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ANOUILH & MICHELOTTO

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os turcos, esquecer a história da Europa entre os anos 1602 e de 1918, ser Miguel de Cervantes" (apud Arrojo 1992b: 418). O intento de Menard, desse modo, parece-nos ridículo e impossível, e permite-nos questionar àqueles que querem ser extremamente fiéis à tradução com um certo ar cético e irônico. Esta estratégia parece-lhe pouco estimulante, por isso abandona-a e passa, então, a outra estratégia - continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote através das experiências de Menard, impondo-se o "misterioso dever de reconstituir literalmente a obra espontânea de Cervantes". Arrojo (1992b) afirma ser esse o sonho de todo tradutor formado na tradição logocêntrica e acrescenta que "a empresa quixotesca de Menard, conseqüência de sua teoria lingüística, pressupõe significados perfeitamente determináveis, interpretações definitivas, a possibilidade e a necessidade de recuperar as intenções do autor" (p. 418). Também para o narrador de Borges, a "obra invisível" de Menard, por este tida como um milagre e como "reprodução total" do texto de Cervantes, é considerada como "diferente", apesar da identidade verbal com a obra que foi traduzida, da repetição de palavra por palavra. Arrojo (idem) diz que ao se fazer a leitura de um texto, a interpretação não é exclusiva daquele leitor, assim como nenhum escritor é o autor soberano do texto que escreve. Da mesma forma, a interpretação que o narrador propõe do Quixote de Menard é um produto de suas leituras de outros textos, assim como a interpretação que Dom Quixote faz da realidade não é exclusivamente sua, mas produto de sua própria biblioteca, ou do que M. Foucault (apud Arrojo, 1992b) chama de "arquivo", isto é, aquilo que possibilita a produção de uma leitura e torna-a aceitável. Ao tentar compreender e desvendar os mistérios borgianos, Arrojo diz que o narrador encontra ecos de Menard e Shakespeare em Dom Quixote somente depois de ter sido informado de que Menard havia tentado recriar o texto de Cervantes e complementa afirmando que nossa própria leitura de Borges e de Cervantes também é produto de nossa biblioteca, o arquivo de nosso tempo, que nos permite ler a teoria textual de Borges como precursora de teorias lingüísticas e literárias contemporâneas. Desta forma, toda tradução possui, inevitavelmente, marcas do tradutor que se trai e se revela, como bem conclui Arrojo (1992a: 68):

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