma confusa sobre meus infortúnios e suas causas. Naquele mesmo momento não sabia se meus familiares estavam a salvo da maldade do monstro. Meu pai poderia muito bem estar sufocando em seu aperto mortal, e Ernest poderia estar morto aos seus pés. Essa ideia me causou arrepios e fez com que eu decidisse agir. Levantei-me resolvido a voltar para Genebra o mais rápido possível. Não havia cavalos disponíveis para alugar, e precisei voltar pelo lago. Mas o vento não era favorável e caía uma chuva torrencial. Contudo, era bem cedo e era possível chegar antes do anoitecer. Contratei homens para remar e eu mesmo assumi um dos remos, pois sempre encontrei

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no exercício pesado um alívio para tormentos mentais. Mas a tristeza abundante que sentia, junto com a agitação excessiva que enfrentara, impediram-me de fazer esse esforço. Larguei o remo, apoiei a cabeça nas mãos e dei vazão a todo pensamento infeliz. Se olhava para cima, via paisagens familiares, que havia contemplado na véspera ao lado de quem agora era só uma sombra e uma lembrança. Lágrimas rolaram dos meus olhos. Um monstro arrancara de mim qualquer esperança de felicidade. Eu era a criatura mais infeliz que jamais existira. Mas para que perder tempo com os incidentes que se sucederam se este foi o evento mais terrível na história da humanidade? Minha história é uma coleção de horrores, este foi o ápice, não tenho por que entediá-lo com detalhes. Saiba que, um por um, meus amigos me foram arrancados e fiquei sozinho. Estou exausto e devo contar em poucas palavras o restante da minha terrível narrativa. Cheguei a Genebra. Meu pai e Ernest ainda viviam, mas o primeiro não resistiu às notícias que eu trazia. Maldito seja o monstro que trouxe tristeza aos seus cabelos grisalhos, transformando-o em um farrapo humano! Não suportou os horrores que se acumulavam ao redor. A vontade de viver foi acabando, não se levantou mais da cama e em poucos dias morreu em meus braços. O que restou de mim? Não sei. Perdi qualquer racionalidade e mergulhei nas trevas. Às vezes, é verdade, sonhava que vagava por campinas floridas e vales agradáveis, com meus amigos de juventude, mas acordava e me encontrava em um calabouço. Seguia-se a melancolia, mas aos poucos eu passei a entender melhor minha desgraça e minha situação. Foi quando fui libertado da prisão. Pois haviam me julgado louco, e, como fiquei sabendo depois, passara dois meses numa cela. A liberdade, porém, não me serviria de nada se, ao recobrar a razão, não tivesse despertado em mim o desejo de vingança. À medida que me lembrava dos meus infortúnios, comecei a refletir sobre seu causador, o monstro que eu criara, o monstro desgraçado que soltei no mundo para me destruir.

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Comecei a pensar sobre as melhores formas de capturá-lo. Com esse propósito, cerca de um mês após ser solto, procurei um juiz criminal na cidade e contei-lhe que tinha uma acusação a fazer. Que sabia quem destruíra minha família e exigia que exercesse sua autoridade para prender o assassino. O magistrado atendeu-me com atenção e gentileza. — O senhor pode estar certo — ele disse — de que não pouparei esforços para encontrar o bandido. — Agradeço — respondi —, e peço que ouça o relato que tenho a fazer. Trata-se de uma história bem estranha, e não posso exigir que não desconfie de sua veracidade. Mas é uma história muito elaborada para ser confundida com um sonho, e eu não teria razão para prestar um falso testemunho. Minha atitude, enquanto falava, era firme, porém calma. Estava decidido a perseguir meu inimigo até a morte, e essa firmeza de propósito acalmava minha agonia. Continuei meu relato de forma sucinta e precisa, informando as datas dos eventos e nunca apelando nem para a injúria nem para a exaltação. A princípio o juiz pareceu não acreditar em nada, mas com o desenrolar do relato passou a ficar mais atento e interessado. Notei que às vezes tremia horrorizado, às vezes parecia surpreso e incrédulo. Quando concluí minha narrativa, disse: — Esse é o indivíduo que acuso. Peço que seja preso e punido com o máximo rigor possível. É seu dever como juiz, acredito e espero que ele seja cumprido. Essa declaração causou grande mudança na fisionomia do meu interlocutor. Havia escutado meu relato com a boa vontade desconfiada que se dedica a uma história de fantasmas ou almas do outro mundo, mas, quando foi convocado a agir oficialmente, a incredulidade pareceu tomar conta de sua expressão. Contudo, respondeu com suavidade: — Dedicarei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo em sua busca. Mas essa criatura da qual o senhor fala parece ter poderes que

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desafiam minha capacidade. Quem seria capaz de seguir um animal que pode atravessar o mar de gelo e sobreviver em cavernas e grutas onde nenhum homem ousa entrar? Além disso, já se passaram vários meses desde que os crimes foram cometidos, e não há como saber por onde ele vagou nem em que região está vivendo. — Tenho certeza de que se esconde perto de onde vivo, e, se seu refúgio for mesmo nos Alpes, podemos caçá-lo como se fosse um carneiro selvagem. Mas entendo seu raciocínio, o senhor não dá crédito à minha narrativa e não pretende perseguir meu inimigo para puni-lo como merece. Enquanto falava, fui tomado pela raiva. O juiz intimidou-se: — O senhor está errado — respondeu. — Vou me empenhar, e, se estiver ao meu alcance capturar o monstro, tenha certeza de que ele sofrerá punição de acordo com os crimes cometidos. O meu temor, baseado no seu próprio relato, é que isso se revele impraticável, e dessa forma, mesmo que todas as medidas adequadas sejam tomadas, o senhor deve estar preparado para uma eventual decepção. — Não pode ser assim, mas nada que eu diga terá qualquer ser­ ventia. Minha vingança nada significa para o senhor. O senhor se recusa a atender a um pedido justo. Só me resta entregar-me de corpo e alma a destruir essa criatura. Tremia de agitação ao dizer isso. Havia um certo frenesi em minha atitude. O juiz interpretou esse comportamento como uma aparente loucura. Tentou acalmar-me como uma enfermeira faria com uma criança, e ficou convencido de que tudo que eu dissera fora fruto do delírio. — Homem! — gritei. — Do que adianta parecer tão sábio se não consegue entender nada? Zangado e perturbado, saí da casa, retirando-me para refletir sobre outras formas de agir.

