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Paulo Michelotto


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Dept.Teoria da Arte &Expressões Artísticas CAC APROPRIAR-SE DE ANOUILH

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"traduzir deixa de ser uma atividade inútil ou invisível, que deve passar despercebida, e se assume como uma inevitável forma de conquista ou de tomada de poder, que necessariamente reescreve o passado e se apropria de outras culturas e linguagens"(Arrojo)

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Referências Teóricas 01.1 Definindo Tra+ducere

p. 5

01.2 Toda tradução é impossível

p. 5/7

01.3 Conceito de Discurso de Poder em Foucault

p. 7/8

01.4 Contextos de Tradução

p. 8

Referências em Anouilh 02.1 Referência à visibilidade 02.2 Logocentrismo X deconstrução 02.3 O parâmetro Borges 02.4 A (in)visibilidade no contexto cultural,econômico e social. 02.5. Transpor significados (in)stáveis 02.5. 1 Transpor qual vida 02.5-2 Transpor quais textos 02.5..3 Transpor quais obras 02.5.4 Transpor que trabalho

03.1 Referência Geral 03.2 Referências à Hermenêutica & Teoria da Tradução

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p. 9/11 p. 11/19 p. 17/19 p. 19/ 23 p. 23/24 p .25 p. 26 p. 26/27 p. 28/

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Definindo: Tra+ducere Como definição parcial, estabeleçamos que traduzir é transferir os jogos de linguagem de uma língua para os jogos equivalentes” de uma outra língua. ·Existe equivalência? · Não-equivalência entre línguas · Tendências pós-estruturalistas - Desconstrução · Jacques Derrida, Rosemary Arrojo · Ilusão Logocêntrica · Desconstruindo a desconstrução · Conceitos desconstruídos o Originalidade o Fidelidade da tradução o Sentido do texto dado, no próprio texto o Tradução literal o Tradução técnica/tradução literária

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Toda tradução é impossível

Segundo HUMBOLDT (1936), os sistemas lingüísticos são parte intrínseca de uma dada cultura, e a necessidade que há de se expressar conceitos em uma dada língua é determinada pela própria cultura. Humboldt dizia que não há qualquer relação intrínseca entre as culturas do mundo, as formalidades “universais”, como: agradecer, saudar, pedir desculpas etc. são meras convenções. No entanto, o que estabelece a visão que um sujeito tem do mundo é sua cultura - socialmente compartilhada, mas única, singular - comum à seu grupo social, e ao mesmo tempo idiossincrática. A rigor, não existem relações entre conceitos culturalmente determinados de uma cultura x e outra y. Se x não tem qualquer contato físico com y, os conceitos de y pouca ou nenhuma importância têm para x. A isso equivale dizer que x, sendo uma cultura independente e auto-subsistente, assim como y, são mundos fechados, feudos culturais sem nenhuma sinapse com outros feudos. Se tal teoria for levada a fim e a cabo, ficase estabelecido que não há qualquer relação entre a língua de x e a de y. As palavras destas línguas representam mundos diferentes, mesmo se consideradas equivalentes pelos dicionários. Ao se pensar por exemplo na palavra floresta, é possível imaginar que um brasileiro pensasse em um agrupado gigantesco de árvores tropicais, relativamente espaçadas umas das outras, cuja fauna é composta por onças-pintadas e macacos, com clima permanentemente quente e úmido - uma visão da Floresta Amazônica. É possível que para um alemão, no entanto, a palavra Wald (tida como “equivalente” em qualquer dicionário bilíngüe português-alemão) tenha como referência um símbolo completamente diferente - árvores coníferas, que formam um tecido de vegetação fechado, escuro, frio, habitado por ursos, veados e esquilos - uma visão da Floresta Negra. De que equivalência poder-se-ia falar aqui? A medida em que os mundos culturais são diferentes, estes precisam denotar símbolos diferentes, que não necessariamente correspondem a qualquer outro símbolo de qualquer outra cultura. A desconstrução tem por objetivo desfazer as crenças na relação um a um entre palavra e sentido, entre palavras de uma língua e de outra, entre equivalências diretas e claras. Segundo ARROJO (1993), tudo não passa de ilusão logocêntrica, uma vez que só o que podemos fazer com o discurso é utilizá-lo para produzir mais discurso - que não passa de linguagem, não verificável, “desconstruível”. A rigor, se levarmos as teorias humboldtianas e desconstrutivistas ao radicalismo, pode-se chegar à conclusão de que toda a tradução é impossível. O grande precursor da desconstrução na França, Jacques DERRIDA (1967:123 et seq.), chega mesmo a negar, em seu rigor teórico (e pouco prático), a possibilidade de toda e qualquer comunicação. Tendo como porto-seguro a concepção de verificabilidade dos resultados, podemos dizer que a teoria desconstrutivista não é verdadeira, pelo menos parcialmente, já que o mundo vive e depende dos milhões de palavras traduzidas a cada hora, da comunicação de informações de maneira rápida e permanente entre as nações, da interpretação “correta” e “verificável” dessas informações. Tem-se portanto, é impossível negar, algum “fenômeno” de equivalência que permite que traduções sejam realizadas pragmaticamente. Este fenômeno é justamente o consenso da

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concepção judaica, o convencionalismo lingüístico, adotado pelos povos através do fluxo da História. É, pois, a equivalência intra e/ou interlingüística utilizada como ferramenta na tradução, meramente consensual. É evidente que não se trata aqui de uma percepção simplista do acordo social explicitado. Não se trata de uma reunião de cúpula da ONU, com representantes de entidades lingüísticas de diversas nações, para decidirem que palavras de suas línguas serão consideradas equivalentes a que palavras em outras línguas. Todo acordo lingüístico é fruto do desdobramento dos séculos e do deslocamento do Homem na História. Fala-se em História ao se mencionar toda trajetória orgânica, social, intelectual, ética, moral e, por fim, cultural do ser humano, desde sua aparição consciente no mundo. Stanley Fish, pragmatista americano da Universidade de Harvard, tece, em seus textos, sua própria teoria pragmatista (cf. FISH, 1980). Stanley Fish coloca sobre os ombros de uma denominada “Comunidade Interpretativa” o papel de uma espécie de juíza de valores. Os que discordam das determinações desta, estão “teologicamente errados” (FISH 1980:189). O texto passa a significar, portanto, tudo aquilo, e não mais que isso, que a Comunidade Interpretativa quer que ele signifique. O significado de um texto é, portanto, dissociado do texto por completo e atribuído à Comunidade Interpretativa. Por Comunidade Interpretativa (doravante CI) entende-se um grupo de pessoas (no caso de Fish, de acadêmicos), que expressam uma mesma leitura de um texto, interpretando-o de maneira equivalente. Assim, ao observar-se o mundo com os olhos de Fish, é possível estabelecer (coerentes) relações entre todo significado - de um texto, de uma proposição filosófica, de uma equivalência tradutória - e a interpretação canônica que se faz dele. O Tudo significa somente aquilo que os detentores do poder de coerção social querem que ele signifique. O motivo que leva à eclosão de tal fenômeno só pode ser encontrado nas relações ideologizadores de Althusser. Para ALTHUSSER (1984), sendo o fator social ideológico e ideologizador inescapável, inevitável, perdem-se as concepções de estranhamento em relação aos fenômenos e estabelece-se o canônico, segundo o princípio da naturalização. Não se questiona o porquê de tal palavra ser “considerada” equivalente a uma outra, pois “é esta a ordem das coisas”. O fenômeno ideologizador leva à alienação. A concepção consensualista transforma-se num arquétipo de proposta onomatopaica. Isto é aquilo, diz-se. Perde-se a noção da origem, arbitrária e convencional - e ganha-se a (equivocada) impressão de Verdade absoluta, universal e imutável. 03

Conceito de Discurso de Poder de Foucault

Michel Foucault, francês, filósofo e historiador do pensamento, desenvolveu, entre muitas outras, uma chamada “teoria genealógica” que tenta explicar mudanças nos sistemas de discurso através das conexões destes às práticas não discursivas de exercício do poder social. Assim como as genealogias de Nietzsche, as de Foucault refutaram qualquer esquema explanatório, como os de Marx ou Freud. Ao invés disso, ele encarava os sistemas de pensamento como produtos contingentes de muitas causas pequenas e não-relacionadas. Essencialmente, os estudos genealógicos de Foucault enfatizam a conexão real entre o conhecimento e o poder. Instâncias de conhecimento não são estruturas intelectuais autônomas

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que podem ser utilizadas como instrumentos baconianos de poder, mas estão essencialmente ligadas a um sistema de controle social. Os escritos genealógicos de FOUCAULT (1975), que fazem parte de sua terceira e mais duradoura fase filosófica, começam com uma apologia de Nietzsche e suas teorias genealógicas originais. O filósofo francês propõe uma complementação da teoria original de Nietzsche e afirma que “...todo e qualquer discurso é uma clara tentativa de exercício de poder social” (FOUCAULT, 1975). Esta conexão essencial foucaultiana entre conhecimento (discurso) e poder reflete a visão do autor francês de que o poder não é meramente repressivo, mas uma fonte de valores positivos, criativos, e sempre perigosos. Apesar de os sistemas de conhecimento expressarem uma verdade objetiva per se, estes estão sempre ligados aos regimes de poder correntes. Por outro lado, todo e qualquer regime de poder necessariamente dá vida a um sistema de conhecimento sobre os objetos que pretende controlar. Este conhecimento pode, no entanto, em sua objetividade, ir além do projeto de dominação a partir do qual foi criado. 04 Contextos de Tradução Podemos elencar provisoriamente como elementos envolvidos no processo tradutório: o texto original, o autor, o contexto, o texto traduzido e o tradutor. Dentro deste vasto contexto, enfrentamos Antígone, Medeia e Édipo o rei que manca.

Édipo que manca, é uma peça de Anouilh, exemplar no aspecto das camadas de transferência necessárias para uma tradução de dramaturgia. Possivelmente a mais difícil das nossa tríade grega, uma vez que, tanto o tradutor quanto o leitor, o diretor, o ator, o cenógrafo, nos confrontamos com um Édipo freudiano, além do Édipo original. Acresce que o centro da peça é exatamente a invisibilidade. Medeia Anouilh vestiu admiravelmente bem de uma dessas ciganas que giram pela Europa. Elas lêem em nossas mãos um destino amor, dinheiro, poder. Trindade de desejos da qual elas mesmas se sentem excluídas tantas vezes. Medéia de Anouilh é a cigana que lê/vê constantemente a própria mão.

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Quando a traduzimos não nos preocupamos demais com nossa visibilidade ou não, com a cultura para a qual ela era transposta ou não. Uma vez que Anouilh já nos dá isso de bandeja. Para a presente tradução de Édipo que manca, inclusive a partir do próprio sub-título anexado (boiteux), o capenga, que anda mal, não poderíamos encontrar material melhor de introdução que o do tema da (in)visibilidade do tradutor. Numa peça em que a (in)visibilidade dos passos do personagem é marcada no título como num exórdio. Numa peça em que a visibilidade do personagem confunde-se no ocidente com a (in)visibilidade de um outro, talvez dentro de nós complexamente estabelecido pela tradução de Freud para uma das facetas do inconsciente. Édipo é o personagem que fura os olhos, centro de toda problemática posterior entre teorias da visibilidade/invisibilidade. Seja dos desejos. Seja da ciência.Seja da tradução. O tema da (in)visibilidade do tradutor, a partir dos estudos de Venutti., é um dos que criaram mais controvérsias entre os teóricos da tradução. Para alguns críticos e teóricos logocêntricos, a tradução é vista como uma atividade mecânica, cabendo ao tradutor transportar significados supostamente estáveis do texto de partida para o de chegada, tornando-se possível a neutralidade do mesmo na tradução fluente de textos literários, possibilitando o aparecimento da voz do autor do original. Neste trabalho busca-se contestar tais colocações, seguindo de perto as formulações de Venutti sobre a estreita relação entre tradução literária e tradução de elementos culturais considerando-se que: 1. A impossibilidade de invisibilidade do tradutor, dentro dos limites do logocentrismo que se baseia na semiologia clássica de Saussure e que parte do pressuposto de que há, por trás de todo signo, um referente externo ao sistema lingüístico, é uma ilusão; 2. O escritor não é o autor soberano do texto que escreve. Cada leitor/tradutor faz uma leitura, uma interpretação, fruto de suas inter-relações com outros textos, contrariando o conceito logocêntrico de processo tradutório como uma substituição ou transferência ingênua de significados estáveis de um texto para

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outro e de uma língua para outra, isto é, cada tradutor tem uma experiência de vida e conseqüentemente, uma visão de mundo, um conjunto de valores e ideologias que influenciará, inevitavelmente os resultados das suas traduções; 3. Aceitar o pressuposto apregoado pelo logocentrismo implica na marginalização e apagamento do tradutor e, conseqüentemente, na produção de traduções de segunda categoria, pois sendo invisível o tradutor, suas responsabilidades autorais serão menores.

Apesar de haver várias teorias com relação ao uso ou funcionamento da linguagem, toda teoria lingüística, que está ligada ao logocentrismo, compartilha do pressuposto de que a origem dos significados se encontra fora do receptor ou leitor. Assim, a teoria logocêntrica crê que está no significante (no texto, na palavra) e/ou nas intenções do emissor/autor, a origem do significado; a palavra está presa num invólucro duradouro e resistente que aprisiona, através dos tempos, as intenções do autor. Arrojo compara as atribuições conferidas ao autor, pela tradição logocêntrica, como lembrando a "figura paterna autoritária e controladora que tem o direito indiscutível de determinar os destinos e os contornos de sua prole" e ao leitor cabendo apenas "o papel filial e passivo, um papel essencialmente respeitador e protetor dos desejos autorais intencionalmente inseridos no texto".(1992a: 36). Esse conceito embasa a possibilidade de um significado subordinado à letra, plasmado no texto, que não sofre influência de qualquer contexto e é imune à leitura, sendo o ler ou compreender somente o resgate do que o autor quis realmente dizer, das suas reais intenções. Ainda, seguindo a reflexão de Arrojo, desde, pelo menos, Aristóteles e Platão, a base de grande parte das teorias, das filosofias e das visões de mundo da civilização ocidental foi a crença nesse conceito de significados estáveis, de verdade e de realidade e na possibilidade de

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algum nível de conhecimento em estado puro que se possa instalar nas palavras, na fala ou na escrita, e que pode ser retirado e adequadamente resgatado das palavras, dos textos, das circunstâncias - por não estar fundido a eles. Através de todos esses séculos, a tradição logocêntrica tem feito inúmeras e incansáveis tentativas de produzir uma leitura de um texto que resistisse ao tempo e às mudanças de contexto, porém todas elas infrutíferas. Se levarmos às últimas conseqüências e pensarmos na tradução dentro dos pressupostos logocêntricos, como um transporte de significados estáveis e determinados de um texto para outro, de uma língua para outra, de uma cultura para outra e de uma época e lugar para outros, toda tradução deverá ser também capaz de realizar o milagre de transformar a diferença em igualdade, além da possibilidade de encontrar significantes que encaixem nos significados transportados sem danos e perdas. Podemos ver também, tradutores que se acomodam ao ideal impossível imposto por esta tradição e tentam justificar a não adequação da tradução às regras logocêntricas, conforme observado nas entrelinhas da declaração de Paulo Rónai ao comentar sobre as interpretações da palavra tradução: Conduzir uma obra estrangeira para outro ambiente lingüístico significa querer adaptá-la ao máximo aos costumes do novo meio, retirar-lhe as características exóticas, fazer esquecer que reflete uma realidade longínqua, essencialmente diversa. Conduzir o leitor para o país da obra que lê, significa, ao contrário, manter cuidadosamente o que essa tem de estranho, de genuíno e acentuar a cada instante a sua origem alienígena (1981: 20).

Uma formulação exemplar apresentada por Eugene Nida (1975: 190), sobre o processo de tradução é a que compara as palavras de uma sentença a uma fileira de vagões de carga. Há vagões que carregam uma grande carga, tão grande que terá que ser dividida entre vários vagões e outros uma carga pequena. Desta mesma forma, algumas palavras "carregam" vários significados e outras, só juntas terão algum significado. Para Nida, o que importa no processo tradutório é que todos os componentes significativos do original alcancem a língua-alvo, de tal forma que possam ser entendidos pelos receptores; da mesma forma que o importante no transporte de uma carga não é em quais vagões estão as cargas ou qualquer outra informação, mas que cheguem ao seu destino. A crítica ao conceito logocêntrico, ainda segundo Arrojo (idem) parte do pressuposto de que todo sujeito está interligado com o objeto numa relação que sofre influência e é determinada pelas circunstâncias contextuais. Esta crítica abala a crença na possibilidade da

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existência de significados estáveis, supostamente presentes e resgatáveis de um sujeito, e faz com que as questões teóricas da tradução deixem de ser marginalizadas pelos estudos da linguagem, passando a ser objeto de estudo dos intercâmbios lingüísticos que acontecem dentro de uma mesma língua, de um mesmo original. Um aliado desta crítica é Nietzsche (apud Arrojo, 1992b: 421), o qual em suas reflexões a respeito da linguagem elimina o mito de se encontrar "verdades" que estejam além da perspectiva e do contexto em que ocorrem. Arrojo afirma que "a busca de conhecimentos e de verdades que motiva a filosofia e a ciência é, para Nietzsche, apenas um sintoma do impulso à formação de metáforas, que distingue os humanos das outras espécies animais" (p.421), e o "conhecimento" deixa de ser apenas um invólucro de significados estáveis, e passa a ser um instrumento produtor de "verdades". Desta forma, para estes autores supracitados, não existe um significado fixo na origem de qualquer manifestação lingüística, não há um original, um nível de conhecimento que anteceda à linguagem e que simplesmente se deixe envolver ou macular por ela. Ainda citando Nietzsche, Arrojo (idem) reproduz suas palavras dizendo que no início de tudo há apenas a formação de uma metáfora; "um estímulo nervoso que se transforma em percepção", a qual segundo a autora está acoplada a um som. Para Nietzsche (idem): Quando falamos de árvores, cores, neves e flores, acreditamos saber algo a respeito das coisas em si, mas somente possuímos metáforas dessas coisas, e essas metáforas não correspondem de maneira alguma à essência do original. Da mesma forma que o som se manifesta como máscara efêmera, o enigmático X da coisa-em-si tem sua origem num estímulo nervoso, depois se manifesta como percepção e, finalmente, como som (p. 422).