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CAPÍTULO 7 198

Encontrava-me em um estado em que todos os meus pensamentos pareciam perdidos e desorganizados. Estava tomado pela fúria. Apenas o desejo por vingança restaurava minha força e disposição, moldando meus sentimentos e permitindo que pensasse de forma fria e racional em momentos que, de outra maneira, seriam tomados por delírios. Minha primeira decisão foi deixar Genebra em definitivo. Minha terra natal, que nos momentos felizes era tão querida, passara a ser odiada nos momentos de desespero. Reuni certa quantia de dinheiro, além de algumas joias que pertenceram à minha mãe, e parti. Assim teve início minha jornada, que só terminará junto com a minha vida. Já percorri um longo caminho e enfrentei todas as adversidades suportadas pelos viajantes em desertos e em países bárbaros. Nem sei como sobrevivi. Muitas vezes estirei-me no chão arenoso e rezei para morrer. Mas a vingança manteve-me vivo. Não ouso morrer e deixar meu inimigo existir. Quando deixei Genebra, minha primeira tarefa foi encontrar alguma pista sobre os passos do meu inimigo monstruoso. Mas não sabia por onde começar e vaguei por várias horas pelos arredores da cidade sem saber que caminho tomar. Quando a noite chegou, estava perto da entrada do cemitério onde repousam meu pai, William e Elizabeth. Entrei e aproximei-me da tumba onde estão seus túmulos. Tudo estava em silêncio, exceto as folhas das árvores, que o vento agitava com

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suavidade. A noite era escura e o ambiente seria solene e comovente mesmo para algum observador desinteressado. O luto profundo logo deu lugar à fúria e ao desespero. Estavam todos mortos, e eu vivia. Seu assassino também vivia, e só para destruí-lo eu insistia naquela penosa existência. Ajoelhei-me na grama e beijei o solo. Com os lábios tremendo, exclamei: — Por tudo o que é mais sagrado, pelas sombras que me cercam, pelo luto profundo e doloroso que sinto, eu juro que perseguirei o monstro que causou toda essa tristeza, até que um de nós dois tombe em conflito mortal. Que o maldito monstro seja afogado pela agonia, que ele sinta o desespero que me atormenta! Comecei esse juramento de forma solene e reverente, porém, quando terminei, a fúria tomara conta de mim. Recebi como resposta uma gargalhada alta e cruel cortando o silêncio da noite. Ela bateu com força em meus ouvidos e depois ecoou nas montanhas ao redor. Senti-me rodeado por riso e deboche. Naquele momento eu devia ter sido possuído por um frenesi e destruído minha triste existência, mas fizera um juramento e estava comprometido com a vingança. A risada foi morrendo até que uma voz repugnante e conhecida se dirigiu a mim, baixinho, como se falasse ao meu ouvido. — Estou satisfeito, desgraçado infeliz! Decidiu viver, e isso me satisfaz! Pulei para o local de onde viera o som, mas o monstro esquivou-se. De repente a lua surgiu inteira no céu e iluminou sua forma medonha e distorcida enquanto ele corria numa velocidade sobre-humana. Saí em sua perseguição e durante meses essa foi minha tarefa. Seguindo uma pista frágil, percorri cada curva do rio Reno, em vão. Assim que cheguei ao Mediterrâneo, por um estranho acaso, vi meu inimigo, à noite, entrando clandestinamente em uma embarcação rumo ao mar Negro. Comprei passagem no mesmo navio, mas ele escapou, não sei como. Segui sua trilha através das regiões selvagens da Tartária e da Rússia, mas ele sempre conseguia fugir. Algumas vezes, os camponeses, aterro-

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rizados por sua aparência horrível, informavam-me sobre seus passos. Em outras ocasiões, ele mesmo, receoso de que perdesse sua trilha, entrasse em desespero e me matasse, deixava alguma pista para me guiar. Eu seguia, sempre que possível, o curso dos rios. Mas o monstro costumava evitar esse caminho, pois era ali que se reunia a maior parte das pessoas. Em outros lugares era raro avistar algum ser humano, e, em geral, minha subsistência era à base de pequenos animais que cruzavam meu caminho. Levava dinheiro comigo, e ganhava a simpatia dos camponeses ao distribuí-lo. Ou então, trazia parte do que havia caçado como presente para aqueles que me forneciam abrigo. Era uma vida detestável, e apenas durante o sono encontrava alguma alegria. Sono abençoado! Com frequência, nos momentos de maior tristeza, deitava-me para descansar e meus sonhos chegavam a me encantar. Essas breves horas de felicidade eram essenciais para restaurar em mim a energia necessária para terminar minha peregrinação. Privado dessas tréguas, teria sucumbido ao sofrimento. Durante o dia eu era sustentado e inspirado pela esperança da noite. Pois nos sonhos eu via meus amigos, minha esposa e meu amado país. Via mais uma vez a expressão bondosa de meu pai, ouvia o tom melodioso da voz de Elizabeth e contemplava Clerval cheio de saúde e juventude. Muitas vezes, ao enfrentar algum trecho mais penoso, convencia a mim mesmo de que aquilo era apenas um sonho e que quando a noite chegasse eu poderia compartilhar a vida real com meus amigos mais queridos. Esse amor é tão intenso que muitas vezes chegou a tomar o lugar ocupado pelo desejo de vingança no meu coração. Nesses momentos eu perseguia a destruição do meu inimigo mais como um impulso mecânico, movido por algum poder desconhecido e não por algum desejo ardente da minha alma. Não tinha como saber quais seriam os sentimentos de quem eu perseguia. Às vezes, contudo, ele deixou sinais escritos, fosse raspando a casca das árvores ou gravando em pedras. Esses sinais serviam para me guiar e me enfureciam. Em uma dessas inscrições ele escreveu: “Meu reinado não terminou. Você está vivo e meu poder é absoluto.