Nietzsche parece estar eliminando qualquer tentativa de se estabelecer uma relação própria ou uma tradução literal entre quaisquer esferas ao questionar a crença na possibilidade de uma origem e ao sugerir que os significados se formam a partir de uma série de metamorfoses apagadas de uma esfera para outra - "do estímulo nervoso para a percepção, desta para o sonoro, do sonoro para o literal, do literal para o figurado e assim por diante" (idem). Apesar das reflexões de Nietzsche serem, basicamente, sobre a arbitrariedade da linguagem, para os estudiosos da linguagem, o grande teórico do signo arbitrário é Ferdinand de Saussure segundo o qual "o signo lingüístico é arbitrário. Assim a idéia de mar não está

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ligada por relação alguma interior à seqüência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra seqüência, não importa qual" (1971: 24). Com base no conceito saussuriano do signo arbitrário, Derrida (1987: 26) propõe que se negue a qualquer pretensão de presença ou de plenitude em qualquer manifestação lingüística: Esse jogo de diferenças supõe, na verdade, sínteses e referências que proíbem em qualquer dado momento, ou em qualquer sentido, que um simples elemento esteja presente nele próprio, e que se refira apenas a si mesmo. Quer na ordem do discurso oral ou escrito, nenhum elemento pode funcionar como um signo sem se referir a um outro elemento, este também não simplesmente presente.

Assim, todo e qualquer texto só pode ser formado a partir do entrelaçamento de signos, produzido a partir da transformação de outros textos, num processo de adiamento infinito da origem do significado. Parafraseando o autor, toda presença, como toda origem, será sempre reconstruída, ou seja, produto e resultado de um processo de interpretação, que implica a transformação, a produção e não, simplesmente, o resgate de significados plenos e alojados no interior do significante ou do texto. Mesmo assim, todo e qualquer projeto logocêntrico se embasa na semiologia clássica para afirmar que por trás de todo signo/sinal há um referente externo ao sistema lingüístico, assim como existe uma presença real e resgatável por trás de toda reprodução ou cópia. O signo, e em especial, a escritura ou a reprodução representa algo que deveria estar presente, ora adiado, e que pretendemos resgatar. Comentando ainda sobre o signo, Derrida discute a impossibilidade de se tomar ou mostrar a coisa, e de declarar o presente, o estar-presente, quando o presente não pode ser apresentado e assim é que se recorre ao desvio fornecido pelo signo. Por esta razão, o filósofo ratifica a questão de que, na verdade, o signo é uma presença diferida, adiada sempre. De acordo com o pensamento acima, o signo ou a escritura é concebível somente "como agente do adiamento da presença", ou seja, é uma presença adiada que pretendemos resgatar; conseqüentemente, a substituição da coisa-em-si pelo signo se torna tanto secundária quanto provisória: “secundária em relação a uma presença original e perdida a partir da qual se deriva o signo; provisória em relação a essa presença definitiva e ausente em cuja direção o signo, nesse sentido, constitui um movimento de mediação” (1982: 09).

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Com base nestes conceitos, a problemática da tradução e dos chamados textos "originais" pode também ser enfocada. Podemos classificar na relação signo/referente, o primeiro como adiamento, substituto daquilo a que se refere, enquanto que na relação original(signo)/tradução, o signo já ocupa a posição da coisa-em-si e a tradução passa a ocupar a posição incômoda e inadequada de representante do original, secundária e provisória. Embasado neste conceito de signo e de suas relações com o seu referente, o logocentrismo posiciona no processo tradutório, todo "original" como a coisa-em-si e condena qualquer tradução como um adiamento incômodo da coisa-em-si, representante do "original" do qual não temos acesso, em outra língua, em outro tempo e em outra cultura. Se na relação signo/referente, o signo ocupa uma posição secundária de adiamento, na relação "original"/tradução, os signos que constituem o texto a ser traduzido perdem sua posição de inferioridade e se posicionam como estáveis e "originais". Seguindo o raciocínio da teórica pós-moderna citada anteriormente devemos a essa concepção “a formulação da velha oposição entre conteúdo e forma que sobrevive, inclusive, nas reflexões que a lingüística, a teoria literária, a semiótica e a filosofia - todas de vocação logocêntrica - ainda tecem em torno da distinção de Saussure entre significante e significado" (1992c: 59). Derrida (apud Arrojo, 1992) propõe a desconstrução do logocentrismo tentando demonstrar "que não há saída possível do labirinto inescapável de signos que se referem sempre e tão-somente a outros signos, num processo de adiamento infinito que proíbe qualquer encontro com uma suposta presença externa a esse labirinto”. Assim, não há nesse jogo arbitrário de diferenças nenhum significado que pudesse estar presente em si e referir-se apenas a si próprio e, por isso mesmo, ocupar um lugar privilegiado fora das regras do jogo. Derrida usa um neologismo - différance do verbo francês différer - para se referir a esse jogo de adiamento infinito. O verbo francês différer, como o verbo diferir no português, pode significar: adiar, procrastinar, retardar, como também divergir, discordar, ser diferente, ser outro. A palavra différance expressa dessa forma tanto a diferença como o adiamento e se refere a uma diferença tanto temporal como espacial. Da mesma forma que a diferença entre as palavras différence e différance não é perceptível audivelmente, sendo notada somente na escritura, Derrida pretende que o "a" de différance marque "a diferença da escritura dentro e antes da própria fala, subvertendo a distinção tradicionalmente estabelecida entre a fala e

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escritura, além da própria tradição que sempre atribuiu à primeira a prioridade e a maior intimidade com o verdadeiro" (1992c: 60). Daí justificar-se o procedimento da tradição logocêntrica, a qual sempre precisou reprimir essa relação de "mútua différance" entre original e tradução, através da "sacralização do original" e da "marginalização do tradutor e de seu ofício" (1992c: 60), para que suas concepções tivessem fundamento. Aqui, começam a se delinear as razões do trabalho proposto. Consideremos o seguinte: Observamos nas leituras feitas dentro da área de teorização da tradução mais ortodoxa que a concepção logocêntrica parece sempre ter gerado preconceitos, noções de inadequação, de inferioridade, em relação ao conceito de que toda tradução, ao considerar toda a atividade tradutória como uma traição do original, uma deformação e, sobretudo, este preconceito milenar tem imposto a todo tradutor uma tarefa impossível - a possibilidade de que seja não apenas invisível e inconspícuo, mas também a de que possa colocar-se na pele, no lugar e no tempo do autor que está traduzindo, sem deixar de ser ele mesmo e sem transgredir a sintaxe e a fluidez de sua língua, de seu tempo e de sua cultura. No entanto, à luz das teorias pós-modernas de tradução, onde vamos colocar o tradutor, se é que temos que encontrar um lugar para ele, já que, de um lado, há a cobrança de uma invisibilidade absoluta, coisa que de antemão, sabemos ser uma ilusão. Por outro lado, há, na atualidade campanhas, incentivos para que o tradutor mostre seu trabalho, apareça através da sua atividade tradutória. A questão é: Será que ele, o tradutor, tem escolha? Mesmo quando a tradição logocêntrica exigiu dele toda uma “fidelidade” ao dito “original”, foi ele assim tão fiel? A quem o foi? A ele mesmo? À comunidade de chegada? Ao autor do texto de partida? Como avaliar algo como “fiel” ou “infiel” em se tratando de linguagem, de différence/différance? A (in)visibilidade de quem traduz é algo consciente, planejado? A fluidez da linguagem e das várias possibilidades de leitura, principalmente em relação aos textos literários permite toda essa consciência que tanto é exigida pelas teorias de tradução mais tradicionais? Arrojo, (1992b: 412) nos dá várias pistas que nos permitem visualizar o que sempre foi privilegiado ao longo da história de tradução, e até nos ajuda a compreender melhor o porquê do ideal logocêntrico, justificando toda a idealização como o "culto ao logos - à razão, à

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lógica, à verdade (dos textos literários) como palavra divina, livre de qualquer subjetividade" e atribui-lhe "a crença na possibilidade, não apenas de se separar de forma objetiva os dois lados de qualquer dicotomia mas, também, de privilegiar um deles como primordial, essencial ou superior”. Por outro lado, a partir da reflexão desconstrutivista de Derrida (1982), estratégia de leitura que aponta para inevitável aceitação de que a tradução falha quando tenta reproduzir um original na sua totalidade, exatamente porque não existe "essa totalidade como uma presença plasmada no texto e imune à leitura e à mudança de contexto, mesmo dentro do que chamamos de uma única língua", é que a problemática da tradução passou a ocupar um lugar de destaque no pensamento contemporâneo, desequilibrando "a concepção logocêntrica de origem e plenitude e, conseqüentemente, a crença na possibilidade de significados estáveis e independentes do jogo lingüístico”. E é a partir dessa nova forma de ver a questão textual que parece ser possível defender o tradutor e seu ofício, buscando tirar-lhe a culpa, quando, por alguma razão a crítica o denomina de infiel ou traidor.

Segundo o conceito logocêntrico, o processo tradutório é uma substituição ou transferência de significados estáveis de um texto para outro, de uma língua para outra, de uma cultura para outra e de uma época(tempo) para outra. Esse conceito permeia, naturalmente, todas as nossas concepções clássicas de linguagem, sendo aceito pela grande maioria do conhecimento produzido pelo homem ocidental e por tradutores de qualquer língua ou de qualquer época. Por exemplo, Laplanche (1989), coordenador da primeira tradução francesa das Obras Completas de Freud, declarou ter como objetivo traduzir Freud como se fosse o próprio Freud, empregando não um francês germânico mas um francês freudiano, utilizando todos os recursos do francês da mesma forma em que Freud utilizou os do alemão. Outro exemplo é J. Dryden (apud Milton, 1998), que viveu no fim do século XVII. Em seu Preface to Ovid's epistles, translated by several hands, cita alguns pré-requisitos para se

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fazer uma boa tradução de textos poéticos e entre eles estão idéias como o fato de que não é possível traduzir poesia sem ser poeta, ou que os significados de um autor são sagrados e invioláveis, entre outros. Entretanto, aceitar os pressupostos logocêntricos implica questões, na área de teoria da tradução, que são particularmente problemáticas. Implica, na possibilidade do tradutor encontrar significantes que substituam os significados, sem perdas nem danos e na crença de se poder resgatar as reais intenções do autor estrangeiro; uma utopia, um milagre, pois quem poderá saber o que o autor queria dizer quando escreveu o seu texto há anos ou séculos atrás? Stephen Mackenna (apud Steiner, 1975), tradutor de Enneades de Plotino, entre 1917 e 1930, referindo-se ao seu trabalho definiu-o como um "milagre": "o que fiz com Plotino é um milagre, o milagre de persistentemente recuperar uma mente que afunda e se agita e desaparece como uma rolha nas ondas" (p. 269). A pergunta é, conseguiu o tradutor o milagre que diz ter alcançado? Esta recuperação, “busca de algo que se pressupõe já existir”, realmente aconteceu, ou trata-se do ideal ilusório de todo tradutor, numa tentativa de auto-apagamento para reproduzir a tradição de que o autor “original” contém as regras absolutas de verdade sobre "seu texto"? Jorge Luís Borges (1989), ao escrever vários contos e ensaios sobre a linguagem, literatura e a tradução, exemplifica com o conto que integra a coletânea Ficciones - Pierre Menard, autor del Quijote, essa busca ilusória, pelo tradutor, dos significados estáveis e plenos no processo tradutório. Diante da impossibilidade de alcançar a verdade absoluta, de não se poder repetir a identidade do texto "original", toda escritura é transformada em tradução, do mesmo modo que toda tradução é também escritura. Pierre Menard (poeta, tradutor e crítico) é um personagem criado por Borges que consumiu sua vida na tentativa de realizar uma "obra invisível" - a reprodução dos capítulos IX e XXXVIII da primeira parte do livro Dom Quixote de Miguel de Cervantes e parte do capítulo XXII. Menard assume a tarefa de se transformar na própria origem dos significados, recriar o verdadeiro Quixote, recuperando o mesmo texto escrito por Cervantes no século XVII, ao invés de somente trazer os significados de Cervantes para seu tempo e lugar. Para alcançar tal objetivo, a primeira estratégia usada é transformar-se literalmente em Cervantes, isto é, "conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica, guerrear contra os mouros ou contra

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os turcos, esquecer a história da Europa entre os anos 1602 e de 1918, ser Miguel de Cervantes" (apud Arrojo 1992b: 418). O intento de Menard, desse modo, parece-nos ridículo e impossível, e permite-nos questionar àqueles que querem ser extremamente fiéis à tradução com um certo ar cético e irônico. Esta estratégia parece-lhe pouco estimulante, por isso abandona-a e passa, então, a outra estratégia - continuar sendo Pierre Menard e chegar ao Quixote através das experiências de Menard, impondo-se o "misterioso dever de reconstituir literalmente a obra espontânea de Cervantes". Arrojo (1992b) afirma ser esse o sonho de todo tradutor formado na tradição logocêntrica e acrescenta que "a empresa quixotesca de Menard, conseqüência de sua teoria lingüística, pressupõe significados perfeitamente determináveis, interpretações definitivas, a possibilidade e a necessidade de recuperar as intenções do autor" (p. 418). Também para o narrador de Borges, a "obra invisível" de Menard, por este tida como um milagre e como "reprodução total" do texto de Cervantes, é considerada como "diferente", apesar da identidade verbal com a obra que foi traduzida, da repetição de palavra por palavra. Arrojo (idem) diz que ao se fazer a leitura de um texto, a interpretação não é exclusiva daquele leitor, assim como nenhum escritor é o autor soberano do texto que escreve. Da mesma forma, a interpretação que o narrador propõe do Quixote de Menard é um produto de suas leituras de outros textos, assim como a interpretação que Dom Quixote faz da realidade não é exclusivamente sua, mas produto de sua própria biblioteca, ou do que M. Foucault (apud Arrojo, 1992b) chama de "arquivo", isto é, aquilo que possibilita a produção de uma leitura e torna-a aceitável. Ao tentar compreender e desvendar os mistérios borgianos, Arrojo diz que o narrador encontra ecos de Menard e Shakespeare em Dom Quixote somente depois de ter sido informado de que Menard havia tentado recriar o texto de Cervantes e complementa afirmando que nossa própria leitura de Borges e de Cervantes também é produto de nossa biblioteca, o arquivo de nosso tempo, que nos permite ler a teoria textual de Borges como precursora de teorias lingüísticas e literárias contemporâneas. Desta forma, toda tradução possui, inevitavelmente, marcas do tradutor que se trai e se revela, como bem conclui Arrojo (1992a: 68):

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Toda tradução, por mais simples e breve que seja, trai sua procedência, revela as opções, as circunstâncias, o tempo e a história de seu realizador. Toda tradução, por mais simples e breve que seja, revela ser produto de uma perspectiva, de um sujeito interpretante e, não, meramente, uma compreensão neutra e desinteressada ou um resgate comprovadamente correto ou incorreto dos significados supostamente estáveis do texto de partida.

Como poderiam textos ser invisíveis? É o que tentaremos ler a seguir.

O logocentrismo traz ao tradutor sérias conseqüências sociais, culturais e econômicas, conforme observamos até aqui. Na tradução idealizada pelo logocentrismo, o tradutor não interfere, mas apenas limita-se a transferir, supostamente, significados de uma língua para outra e a reproduzir as intenções do autor, sem aparecer ou misturar-se a eles. De acordo com esta visão tradicional, o texto traduzido deve ser transparente, no sentido de não conter marcas do processo tradutório. Shapiro (apud Venutti, 1995: 01), exemplificando tal idéia, declara: Eu vejo a tradução como uma tentativa de produzir um texto tão transparente que não pareça traduzido. Uma boa tradução é como um painel de vidro. Você apenas percebe que está lá quando há pequenas imperfeições arranhões, bolhas. Idealmente, não deveriam existir. Nunca deveria chamar atenção para si mesma.

Esta transparência proposta, por sua vez, se reflete no ideal exigido de fluência na leitura pelo qual a maioria dos leitores, incluindo críticos e editores, avaliam as traduções. Esta avaliação é feita com base na presença ou ausência de construções não idiomáticas e frases desajeitadas com significados confusos. A maioria deles lê ou pelo menos quer ler os textos traduzidos como se estivesse lendo na sua própria língua, como se não fossem originalmente escritos em outra língua. Quando tal fato ocorre, este é atribuído à falta de competência lingüística do tradutor, como afirma Francis Aubert (1994: 59): (...) uma sensível discrepância de competência lingüística do tradutor (...) pode levar este a incorporar em si estruturas e idiomatismos do código de partida, resultando, no geral, em um produto tido por qualitativamente insatisfatório deste ponto de vista ("com cara de texto traduzido").

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Por outro lado, Lawrence Venutti (1995: 286-287) atribui à fluência cobrada pelos críticos, autores e leitores, a causa da invisibilidade do tradutor. Para Venutti, a fluência torna a tradução transparente e, conseqüentemente, provoca a invisibilidade do tradutor, pois ela acontece somente quando a tradução é lida fluentemente, quando não há fraseados estranhas, construções não-idiomáticas ou significados confusos, quando conexões sintáticas claras e pronomes consistentes criam inteligibilidade para o leitor. Partindo deste pressuposto, Venutti (1986: 190), propõe uma prática tradutória que resista à fluência, a visibilidade intencional, afirmando: A tradução deve ser vista como um tertium datum que "soe estrangeiro" ao leitor e que apresente uma opacidade que o impeça de parecer uma janela transparente aberta para o autor ou para o texto original: é essa opacidade um uso da linguagem que resiste à leitura fácil de acordo com os padrões contemporâneos - que tornará visível a intervenção do tradutor, seu confronto com a natureza alienígena de um texto estrangeiro.

Contrárias às crenças logocêntricas, temos concepções que estão ligadas à desconstrução e ao pós-estruturalismo. A desconstrução, proposta por Derrida, questiona as bases do pensamento tradicional e desconstrói a noção logocêntrica de que a origem dos significados se encontra fora do sujeito/leitor ou receptor, revisando-a e redimensionando-a. O leitor não é meramente um simples receptor passivo que decodifica os significados contidos no texto que lê, mas passa a se conscientizar de sua interferência autoral. Arrojo (1993:81) difere de Venutti quanto à visibilidade intencional do tradutor. Para ela, que segue a linha desconstrutivista, é impossível o tradutor não deixar suas marcas e não se fazer presente mesmo quando pensa estar ou pretende ser invisível: "o tradutor, implícita ou explicitamente, impõe ao texto que traduz os significados inevitavelmente forjados a partir de seus próprios interesses e circunstâncias". Há também relação de concordância entre a teoria de tradução defendida por Arrojo e a de Derrida, cujos teóricos defendem o pressuposto de que é impossível se fazer uma tradução, na qual não se deixe rastros, "vestígios"; uma tradução "silenciosa". Arrojo continua, dizendo que: Qualquer tradução, por mais simples e despretensiosa que seja, traz consigo as marcas de sua realização: o tempo, a história, as circunstâncias, os objetivos e a perspectiva de seu realizador. Qualquer tradução denuncia sua origem numa interpretação, ainda que seu realizador não a assuma como tal.