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Siga-me. Dirijo-me aos gelos eternos do norte, onde você experimentará o tormento do frio e da neve, que não me incomodam. Aqui perto você encontrará, se não estiver atrasado demais, uma lebre morta. Coma um pouco e reanime-se. Venha, meu inimigo, lutaremos até a morte, mas até lá você ainda enfrentará muita dificuldade e tristeza”. Monstro debochado! Mais uma vez jurei vingança. Nunca desistirei da minha busca, até que um de nós dois deixe de existir. Como a perseguição prosseguia rumo ao norte, a neve engrossou e o frio chegou a um ponto difícil de suportar. Os rios estavam cobertos de gelo e era impossível pescar. Assim, fiquei privado da minha principal fonte de subsistência. O triunfo do meu inimigo aumentava com a minha dificuldade. Uma das inscrições deixadas dizia: “Prepare-se! Sua faina apenas começou. Cubra-se com peles, providencie alimento, pois vamos iniciar uma jornada na qual seus sofrimentos servirão para satisfazer meu ódio eterno”. Minha coragem e perseverança foram revigorados por essas palavras debochadas. Resolvi que não podia falhar e segui em frente com um fervor inabalável. Atravessei desertos imensos, até que o oceano surgiu ao longe, tomando todo o horizonte. Era uma superfície coberta de gelo, rugosa e acidentada, muito diferente do mar azul do sul! Ajoelhei-me e agradeci, de todo o coração, aos espíritos que me guiaram em segurança até ali. Algumas semanas antes, eu havia arranjado um trenó e cachorros, e assim viajei sobre a neve com uma velocidade muito maior. Não sei se o monstro tinha o mesmo recurso, mas descobri que, se antes eu perdia terreno todos os dias, passei a ganhar, tanto que quando vi o oceano esta­ va apenas um dia atrasado. Cheguei a acreditar que poderia interceptá-lo antes que chegasse à praia. Com coragem renovada, apressei-me e dois dias depois cheguei a uma aldeia miserável no litoral. Perguntei aos locais sobre o meu inimigo e consegui informações precisas. Um monstro gigantesco, disseram, chegara na noite anterior e, armado com um rifle e várias pistolas, afugentara os moradores de uma cabana isolada com

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sua aparência medonha. Pegou todo o estoque de suprimentos para o inverno e encheu um trenó ao qual prendeu vários cães. Na mesma noite, para alívio dos habitantes da aldeia, prosseguiu jornada pelo gelo mar adentro numa direção que não levava a terra alguma. Imaginavam que devia logo ter sido engolido por alguma fenda no gelo. Ao ouvir isso, tive um breve ataque de desespero. Ele havia escapado e eu precisaria lançar-me em uma jornada destrutiva e interminável pelas montanhas de gelo do oceano. Nativo de uma terra ensolarada, eu teria que enfrentar um frio que poucos habitantes do local suportariam. Minhas esperanças de sobrevivência eram mínimas. Mas, ao pensar que meu inimigo viveria em triunfo, a raiva e o desejo de vingança voltaram e, como uma maré poderosa, varreram qualquer outro sentimento para longe. Após um breve repouso, preparei-me para a jornada. Troquei meu trenó por outro preparado para o terreno irregular do ocea­no congelado. Depois de comprar um estoque reforçado de provisões, parti mar adentro. Não faço ideia de quantos dias se passaram desde então. Só pude suportar todas as privações que experimentei porque em meu coração ardia a vontade de fazer justiça. Muitas vezes meu caminho foi barrado por imensas e escarpadas montanhas de gelo, e com frequência ouvi o ronco do mar sob o gelo, ameaçando me destruir. Mas o frio intenso chegava e os caminhos sobre o mar ficavam mais seguros. A partir dos suprimentos que consumi, imagino ter viajado durante três semanas. Aos poucos, o desespero foi tomando conta de mim e eu estava quase afundando sob a tristeza. Uma vez, depois que os cães que me puxavam conseguiram alcançar com muito esforço o cume de uma encosta gelada, um deles caiu morto de exaustão. Eu olhava para a vastidão à minha frente com angústia quando de repente meus olhos notaram um pontinho escuro na planície desolada. Apertei a vista para descobrir do que se tratava e não pude conter um grito entusiasmado quando distingui um trenó levando uma figura disforme conhecida. Isso fez a esperança voltar com força ao meu coração.

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Mas não podia perder tempo. Livrei os cães do seu companheiro morto, dei-lhes uma boa ração de comida e, depois de uma hora de descanso absolutamente necessária apesar de irritante, retomei minha viagem. O trenó ainda era visível e eu só o perdia de vista por breves períodos, quando algum bloco de gelo o escondia. Na verdade era evidente que eu ganhava terreno, até que depois de quase dois dias de viagem enxerguei meu inimigo a menos de dois quilômetros. Meu coração não cabia dentro do peito. Mas, justo quando parecia que ele estava ao meu alcance, perdi qualquer traço seu, e minhas esperanças desapareceram de repente. Ouvi o mar roncar como um trovão cada vez mais sinistro enquanto sentia as ondas ao meu redor e debaixo do gelo sob os meus pés. Apressei-me, em vão. O vento ficou mais forte, e o mar rugiu cada vez mais forte até que, como se fosse um terremoto, o gelo partiu-se com um som tremendo e atordoante. Tudo aconteceu em menos de cinco minutos. Estava separado de meu inimigo por um mar agitado, à deriva sobre um bloco de gelo, que diminuía sem parar, reservando-me uma morte medonha. Muitas horas apavorantes passaram-se e vários dos meus cães morreram. Eu mesmo estava a ponto de sucumbir a toda essa agonia quando vi sua embarcação ancorada e renovei minhas esperanças. Não sabia que navios vinham tão ao norte e fiquei espantado com a visão. Destruí parte do trenó para servir como remo e dessa forma, com imenso esforço, consegui mover meu bloco de gelo em sua direção. Caso vocês viajassem em direção ao sul, estava determinado a entregar-me aos humores do oceano em vez de abandonar minha missão. Nesse caso, pretendia convencê-los a ceder-me um bote no qual eu pudesse perseguir meu inimigo. Mas dirigiam-se ao norte. Quando me trouxe a bordo, minhas forças estavam esgotadas. Em breve as dificuldades que eu enfrentava levariam a uma morte que eu ainda temo, pois minha tarefa não foi cumprida. Ai! Quando será que conseguirei alcançar o monstro para ter o descanso que tanto desejo? Ou será que morrerei, deixando-o vivo? Se isso acontecer, Walton, ele não pode escapar, prometa-me que vai caçá-lo