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Nenhuma tradução será, portanto, neutra ou literal; será, sempre e inescapavelmente, uma leitura (1992a: 78).

Com relação à proposta de Venutti de resistência intencional à fluência, Arrojo (idem) também se posiciona, até certo ponto, questionando a proposta do autor da (in)visibilidade, argumentando que além de pressupor que o tradutor possa, ou não, aparecer no texto traduzido caso opte pela "resistência" ou pela "fluência", Venutti, em sua reflexão não considera que, mesmo que o tradutor faça uma dessa opções, sua "intenção consciente" não poderá se fixar no texto como uma origem estável e, portanto, passível de ser resgatada por seu leitor. Nesse sentido, além de amparar uma contradição básica, tal argumentação parece ingênua, caindo na própria armadilha que pretende montar ao desalojar do processo de tradução a figura do autor como origem controladora dos significados. A sugestão da teórica pós-moderna ao criticar Venutti é uma proposição de aceitação da presença de um outro autor no texto traduzido e a conscientização de que o leitor/tradutor participa e interfere duplamente no processo autoral; partindo deste reconhecimento de que há, pelo menos, um "outro" autor a habitar o texto traduzido, há a possibilidade de realmente se aceitar que nenhum tradutor é inocente diante do texto que traduz e nem está diretamente empenhado numa busca cega por fidelidade ao texto de partida. Arrojo (1992b: 70), referindose à atitude que o tradutor deve assumir, acrescenta : Uma das implicações fundamentais da aceitação da presença do outro autor no texto traduzido é a possibilidade de que tradutores e tradutoras deixem de fingir uma neutralidade e uma ausência impossíveis e, conseqüentemente, uma inocência e uma fidelidade também impossíveis, abrindo caminho para o início de uma nova tradição instalada fora dos limites da invisibilidade e da culpa milenares que têm constituído o cenário e o enredo de seu trabalho. Quanto mais visível se tornar a presença do tradutor no texto traduzido, quanto maior sua visão acerca do processo do qual é agente e promotor, menores serão as chances de que seja ignorado, marginalizado e indignamente remunerado.

A crença na possibilidade e invisibilidade do tradutor, apregoada pelo logocentrismo, marginaliza e influi na visão que a sociedade tem do tradutor, ocasionando e justificando a exploração econômica do ofício tradutório, políticas trabalhistas injustas, bem como falta de espaço nas instituições de ensino e de pesquisa da tradução como objeto de reflexão. Segundo Arrojo (p. 64), força os tradutores a abrirem mão de quaisquer direitos autorais e a aceitarem uma remuneração baseada no número de palavras ou no número de laudas traduzidas,

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separando-os do produto de seu trabalho e assemelhando-o ao produto de indústrias manufatureiras e de serviços. Separa o autor do tradutor, posicionando o autor como aquele que detém o controle - em mais de um sentido - de seus direitos autorais, reverenciado como criador, ocupando lugar de destaque nas capas de livros e bibliografias, e ao tradutor atribuilhe uma função mecânica e coadjuvante, a de alguém que está sempre se escondendo, se desculpando pela inadequação que a tradição lhe impõe, e sendo assim, digno apenas de um reconhecimento e remuneração secundários.

É possível olhar um pouco além e analisarmos o que Arrojo (1992b: 419) fala também sobre as conseqüências do reflexo que o logocentrismo tem sobre a profissionalização do tradutor. Para a autora, "ao lhe atribuir o papel de mero transportador invisível de significados, que deve ignorar-se e a seu tempo e lugar ao realizar sempre desajeitadamente as operações desse transporte de risco, a sociedade humilha e aliena o tradutor e seu ofício”. Outros resultados dos pressupostos logocêntricos e das expectativas que a tradição logocêntrica projeta para o processo de tradução são comentados por Arrojo e parafraseados aqui. Quando se atribui caráter de deidade ao chamado "original", pressupondo-o capaz de se manter o mesmo apesar das diferenças inevitáveis, da passagem do tempo, das mudanças ideológicas e contextuais, o logocentrismo necessariamente espera de toda tradução uma eficiência sobre-humana, capaz de interromper o fluxo do tempo e de neutralizar quaisquer diferenças. No entanto, esse "milagre", segundo Arrojo (1992b: 419), nunca ocorre, e permanece uma fantasia, por mais que se esforcem os tradutores comprometidos com a fidelidade total ao "original", e ela aponta a repetição do anseio tradicional e caso este não se manifesta como o esperado, toda tradução passa a estar sempre, em algum nível e para algum crítico, associada à frustração e ao insucesso; toda tradução passa a ser sempre "menor", sempre "insatisfatória", sempre apenas uma derivação desajeitada de um original idealizado e inatingível. Esse destino de fracasso e de impossibilidade, de acordo com Arrojo (idem), faz do tradutor um Quixote

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empobrecido, um cavaleiro de triste figura, dono de um mísero nome que merece ser apagado, escondido, da mesma forma que seu trabalho, vagamente indecente, tem que passar despercebido, tem que ser invisível. John Florio, (apud Arrojo), destacado tradutor inglês de Montaigne, desculpava-se por suas incursões nessa atividade degradada, já que todas as traduções são sempre defeituosas e, portanto, aparentadas com o sexo feminino. (1992b; 418-419). O preconceito com a profissão de tradutor também é visto em anedotas populares como a que é expressa através do trocadilho italiano "traduttore-traditore", que devido às semelhanças sonoras entre os dois vocábulos, usam-no para associar a tradução à traição. Outro exemplo é visto na comparação machista e depreciativa que relaciona as traduções com as mulheres: quando fiéis, não podem ser bonitas, e quando bonitas, não podem ser fiéis. Ao aceitar o papel que a tradição logocêntrica lhe impõe como mero transportador de significados estáveis, o tradutor não se reconhece como intérprete do texto que traduz, portanto, pode tornar-se assim visível? Conseqüentemente, não necessita de uma formação acadêmica, mas somente do conhecimento das línguas envolvidas. Também não há a necessidade de que assuma a responsabilidade autoral que lhe cabe e por isso não terá direito a reivindicar qualquer reconhecimento. Mas quando o tradutor se torna visível no texto traduzido, reconhecido e remunerado dignamente por seu ofício, suas responsabilidades autorais serão maiores, bem como maior será a probabilidade de que realize um trabalho mais meticuloso e bem-feito. A visibilidade chama o tradutor à realização de um trabalho mais apurado tendo em vista a avaliação de seu trabalho por aqueles que estarão se utilizando dele. Concluindo, retomo a teórica pós-moderna, que muito bem expressa a virada de mesa que devem tradutores comprometidos com sua profissão proceder. Uma "virada" que só terá sentido quando abrirem mão da crença na possibilidade de significados estáveis e começarem a se conscientizar de que o tempo e as circunstâncias influenciam na leitura, deixarem de pensar na tradução como a responsável pela morte do original e passarem a aceitá-la como aquela que dá sobrevida ao original, segundo W. Benjamim, como a própria sobrevivência do original, ou seja, é através da tradução que o original sobrevive e se expande. Tal reconhecimento libertará a tradução do complexo de inferioridade e do desejo compulsivo de pedir desculpas pelos "remendos" feitos por ela. A partir daí, a tradução perde

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também a sua inocência e passa a ser feita de forma mais consciente das intervenções realizadas nos textos traduzidos. Assim, conforme Arrojo, "traduzir deixa de ser uma atividade inútil ou invisível, que deve passar despercebida, e se assume como uma inevitável forma de conquista ou de tomada de poder, que necessariamente reescreve o passado e se apropria de outras culturas e linguagens" (1992b: 437).(grifo nosso)

Como aplicar toda essa discussão teórica à nossa tradução? Em verdade não foi essa nossa intenção. E cremos que teorias e discussões teóricas não visam essa aplicabilidade imediata. Nós a apresentamos para que todo tempo que lêssemos Anouilh ela ficasse como um pano de fundo de nossa intervenção tradutória. Nos guiando mais inconscientemente que mecanicamente. Nós estaremos necessariamente reescrevendo um passado e nos apropriando de Anouilh. As perguntas que nos guiam agora são: De que passado, de que linguagens, de que textos nos apropriaremos? Que adequações, equivalências, correspondências produziremos nós? (TURK, Horst (1987) O que é que estaremos transpondo?

Nasceu em 23 de junho de 1910 em Bordeaux (França}, morreu de ataque cardíaco na Suíça em 3 de outubro de 1987. Filho de François Anouilh (alfaiate) e Marie-Magdeleine Soulue ( música, professora de piano). Casou-se com Monelle Valentin (a triz divorciada) mãe de Catherine. Casou-se com Nicole Lancon, tendo como filhos Catherine, Caroline, Nicolas e Marie-Colombe. Tentou fazer Direito, mas largou quando descobriu em 1928, Giraudoux e seu Siegfried e Cocteau com seu (O Casamento da Torre Eiffel, trad. de Michelotto, 1978) Les Mariés de la tour Eiffel. Com 22 anos, é o secretário de Louis Jouvet no Théâtre des Champs-Élysées; depois trabalha dois anos numa agência de publicidade (com, entre outros, Jacques Prévert e Jean Aurenche). Peter Brook disse dele: ” Ele escreve peças antes para ser encenadas que lidas. Suas peças são improvisações gravadas...é um poeta, mas não de palavras, mas de palavras-atuadas, de cenas de palco, de performances de atores.” Anel em torno da Lua ( trad. de L'Invitation au chateau/ Convite para ir ao castelo.) Em 1929 representa sua primeira peça, um desastre, Humulus le muet. Em 1932 escreve sua primeira peça “de verdade”: L'Hermine. Decide viver de sua escrita, mas seu início é duro. Vai conhecer seu primeiro grande sucesso em 37, com O Viajante sem bagagens noThéâtre des Mathurins. Os atores principais são Sacha e Ludmilla Pitoëff; Darius Milhaud escreveu uma música estranha, em forma de suite para violão, clarinette e piano, (op 157b). Em 1938, obteve um novo sucesso de crítica e público com Bal des Voleurs, e começa um período de colaboração com André Barsacq. Ele será seu principal interlocutor e diretor durante os próximos 15 anos.

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Sua peça mais célebre, Antigone, de 1942, será representada pela primeira vez sob a ocupação alemã em 1944, com direção, figurino e cenários de André Barsacq, no Théâtre de l'Atelier. Como inúmeros outros acontecimentos, Antigone será muito mal recebida. Quando estreou: ninguém aplaudiu. E no final, ambos lamentaram terem escrito e encenado a peça e estavam certos de que ela era uma verdadeira catástrofe. A crítica se dividiu, a peça tinha uma ressonância estranha, ambígua, pelo fato da figura trágica de Antígone se parecer com as heroinas da Resistência. Numa das noites chegou-se até a distribuir panfletos a favor da Resistência, com a anuência de Anouilh e Barsacq. Antígone iniciou sua carreira como uma dos pontos altos da dramaturgia de Anouilh. Ele nos serviu o melhor vinho primeiro, não é normal? Quando chegar a Liberação, Anouilh se levantará contra os expurgos. Tentando salvar a vida de Robert Brasillach. Escreveu na época (1945): “Confesso ter uma certa compaixão pelos vencidos e temo os excessos cometidos nos expurgos ”. Vários escritos posteriores retomarão esta mesma linha de conduta. O problema é que Brasillach colaborou com os alemães sendo responsável pela deportação e morte de um sem número de cidadãos franceses (fossem judeus ou...). Certamente esses mereceriam mais pena que Brasillach, não? Mas uma coisa é certa: nós não estávamos lá, entendeu?! Para azar de Anouilh, ele estava... e essa foi a mancha negra de sua vida.

Através de textos aparentemente ingênuos, Anouilh desenvolverá uma visão profundamente pessimista da existência.Como escreveu Kleber Haedens ” Anouilh nos toca por seus apelos ao sonho,sua nostalgia de um mundo puro e perdido.” Em 1946, Romeu e Jeannette, foram encenados por André Barsacq ; trata- se da primeira peça interpretada por Michel Bouquet,e por Jean Vilar e Maria Casarès. Depois disso a fecundidade de Anouilh como autor não mais cessou. Sua carreira será de inumeráveis sucessos durante quase duas décadas. Entre os insucessos não se pode esquecer o da representação de A gruta, em 1961. Os tempos estavam mudando... Muitas de suas peças foram adaptadas ou para filmes ou TV. Romeo e Jeannette foi adaptado e produzido como Monsoon (United Artists, 1953); A Valsa dos toreadores (Continental Distributing, 1962); e em 1963 o filme da Paramount Becket baseou-se ma tradução de Lucienne Hil de Becket, ou L'Honneur de Dieu. Produções de TV incluem "The Lark" 1956-57, e "Time Remembered," baseado na tradução de Patricia Moyes de Leocadia, 1961, ambas no Hallmark Hall of Fame, CBS; "Traveler without Luggage," na NET Playhouse, PBS, 1971; "Antigone,"Playhouse New York, PBS, 1972; e The Young Man and the Lion, PBS, 1976.

Jean Anouilh classificou sua própria obra em: Peças Negras, Peças Rosas, Peças Brilhantes, Peças Que Rangem, Peças de Costumes, Peças Barrocas, Peças Secretas e Farsas.

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Ele sempre trata do mesmo tema: a revolta contra a riqueza e contra o privilégio de nascimento, a recusa do mundo baseado na hipocrisia e na mentira, o desejo absoluto, a nostalgia do paraíso perdido da infância, a impossibilidade do amor, a conclusão de tudo com a morte.Anouilh não cai na peça de tese, mas diversifica suas criações desde o afresco até à sátira, passando pela tragédia. Antes de tudo ele coloca a encenação. Peças Negras No universo de Anouilh há dois tipos de homem que se afrontam” as pessoas para todos os dias” e os “heróis”. A raça numerosa das pessoas para todos os dias, compreende duas categorias distintas. Primeiro os fantoches, egoístas, mesquinhos, vazios e vulgares, viciosos e maus, contentes consigo mesmo e com a vida.Esses são na maior parte dos casos, os pais , as mães dos heróis. Em seguida vem o grupo das pessoas dignas e inteligentes, mas incapazes de grandes aspirações, feitos para uma vida tranqüila e sem complicações. Os “heróis” , jovens na maioria, se opõem igualmente a esses dois grupos numerosos, rejeitando a felicidade comum em que eles se comprazem. Mas eles não se constituem em uma categoria única. Dois tipos podem se distinguir: os que têm um passado pesado, do qual eles tentam escapar e os que identificam seu passado com o mundo puro da infância e se esforçam por conservá-lo intato. Os heróis de Anouilh são incapazes de se livrar de seu passado. São amaldiçoados, pois pertencem a este passado. Prisioneiros de seu passado , de sua posição social, de sua pobreza, eles não encontram outra saída senão a fuga da morte ou a morte. As Peças Negras: Eurídice, Antigone e Média são retomadas de mitos conhecidos, mas Anouilh faz delas obras modernas onde a história não tem mais o papel principal. Essas peças nos espantam desde o início pela familiaridade do ton e do estilo falado, algumas vezes vulgar,muito afastado do estilo nobre e rebuscado próprio da tragédia clássica. Ao mesmo tempo, como seu mestre Giraudoux, Anouilh usa abundantemente de anacronismos : aí se falam de cartões postais, de cafés, de bares, cigarros, fuzis, filmes, carros, corridas etc. E ainda por cima os personagens vestem roupas do século XX. De outra parte, como no caso de Antígone, Anouilh emprega pela primeira vez a técnica da “mise em abîme”, do "teatro dentro do teatro" que ele pega de empréstimo a Pirandello. Ao subir a cortina todos os personagens estão em cena, isolados ou em grupos, calados ou batendo papo. O Prólogo se adianta em direção ao público e se põe a apresentá-los indicando brevemente sue caráter e seu papel. O espectador é informado logo desde o início sobre o que vai se passar e não vai mais ficar se perguntando se Antígone vai morrer, mas porque e como. Peça. Rosas A partir de 1937, Anouilh inicia a série de Obras Rosas que ele alterna com as Obras Negras. São comédias divertidas em que ele solta completamente sua fantasia (Le Bal des Voleurs, Le Rendez-vous de Senlis, Léocadia). No universo rosa de Anouilh, há duas categorias de personagens: "os marionetes", que são em geral velhos ridículos e inconsistentes e os amorosos, jovens sinceros que acreditam no amor..

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Peças Brilhantes Um lugar especial entre elas cabe a Colombe (1951), pois Anouilh retoma nela sua técnica preferida: a do “teatro dentro do teatro”! Peças de Costumes A raça dos heróis reaparece em duas dessas peças após a Liberação: A andorinha e Becket, depois em Thomas More ou o homem livre, sua ultima peça. Mas ai não encontramos mais o universo angustiante das primeiras peças negras. Joana d'Arc, Thomas Becket e Thomas More são figuras luminosas que aceitam se sacrificar não por razões existenciais, mas em nome do dever: para com a pátria (Joana) ou para com Deus (Becket et More). Então um dia esses seus valores não mais foram reconhecidos. (1) E isso se anunciou com o fracasso de A Caverna. Depois ele se volta para a direção. Será um dos primeiros a saudar o talento de Beckett quando da criação de Esperando Godot. Ele apoiará também Ionesco, Dubillard, Vitrac... Escreverá

ainda peças nos anos 70 e passará a ser classificado como "auto de teatro de diversão” . Anouilh assume então perfeitamente este papel e reinvindica para si o título de “velho de vida a toa” ( que perambula pelos boulevards...). Chegando mesmo a se apresentar como um simples “fabricante de peças”. Peças Que Rangem (2) Após a Liberação, a produção dramática de Anouilh é marcada por peças que rangem (desde Ardèle ou a Margarida até Umbigo). Sua predileção é a comédia satírica , onde se move sobretudo a raça mais ou menos vulgar das pessoas comuns em seu dia a dia. Fábulas A obra literária de Jean Anouilh compreende igualmente um conjunto de fábulas, algumas narrativas e numerosos roteiros e adaptações para cinema ou televisão.

Diretor, Le Voyageur sans bagage, 1943, nos EEUU: Identity Unknown (Identidade desconhecida), Republic Pictures, 1945. Deux sous de violettes, France, 1951. (Com Jean Aurenche) Humulus le muet, Editions Francaises Nouvelles, c. 1929. L'Hermine, Theâtre de l'Oeuvre, Paris, France, 1932, Les Oeuvres libres, No. 151, 1934, Trad. Inglesa de Miriam John : The Ermine, in Plays of the Year, Vol. 13, Ungar, 1956. (Η ερμίνα) Mandarine, Theatre de l'Athenee, Paris, 1933. Y'avait un prisonnier ("There Was a Prisoner"), Theatre des Ambassadeurs, Paris, 1935, La Petite illustration, May 18, 1935.

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Le Voyageur sans bagage, Theatre des Mathurins, Paris, 1937, La Petite illustration, 10/o4/ 1937, Trad.: John Whiting , publicada como Traveller without Luggage, Methuen, 1959, encenado no Arts Theatre, London, U.K., 1959, trad. de Lucienne Hill produzido pela American National Theatre Academy (ANTA) Playhouse, New York City, 1964. (Ταξιδιώτης χωρίς αποσκευές) La Sauvage, Theatre des Mathurins, 1938, Les Oeuvres libres, No. 201, 1938, trad. de Lucienne Hill : Restless Heart, Methuen, 1957, encenado no St. James Theatre, London, 1957. Le Bal des Voleurs, Theatre des Arts, Paris, 1938, Theatre des Quatre Saisons, New York City, 1938, Les Oeuvres libres, No.209, 1938, e por Editions Francaises Nouvelles, 1945, trad. de Lucienne Hill : Thieves' Carnival, Methuen, 1952, e by Samuel French, Inc., 1952, encenado no Cherry Lane Theatre, New York City, 1955. Rendez-vous de Senlis, Theatre de l'Atelier, Paris, 1938, Editions de la Table Ronde, 1958, encenado no Edwin O. Marsh : Dinner with the Family, Methuen, 1958, encenado no New Theatre, London, 1957, Gramercy Arts Theatre, New York City, 1961. Leocadia, Theatre de l'Atelier, 1939, trad. de Patricia Moyes : Time Remembered, Methuen, 1955, e Coward, 1958, encenado no MoroscoTheatre, New York City, 1957. ( Λεοκάντια) Eurydice, Theatre de l'Atelier, 1941, trad. por Mel Ferrer encenado no the Coronet Theatre, Los Angeles, CA, 1948, trad. por Kitty Black : Point of Departure, Samuel French, Inc., 1951, encenado no Lyric Hammersmith Theatre, London, 1950, Mannhard't Theatre Foundation, New York City, 1967, Legend of Lovers, Coward, 1952, encenado no Plymouth Theatre, New York City, 1951. Antigone, Theatre de l'Atelier, 1944, Editions de la Table Ronde, 1946, trad.de Lewis Galantiere, Random House, 1946, encenado no the Court Theatre, New York City, 1946. (Αντιγόνη) Romeo et Jeannette, Theatre de l'Atelier, 1946, adaptação de Donagh MacDonagh encenado como Fading Mansion, Duchess Theatre, London, 1949, trad. Miriam John, produzido como Jeannette, Maidman Playhouse, New York City, 1960. L'Invitation au chateau, Theatre de l'Atelier, 1947, Editions de la Table Ronde, 1948, e Cambridge University Press, 1962, trad. Christopher Fry : Ring Around the Moon, Oxford University Press, 1950, encenado no Martin Beck Theatre, New York City, 1950, adaptação de Clifford Bax, The Pleasure of Your Company , London Ardele, ou La Marguerite, Commédie des Champs-Elysees, Paris, 1948, adapt. Cecil Robson prod. como Cry of the Peacock, Mansfield Theatre, New York City, 1950, trad. Lucienne Hill: Ardele, Methuen, 1951, encenado no Cricket Theatre, New York City, 1958. Episode de la vie d'un auteur, Commédie des Champs-Elysees, 1948, Cahiers de la compagnie Madeleine Renaud--Jean-Louis Barrault, Julliard,1959, trad. encenada como Episode in the Life of an Author, Studio Arena, Buffalo, NY, 1969, mais tarde Off- Broadway. Cecile, ou L'Ecole des pères, Commédie des Champs-Elysees, 1949, Editions de la Table Ronde, 1954, trad. Luce Klein e Arthur Klein : Cecile, or the School for Fathers, in From the Modern Repertoire, 3rd series, Indiana University Press, 1958. La Repetition, ou L'Amour puni, Theatre Marigny, Paris, 1950, e Ziegfeld Theatre, New York City, 1952, trad. Pamela Hansford Johnson e Kitty Black: The Rehearsal, Coward, 1961, encenado no Royale Theatre, New York City, 1963. Colombe, Théâtre de l'Atelier, 1951, Livres de Poche, 1963,adapt. de Denis Cannan , ed. Coward, 1954, encenado no the Longacre Theatre, New York City, 1954. (Κολόμπ) Monsieur Vincent, Bayerisch Scheulbuch-Verlag, 1951.

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La Valse des Toreadors, Editions de la Table Ronde, 1952, trad. de Lucienne Hill : The Waltz of the Toreadors, Elek, 1956, and Coward, 1957, encenado no Coronet Theatre, New York City, 1957. (Το βαλς των ταυρομάχων) L'Alouette, Theatre Montparnasse, Paris, 1953, Editions de la Table Ronde, 1953, Methuen, 1956, and Appleton, 1957, trad. de Christopher Fry: The Lark, Methuen, 1955, e Oxford University Press,1956, trad. de Lucienne Hill: "Joan", publicado como TheLark, Random House, 1956, adapt. de Lillian Hellman, encenado como The Lark, Longacre Theatre, New York City, 1955. (Ο κορυδαλλός) Medeía, Theatre de l'Atelier, 1953, Editions de la Table Ronde, 1953, trad. de Lothian Small : Medea, in Plays of the Year, 1956, Vol. 15, Ungar, 1957. (Μήδεια) Ornifle, ou Le Courant d'air, Commédie des Champs-Elysees, 1955, Editions de la Table Ronde, 1955, trad. de Lucienne Hill: Ornifle: A Play, Hill & Wang, 1970. Pauvre Bitos, ou Le Diner de têtes, Theatre Montparnasse, 1956, Editions de la Table Ronde, 1958, Harrap, 1958, trad. de Lucienne Hill : Poor Bitos, Coward, 1964, encenado no Classic Stage Company, New York City, 1969. Hurluberlu, ou Le Reactionnaire amoureux, Commédie des Champs- Elysees, 1959, Editions de la Table Ronde, 1959, adapt. de Lucienne Hill: The Fighting Cock, Coward, encenado no ANTA Playhouse, New York City, 1959. Madame De ..., trad. de John Whiting, Samuel French, Inc., c. 1959, encenado no mesmo programa de Traveller without Luggage, ArtsTheatre, London, 1959. Becket, ou L'Honneur de Dieu, Theatre Montparnasse, 1959, Editions de la Table Ronde, 1959, trad. de Lucienne Hill : Becket, or the Honor of God, Coward, 1960, encenado como Becket, St. James Theatre, New York City, 1960. (Μπέκετ ή Η τιμή του Θεού) (with Roland Laudenback), La Petite Moliere, Theatre Festival of Bordeaux, France, 1960, in L'Avant Scene, December 15, 1959. La Grotte, Theatre Montparnasse, 1961, Editions de la Table Ronde, 1961, trad de Lucienne Hill : The Cavern, Hill &Wang, 1966, encenado no Playhouse in the Park, Cincinnati, OH, 1967, e no Classic Stage Company, New York City, 1968. La Songe du critique, Lensing (Dortmund, Germany), 1963. La Foire d' Empoigne, Paris, 1962, Editions de la Table Ronde, 1961. L'Orchestre, 1962, in L'Avant Scene, November 15, 1962, trad. Encenada como Orchestra, Studio Arena Buffalo, NY,1969, and Off-Broadway. tradutor de Richard III, Theatre Montparnasse, 1964. Cher Antoine, ou l'Amour rate, Commédie des Champs-Elysees, 1969, Editions de la Table Ronde, 1969, trad de Lucienne Hill : Dear Antoine, or The Love That Failed, by Hill & Wang, 1971, encenado no Chichester Festival Theatre, Chichester, U.K., 1971,e no Loeb Drama Center, Harvard University, 1973. Le Boulanger, la boulangere et le petit mitron, Commédie des Champs- Elysees, 1968, Editions de la Table Ronde, 1969, trad de Lucienne Hill , encenado como The Baker, the Baker's Wife, and the Baker's Boy, University Theatre, Newcastle, U.K., 1972. Le Theatre, ou La Vie comme elle est ("Theatre, or Life as It Is"), Commédie des Champs-Elysees, 1970.

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Ne reveillez pas Madame ("Don't Wake Up Madame"), Commédie desChamps-Elysees, 1970, Editions de la Table Ronde, 1970. Les Poissons rouges, ou Mon Père, ce héros, ("The Goldfish" ou "The Red Fish"), Theatre de l'Oeuvre, 1970. Tu etais si gentil quand tu etais petit, ("You Were So Nice When You Were Little"), Theatre Antoine, Paris, 1972, Editions de la Table Ronde, 1972. Le Directeur de l'Opera, Editions de la Table Ronde, 1972. The Navel, 1981

Coleções em francês, todas publicadas pelas Ed.de La Table Ronde a menos que seja indicado. Peças Rosas contém O Baile dos Ladrões( Le Bal des voleurs,) O encontro em Senlis( Le Rendez-vous de Senlis) e Leocadia, Editions Balzac, 1942, second edition. (Húmulus o mudo) Humulus le muet, Editions de la Table Ronde, 1958. Peças Negras contem ( A Hermínia) L'Hermine,(O Selvagem) La Sauvage,(O Viajante sem bagagem) Le Voyageur sans bagage, e (Eurídice) Eurídice, Editions Balzac, 1942. Novas peças negras contém Jezebel, Antigone, Romeo e Jeannette, e Medea, 1946. Peças brilhantes contém (Convite ao castelo) L'Invitation au chateau, (Pomba )Colombe, (O ensaio ou o amor punido)La Repetition ou L'Amour puni,(Cecília, ou a Escola dos Pais) Cecile, ou L'Ecole des pères, 1951. Peças sem óleo,incluem Ardele, ou La Marguerite, La Valse des toreadors,

(Ornifle ou a corrente

de ar)Ornifle, ou Le Courant d'air, (Pobre Bitos , ou a almoço de cabeças)Pauvre Bitos, ou Le Diner de tetes, 1956. Peças de costume: L'Alouette, (B. ou a honra de deus)Becket, ou L'Honneur de Dieu, La Foire d'Empoigne, 1960. Peças sem óleo,incluem (O abestalhado ou o recionário amoroso)L'Hurluberlu, ou Le Reactionnaire amoureux, (A caverna)La Grotte,() A orquestra L'Orchestre,(O padeiro, a mulher do padeiro e o filhinho do padeiro)) Le Boulanger, la Boulangere, et le petit mitron, (Peixzinhos dourados / ou vermelhos, ou meu pai, este herói)Les Poissons rouges, our Mon Pere, ce heros, 1970.

Inglês Collected plays in three volumes published by Hill &Wang: Vol.I published as Five Plays, contains Antigone, Eurydice, The Ermine, The Rehearsal, and Romeo and Jeannette, 1958, Vol. II published as Five Plays, contains Restless Heart, Time Remembered, Ardele, Mademoiselle Colombe, and The Lark, 1959, Vol. III published as Seven Plays, contains Thieves' Carnival, Medea, Cecile, or the School for Fathers, Traveler without Luggage, TheOrchestra, Episode in the Life of an Author, and Catch as Catch Can, 1967.

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The Collected Plays, Methuen, Vol. I contains The Ermine, Thieves' Carnival, Restless Heart, Traveller without Luggage, and Dinner with the Family, 1966, Vol. II contains Time Remembered, Point of Departure, Antigone, Romeo andJeanette, and Medea, 1967.

Outros escritos de Anouilh (Editor e tradutor) Trois Comedies: As You Like It, The Winter's Tale, Twelfth Night, Editions de la Table Ronde, 1952. (com Pierre Imbourg e Andre Warnod) Michel-Marie Poulain, Braun, 1953. (com Nicole Anouilh) (O amante complacente )L'Amant complaisant,trad. de Graham Greene: The Complaisant Lover, Laffont, 1962. (ADAPTADOR) Victor de Roger Vitrac, in L'Avant Scene, November 15, 1962. (tradutor) Il est important d'etre aime, Oscar Wilde's The Importance of Being Earnest, in L'Avant-Scene, No. 101. CO- AUTOR com Leon Thoorens, Le Dossier Moliere, 1964; Tradutor e adaptador de (Desejo debaixo dos Elmos) Desire Under the Elms; escreveu (Átila, o magnífico) Attile le magnifique,1930; (A pequena felicidade)Le Petit bonheur, 1935;(A incerteza) L'Incertain, 1938.

Escritos para teatro (Autor de dialogues, com Jean Aurenche) Les Degourdis de la onzieme, 1936. (Autor de dialogues, com Jean Aurenche) Vous n'avez rien a declarer, 1937. (Autor de dialogues, com Aurenche) Les Otages, 1939. (cenarista e autor de dialogues, com Aurenche) Le Voyageur sans bagage, 1943, Identity Unknown, Republic Pictures,1945. (adaptador e autor de dialogues,com J; Duvivier e G; Morgan) Anna Karenina, 1947. (roteirista e autor dos diálogos com J; Bernard-Luc), Monsieur Vincent, Lopert, 1949. (roteirista, adaptador e autor dos diálogos com, with Bernard-Luc) Pattes Blanches, 1948. (adaptador e autor dos diálogos) Un Caprice de Caroline cherie, 1950. (adaptador e autor dos diálogos com sua mulher Monelle Valentin) Deux sous de violettes, 1951. (adaptador, roteirista e autor dos diálogos) Le Rideau rouge (ce soir joue Macbeth), 1952. (adaptador e autor dos diálogos) Le Chevalier de la nuit, 1953.

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(adaptador e autor dos diálogos) The End of Belle, filmado como The Passion of Slow Fire, Trans-Lux Distributing, 1962. (adaptador e autor dos diálogos) La Ronde, 1964. (adaptador e autor dos diálogos) La Grain de beaute, 1969. (adaptador e autor dos diálogos) Waterloo, Paramount, 1971. (adaptador e autor dos diálogos) Time for Loving, 1972. (adaptador e autor dos diálogos) A Room in Paris. Também autor de: A Viscondessa de Eristal ainda não recebeu seu tapete mecânico(Carpet Sweeper (autobiografia)), 1987; e scripts para os ballets Les Demoiselles de la nuit e Le Loup.

http://www.filmreference.com/film/81/Jean-Anouilh.html#ixzz0lCErNaqr NOTAS (1) Mas aqui cabe dizer.

É meio doloroso, mas é estranho como o mundo muda e por vezes alguns luminares não o percebem. Como dissemos acima: nos anos 60 algo havia se removido definitvamente do lugar. Todo esse “sentimento” de vazio ou de grandeza , inspirados por deus, pátria, família, foi de uma vez por todas colocados sob a etiqueta de “conservadorismo”ou “reacionarismo” e deixados para os mais velhos que um dia iriam se acabar, deixando o mundo um pouco mais leve e limpo, sem dúvida. E olha que gosto de Anouilh! Anouilh os matou de vez em suas Peças Negras, não é estranho? Mas foi exatamente o que foi matando Anouilh, Nelson e toda a geração que ainda escrevia até os anos 50, agora agarrada em seu passado. Ficaram cotidianos demais. Então um dia seus dias não mais foram reconhecidos. Para dizer a verdade, ninguém sabe porque. Pois eles mesmos em seus textos não mais reconheciam esse passado, esse dia a dia, esse recurso ôco ( deus, pátria, família) essa grandeza inútil. Nelson sobretudo que o diga! Certamente seus procedimentos não envelheceram. Então um dia seus dias não mais foram reconhecidos. E isso se anunciou com o fracasso de A Caverna. Depois ele se volta para a direção. O curioso deste autor é que enquanto se prendia em

sua obra, não deixou de saudar (será um dos primeiros!) o talento de Beckett quando da criação de Esperando Godot. Ou Ionesco, Dubillard, Vitrac... Escreverá ainda peças nos anos 70 e passará a ser classificado como "autor de teatro de diversão” . Anouilh assume então perfeitamente este papel e reinvindica para si o título de “velho de vida a toa” ( que perambula pelos boulevards...). Chegando mesmo a se apresentar como um simples “fabricante de peças”. (2) O título possivelmente vem de uma frase de Anouilh no famoso e admirável segundo Coro de Antígone, quando fala da caraterísticas da tragédia em oposição aos melodramas etc. “The machine is in perfect order; it has been oiled since time began, and it runs without friction” Essas peças seriam o contrário das tragédias, creio eu!

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Parte II

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1942

Antígona Creonte Hemon Ismênia Eurídice

_____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________

A Babá _____________________________________ O pajem _____________________________________ Os Guardas _____________________________________ O Mensageiro _____________________________________ O Coro _____________________________________ O Prólogo (1) _____________________________________

A peça inicia com o Prólogo, mas ele não é mencionado entre os personagens. É possível que seja feito pelo Mensageiro, ou alguém do Coro.

Observaçãm que muyto importa leer: Nossas notas de tradução ou palavras acrescentadas, que julgarmos necessárias à fluência específica da língua brasileira, serão escritas em azul, cor diferente da do texto original de Anouilh. As rubricas do autor, em vermelho, já que rubricas. E com tabulação à esquerda, conforme o texto francês. Pela mesma razão, nomes de personagens são tabulados no centro, em maiúsculas

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Cenário neutro. Três portas iguais. Ao abrir a cortina todos personagens estão em cena. Batem papo, tricotam, jogam baralho. O Prólogo se afasta deles e vai para a frente do palco.