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até que sua morte satisfaça meu desejo de vingança. Mas como posso ousar pedir que assuma minha peregrinação e enfrente as dificuldades que suportei? Não, não sou tão egoísta. Mas, se eu estiver morto e ele aparecer, se o destino vingador o trouxer até você, jure que ele não ficará vivo. Prometa-me que ele não triunfará sobre meu sofrimento nem sobreviverá para continuar com seus crimes. Ele é eloquente e persuasivo, e suas palavras maliciosas e traiçoeiras já conseguiram me convencer uma vez, mas não confie nele. Não lhe dê ouvidos. Pense no destino de William, Justine, Clerval, Elizabeth, meu pai e deste arruinado Victor, e enfie sua espada no coração dele. Estarei por perto e guiarei o golpe para que seja perfeito.

Walton continua: 26 de agosto de 17... Você leu esta história estranha e terrível, Margaret. Não sente seu sangue congelar de horror, assim como o meu congela agora? Algumas vezes, tomado pela agonia, ele não conseguia continuar. Outras vezes sua voz chegava a tremer, e era com dificuldade que pronunciava as palavras em agonia. Quando suas emoções finalmente eram controladas, sua voz relatava os eventos mais terríveis com tranquilidade, suprimindo qualquer traço de agitação. Então, como um vulcão em erupção, seu rosto alterava-se de repente e assumia uma expressão furiosa e selvagem, enquanto gritava impropérios sobre seu inimigo. Sua história parece coerente e foi contada como a mais pura verdade. Mas confesso que as cartas de Félix e Safie, que ele me mostrou, e a visão do monstro passando ao longe, trouxeram-me mais convicção sobre a verdade da narrativa do que suas afirmações, apesar destas terem sido seguras e coerentes. Pois esse monstro existe de verdade! Não posso duvidar disso, por mais surpreso e admirado que esteja. Tentei algumas vezes

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arrancar de Frankenstein os detalhes de como deu vida à criatura, mas nesse ponto ele foi irredutível. — Meu amigo está maluco? — ele disse. — Até onde essa curiosidade insensata pode levá-lo? Você também traria ao mundo um inimigo monstruoso? Paz, peço paz! Aprenda com meu sofrimento e não procure aumentar o seu. Frankenstein descobriu que eu fazia anotações sobre sua história. Pediu para dar uma olhada, e ele próprio corrigiu e acrescentou informações em muitos trechos. Foi ele quem deu vida e personalidade aos diálogos mantidos com a criatura. — Já que preservou minha narrativa — disse —, não deve ser uma versão mutilada. Uma semana se passou, comigo escutando a história mais estranha jamais imaginada. Meus pensamentos e cada sentimento da minha alma foram sugados pelo interesse acerca de meu hóspede. Gostaria de confortá-lo, mas como é possível acalmar alguém tão triste e sem esperanças? Nossas conversas não estão restritas à sua história e seus infortúnios. Ele demonstra conhecimento a respeito de cada aspecto da literatura em geral. Sua eloquência é convincente e inspiradora. Que pessoa maravilhosa deve ter sido em seus dias de prosperidade, sendo tão nobre em sua desgraça! — Quando eu era mais jovem — disse —, acreditava estar destinado a realizar algum grande feito. Quando penso sobre o que fiz, nada menos que a criação de um animal inteligente e sensível, não posso me julgar alguém comum. Mas esse pensamento, que me impulsionou no começo da minha carreira, agora serve apenas para me puxar para mais fundo. Desde a minha infância eu sempre fui cheio de esperança e ambição, e veja como estou agora. Ai, meu amigo, se me conhecesse como fui, nunca me reconheceria neste estado degradado. O desânimo raramente era meu companheiro, até que caí para nunca mais me levantar. Esperei tanto tempo por um amigo e fui encontrar um nestes mares desertos. Mas receio que o encontrei apenas para conhecer seu valor e perdê-lo. Se pudesse, eu o reconciliaria com a vida, mas ele não admitiu a ideia.

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— Agradeço, Walton — ele disse —, por suas gentis intenções para com alguém tão desgraçado. Mas preciso perseguir e destruir a criatura a quem dei a vida. Então terei realizado minha missão aqui e poderei morrer. 2 de setembro Minha querida irmã, Escrevo-lhe cercado pelo perigo e sem saber se algum dia verei de novo minha cara Inglaterra e os amigos queridos que aí vivem. Estamos rodeados por montanhas de gelo que não oferecem rotas de fuga e ameaçam a todo instante esmagar nossa embarcação. Meus valentes camaradas olham para mim procurando ajuda, mas não posso fazer nada. Há algo de aterrorizante em nossa situação, mas não perdi nem a esperança nem a coragem. Mesmo assim é terrível refletir sobre como a vida de todos esses homens está ameaçada por minha causa. Se o pior acontecer, será devido aos meus planos loucos. Margaret, imagino qual será o seu estado de espírito. Você não terá notícias sobre minha destruição e ficará aguardando ansiosa pelo meu retorno. Anos se passarão e você será visitada pelo desespero e torturada pela esperança. Ai, minha querida irmã! Pensar na angústia que você sofrerá é, em perspectiva, muito mais terrível que minha própria morte. Mas você tem um marido e crianças adoráveis, e pode ser feliz. Meu hóspede infeliz me observa com compaixão e faz de tudo para me encher de esperança, falando da vida como algo valioso. Lembra-me que os mesmos perigos ameaçaram outros navegadores que se aventuraram por estes mares e, apesar do meu estado de espírito, consegue levantar meu ânimo. Até os marinheiros sentem a força de seu discurso e ficam menos desesperados quando ele fala, renovando sua força. Quando ouvem sua voz, parecem acreditar que as montanhas de gelo são montinhos de areia que não podem resistir à nossa vontade. Esses sentimentos são passageiros, e cada dia de espera traz de volta o medo e já temo que o desespero cause um motim.