O PRÓLOGO Eis aí. Esses personagens vão representar para vocês a história de Antígone. Antígone é a magrelinha que está sentada lá mais ao fundo e que não fala nada. Ela apenas olha reto em frente.Ela pensa. Ela pensa que daqui a pouco ela será Antígone, que ela surgirá da moça magra e meio negra e trancada que ninguém na família levava a sério e irá se erguer sozinha diante do mundo, sozinha diante de Creonte, seu tio, que é o rei. Ela pensa que irá morrer, que ela é jovem e que, também ela, gostaria muito de continuar vivendo.Mas não há nada que se possa fazer para isso.Ela se chama Antígone e será necessário que ela represente seu papel até o fim... E, desde que essa cortina se abriu, ela sente que se afasta, em vertiginosa velocidade, de sua irmã Ismênia, que bate papo e ri com um jovem; ela sente que se afasta de todos nós, que aqui estamos bem tranqüilos a olhá-la, de nós que não iremos morrer esta noite. O jovem com o qual conversa a loura, a bela, a feliz Ismênia, é Hemon, o filho de Creonte. Ele é o noivo de Antígone. Tudo o levava rumo a Ismênia: seu gosto pela dança e os jogos, seu gosto pela felicidade e o sucesso e também sua sensualidade, pois Ismênia é bem mais bonita que Antígone, mas aí, uma bela noite de baile em que ele havia dançado o tempo todo apenas com Ismênia, uma noite em que Ismênia tinha se apresentado esplêndida com seu vestido novo, ele foi se encontrar com Antígone que sonhava em um canto qualquer, como agora, seus braços envolvendo os joelhos, e ele pediu que ela fosse sua mulher. Ninguém jamais compreendeu o porquê. Antígone levantou seus olhos sérios para ele, sem nenhuma surpresa e ela lhe disse “sim”, um sim acompanhado de um pequeno sorriso triste... A orquestra tocava para uma outra dança; Ismênia ria desabridamente. Lá ao longe, por entre outros jovens e, pronto, eis que ele iria ser o marido de Antígone. Ele não sabia que não deveria jamais existir marido algum de Antígone por sobre esta terra e que esse título principesco lhe dava apenas o direito de morrer. Este homem robusto, de cabelos brancos, que está a meditar ali perto de seu pajem, é Creonte. E é o rei. Ele tem rugas, ele está cansado. Ele representa o difícil jogo de guiar homens. Antes do tempo de Édipo, quando ele não era o primeiro personagem da côrte. Ele amava a música, os livros bem encadernados, os longos passeios sem finalidade por entre os pequeno antiquários de Tebas. Mas Édipo e seus filhos estão mortos.Ele abandonou seus livros, seus objetos, ele arregaçou suas mangas e tomou seu lugar. Algumas vezes, ao anoitecer, ele está fatigado e se pergunta se não é uma perda de tempo o conduzir homens. Se isso não é um ofício sórdido que se deveria deixar para outros mais frustrados...Bem, mas ao amanhecer problemas precisos são postos, os quais é preciso resolver, e ele se levanta tranqüilo, como um operário no meio de sua jornada. A velha senhora que tricota, ao lado da babá que educou as duas meninas, é Eurídice, a mulher de Creonte. Ela tricotará durante toda a tragédia até que chegue seu momento de se levantar e morrer. Ela é boa, digna, amorosa; ela não lhe serve de nada. Creonte está só, só com seu pequeno pajem que é muito pequeno e também não pode fazer nada para ajudá-lo. Esse rapaz, lá bem mais no fundo, que sonha, encostado à parede, solitário, é o Mensageiro.É ele quem virá daqui a pouco anunciar a morte de Hemon. É é por isso que ele não tem vontade de papear nem de se misturar com os outros. Ele já sabe... E finalmente , os três gajos avermelhados que jogam baralho, de chapéu à nuca, são os guardas. Não são uns cães degenerados assim: eles têm mulheres, eles têm filhos e pequenas chateações na vida, como todo mundo, mas daqui a pouco eles pegarão os acusados com a maior tranqüilidade do mundo. Eles fedem a alho, a couro e vinho tinto e são completamente desprovidos de imaginação. São os auxiliares da justiça, sempre inocentes e sempre satisfeitos com eles mesmos. Nesse momento, até que um novo chefe de Tebas devidamente empossado lhes dê ordens por sua vez para prendê-lo, eles são os auxiliares da justiça de Creonte.

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ANOUILH & MICHELOTTO E agora que vocês os conhecem a todos, eles poderão apresentar para vocês a sua história. Ela começa no instante em que os dois filhos de Édipo, Etéocle e Polinice, que deveriam reinar em Tebas , alternando-se a cada ano, lutaram um com o outro e se mataram aos pés das muralhas da cidade, depois que Etéocle, o mais velho, se recusou de dar a vez a seu irmão. Sete grandes príncipes estrangeiros que Polinice havia conseguido para defender sua causa, foram vencidos diante das sete portas de Tebas. Agora a cidade está a salvo; os dois irmãos inimigos, mortos, e Creonte , o rei, ordenou que para Etéocle, o bom irmão, seriam feitos imponentes funerais; e ordenou que Polinice, aquele vagabundo, um revoltado e ladrão, seria exposto, sem choros nem sepultura, como presa de corvos e chacais. Qualquer um que ouse lhe fazer as honras fúnebres será impiedosamente punido com a morte. BABÁ Estás vindo de onde?

ANTÍGONE De meu passeio, babá. Foi bonito. Tudo estava cinzento. Agora, você nem imagina como tudo anda rosa, auriverde. Virou um cartão postal. Tens que te levantar mais cêdo, minha babá, se suportas ver um mundo sem cores. Tenta passar pela Babá. BABÁ Eu me levantei e ainda era noite, fui a teu quarto para ver se não te tinhas descoberto enquanto dormias e não te encontrei na cama! ANTÍGONE

O jardim ainda estava dormindo. Eu o surpreendi, babá. Eu o vi sem que ele percebesse. É belo um jardim que ainda não pensa nos homens. BABÁ Tu saíste. Eu passei pela porta do fundo que deixaste entreaberta. ANTÍGONE Nos campos tudo estava molhado e era espera. Tudo esperava. Eu fazia um barulho enorme pela estrada e estava chateada, pois sabia que não era a mim que esperavam. Então tirei minhas sandálias e escorreguei pela relva sem que ela se apercebesse. BABÁ Vais ter que lavar esses pés antes de voltar para a cama. ANTÍGONE

Eu não voltarei para a cama esta manhã. BABÁ Às quatro! Nem eram quatro horas!Eu me levanto e vou ver se estás descoberta. E encontro um leito frio sem ninguém nele. ANTÍGONE Não achas que se me levantasse todos os dias bem cedinho, não seria belo todas as manhãs ser a primeira moça fora de casa? BABÁ De noite! Estava bem de noite!E tás me querendo fazer crer que foste passear, sua mentirosa! De onde é que estás vindo? ANTÍGONE

Tem um estranho sorriso É verdade, ainda estava de noite.E apenas eu, em todo o campo, pensava que já era de manhã. É maravilhoso, babá. Fui a primeira hoje que acreditou no dia. BABÁ E banca a maluca! Vais bancando a maluca, vais.Eu conheço bem essa canção. Eu já fui moça antes de ti. E nunca fui boazinha também, mas cabeçuda que nem és, isso nunca fui. De onde é que estavas vindo, sua mentirosa? ANTÍGONE

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Repentinamente séria Não. Não sou má. BABÁ Tinhas um encontro, né não? Diga que não, ué.... ANTÍGONE

Com doçura Sim. Eu tinha marcado um encontro. BABÁ Arranjaste um namorado? ANTÍGONE

Com estranheza, após um silêncio Sim, babá, sim, coitado. Eu tenho uma paixão. BABÁ Ah, mas que bom! Que gracinha! Tu, a filha de um rei! Vai você se cansar, vai se cansar para educá-los! É tudo igual! Mas tu, tu não eras como os outros, vê lá se ias viver em frente ao espelho, a passar batom, a fazer tudo para que olhassem para ti! Quantas vezes eu me disse: “Meu deus, essa menina, ela não é nada charmosa! Sempre com o mesmo vestido e sempre toda despenteada. Os rapazes só olharão para Ismênia e seus cachinhos e seus laçarotes e vão deixar Antígone para que eu crie!” Pois é, e não é que acabaste pior que tua irmã, sua fingida!Quem é?! Um bandidinho né, quem sabe!Um cara que nem podes anunciar à família: ‘É esse aí com quem vou me casar “.. É isso aí, né não, vá diga sua trapalhona!”. ANTÍGONE

Ainda com um sorriso imperceptível É isso aí, minha babá. BABÁ E ela ainda diz que é! mí-sericórdia! Eu a peguei pequenininha, eu prometi à sua pobre mãe que faria dela uma menina decente e veja o que ma dá! Ah mas isso não vai ficar assim não, minha tolinha. Eu sou tua babá e me tratas como uma velhota imbecil, tá bom, mas teu tio Creonte vai ficar sabendo de tudo. A isso eu te prometo! ANTÍGONE

Repentinamente um tanto cansada Tá bom, tio Creonte saberá. Agora podes ir, tá? BABÁ E vais ver o que ele dirá ao souber que andas saindo à noite. E Hemon, como fica teu noivo?! Ah ela está noiva, imagine! Uma noiva e sai às 4 horas da matina para se encontrar com outro! E esse troço ai ainda quer que a gente saia, que não se fale nada sobre isso! Sabes o que eu deveria fazer, minha menina, é isso ai, uma boa surra daquelas quando eras pequena. ANTÍGONE Oh babucha, não deverias (1) gritar tanto. Não deverias ficar tão braba hoje. BABÁ gritando Não gritar!! E eu lá estou gritando?! Ah eu não deveria gritar por uma coisinha dessas não é?!! Logo eu que fiz uma promessa à tua mamãe! Queéque ela diria , hein, se ela estivesse aqui! “Velha abestalhada! Isso mesmo sua abestalhada, que nem soube guardar pura a minha filhota. Sempre gritando, sempre bancando o cão de guarda, sempre a rodeá-las com lãs e peles para que elas não sintam nunca frio, dando canjinha de galinha para que fiquem fortes: mas às 4 da manhã tu roncas, velha estúpida, tu dormes, quando nem poderias fechar um olho só, e acabas deixando-as cair fora, molenga, e quando consegues ir lá e dar uma olhada(2), a cama já está até fria!” É por aí que tua mãe irá abrir a boca, lá em cima, quando eu subir para vê-la e eu vou morrer de vergonha,

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morrer viu, se eu já não estiver bem morta antes e só vou mesmo é baixar a cabeça e responder ”A senhora tem toda razão, Madame Jocasta” ANTÍGONE

Não, babá. Não chore mais. Vais poder olhar mamãe bem no olho quando fores te encontrar com ela. E eis o que ela te dirá: ”Bons dias, babucha, obrigado por cuidar de minha pequena Antígone, muito obrigado!”. E ela sabe porque eu saí hoje de manhãzinha. BABÁ Não estavas namorando? ANTÍGONE De jeito nenhum, babucha. BABÁ Tas zombando de mim, né não? Me respeita que eu já estou velha!. Sempre foste minha preferida , apesar de teres um caráter bem ruim. Tua irmã era mais meiga, mas sempre cri que eras tu quem me amava. Se me amavas deverias ter me dito a verdade. Por quê tua cama já estava fria quando vim cuidar de ti? ANTÍGONE Não chore mais, por favor, babazinha.

Beija-a Ei minha maçã fofinha, deixa disso. Lembras quando eu te esfregava para que ficasses brilhando? Minha maçã murchinha! Não deixe rolar lágrimas à toa, por besteirinhas como essa. Nem por nada. Eu sou pura, eu não tenho outra paixão que Hemon, meu noivo, eu te juro. Posso até mesmo jurar, se quiseres, que nunca mais haverá um outro que eu ame... Poupa tuas lágrimas, poupa tuas lágrimas, pois talvez ainda precisarás delas de novo, minha babucha. Quando choras assim eu volto a ser pequenina..E hoje, nesta manhã, eu não posso ser pequena.

Entra Ismênia ISMÉNIA Já estás em pé?! Passei em teu quarto... ANTIGONE Sim,me levantei cedo. BABÁ As duas então!... As duas vão acabar malucas, que negócio é esse de se levantar antes das criadas?Estão pensando que é coisa boa estar de pé cedinho em jejum e que isso convém a princesas?!E ainda estão desabrigadas!Vão ver que vão acabar doentes! ANTÍGONE Não te preocupes, Babá. Não está fazendo frio, te garanto, já estamos no verão.Vá fazer um café para a gente, vá. Senta-se atacada repentinamente de cansaço. Eu gostaria bem de um bom café agora, por favor, babucha. Vai me fazer bem. BABÁ Oh minha pombinha! Está com tonteira por causa da barriga vazia e eu fico aqui como uma idiota em vez de ir preparar alguma coisa bem quente. Sai rapidamente. ISMËNIA Estás doente? ANTÍGONE Nada grave. Só um pouco cansada. Sorri. É que me levantei cedo. ISMÉNIA Eu também não consegui dormir

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ANTÍGONE Sorri de novo. Precisas dormir outra vez. Senão amanhã estarás menos bela. ISMÉNIA Não zomba, vá. ANTÍGONE Não estou zombando.Te garanto que nessa manhã eu fico mais segura sabendo que estás bela. Quando eu era menor, lembras, eu era tão infeliz!Eu te borrava toda de terra e botava minhocas em teu pescoço. Um dia eu te amarei numa árvore e cortei teus cabelos, teus belos cabelos... Acariciando os cabelos de Ismênia. Mas como é fácil não se pensar em fazer besteiras quando se tem umas mechas lisas e bem ordenadas ao redor da cabeça, como as tuas! ISMÉNIA De chofre. Por quê estás falando dessas coisas? ANTÍGONE Docemente, sem parar de acariciar-lhe os cabelos. Eu não estou falando de outras coisas... ISMÉNIA Sabes, Antígone, eu pensei bastante... ANTÍGONE Em quê? ISMÉNIA Passei a noite pensando. Estás maluca. ANTÍGONE Tou. ISMÉNIA Não podemos. ANTÍGONE

Após um silêncio, com sua voz baixa E por quê? ISMÉNIA Ele nos mataria. ANTÍGONE Mas claro. Cada um tem um papel. Ele, deve nos fazer morrer; e nós, nós devemos ir enterrar nosso irmão.É assim que as coisas foram distribuídas. Que é que queres que façamos?

ISMÉNIA Eu não quero morrer! ANTÍGONE Eu também gostaria muito de não morrer. ISMÉNIA Escuta, eu pensei bastante toda à noite. E sou a mais velha. Eu penso mais que tu. Contigo é o que passar pela cabeça na hora, e dane-se se for uma besteira. Mas eu sou mais ponderada. Eu reflito. ANTÍGONE Há vezes em que não se pode ficar refletindo. ISMÉNIA Certo, Antígone, é horrível, mas claro que é, e eu também tenho pena de meu irmão, mas eu posso entender um pouco meu tio também. ANTÍGONE

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Mas eu não quero entender nem um pouquinho. ISMÉNIA Ele é Rei, é preciso que ele dê o exemplo. ANTÍGONE Eu não sou o Rei. Não preciso dar exemplo algum. É o que lhe dá na telha da pequena Antígone, dessa besta suja, cabeçuda, má e aí a gente a tranca num canto ou num buraco. E bem feito para ela. Bastava ter obedecido! ISMÉNIA Vamos, deixa disso! Tuas sobrancelhas juntas, esse teu olhar fixo numa reta à tua frente, e já vais partindo na toda sem escutar ninguém. Mas me escuta. Em geral eu tenho mais razão que tu. ANTÍGONE Eu não quero ter razão. ISMÉNIA Tenta compreender, pelo menos. ANTÍGONE Compreender... Todos vocês só ficam usando essa palavra desde que eu era menor. Era preciso compreender que não se podia tocar na água, na bela água fugidia e fria, por que isso iria molhar os ladrilhos; nem na terra, por que vai manchar o vestido. Era preciso compreender que não se deve botar toda a comida de uma só vez na boca, nem dar tudo o que se tem nos bolsos para o mendigo que encontramos, nem correr, correr ao vento até tropeçar e cair no chão, nem beber quando se está com muito calor, nem tomar banho quando é ainda muito cedo ou quando já é muito tarde, sobretudo nunca quando se tem vontade! Compreender. Sempre compreender. Eu não quero compreender nada. Deixa chegar minha velhice e ai será minha vez de compreender. Ela termina com doçura. Se é que vou envelhecer um dia. Mas agora, não. ISMÉNIA Ele é mais forte que nós, Antígone. Ele é o Rei. E todo mundo pensa como ele na cidade. São milhares e milhares ao nosso redor, formigando em todas ruas de Tebas. ANTÍGONE Eu não estou te escutando. ISMÉNIA Eles vão nos vaiar . Nos tomarão em seus mil braços, em seus milhares de rostos de um só olhar. Cuspirão em nossa cara. E teremos que ir adiante, por entre o ódio deles, sobre a carroça, no meio do cheiro e das risadas deles, até o suplício. E lá haverá guardas de cabeças imbecis, congestionadas por sobre pescoços duros, com as mãos grossas mal lavadas, de olhares bovinos – que até se pensa que dá para gritar, dá para tentar fazê-los compreender que eles estão bancando os escravos que fazem escrupulosamente tudo o que se lhes diz de fazer, sem nem pensar se é bom ou mal... E sofrer?! Será preciso sofrer, sentir a dor que aumenta e que ela está chegando ao ponto em que não dá mais para suportar; que vai se precisar de pará-la, mas ela irá continuar assim mesmo a aumentar cada vez mais, como uma voz aguda... Oh eu não posso, eu não posso... ANTÍGONE Pensaste em tudinho, hein!. ISMÉNIA A noite inteira. E tu não? ANTÍGONE Sim, claro que sim. ISMÉNIA Bem, eu, já sabes, não sou lá muito corajosa ANTÍGONE Com doçura. Eu também não. Mas o que se pode fazer? Há um silêncio. Ismênia retoma bruscamente. ISMÉNIA Não tens, então, nenhuma vontade de viver?

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ANOUILH & MICHELOTTO ANTÍGONE

Murmurando Vontade nenhuma de viver... ( E mais docemente ainda se for possível ) Quem se levantava primeiro de manhã, nem que fosse só para sentir o frio na pele nua? Quem se deitava por último e só quando não se agüentava mais de cansaço, para poder viver ainda um pouco mais à noite? Quem chorava dês de pequenininha ao pensar que havia tantos animaizinhos, tantas plantinhas nos campos e que não se conseguia tê-los todos? ISMÉNIA Com inesperada pena dela. Minha irmãzinha... ANTÍGONE

Retomando a situação e gritando Ah não! Deixe-me. Não me acaricie! Não vamos agora choramingar juntas! Refletiste bem, disseste? Pensas que toda a cidade aos berros contra ti, pensas que a dor e o medo de morrer é bastante? ISMÉNIA Abaixando a cabeça. Sim. ANTÍGONE Podes te servir desses pretextos. ISMÉNIA

Agarrando-se a ela. Antígone! Eu te suplico! Crer em idéias e morrer por elas é coisa boa para homens. E tu és uma moça. ANTÍGONE

Por entre dentes cerrados. Sim, uma mulher. E já chorei o bastante por ser mulher. ISMÉNIA Tua felicidade está bem aí em tua frente e podes alcançá-la. És noiva, és bela, és jovem... ANTÍGONE Com dureza. Não, eu não sou bela. ISMÉNIA Não bela como nós, mas de maneira diferente. Sabes bem que é para ti que se voltam a olhar os pequenos ladrões das ruas; que é para ti que as gurias olham ao passar, e se calam de repente sem poder deixar de despregar os olhos de ti até que tenhas desaparecido na esquina. ANTÍGONE Com um sorriso imperceptível. Bandidinhos, garotinhas... ISMÉNIA Após um tempo. E Hemon, Antígone?! ANTÍGONE Daqui a pouco eu falarei com Hemon. Daqui a pouco Hemon será mais um caso encerrado. ISMÉNIA Tu é é doida! ANTÍGONE

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Ri. Sempre me disseste isso, que eu era maluca, por qualquer coisa e sempre. Volta para a cama, volta. que teu mal é sono! O dia já está clareando, tas vendo, e de todo jeito eu não posso fazer mais nada mesmo. Meu irmão morto e a essa hora está rodeado por uma guarda, exatamente como aconteceria caso tivesse conseguido se tornar um Rei. Vá para a cama. Tás pálida de tanto sono. ISMÉNIA E tu? ANTÍGONE Eu não consigo mais dormir... Mas te prometo que não arredarei os pés daqui até que acordes de novo. A babá vai me trazer algo para comer. Não deixe de dormir. O sol já levantou. Teus olhos estão se fechando de tanto sono, maninha,vá! ISMÉNIA

Eu te convenci, não foi? Eu te convencerei? Vais me deixar falar disso ainda contigo, não vais? ANTÍGONE Um tanto cansada. Eu deixarei sim, maninha. Eu deixarei todos vocês falarem comigo. Agora, vá descansar, eu te peço. Se não vais acabar menos bela amanhã. Ela acompanha sua saída com um ligeiro sorriso triste, e então deixa-se cair fatigada numa cadeira.