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5 de setembro Acabou de acontecer algo tão excepcional que, mesmo que não acredite que estes papéis chegarão às suas mãos, não posso deixar de fazer o registro. Continuamos rodeados por montanhas de gelo, vivendo em perigo iminente de ser esmagados. O frio é extremo, e muitos dos meus companheiros já encontraram a morte. A saúde de Frankenstein piora a cada dia. Seu olhar ainda é ardente, mas parece exausto e sempre que fica agitado por algum motivo, logo afunda em um desânimo profundo. Comentei em minha última carta sobre meu medo que ocorra um motim. Esta manhã, enquanto observava a palidez do meu amigo, com os olhos quase fechados e os braços caídos, fui surpreendido por meia dúzia de marinheiros que exigiam ter acesso ao meu camarote. Entraram, e seu líder dirigiu-se a mim. Contou-me que ele e seus companheiros haviam sido escolhidos pelo resto da tripulação para virem até mim, em comissão, fazer-me um pedido, que, sendo justo, eu não poderia recusar. Estávamos emparedados pelo gelo, e era provável que não tivéssemos escapatória. Mas temiam que, caso o gelo quebrasse e uma passagem fosse aberta, eu fosse imprudente o bastante para prosseguir minha jornada, levando-os a novos perigos. Dessa maneira, insistiam que eu fizesse uma promessa solene de que, caso o navio voltasse a navegar, rumaríamos em direção ao sul. Essas palavras me perturbaram. Não havia perdido as esperanças e não pensava em desistir, caso conseguisse sair dali. Mas como poderia recusar o pedido? Hesitei antes de responder. Foi quando Frankenstein, que a princípio se mantivera em silêncio, e, na verdade, parecia sem forças para reagir, levantou-se. Seus olhos brilhavam e suas bochechas ficaram coradas com um vigor momentâneo. Voltando-se para os homens, disse: — Mas o que é isso? O que pedem ao seu capitão? Desistem tão fácil assim? Não chamavam esta viagem de uma gloriosa expedição? Por que é gloriosa? Com certeza não é porque seria tão calma e suave como os mares do sul, mas porque seria cheia de perigos e terror. É gloriosa porque a cada novo incidente sua força moral será posta à prova e sua coragem se fará

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necessária para que sejam lembrados como homens valentes que encontraram a morte em busca da honra e em prol da humanidade. Mas agora, olhem só, ao primeiro sinal de perigo, ou, se preferem, diante do primeiro teste terrível e poderoso a desafiar sua coragem, encolhem-se e se contentam em ser lembrados como homens que não tiveram força suficiente para enfrentar o rigor do inverno e as privações. Pobres almas, ficaram com frio e voltaram para junto de sua lareira. Não precisavam viajar até tão longe só para impor a vergonha da derrota ao seu capitão e provar que são covardes. Sejam homens! Mantenham-se firmes como uma rocha em seus propósitos. Este gelo não é feito do mesmo material do qual seu coração pode ser feito e não pode superá-los se vocês não o permitirem. Não voltem para sua família com essa marca da vergonha na testa. Voltem como heróis que lutaram e venceram, e que não sabem o que é virar as costas para o inimigo. A entonação de sua voz ia mudando conforme os diversos sentimentos que sua fala expressava. Seu olhar era tão heroico e sublime que os homens se comoveram. Entreolharam-se e foram incapazes de contestar qualquer coisa. Mandei que se retirassem e pensassem sobre o que havia sido dito. Eu não os levaria mais ao norte se desejassem o contrário, mas tinha esperança de que sua coragem voltaria após um pouco de reflexão. Retiraram-se, e voltei-me para o meu amigo, mas ele fora vencido pelo cansaço e caíra desmaiado. Não sei como tudo isso terminará. Mas preferiria morrer a voltar para passar vergonha sem ter alcançado meu objetivo. No entanto, creio que esse será meu destino. Os homens não compartilham dos mesmos ideais de honra e glória e não vão querer continuar enfrentando todo este sofrimento. 7 de setembro A sorte está lançada. Concordei em retornar se não formos destruídos. Assim, morrem minhas esperanças, golpeadas pela covardia. Volto ignorante e desapontado. Para suportar essa injustiça com paciência eu precisaria possuir muito mais sabedoria do que tenho.

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12 de setembro Tudo acabou. Estamos voltando para a Inglaterra. Perdi minhas esperanças de ser útil e alcançar a glória. Perdi meu amigo. Vou contar-lhe todos os detalhes amargos, querida irmã, e não desanimarei nesta minha viagem ao seu encontro. No dia 9 de setembro, o gelo começou a mover-se e roncos que pareciam trovões eram ouvidos ao longe, enquanto as ilhas se rachavam e quebravam ao meio por todos os lados. O perigo era iminente, mas, como não havia muito o que fazer, minhas atenções estavam voltadas para o meu hóspede infeliz. Sua saúde piorara tanto que precisava ficar deitado o tempo todo. O gelo rachou atrás de nós e foi empurrado com força em direção ao norte. Uma brisa soprou do oeste, e no dia 11 abriu-se uma passagem rumo ao sul. Quando os marinheiros a viram e perceberam que seu retorno para casa parecia assegurado, um grito de alegria ecoou por todo o navio. Frankenstein, que estava cochilando, acordou e quis saber a causa do tumulto. — Gritam — respondi — porque logo estarão voltando para a Inglaterra. — Então você vai mesmo voltar? — Infelizmente vou. Não posso recusar seu pedido, não posso forçá-los a rumar em direção ao perigo e preciso voltar. — Faça assim, se este for o seu desejo, mas eu não voltarei. Você pode desistir do seu objetivo, mas o meu destino está traçado e não posso lutar contra ele. Estou fraco, mas com certeza minha sede de vingança me trará forças suficientes. Disse isso enquanto tentava se levantar da cama, mas o esforço foi grande demais, e ele caiu deitado e desmaiou. Passou algum tempo até que recobrasse os sentidos e muitas vezes pensei que não sobreviveria. Afinal ele abriu os olhos. Respirava com dificuldade e não conseguia falar. O médico deu-lhe um calmante e mandou que o deixássemos descansar. Em seguida me disse que meu amigo tinha poucas horas de vida.

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Ao ouvir isso, só me restou lamentar e ter paciência. Sentei ao lado da cama, em vigília. Seus olhos estavam fechados, e achei que dormisse, mas ele me chamou com a voz fraca e, fazendo um sinal para que eu me aproximasse, disse: — Acabou-se toda a força que eu tinha. Sinto que morrerei logo, enquanto meu inimigo pode continuar existindo. Não pense, Walton, que passei meus últimos momentos sentindo ódio e desejando vingança. Mas tenho motivos para desejar a morte do meu adversário. Durante os últimos dias ocupei-me de refletir sobre minha conduta no passado. Não acho que seja merecedor de censura. Num acesso de loucura entusiasmada criei um ser racional, e era minha obrigação tentar assegurar-lhe felicidade e bem-estar como fosse possível. Mas havia outro dever ainda mais importante. Meu compromisso com a humanidade tinha prioridade, porque envolvia uma porção muito maior de felicidade e tristeza. Movido por essa visão, recusei-me, com razão, a criar uma companheira para a primeira criatura. Esse monstro demonstrou maldade e egoísmo sem iguais. Destruiu meus amigos, pessoas sensíveis e felizes. Não faço ideia até onde chegará sua sede de vingança. Para não causar outras tragédias, esse desgraçado deve morrer. A tarefa de destruí-lo era minha, mas falhei. Movido pelo egoísmo e pelo rancor, pedi-lhe que terminasse minha tarefa inacabada e renovo o pedido agora, sob influência da razão e da virtude. “Mas não posso lhe pedir para renunciar ao seu país ou aos seus amigos só para cumprir essa tarefa. Ao voltar para a Inglaterra, é improvável que tenha chance de encontrá-lo. Mas deixo ao seu critério considerar todos os aspectos tendo em vista seus compromissos. Minha razão e minhas ideias já estão afetadas pela proximidade da morte. Fico perturbado ao pensar que ele possa continuar vivendo para fazer maldades. Por outro lado, finalmente, perto do momento da libertação, sinto um pouco de alegria que não sentia há anos. Adeus, Walton! Procure a felicidade na tranquilidade e evite a ambição, mesmo que seja apenas a singela vontade de destacar-se na ciência. Por que digo isso? Porque tive minha vida destruída, mas outros podem ter sucesso.”

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Sua voz foi ficando mais fraca até que, exausto pelo esforço, ele ficou em silêncio. Cerca de meia hora depois tentou falar de novo, mas não conseguiu. Apertou suavemente minha mão e seus olhos fecharam-se para sempre, enquanto seus lábios esboçavam um sorriso gentil. Margaret, o que posso dizer sobre o fim desse espírito glorioso? O que poderia ser dito para explicar o tamanho da minha tristeza? Tudo o que eu dissesse seria impróprio e insuficiente. Minhas lágrimas escorrem, e minha mente está tomada pelo desapontamento. Mas viajo rumo à Inglaterra, onde poderei encontrar consolo. Estou sendo interrompido. O que significam esses sons? É meia-noite, a brisa é favorável e o turno do convés não tem o que fazer. Ouço mais uma vez uma voz rouca. Vem do camarote onde repousa o cadáver de Frankenstein. Preciso conferir o que está acontecendo. Boa noite, minha irmã. Por Deus! O que acabo de ver? Ainda estou confuso ao lembrar. Nem sei se serei capaz de descrever em detalhes, mas tudo o que contei estaria incompleto sem essa assombrosa catástrofe final. Entrei no camarote onde estavam os restos mortais do meu admirável amigo. Sobre ele inclinava-se uma figura que não tenho como descrever. Gigantesco em estatura, porém desajeitado. Enquanto estava debruçado sobre o caixão, seu rosto escondia-se por trás de longas mechas de cabelo despenteado. Estendia uma mão que parecia a de uma múmia, tanto na cor como na textura. Ao ouvir minha aproximação, deu um salto para perto da janela. Nunca vi nada tão horroroso e repugnante como seu rosto. Fechei os olhos, por reflexo. Fazendo um esforço para me lembrar do que aquele criminoso merecia, pedi que ficasse. Parou, olhando para mim assombrado, e, voltando a virar-se em direção ao corpo sem vida do seu criador, pareceu esquecer minha presença. Cada um dos seus gestos e expressões parecia movido por uma fúria selvagem. — Ele também foi uma das minhas vítimas! — gritou. — Com a sua morte meus crimes estão terminados e minha existência miserável pode ter um fim! Ai, Frankenstein, quem poderia imaginar que eu iria lhe pedir