Pobre Ismênia! BABA Entrando. Obaaa, lá vem um bom café completo minha pombinha! Coma. ANTÍGONE Não tou com tanta fome assim, babá... BABA Eu mesma amanteiguei os pãezinhos e os esquentei na chapa, como gostas. ANTÍGONE És tão gentil, babucha! Mas eu vou só beber um pouquinho e nada mais. BABA Estás te sentindo mal? ANTÍGONE Não, não é nada, babá. Mas de todo jeito, me esquenta como fazia quando eu caia doente... Babucha mais forte que a febre, babucha mais forte que o pesadelo, mais forte que a sombra do armário que dá gargalhadas e se transforma de hora em hora sobre a parede, mais forte que os mil insetos do silêncio que roem não importa o quê, em algum lugar da noite, mais forte que a própria noite seus urros de louca que não se ouvem – babucha mais forte que a morte. Dá-me tua mão como quando ficavas lá na beira de minha cama. BABA Que é que está te acontecendo, minha pombinha? ANTÍGONE Nada, babucha. Eu apenas ainda sou um pouco pequenina para tudo isso. Mas só tu deves sabê-lo. BABA Muito pequena para quê, minha sabiá? ANTÍGONE Para nada, para nada. E ainda por cima, estás aqui comigo. Eu seguro tua mão rugosa que me salva de tudo, sempre, eu sei bem disso. Talvez ela irá me salvar mais uma vez. És tão poderosa ,minha babucha! BABA Que queres que eu faça por ti, meu biquinho de lacre? ANTÍGONE Nadinha, babucha. Só tua mão assim sobre meu rosto. Fica um tempo com os olhos fechados.

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Pronto, não tenho mais medo. Nem do Ogro malvado, nem do Sogro, nem do vendedor de vassouras, nem do Papafigo que passa e papa o figo dos meninos... Um novo silêncio e ela continua em tom diferente. Babucha, sabes a Docinha, a minha cadela? BABA Mas claro, que foi!? ANTÍGONE Vais me prometer que não gritarás mais com ela. Nunca mais. BABA Um bicho que suja tudo com as patas! Essas coisas deveriam nunca entrar dentro de casa! ANTÍGONE Mesmo se ela sujar tudo, promete? BABA Bom, e eu vou ter que deixá-la destruir tudo sem dizer nada? ANTÍGONE É assim mesmo. BABA Ah isso vai ser um pouco difícil! ANTÍGONE Por favor, babucha! Tu gostas muito de Docinha e daquela cabeçorra. E depois, gostas também de te coçar. E ficarias muito infeliz se tudo ficasse sempre bem limpinho.Então, eu te peço, não ralha mais com ela, ta? BABA E se ela mijar nos meus tapetes? ANTÍGONE Promete que não farás nada com ela mesmo assim!Eu te peço, babucha, eu te peço... BABA Estás te aproveitando de mim ( de ce que tu cälines)... Tá bem! Vou tentar ficar sem fazer nada. Tas me transformando em burro de carga. ANTÍGONE E agora me promete que vais conversar com ela, que vais conversar muitas vezes com ela, promete!? BABA

Dando de ombros Mas aonde já se viu ! Eu, papeando com um pulguento de um cachorro! ANTÍGONE Ah não, não é como se falasse a um animal, não! Tens que falar como se fala com uma pessoa de verdade, como se estivesse falando comigo, promete! BABA A ai ta demais! Na minha idade, bancar a idiota! Mas por que diabos queres que toda a casa fale com esse animal do jeito que falas? ANTÍGONE Com doçura. Só no caso de - por uma razão qualquer - eu não puder falar mais com ela... BABA Que não está entendendo. Não lhe falar mais, não lhe falar mais! Por quê? ANTÍGONE Vira a cabeça um pouco de lado e depois acrescenta, com a voz dura. E também se ela ficar muito triste, se ela ficar com aquela cara de que está me esperando – com o focinho debaixo da porta como quando eu saio - será melhor matá-la, babucha, sem que ela sofra.

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BABA Matá-la , minha fofinha!? Matar a cadela? Mas você está completamente maluca essa manhã. ANTÍGONE Estou não, babucha. Hemon aparece. Hemon está vindo aí. Deixa-nos agora, minha babá. Mas não se esqueça que você me fez um juramento. Antígone corre em direção a Hemon.

Desculpa-me, Hemon, pela briga de ontem à noite e por todo o resto.. Eu é que estava errada. Eu te peço: perdoa-me! A BABA sai HEMON Sabes que te perdoei e nem tinhas ainda batido a porta e saído. Teu perfume ainda estava no ar e eu já te havia perdoado. Ele a segura nos braços, sorri, a olha. De quem você roubou esse perfume? ANTÍGONE De Ismênia. HEMON E o batom, (o rouge)a sombra, o belo vestido? ANTÍGONE Também. HEMON E em honra de quem te embelezaste tanto? ANTIGONE Eu te direi. Ela se acocha fortemente a ele. Oh meu querido, como fui idiota! Toda uma noite perdida. Uma bela noite. HEMON Teremos outras noites, Antígone. ANTÍGONE

Talvez não. HEMON E outras brigas também. Uma felicidade é feita com muitas brigas. ANTÍGONE Uma felicidade, sim... Escuta Hemon. HEMON

Sim. ANTIGONE Não ria essa manhã. Fique sério. HEMON

Eu estou sério. ANTÍGONE E me aperta contra ti. Mais forte que todas as outras vezes. Que toda tua força fique impressa em mim. HEMON Assim. Com toda minha força. ANTÍGONE Num suspiro.

É tão bom. Ficam um instante sem nada dizer, depois ela começa devagarzinho. Escuta, Hemon.

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ANOUILH & MICHELOTTO HEMON Eu escuto. ANTIGONE

Sabes que eu o defenderia contra tudo. HEMON

Eu sei Antígone. ANTÍGONE Oh eu o apertaria em meus braços tão fortemente que ele nunca teria medo, eu te juro. Nem da noite que se aproxima, nem da agonia do sol forte imóvel, nem das sombras... Nosso menino, Hemon! Ele teria uma mamãe bem pequena e meio despenteada – mas mais mãe que todas as verdadeiras mães do mundo, com seus peitos verdadeiros e seus grandes aventais. Tu crês em mim, não crês? HEMON

Claro, meu amor. ANTÍGONE

E acreditas também que terias uma verdadeira mulher, não é? HEMON Apertando-a nos braços.

Eu tenho uma mulher de verdade. ANTIGONE Oh! Tu me amavas, Hemon, naquela noite, tens certeza de que me amavas? HEMON Balança-a nos braços com doçura.

Que noite? ANTÍGONE Estás bem certo de que naquele baile em que vieste me tirar de meu canto,não te enganaste de mulher? Estás certo de que nunca te arrependeste disso depois, nunca pensaste, nem ao menos uma só vez, que teria sido melhor ficares com Ismênia? HEMON

Tolinha. ANTÍGONE Tu me amas, não amas?Tu me amas como uma mulher?Teus braços que me apertam, estariam mentindo? Essas tuas mãos grandes postas sobre minhas costas, esse teu cheiro, esse teu calor essa grande confiança que me inunda quando ponho a cabeça no vão de teu pescoço ... HEMON

Ora, Antígone, eu te amo como mulher! ANTÍGONE Eu sou magra e negra. Ismênia é rosada e dourada como uma fruta. HEMON

Antígone... ANTIGONE Oh estou toda vermelha de vergonha. Mas eu preciso saber, esta manhã eu preciso saber.Diga a verdade, te suplico.Quando sabes que serei tua, sentes no teu interior algo como um grande buraco que se cava, como alguma coisa que morre. HEMON

Sim , Antígone. ANTÍGONE Numa só respiração, após um tempo. Eu, eu sinto assim. E quero te dizer que eu teria ficado muito orgulhosa de ser tua mulher, tua verdadeira mulher, certa de que, ao cair da noite, ao te assentar, sem pensar, terias pousado tua mão sobre mim como sobre uma coisa bem tua. Ela se afastou dele e toma um outro tom.

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É isso. Agora vou ainda te dizer duas coisas.E quando eu as tiver dito, deverás ir- te embora sem me fazer perguntas. Mesmo que elas te apareçam extraordinárias, mesmo se elas te fizerem sofrer. Jura-me. HEMON O que tens ainda para me dizer?! ANTÍGONE Jura-me, antes, que sairás sem me dizer nada. Sem mesmo me olhar. Se me amas, jura- me isso. Ele a olha com seu pobre olhar assustado. Tás vendo como eu te peço, então, Hemon, jura.é a última loucura que me verás fazer. HEMON Após uma hesitação. Eu juro. Eu te juro. ANTIGONE

Obrigada. Então, vejamos. Primeiro, ontem. Tu me perguntavas ainda agora porque eu havia vindo com o vestido de Ismênia e esse perfume e esse batom. Foi besteira minha. Eu não estava muito segura de que me desejavas de verdade e fiz tudo aquilo para parecer um pouco mais com as outras moças , para te despertar desejo por mim. HEMON Foi para isso? ANTÍGONE Foi. E riste e brigamos e meu gênio ruim foi mais forte e então eu caí fora. Ela acrescenta mais baixo ainda. Mas voltei, ontem à noite, lá para tua casa para que me tomasses, para que me fizesses tua mulher. Ele recua, tenta falar, ela grita. Juraste, me juraste que não ias pedir razões. Juraste Hemon! Ela retoma o tom baixo, humildemente. Eu te suplico... E acrescenta,virando-se, com dureza. E vou te dizer,mais.Eu queria ser tua mulher também por que te amo muito, eu , eu te amo muito e – oh meu deus eu vou te fazer sofrer, perdoa-me meu querido! – é que jamais, jamais, jamais poderei casar-me contigo. Ele se mantém mudo de espanto, ela corre à janela e grita. Hemon, tu juraste! Sai.Sai logo e não dize nada.Se falares, se fizeres um só passo em minha direção eu me jogo pela janela., eu te juro Hemon! Eu te juro pela alma do filho que todos dois tivemos em sonho, pelo único filho que eu jamais terei. Amanhã ficarás ciente de tudo. Daqui a pouco. Daqui a pouco saberás tudo.

Ela termina num tal desespero que Hemon obedece e vai se afastando, saindo de cena.. Por favor , Hemon. É tudo o que ainda podes fazer por mim se me amas. Ele sai. Ela fica sem se mexer, de costas para a platéia, depois fecha a janela, vem se assentar numa pequena cadeira no centro da cena e diz devagarzinho, como estranhamente acalmada.

Pronto. Acabou para Hemon, Antígone. ÌSMËNIA Chama fora de cena e entra procurando. Antígone!. Ainda bem que estás aí... ANTÍGONE

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52 Sem se mexer.

Sim, estou bem aqui. ISMËNIA Não consigo dormir. Estava com medo que saísses e que tentasses enterrá-lo apesar de ser já dia claro. Antígone, minha irmãzinha, estamos todos juntos contigo, Hemon, babucha, eu...e Docinho, tua cadela! Nós te amamos e estamos vivos, nós, nós precisamos de ti. Polinice morreu e não te ama mais. Ele sempre foi um estranho conosco, um mau irmão. Esqueça-o, Antígone, como ele nos esqueceu. Deixe sua sombra vagar eternamente sem sepultura, pois esta é a lei de Creonte.Não tente realizar o que está acima de tuas forças. Sempre enfrentas tudo com coragem, mas és tão pequenininha, minha Antígone! Fica conosco, não vá lá esta noite, eu estou te suplicando. ANTIGONE Levantou-se, está com um estranho e leve sorriso nos lábios, dirige-se à porta e já debaixo dela diz com toda calma.

Agora é muito tarde.Hoje de manhã, quando me encontraste, eu estava justo chegando de lá. Sai. ISMËNIA Ismênia a acompanha com um grito. Não! Antígone! CREONTE Logo que Ismênia sai, Creonte entra por uma outra porta com seu pajem. Um guarda, disseste? Um dos dois que guardam o cadáver? Faça-o entrar. GUARDA O guarda entra. É um abrutalhado. No momento está amarelo (3)de medo Apresenta-se. Guarda Jonas, da Segunda Companhia, senhor. CREONTE Afinal, o que é que queres!? GUARDA

Bem é isso aí , chefe, a gente tiramos a sorte para saber quem ficaria né e - que sorte!- caiu comigo, então é isso aí chefe eu vim por que alguém tem que se explicar né e também é mais que lógico não dava para os três abandonar o posto, então... é somos três, os três do piquete de guarda , chefe, ali tomando conta de cadáver.(4) CREONTE

Quê é que estás dizendo aí? GUARDA Que somos três, chefe! Não sou o único não. Os outros é o Mikelotro e o Guarda de Primeira Classe, o Bidji. (5) CREONTE E por quê não foi o Guarda de Primeira Classe quem veio? GUARDA E num é mesmo,chefe?! Eu, eu disse logo para ele. É a Primeira Classe que deve ir. Quando não tem nenhum outro graduado é a Primeira Classe que é responsável. Mas os outros, sabe, disseram que nada vamos é tirar no palitinho...Vou lá buscar o Primeira Classe, chefe? CREONTE Mas não, fale você mesmo já que já está ai. GUARDA

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Eu tenho 17 anos de serviço, chefe. Me engajei como voluntário, já peguei medalha e duas citações. Sou gente bem, chefe. Sou todo “serviço”. A única coisa que conheço são as ordens, chefe. Meus superiores dizem sempre? “Com Jonas a gente fica tranqüilo!” CREONTE Está bem, está bem, Fala. De que é que está com medo? GUARDA Bem, pelo regulamento, isso é coisa do Primeira Classe. Eu... eu só fui indicado Primeira Classe. Mas promoção , ainda nenhuma. Eu deveria ter sido promovido em junho CREONTE Mas, finalmente, vai falar ou não? Se acontecer alguma coisa vocês três são os responsáveis. Não precisa ficar aí dizendo que deveria estar lá GUARDA Tá bom, tá bom, é isso aí mesmo, chefe: o cadáver... Mas a gente montou guarda, como é que pode! A gente pegava o turno às duas horas, o pior, você sabe como é que é isso, chefe, bem ali na horinha em que a noite bota pra se acabar, né mole não aquele chumbo nas pestanas,a nuca ali se estirando toda e as sombras, sei lá sombras se mexendo pra lá e pra cá tudo por causa das névoas da manhãzinha quando se levanta... Ah escolheram direitinho a hora!... Pois a gente estávamos lá, a gente se conversava, batia um pé pra lá e pra cá, num dormia não, chefe, isso a gente podemos até jurar todos os três, todos os três, que ninguém puxava nenhum pau de ronco não, chefe, e alguém consegue lá dormir com um frio desses! Ai eu vou lá e dou uma olhada no cadáver..só para certificar se ele estava bem quieto mesmo lá... A gente estávamos ali, dois passinhos ali do lado, sabe como é, na guarda de cadáver, só para certificar né..eu sou assim chefe, coisa de meticuloso, tá vendo, é por isso que meus superiores sempre dizem? “Com Jonas... Um gesto de Creonte de que já sabe o pára, imediatamente grita. Fui eu o o primeiro, quem viu primeiro, viu chefe! os outros vão dizer o mesmo, eu , eu é quem dei o alarme geral. CREONTE O alarme? Por quê um alarme?! GUARDA

O cadáver, chefe. Tava coberto. Alguém deve ter feito isso, chefe..oh não era assim lá grande coisa não, não dava tempo, sabe, conosco ali na vigia ai foi só um punhadinho de terra... mas um punhadinho que dava até para esconder dos urubus. CREONTE Avança em sua direção. Tem certeza que não foi nenhum bicho esgaratujando por ali? GUARDA Ah isso não chefe. De cara a gente pensamos também por ai, sabe como é. Mas a terra tava muito bem jogadinha por sobre ele , bem segundo os ritos sabe.Bicho nada, foi um alguém que sabe muito bem o que tá fazeno. CREONTE Quem ousou!? Quem foi tão doido assim de desrespeitar minha lei? Reparou nas pegadas? GUARDA Nada, chefe. Nada além de uns passos mais leves que os de pássaros. Depois, procurando melhor o Guarda Mickelotro encontrou um pouco mais afastada, uma pazinha, uma dessas pás para crianças, toda velha, toda carcomida de ferrugem. A gente então pensamos também que não podia ser uma criança que havia feito um negócio desses. De todo jeito o Primeira Classe Bidji achou melhor guardá-la para o inquérito. CREONTE Sonha por um tempo. Uma criança.... É coisa da oposição destruída , mas que já vem minar por todos os lados. Os amigos de Polinice com seu ouro bloqueado em Tebas, os chefes da plebe fedendo a alho, aliados de repente dos príncipes, e padres tentando pescar algo para eles no meio de toda essa confusão... Uma criança! Devem ter pensado que isso seria bem mais comovente. Parece que estou vendo a criança deles com sua goela de matador experimentado e sua pequena pá cuidadosamente envolta em papel sob sua roupa. A menos que eles tenham amestrado uma

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criança de verdade com frases bonitas... Um garotinho de verdade, pálido, que cuspirá sobre meus fuzis. Um precioso sangue fresco a banhar minhas mãos, em dupla oferta. Vai até o homem. Mas eles têm cúmplices , e quem sabe, até na minha guarda.Me escuta bem, você aí... GUARDA Chef, nós fizemos tudo o que se tinha que fazer! Mikelotro deu uma sentada opor meia hora mas é por que estava com os pés doendo, mas eu,chefe,fique o tempo todo de pé. O primeira Classe vi contar isso direitinho. CREONTE A quem já contaram essa história? GUARDA

A ninguém, chefe. Iramos a sorte logo e logo eu vim. CREONTE Escuta bem aqui. Vocês vão ficar de guarda mais um turno. Mandem embora os substitutos. Isso é uma ordem.Eu quero só vocês perto do cadáver. E nem uma palavra sobre isso. Vocês são culpados de negligência e serão de toda maneira punidos, mas se falas, se correr o boato na cidade que recobriram o cadáver der Polinice, vocês morrem todos três, está entendido? GUARDA Reclama.