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perdão? Logo eu, que, para destruí-lo, destruí todas as pessoas que você amava. Que pena, ele está frio, não pode me responder. Sua voz parecia sufocada, e meu primeiro impulso, que seria cumprir a missão de atender ao derradeiro pedido do meu amigo, deu lugar à curiosidade e à compaixão. Aproximei-me daquele ser medonho. Não ousei levantar o olhar para seu rosto, havia algo apavorante demais em sua feiura. Tentei falar, mas as palavras não saíram da minha boca. O monstro continuou a se recriminar com sons selvagens e incoerentes. Numa pausa entre essas tempestades apaixonadas, decidi dirigir-me a ele: — Seu arrependimento agora não serve para nada. Se tivesse ouvido a voz da sua consciência em vez de levar sua vingança a esse extremo, Frankenstein estaria vivo. — O que está pensando? — disse o monstro. — Pensa que não sentia remorso ou aflição? Apontou para o cadáver e continuou: — Ele não sofreu nem um milésimo do que eu penei todo esse tempo. Enquanto meu coração sofria com o remorso, o egoísmo movia-me adiante. Você pensa que os gemidos de Clerval foram música para os meus ouvidos? Meu coração foi moldado para ser sensível ao amor e à compaixão. Quando foi arrastado pela tristeza para a maldade e o ódio, a violência dessa mudança foi uma tortura mais dolorosa do que pode imaginar. Depois de matar Clerval, voltei para a Suíça, abatido e com o coração despedaçado. Tinha pena de Frankenstein e minha piedade transformou-se em horror. Passei a sentir nojo de mim mesmo. Mas então descobri que ele, o responsável por minha existência e meus tormentos, ousava buscar a felicidade em sentimentos e paixões que me foram negados. Uma inveja impotente e uma indignação amarga tomaram conta de mim e me encheram de uma sede insaciável de vingança. Lembrei-me da amea­ça que havia feito e decidi que devia cumpri-la. Sabia que estava preparando uma tortura mortal para mim mesmo, mas eu era o escravo, e não o senhor, de um impulso que eu detestava mas precisava obedecer. Mas, quando ela morreu, não me sentia mais triste. Estava livre de

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qualquer sentimento e controlara toda a angústia. A maldade tornou-se minha guia. Já tinha ido muito longe, minha única opção era adaptar a minha maneira de ser. A realização do meu projeto diabólico tornou-se uma paixão insaciável. Agora terminei. Eis a minha última vítima! No início eu me sensibilizei com sua desgraça. Mas, quando me lembrei do que Frankenstein dissera sobre sua eloquência e poder de persuasão e quando olhei de novo para a forma sem vida do meu amigo, a indignação renasceu dentro de mim. — Maldito! — eu disse. — Vem até aqui para chorar sobre a desgraça que causou. Jogou uma tocha sobre uma pilha de escombros e, quando estes estão consumidos pelo fogo, senta em volta das ruínas e lamenta a tragédia. Monstro hipócrita! Se aquele por quem você chora estivesse vivo, ele continuaria sendo o alvo de sua vingança maldita. Não é pena o que você sente. Lamenta-se apenas porque a vítima da sua maldade está fora do seu alcance. A criatura me interrompeu: — Isso não é verdade. Ainda que minhas ações tenham lhe causado essa impressão. Não estou procurando apoio nem acho que encontrarei simpatia. No início, eu queria fazer parte desse mundo onde existe amor, felicidade e afeto. Mas agora que o amor se tornou uma sombra e a felicidade e o afeto transformaram-se em amargura e desespero desprezível, onde posso encontrar solidariedade? Estou conformado em sofrer sozinho, enquanto durar o sofrimento. Quando morrer, sei que só deixarei lembranças de ódio e vergonha. Cheguei a sonhar com a virtude e a diversão. Tive falsas esperanças de que poderia encontrar seres que me amariam pelas qualidades positivas que era capaz de revelar, a despeito de minha aparência exterior. Fui alimentado por elevados pensamentos de honra e devoção. Mas agora o crime se tornou o pior dos animais. Não há culpa, ofensa, maldade ou desgraça que possam ser comparadas às minhas. Quando lembro de todos os meus pecados, não posso acreditar que sou aquela mesma criatura que um dia teve pensamentos repletos de visões sublimes sobre a beleza e a bondade. Mas é assim mesmo: o anjo caído

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torna-se o demônio maligno. Até o inimigo de Deus e da humanidade tem amigos e parceiros em sua desolação. Mas eu estou só. “Você, que chama Frankenstein de amigo, parece conhecer meus crimes e infortúnios. Mas por mais detalhes que ele tenha lhe contado, não teria como contar todos os dias e meses de tristeza que enfrentei, gastos com paixões inúteis. Pois, apesar de ter exterminado suas esperanças, não pude satisfazer meus próprios desejos. Estes sempre foram ardentes e ansiosos, mas, por mais que eu desejasse amor e afeição, sempre fui rejeitado. Isso não é injusto? Sou o único criminoso enquanto a humanidade toda peca contra mim? Por que você não odeia Félix, que expulsou um amigo porta afora com ofensas? Por que não odeia o camponês que tentou matar aquele que salvou sua filha? Não, esses são seres virtuosos e imaculados! Eu, o miserável e abandonado, sou um monstro, que deve ser rejeitado, chutado e pisoteado. Até hoje meu sangue ferve quando me lembro dessas injustiças.” A criatura continuou: — Mas é verdade que sou uma desgraça. Matei pessoas adoráveis e indefesas. Estrangulei um inocente enquanto dormia e apertei a garganta de quem nunca me machucou ou causou mal a qualquer outro ser vivo. Trouxe infelicidade ao meu criador, alguém merecedor de todo o amor e admiração, perseguindo-o até sua ruína total. Aqui ele jaz, pálido e frio. Você me odeia, mas sua repugnância não tem comparação com a que sinto por mim mesmo. Olho para as mãos que fizeram tudo isso e penso em como pude planejar tudo e mal posso esperar pelo momento em que não possa ver nem pensar em mais nada. “Não há o que temer, não cometerei mais nenhuma maldade. Minha missão está quase completa. Para terminar minha tarefa não será preciso matar você ou algum dos seus homens. A minha morte será o bastante. Não pense que demorarei a fazer esse sacrifício. Deixarei seu navio no bloco de gelo que me trouxe até aqui e irei o mais longe que puder ao norte. Lá prepararei minha pira funerária, onde queimarei este corpo desgraçado, de forma que meus restos não despertem a curiosidade de

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nenhum desavisado que possa resolver dar vida a outra criatura semelhante. Devo morrer. Não posso mais suportar a agonia que me consome nem ser vítima de desejos não atendidos. Quem me criou está morto, e, quando eu não existir mais, qualquer lembrança de nós dois logo desaparecerá. Nunca mais verei o sol ou as estrelas, nem sentirei o vento em minha face. Luz, sentimentos e sentidos me deixarão, e assim encontrarei minha felicidade. Alguns anos atrás, quando as imagens que esse mundo oferece apareceram para mim pela primeira vez, quando senti o calor agradável do verão, ouvi o farfalhar das folhas e o canto dos pássaros, eu poderia chorar diante da morte. Agora ela é o meu único consolo. Manchado pelos crimes e devastado pelo remorso mais amargo, onde posso encontrar descanso a não ser na morte? “Adeus! Deixo-lhe agora, e você será o último ser humano que estes olhos verão. Adeus, Frankenstein! Se você vivesse e ainda alimentasse o desejo de vingança, este estaria mais satisfeito com a minha sobrevivência do que com a minha destruição. Mas não foi assim. Procurou acabar comigo para que eu não causasse mais tragédias, mas, se tivesse desistido por algum motivo desconhecido, teria alcançado uma vingança muito maior do que a tristeza que sinto agora. Por mais que tenha sofrido, minha agonia terá sido maior, pois o remorso continuará cutucando minhas feridas até que a morte acabe com elas para sempre.” Com entusiasmo triste e solene, ele gritou: — Mas morrerei logo, e o que sinto agora não será mais sentido. Logo esta tristeza que arde estará extinta. Subirei na minha pira em triunfo e ficarei exultante com as chamas torturantes. A luz dessa fogueira se apagará, e as cinzas serão varridas pelos ventos para o mar. Meu espírito repousará em paz. Adeus. Pulou pela janela do camarote enquanto dizia isso, direto para o bloco de gelo que estava junto do navio. Logo foi levado para longe pelas ondas, sumindo ao longe na escuridão.

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AS APARÊ

ENGAN Quando eu era criança, minha relação com Frankenstein foi moldada pelas referências da cultura pop, principalmente por meio de desenhos animados e séries de TV. Nessas histórias, a criatura disforme aparecia entre monstros, como múmias, vampiros e lobisomens. Depois, na juventude, assisti a um filme dirigido por Mel Brooks e estrelado por Gene Wilder que contava a história de um neto do Dr. Frankenstein original. Acho que foi nessa época que comecei a entender que a criatura não se chamava Frankenstein e que este era o nome do criador daquele ser medonho.

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RÊNCIAS

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ANAM Agora, depois de ler o texto original e trabalhar nesta adaptação, fico pensando sobre minhas percepções originais, construídas com todas essas referências. De certa forma eu sabia que a criatura lidava com sentimentos ambíguos, como com­paixão e ressentimento, amor e desprezo. Achei muito interessante descobrir como a criatura desenvolveu um intenso amor à vida e como esse amor foi destruído pelo preconceito que sofreu e pelo medo que despertava por ser diferente. Tanto tempo depois de o livro ter sido escrito, ainda estamos lidando com os mesmos fantasmas.

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A responsabilidade de quem desbrava as fronteiras do conhecimento é maior do que nunca, mas no dia a dia, estamos sempre reagindo às aparências, movidos pelo instinto de preservação ou pelo medo. Mais do que nunca, precisamos manter a calma para procurar saber mais sobre o que nos cerca. Às vezes, o que parece perigoso ou aterrorizante pode ser inofensivo ou até mesmo ser aquele espírito bom que deixa lenha cortada à nossa porta e limpa nossos caminhos para nos proteger. Rodrigo Machado

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QUEM É

RODRIGO MACHADO

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Nasci em São Paulo, capital, e moro no Rio de Janeiro desde os 6 anos de idade. Sinto-me carioca, mas adoro a cidade de São Paulo, onde vive quase toda a família do meu pai. Além disso, tenho uma ligação muito forte com Manguinhos, no Espírito Santo, uma vila de pescadores onde passei todas as férias da minha infância. Cresci cercado por livros. Na casa dos meus avós maternos, em Manguinhos, havia várias estantes repletas. Uma coleção em especial, com suas capas coloridas, era o grande tesouro das tardes modorrentas, com adaptações de todos os clássicos da literatura universal que se possa imaginar. Foi esse o meu primeiro contato com autores como Alexandre Dumas, Mark Twain, Júlio Verne, entre tantos outros. Acabei trabalhando em outras áreas, desenvolvendo programas de computadores e gerindo projetos, empresas e pessoas. Mas nunca me afastei dos livros e das histórias.

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QUEM É

FLÁVIO

GRÃO

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Embora more na cidade de São Paulo, foi na região do ABC paulista onde nasci e me criei. Aprendi a desenhar antes mesmo de escrever e até de falar. Meu pai era professor da rede pública e nunca me deixou faltar os cadernos, as canetas e os livros, e minha mãe, dona de casa, me incentivava a desenhar todos os dias. Quando adolescente, conheci o movimento punk e o skate. Nesses meios comecei a colocar meus desenhos para circular, em zines, “shapes” de skate, cartazes de shows, entre outros. Estas primeiras produções me levaram a desenvolver a linguagem que uso hoje na pintura. Sou também educador e artista plástico. Meu trabalho pode ser encontrado nos lugares mais variados como quadros em museus, cartazes, livros e artes de álbuns musicais.

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Créditos das imagens, da esquerda para a direita, de cima para baixo: p. 12, National Portrait Gallery, Londres; p. 13, National Portrait Gallery, Londres; p. 14-15, caricaturas de Alexandre Camanho; p. 16, De Agostini / G. Dagli Orti / Getty Images; p. 17, Museu do Louvre, França; p. 18, Collaborateurs de l’Encyclopédie; p. 19, Mary Shelley; p. 20, Peter Willi / Bridgeman Images / Fotoarena; p. 21, Coleção particular; p. 21, Parallel Lives; p. 22, Städel Museum, Frankfurt; p. 23, World History Archive / Alamy / Fotoarena; p. 23, Filme de James Whale, Frankenstein, EUA, 1931; p. 23, National Portrait Gallery, Londres; p. 24, Ben Birchall / PA / Getty Images; p. 25, Walker Art Gallery, Liverpool.

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Produção gráfica

Avenida Antônio Bardella, 300 - 07220-020 GUARULHOS (SP) Fone: (11) 3545-8600 e Fax: (11) 2412-5375

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