Ninguém falou nada, chefe, eu te juro! Mas eu estava aqui, e talvez os outros, talvez já tenham falado com os substitutos... Sua aos borbotões. Chefe, tenho dois filhos! Um ainda é bem pequenininho. No conselho de guerra, chefe, você bem que podia testemunhar por mim, dizendo que eu estava aqui. Mas eu estava bem aqui, com você, chefe! Tenho uma testemunha. Se alguém falou, isso é lá coisa dos outros, eu não tenho nada com isso.Eu tenho testemunha... CREONTE

Vai correndo. Se ninguém souber de nada, ficarás com vida. O guarda sai correndo. Creonte fica um momento mudo. Logo ele murmura.

Uma criança. Coloca o pequeno pajem sobre seus ombros.

Venha, pequeno.é preciso que a gente vá contar tudo isso agora... E aí a desgraça toda vai começar. Você morreria por mim, morreria? Você acha que viria com sua pequena pá? O pequeno o olha. Sai com ele, lhe acariciando a cabeça. Ora, claro, você iria bem rapidinho, você também... Ainda dá para se ouvi-lo suspirando ao sair.

Uma criança....

Saem,.. Entra o Coro CORO Pronto. Agora a mola está bem esticada. As coisas vão se desenrolar sozinhas.É isso que é cômodo na tragédia, dá-se um empurrãozinho para que as coisas desandem, um nadinha, um olhada durante um segundo para a moça que passa e levanta seus braços na rua Um desejo de honra numa manhã qualquer, ao se despertar, como o desejo de algo que se possa comer, uma questão a mais que se enfrenta numa tarde...ë tudo. Após só nos resta deixar as coisas correrem por si.É minucioso e de engrenagens bem oleadas desde sempre. A morte, a traição, o desespêro estão aí, prontos à espera e raios e tempestades e silêncios... Todos os silêncios: o silêncio quando o braço carrasco finalmente se levanta; o silêncio dos inícios, quando os dois amantes se colocam nús um em frente ao outro pela primeira vez, num quarto escurecido,sem ousarem se tocar ao primeiro desejo; o silêncio quando gritos de multidão irrompem ao

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redor de um vencedor – quase como um filme cujo som se arranhou em todas essas bocas abertas das quais nada sai, só esse clamor que é imagem pura, e esse vencedor, já também vencido, só rodeado de seu próprio silêncio... É tudo limpo, é a tragédia. ---------É repousante, é segura.... ----------

No drama, recheado de traidores, de maus geneticamente maus, de inocência perseguida, de vingadores, de cães selvagens, de pálidos raios de esperança, de uma morte que se torna pavorosa para se morrer, como num acidente. Poder-se-ia talvez se salvar, o bom jovem teria podido chegar a tempo com os policiais. Na tragédia se está tranqüilo. Primeiro, porque estamos em casa. Na verdade, em casa, todos somos inocentes! E não acontece porque é um o que mata e o outro é o que morre. Isso é só uma questão de distribuição. Mas uma tragédia é repousante, sobretudo, porque já sabemos que não há esperanças, essa porcaria da esperança. Já se sabe que se foi pego, pego enfim, como um rato, com todo o céu por sobre os próprios ombros e com uma única chance: a de gritar - não, nada de gemer, nada de choraminholas,nada desta história de ficar reclamando – mas berrar a plenos pulmões tudo o que se tem para dizer, que jamais dissemos e talvez mesmo que nem soubéssemos ainda. E para nada. Só para si mesmo, para poder se dizer a si mesmo essas coisas todas aí. No drama a gente se debate e luta porque espera sair dessa. É ignóbil, é utilitário. Aqui, tudo é gratuito.

Coisa para reis. Porque, na verdade, não se tem muita coisa para se fazer.

Antígone entrou, empurrada pelos guardas O CÖRO

Bem aqui estamos. E dessa vez vamos começar. A pequena Antígone foi pega. A pequena Antígone vai poder, finalmente ser ela mesma. O Coro desaparece, enquanto os guardas vão empurrando Antígone para o palco O GUARDA Jonas Que retomou sua pose. Vamos, lá, vamos lá, nada de histórias. Trate de se explicar para o Chefe. Eu, a única coisa que conheço é a ordem. O que você tava fazeno lá eu num quero nem saber. Todomundo tem suas desculpas, todo mundo tem sempre qualquer coisa para reclamar. Se a gente fôssemos escutar as pessoas se tivesse que se entender as pessoas, aí, bom, a gente estávamos ferrados. Vai ino vai ino Ei, segurem ela aí vocês outros e nada de histórias! Eu, aqui ó , o que ela tá quereno dizer eu num tô nem aí, visse! ANTÍGONE

Dize-lhes para tirar as mãos imundas de cima de mim. Eles estão me machucando. O GUARDA Mãos sujas, ah é!! Tu pudia ir sendo um bucado mais pulida ai viu guria...Eu por mim, eu estou sendo delicado. ANTÍGONE Dize-lhes que me larguem. Eu sou a filha de Édipo, eu sou Antígone. Eu não irei fugir. O GUARDA Ah a filha de Édipo, mas que gracinha... Pois saiba que todas as putas que catamos na guarda da noite, nos ameaçam do mesmo jeito e advinha de quem elas dizem que são filhas, hein, hein, hein??!!!

Caem na gargalhada ANTÍGONE Eu não estou nem aí para morrer, mas que eles não encostem mais em mim! O GUARDA E os cadáveres, vai , e a terra, aí tu num tava com medinho de sujar as mãozinhas não né?! E ainda vem dizendo :”as mãos sujas deles!”.. Pô, dá uma olhada aí nas tuas vai, guria!

Antígone olha para suas mãos presas com algemas com um risinho.

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Estão toda sujas de terras O GUARDA

Tomaram, tua pá foi? Aí tu vai e faz o mesmo pela segunda vez, direto ali, com as unhas. A bichinha audaciosa! Eu viro as costas um pouquinho pela segunda vez, tempo de pedir um para enrolar, e vai , o tempo de dar uma tragada, o tempo de dizer um muito obrigado e já tava lá ela escavando que nem uma hiena no cio. E em plena luz do dia! E como me chutava essa vagabunda prostituta quando eu tentei prendê-la! E tava querendo me furar os olhos, vejam vocês todos! E lá ficava lá esganiçando que ela tinha que terminar o que começou, que ela tinha que terminar, e tinha que terminar, ora! É uma doida, essa maluca! MIKELOTRO ( 20 Guarda) Pois. Eu prendi uma, uma toda doidona, noutro dia, né não? Pois tava mostrando o cú prá todo mundo! O GUARDA (Jonas) Diz aí, Mikelotro, o queéque nós os três não vamos nos encharcar a goela para comemorar essazinha aqui hein, hein?! MIKELOTRO ( 20 Guarda) ( gargarejando) No Bar do Bigode! A pior branquinha de toda a cidade, né não brother!. BIDJI ( Terceiro Guarda) Vamos fazer o seguinte: tem folga nesse domingo... e se a gente carregasse umas mulheres, que tal? O GUARDA (Jonas) Quê isso, quê isso, só entre nós, é pra gente rir um bocado... Com as mulé, tem sempre uma histórias escabrosas, e depois vem os motoqueiros e vão querer mijar e vão ter que respeitar as mulé, cacêta...Vai, diz aí Mikelotro, a gente nem estávamos pensando ainda agorinha no inicio quando começou que a gente ia se divertir esse montão todo né mermo, né mermo? MIKELOTRO ( 20 Guarda)

Pô meu, acho que quem sabe talvez assim de repente eles podem até nos dar uma recompensa, né não? O GUARDA ( Jonas)

Até pode ser, de repente, se a coisa toma rumo de importante, sabe! BIDJ ( 30 Guarda) Ah é poraí que o Guarda Dênis, é o João, esse aí, noutro dia pois ele não botou as mãos sobre um incendiário??!! Prendeu, claro!E ganhou soldo dobrado, tá! MIKELOTRO ( 20 Guarda) poraí, Bidji, se a gente ganhar em dobro ai eu nem quero mais ir pro Bigode, que tal se a gente fôssemos para a DAUNTÄUM?!!! O GUARDA (Jonas)

Só prá beber? Tás maluco tu tamém , home! A talagada lá custa o dobro do Bigode. Pra comer, tá certo. Ramo fazer assim o seguinte, uma passada no Bigode pra dar uns bons gargarejos e depois a gente se arranca pro Dauntaun, certo? Diz lá Mikelotro, por falar em comida, lembra da gordona lá do Dauntaun? MIKELOTRO ( 20 Guarda) Pô tavas mais bêbo que um gambá naquele dia foi não?! BIDJI ( 30 Guarda) Ëitcha, cacêta, nossas mulheres vão acabar sabendo se a gente ganha em dobro!E é capaz mermo é da gente sermos felicitados publicamente com festa e tudo, num dá para esconder... O GUARDA ( Jonas)

Bem a gente vai ver no que vai dar. A farra é que é o bom. Agora, se há uma cerimônia no pátio da caserna e essas coisas todas como quando é para as condecorações, aí as mulheres virão

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tamém e os meninos tamém, enfim, todo mundo tamém, aí, aí nesse caso a gente se ferra e vamos só para o Bigode, certo?! MIKELOTRO ( 20 Guarda) Tá bom, então o melhor é a gente irmos logo encomendando o menu, né não, né não?? ANTÍGONE Pedindo com uma voz fraquinha. Eu queria me assentar um pouco, por favor! O GUARDA ( Jonas) Após um momento de reflexão. Tá bom, que ela se assente. Mas nem pensem em arredar um dedinho de perto dela, viram? Creonte entra e imediatamente o Guarda Berra. Sentido! CREONTE

Pára, surpreso Soltem essa moça! Que é que está acontecendo aqui? O GUARDA (Jonas)

É o piquete da Guarda, Chefe! A gente viemos com os camaradas todos dessa vez. CREONTE E quem ficou de guarda do corpo?

O GUARDA (Jonas) Chamamos a turma do rodízio, chefe. CREONTE Mas eu te disse para suspendê-la. Eu te disse para não dizer nada para ninguém.

O GUARDA (Jonas) Mas a gente não dissemos nadinha, Chefe! E como a gente pegamos essazinha aí, a gente no lógico pensamos que , claro era bom trazê-la para cá. Dessa vez ninguém nem quis tirar a sorte, sabia Chefe?! A gente preferimos vir logo todos os três. CREONTE

Bando de imbecis!

Para Antígone Onde é que te prenderam? O GUARDA (Jonas)

Pertinho do cadáver, Chefe. CREONTE

Que ias fazer perto do cadáver de teu irmão? Tu sabias que eu proibi que se chegasse perto dele. O GUARDA (Jonas)

O que ela fazia, o que ela fazia?! Ora chefe E não é porissinho que a gente estamos trazeno ela? Ela tava lá era cavoucando a terra com as mãos. Tava é tentando cobrir o morto lá outra vez, sabe! CREONTE Sabes bem o que estás a me dizer, soldado? O GUARDA (Jonas) Mas Chefe você pode perguntar a todo mundo. Tínhamos limpado o corpo quando eu retornei, mas com um solão desses, o próprio começava já a soltar um cheiro daqueles então a gente fomos para uma colina um pouco mais alta, mas nada longe,coisa assim só para se estar do lado do vento, sabe, pois a gente se dizíamos:

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afinal, quem vai se arriscar de dia, né mermo chefe?! E ainda, só por razões de segurança máxima, decidimos que sempre ficaríamos um de nós três com as butuca dos olhos fixos no próprio, mas é lógico tamém né Chefe, que em pleno meio-dia com o sol fritando a gente ali no cucuruto dos elmos e aquela catinga subindo morro acima, pois é lógico que não tem vento levando ela para lugar algum longe numa hora dessas, aí há de compreender que era uma porrada ficar por ali. Olha que eu segurava assim os olhos , mas todas as coisas estremelicaam como uma gelatina e eu nem tava veno mais nada direito essa é que é a verdade aí fui pedir um fumo pros colegas para dar uma mascada, coisa justa para dar uma aliviada na tensão e passar essa coisa ruim. Mas, veja, foi o tempo de enrolar, apertar e juro que não fumei, sabe o Chefe Biu Chefe? Tamém nun teve foi tempo, pois nem eu: tava ela lá já a escarafunchar a terra e jogar pra todo lado, com as próprias mãos ... em plena luz do dia!Devia tar pensando , né não, que a gente nem conseguiria vê ela ali.. E tá pensano que ela parou quando em viu correndo atrás dela, que ela meditou um bocadinho e se disse ta na hora de se mandar? Foi nada! Ela continuou a cavucar com todas as forças, o mais rápido que ela podia, como se nem me visse vir chegano prá cima e quano meti as patas nela, ele se esborrodou de tanto me chutar como uma diaba que queira continuar ainda mais e ficava me gritando para largá-la, porque o corpo não tava todo recoberto ainda aí me mordeu. Aqui ó, bem aqui, me mordeu sim! ai eu perdi a delicadeza né chefe e catapuf imobilizei ela de vez na porrada, eca! (6) CREONTE

Para Antígone Foi assim mesmo? ANTÏGONE Ë, foi isso mesmo.

O GUARDA (Jonas) A gente sabe limpou aquilo tudo, como era justo,e ai chefe passamos a vez para a troca da guarda do turno, e nem falamos nadinha viu, viemos direto para trazê-la. Pronto é isso aí , tenho dito, Chefe.. CREONTE E nessa noite, na primeira vez, foste tu também? ANTÍGONE Sim. Também fui eu. Com uma pazinha de ferro que nos servia para construir castelos de areia na praia durante as férias. Era justamente a de Polinice. Ele havia gravado seu nome com uma faca no cabo dela. É por isso que eu a deixei perto dele. Mas eles a pegaram. Ai, na segunda vez eu tive que recomeçar com minhas próprias mãos.

O GUARDA (Jonas)

Parecia um animalzinho que arranhava alguma coisa. Ta que no primeiro golpe de vista, com aquele ar quente todo que fazia tudo tremer, o camarada aí disse: “Mas que nada! é só um bicho!” E eu”Vai pensando nessa, pois ta que é muito cuidadoso para ser um bicho. Isso deve ser é uma menina , isso sim!” CREONTE Muito bem. Acho que vamos pedir que façam um relatório daqui a pouco. Agora, tratem de me deixar sozinho com ela. Conduze esses homens para um canto aí, meu pequeno. E que eles fiquem guardados em segredo até que eu volte para vê-los O GUARDA Precisa botar de novo as algemas nela Chefe? CREONTE Não. Os Guardas saem, precedidos pelo pequeno pajem. Creonte e Antígone ficam sós, face a face. Falaste de teu projeto para alguém mais? ANTÍGONE Não. CREONTE

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Te encontraste com alguém no caminho para cá? ANTÍGONE Não . Ninguém. CREONTE Estás bem certa disso? ANTÍGONE Claro. CREONTE Então me escuta. Vais voltar para casa, te deitar e dizer que estás doente e que não saíste desde ontem. Tua Babá repetirá o que disseres. Eu farei desaparecer aqueles três homens. ANTÍGONE

Por quê? Sabes bem que eu recomeçarei tudo de novo. CREONTE Por quê tentaste enterrar teu irmão? ANTÍGONE Eu devia fazê-lo. CREONTE Eu o tinha proibido. ANTÍGONE Mesmo assim eu deveria. Os que não integram só vagueiam eternamente sem jamais encontrar descanso Se meu irmão, cansado, tivesse voltado de uma longa caçada, eu lhe teria tirado os sapatos, eu lhe tria feito um jantar, eu teria arrumado sua cama..Polinice hoje terminou sua caça. Voltou para a casa onde minha mãe , meu pai e Etéocle o esperam. Ele tem direito ao repouso. CREONTE Era um revoltado e um traidor, sabias bem. ANTÍGONE Era meu irmão. CREONTE Não ouviste proclamar os editos aos quatro cantos, não viste o cartaz em todos muros da cidade? ANTÍGONE

Sim. CREONTE Sabias o destino daquele que tentasse render homenagens fúnebres a ele, fosse quem fosse que o fizesse, não? ANTÍGONE Sim, sabia. CREONTE Acreditaste contudo, talvez, que por seres filha de Édipo, filha do orgulho de Édipo, isso seria o suficiente para estares acima das leis? ANTÍGONE Não, eu jamais acreditei nisso. CREONTE A lei é feita antes de tudo para ti, Antígone, a lei é feita antes de tudo para as filhas dos reis, Antígone! ANTÍGONE Se eu fosse uma criada que estivesse a lavar pratos, após ouvir o teu Edito eu teria enxugado a água gordurosa de meus braços e teria saído, de avental mesmo, para ir enterrar meu irmão. CREONTE Não é verdade. Se fosses uma criada, não terias a menor dúvida de que irias morrer e ficarias chorando teu irmão lá dentro de casa. O caso foi que pensaste que eras da raça real, minha sobrinha e noiva de meu filho e que- acontecesse o que acontecesse- eu não ousaria te condenar à morte. ANTÍGONE

Estás te enganando. Em ao contrário, eu estava certa de que me farias morrer. CREONTE Olha-a e murmura imediatamente.

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O orgulho de Édipo. És,sim, o orgulho de Édipo. Agora que eu o reencontrei no fundo de teus olhos eu acredito em ti. Deves ter pensado mesmo que eu te mandaria à morte. E isso te pareceria um desenrolar perfeitamente natural, ó orgulhosa! Para teu pai também seria – não falo da felicidade, pois não era disso que se tratava – a infelicidade humana lhe seria sempre muito pequena. O humano atrapalha imensamente a todos da família. Precisais de um cara a cara com o destino e a morte. (7) ANTÍGONE Sim, precisamos. CREONTE Precisais matar vosso pai, ir para a cama com vossa mãe e saber disso após, avidamente, palavra por palavra. Que poção mágica, hein , essa das palavras que vos condenam! E como se as bebem gulosamente, gota por gota se vos chamais Édipo ou Antígone! E o mais simples depois ainda é furar seus próprios olhos e ir mendigar com seus filhos pelas estradas poeirentas... Pois bem, não. ANTÍGONE Pois bem, sim. CREONTE Ah não! Esses tempos foram banidos de Tebas! Tebas tem direito agora a um príncipe sem história. ANTÍGONE

Tem. CREONTE Eu me chamo apenas Creonte, graças a deus. Tenho meus pés atolados no chão, minhas duas mãos enfiadas em meus bolsos e, já que sou rei, eu resolvi, com bem menos ambição que teu pai, empregar meu tempo simplesmente a botar em ordem esse mundo para que fique um pouco menos absurdo, se for possível. ANTÍGONE Mas não é. CREONTE Mas não é uma aventura, é um trabalho para todos os dias e nem sempre muito interessante, exatamente como todos os outros ofícios. Mas já que aqui estou para fazê-lo, eu vou fazê-lo.... ANTÍGONE Então, faze-o CREONTE E amanhã se um mensageiro emporcalhado surgir do fundo das montanhas para me anunciar que ele não tem muita certeza sobre meu nascimento, eu simplesmente lhe pedirei para retornar para o fundo da grota de onde saiu e eu jamais iria, nem por um minutinho sequer, olhar tua tia bem debaixo do nariz dela e me meter a confrontar datas. Os reis têm outra coisa a fazer que coisas pessoais e patéticas, minha filhota. ANTÍGONE És patético!. CREONTE Avança para ela e a segura fortemente pelo braço.

Agora me escuta bem. És Antígone, és a filha de Édipo, tudo bem, mas não tens mais que vinte anos e há bem pouco tempo atrás tudo isso estaria regulado com pão seco e uns bons tapas nessa cara. ANTÍGONE

És meu tio!. CREONTE

Ora te mandar à morte! Dá uma olhada em ti mesma, passarinho! És magra demais. Trata de engordar um pouco, vais precisar, para fazeres um belo filho com Hemon. Tebas tem mais necessidade disso que de tua morte, te garanto! Vais voltar para casa imediatamente para fazer o que

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eu te disse e calar essa boca. Eu me encarrego do silêncio dos outros. Vá, vá logo! E nem tente mais me fulminar com esse olhar. Estamos entendidos que me tomas por um estúpido e que pensas que sou um conservador. Claro que sou. Mas de todo jeito eu te amo muito ainda, apesar de seres um espírito de porco. E nem vem me esquecer que fui eu quem te deu de presente tua primeira boneca, e que nem foi há tanto tempo assim.... Antígona não responde.. Vai sair. Ele a para. Antígone! Não é por essa porta que se vai a teu quarto! Onde pensas que vais? ANTÍGONE

Parou. Responde-lhe tranqüilamente sem fanfarronice Você bem sabe...

Um Silêncio. Eles se olham ainda, de pé , um de fronte do outro. CREONTE Murmura, como para si próprio.

Qual é finalmente teu jogo? ANTÍGONE Eu não jogo. CREONTE Não entendes que se qualquer um outro além desses 3 brutamontes souberem o que tentaste fazer, eu serei obrigado de te condenar à morte? Se te calas agora, se renuncias a essa loucura eu tenho uma chance de te salvar, mas daqui a cinco minutos te garanto que não terei mais. Estás entendendo? ANTÍGONE Eu tenho que enterrar meu irmão que esses homens desenterraram. CREONTE Vais refazer esse gesto absurdo? Há uma nova guarda ao redor do corpo de Polinice e mesmo que consigas recobri-lo, irão descobrir de novo o cadáver, tu o sabes muito bem. Que podes então senão te ensangüentar ainda mais as unhas e te fazer enforcar? ANTÍGONE Nada mais que isso, eu o sei. Mas ao menos isso eu posso. E é preciso que se faça aquilo que se pode fazer. CREONTE Crês tu verdadeiramente nisso, nesse enterro segundo as regras? Nessa sombra de teu irmão condenado a vagar para sempre c=caso não se jogue sobre o cadáver um punhado de terra segundo a fórmula do padre? Aos padres de Tebas, já os ouviste recitar a tal fórmula? Já viste essas pobres cabeças de funcionários públicos cansados, encurtando os gestos, engolindo as palavras, concluindo apressadamente a cerimônia desse morto para poder ainda pegar mais um antes do almoço? ANTÍGONE Si, já os vi. CREONTE E nunca pensaste então que se fosse um ser que amasses verdadeiramnte, que estivesse lá, deitado nessa caixa, tu te meterias a urrar imediatamente? A gritar para que eles se calem, para que vão embora? ANTÍGONE Sim, já pensei nisso. CREONTE E estás arriscando a morte agora só porque recusei a eu irmão esse passaporte ridículo, esse blábláblá em série sobre seus despojos, essa pantomima da qual serias a primeira a te envergonhar e a passar mal se alguém os realizasse? É um absurdo!

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ANTÍGONE Ë mesmo um absurdo. CREONTE Por quê fazes então um tal gesto? Pelos outros? Por aqueles que crêem nisso? Para em enfrentar? ANTÍGONE Não. CREONTE Nem pelos outros, nem por teu irmão? Por quem então? ANTÍGONE Por ninguém. Por mim mesma. CREONTE Olha-a em silêncio. Tens então toda essa vontade de morrer? Estás já com cara de uma caça que se deixou pegar. ANTÍGONE Não te enchas de ternura por mim. Faze como faço. Faze o que tens que fazer. Mas se és um ser humano, faze-o de pressa. É isso tudo o que te peço. Eu não vou conseguir ter coragem por toda eternidade, isso é verdade. CREONTE

Aproximando-se Eu quero te salvar, Antígone. ANTÍGONE És o rei, podes qualquer coisa,mas isso, isso não podes fazer. CREONTE Estás certa disso? ANTÍGONE Nem me salvar, nem me obrigar a nada. CREONTE Orgulhosa! Pequena Édipo! ANTÍGONE Tudo o que podes fazer é me fazer morrer. CREONTE E se te mando torturar? ANTÍGONE Para quê? Para que eu chore, peça perdão, para que eu te jure tudo o que queiras que eu jure e depois recomece quando não estiveres mais me fazendo mal? CREONTE Apertando-lhe o braço. Escuta bem aqui. Eu estou com o papel pior nessa história e tu estás com o bom, está certo? E farejas isso. Mas não tente se aproveitar muito disso, sua pequena peste...Se eu fosse um bom, ordinário e estúpido tirano já teria te arrancado a língua há muito tempo, esticado um por um de teus membros com tenazes ou te jogado dentro de um buraco qualquer. Mas tu vês dentro de meus olhos algo que hesita, vês que te deixo falar em vez de chamar meus soldados- e então me desafias, me atacas o mais que podes. Aonde pretendes chegar, ó pequena fúria?! ANTÍGONE Larga-me. Estás me machucando o braço com essas mãos. CREONTE Que lhe aperta mais forte. Não. Eu, eu sou o mais forte nessa modalidade, então eu também vou me aproveitar disso ANTÍGONE Dá um grito curto.

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Ai! CREONTE Cujos olhos riem. Ë talvez o que eu deveria fazer, afinal de contas, bem simplesmente, te torcer o punho, te puxar os cabelos como se faz com as meninas nos jogos.

Ele a olha mais uma vez. Torna-se sério. Fala-lhe bem de perto Eu sou teu tio, ta claro, mas nós não somos ternos uns com os outros em nossa família. Isso de todo jeito não te parece divertido, esse rei zombado que te escuta, esse velho homem que tudo pode e que já matou a tantos, te asseguro, e outros tão ternos quanto tu, e que está aqui a se dar toda essa trabalheira para tentar te impedir de morrer? ANTÍGONE Após um tempo. Estás me apertando demais agora.. E isso nem me machuca mais pois nem sinto mais meu braço. CREONTE Olha-a e a larga com um sorriso curto. Murmura. Deus sabe contudo que tenho muito o que fazer hoje, mas vou seja lá como for perder todo o tempo do mundo para te salvar, pequena peste. Fá-la se assentar numa cadeira no centro da sala. Tira seu casaco e avança em sua direção, pesado, poderoso, só de camisa.

No dia seguinte de uma revolução que não deu certo, te asseguro, tem sempre alguma coisa acontecendo. Mas os negócios urgentes podem esperar.u não vou te deixar morrer numa história de política. Vales mais que isso. Porque teu Polinice, esta sombra desolada e este corpo que se decompõe entres seus guardas e todo esse patético que te inflama, não passa de uma história de política. Primeiro eu não sou terno, mas sou delicado: gosto de tudo o que é limpo, claro, bem lavado. Crês que isso não me desgosta tanto quanto a ti, essa carne que apodrece ao sol? À noite, quando o vento vem do mar, o cheiro já chega até ao palácio. Isso me parte o coração. Contudo, não vou nem mesmo fechar a janela. É ignóbil, e posso disser isso a ti, é estúpido, monstruosamente estúpido, mas é preciso que toda Tebas sinta isso durante algum tempo. Não achas que eu deveria enterrar teu irmão nem que fosse por uma questão de higiene?! Mas para que os brutos que eu governo possam compreender, é preciso que o cadáver de Polinice feda a cidade inteira, durante um mês. ANTÍGONE

És odioso! CREONTE Mas claro, minha guria. É o ofício que me obriga a sê-lo. O que se pode discutir, é o que se precisa fazer ou não fazer. Mas se a gente se mete a fazer, é preciso fazê-lo desse jeito. ANTÍGONE Por quê o fazes tu? CREONTE Uma bela manhã eu açodei rei de Tebas. E deus sabe se algum dia amei na vida algo como poder ser poderoso. ANTÍGONE

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Bastava dizer não então! CREONTE Bem que eu podia. Mas eu me senti de repente como um operário que recusava de fazer seu trabalho. E isso não me pareceu lá muito honesto. Então disse sim. ANTÍGONE Ora, pior então para ti! Eu nunca disse esse “sim”. Como é que queres que me interesse pela tua política, pela tua necessidade, por tuas pobres histórias? Eu, eu posso dizer ”não” ainda a tudo o que não amo e sou o meu único juiz. Mas tu, com tua coroa, com teus guardas, com teus apetrechos, tudo o que podes fazer é me fazer morrer, opor que disseste esse “sim” CREONTE Escuta aqui. ANTÍGONE

Se eu quiser, posso até nem te escutar. Disseste “sim”. Não tenho mais nada a aprender contigo. Mas tu não. Estás aí a beber minhas palavras. E se não chamaste ainda os guardas é simplesmente para poder me escutar até o fim. CREONTE Tás brincando! ANTÍGONE Não. Eu te meto medo. É por isso que tentas me salvar. Seria bem mais cômodo guardar uma pequena Antígone viva e muda neste palácio.És sensível demais para dares um bom tirano,essa é que é a questão. Mas, de qualquer jeito, tu me farás morrer daqui a pouco, sabes bem disso, e é por isso que tens medo. Ë é feio um homem que teme. CREONTE

Surdamente Pois bem, sim, eu tenho, medo de ser obrigado a te mandar matar se te obstinas. E eu não gostaria de fazê-lo. ANTÍGONE Eu, eu não sou obrigada a fazer o que eu não gostaria de fazer. Não quererias também talvez recusar um túmulo a meu irmão?! Dize que não quererias. CREONTE Eu já te o disse. ANTÍGONE E acabaste fazendo, apesar disso. E agora irás me mandar matar sem querer. E é isso a que chamas ser rei! CREONTE Pois é exatamente isso! ANTÍGONE Pobre Creonte! Com minhas unhas quebradas e cheias de terra e cheia de ronxos que teus guardas me fizeram nos braços, com meu medo que me retorce o ventre, eu, eu sou rainha.

CREONTE Tem então piedade de mim!. ( 8) O cadáver de teu irmão que apodrece sob minha janela já é suficiente para que a ordem reine em Tebas. Meu filho te ama. Não me obrigues a pagar também contigo. Já paguei o suficiente. ANTÍGONE Não. Disseste ”sim”. Não pararás jamais de pagar agora! CREONTE

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Sacode- a repentinamente, fora de si ( 9) Mas, ó bom deus, tenta compreender, também tu, por um minuto, pequena idiota! Eu, eu bem que tentei te compreender também. (10) É necessário contudo que existam alguns que digam sim . É necessário que haja os que conduzam a barca. Barcas (11) fazem água por todo lado, são cheias de crimes, estupidez, de miséria.. E lemes giram sem rumo. Grumetes nem querem mais fazer nada, pensam só em pilhar estivas (12), porões: põem-se oficiais já a construir pequena e confortável jangada em que não caiba mais que eles levando toda provisão de água doce para livrar sua carcaça e seus ossos. E espatifa-se o mastro e sopra o vento e leva a vela rasgada e a leva de brutos que vai morrer que vai morrer (13) por que pensa na própria pele e só e tão somente nela, a preciosa e em seus pequeninos prazeres (14). Pensas, então, que temos tempo de bancar os chiques, e de saber se se diz agora(15 )sim, ou agora não, de se perguntar se o preço a pagar não será algum dia muito muito alto, E se se poderá ainda ser homem após?! Pega-se um pedaço de pau ...o fuzil,(16)

Levanta-se alto diante da montanha d’água(17) Esgoela-se uma ordem qualquer E manda-se bala no bolo,(18) Ou no primeiro que avance. No bolo! Esse troço não tem nome. É como a onda que acaba de se abater sobre o convés à nossa frente. O vento que te fustiga e a coisa corpo(19) que cai no meio de um grupo não têm nome. Era talvez o cara que te deu fogo e sorria, no dia anterior. Ele não tem mais nome. E tu também não não tens mais nome quando estás agarrado à barra da saia (20),

ao teu timão. Apenas navios e tempestades têm nomes. Dá para entenderes isso? ANTÍGONE

Balança a cabeça Eu não quero compreender isso. É bom para ti. Eu não estou aqui para compreender nada. Eu estou aqui para te dizer não e morrer CREONTE

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É fácil dizer não! ANTÍGONE Nem sempre. CREONTE Para se dizer um sim é preciso suar e dobrar as mangas, empunhar a vida com as próprias mãos e se enfiar nela até os cotovelos. É fácil dizer não, mesmo se se deve morrer. Basta não se mexer e esperar. Esperar que se viva e mesmo esperar que se nos tire a vida. É ato de covardia. Podes imaginarias um mundo em que as árvores dissessem não à seiva, ou os animais dissessem não ao instinto da caça e do amor? Os animais pelo menos são bons, simples e duros. Eles seguem em frente, se empurrando uns aos outros, corajosamente, por sobre o mesmo caminho. E se uns tombam, os outros passam adiante e pode-se perder tantos quantos se quiser restará sempre ao menos um de cada espécie para refazer filhotes e retomar o mesmo caminho com a mesma coragem, iguaizinhos aos que passaram antes deles. ANTÍGONE

Que sonho, hein, para um rei?!Animais! Seria simples demais CREONTE Silêncio. Olhando para ela. Tu me desprezas, não é? Ela não lhe responde, ele continua como eu falando para si mesmo. Que engraçado! Eu imaginei tantas vezes já esse diálogo com um pequenino homem pálido que tivesse tentado me matar e contra o qual eu não poderia fazer nada, a não ser desprezar. Mas jamais pensei que seria contigo e que fosse por uma coisa tão idiota... Toma sua cabeça por entre as mãos. Sente-se que ele está no fim de suas forças. Escuta-me, seja lá como for, pela última vez. Meu papel não é lá muito bom, mas é meu papel e eu vou te mandar matar. Apenas eu gostaria antes de estar certo de que tu também estás do teu. Sabes porque vais morrer, Antígone? Sabes em baixo de que história sórdida estarás assinando , para sempre, o teu pequeno nome sangrento? ANTÍGONE Que história? CREONTE A de Etéocle e Polinice, a de teus irmãos. Não tu pensas que sabes, mas, não sabes de nada. Ninguém o sabe em Tebas, a não ser eu. Mas me pareceu, que esta manhã, tu também tinhas o direito de saber. Ele sonha um pouco, com a cabeça entre as mãos, cotovelos apoiados por sobre os joelhos. Ouve-se-o murmurar. Não é nada lá muito bonita, já vais ver.

E ele começa seriamente, sem olhar para Antígone. Que é que tu te lembras de teus irmãos, para começar? Dois colegas de jogos que te desprezavam, sem dúvida, que quebravam tuas bonecas, e sussurravam eternamente mistérios nos ouvidos um do outro só para te fazer ficar enraivecida? ANTÍGONE Eram grandes...

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CREONTE Depois os admiraste por seus primeiros cigarros, suas primeiras calças compridas, e aí eles começaram a sair à noite, a ter cheiro de homens e passaram a nem mais te olhar. ANTÍGONE Eu era uma menina... CREONTE Tu vias como tua mãe chorava, como teu pai se encolerizava, ouvias bater as portas quando voltavam e as risadas deles pelos corredores. E eles passavam diante de ti, bêbados e molengas, fedendo a vinho. ANTÍGONE Uma vez eu me escondi atrás da porta, era de manhã, tínhamos acabado de nos levantar e eles acabavam de voltar. Polinice me viu, ele estava todo pálido, com os olhos brilhando e tão belo em seu traje de noite! Ele me disse: ” Ué, estás aí?” E me deu uma enorme flor de papel que ele trouxera para mim da sua noitada. CREONTE E guardaste esta flor, não foi? E ontem antes de sair, abriste tua gaveta do armário e destes uma olhada nela, só para te dar coragem, não foi? ANTÍGONE

Estremece Quem te disse isso? CREONTE Pobre Antígone, com tua flor de pano Delicada como as (22 e meia) flores de anáguas.

Sabes quem era teu irmão? ANTÍGONE Eu sabia que irias falar mal dele, fosse como fosse! CREONTE Um pequeno farrista imbecil, uma pequena ave de rapina dura e sem alma, um pequeno bruto que só servia para correr mais que os outros em seu carro, ou para gastar mais dinheiro nos bares. Uma vez eu estava lá, teu pai acabara de lhe recusar uma quantia enorme que ele havia perdido no jogo. Pois ele ficou pálido, levantou os punhos cerrados e gritou um palavrão. ANTÍGONE Não é verdade! CREONTE O punho do estúpido voou inteiro no rosto de teu pai. Dava dó. Teu pai estava assentado à mesa, com a cabeça por entre as mãos. Sangrava do nariz e chorava. E num canto do escritório, Polinice, gargalhava enquanto acendia um cigarro. ANTÍGONE Quase suplicando dessa vez. Não é verdade! CREONTE Dá para te lembrares, tinhas 12 anos. Ficaste sem vê-lo por um bom tempo, não foi? ANTÍGONE gravemente É, é verdade. CREONTE

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Pois foi depois dessa briga. Teu pai não quis levá-lo a julgamento. Ele se engajou na armada argiana. E desde que ele chegou entre os Argianos, foi iniciada a caça ao homem, a esse homem que era teu pai , esse velho homem que não se decidia a morrer, a largar seu reino. Os atentados se sucederam e os matadores que prendíamos acabavam sempre por confessar que havia recebido dinheiro dele.Bem , não somente dele, aliás. Pois é isso que eu quero que saibas, os bastidores desse drama onde estás doida para ter um papel, só que será na cozinha. Eu ordenei ontem funerais solenes para Etéocles. Etéocles é um herói e um santo para Tebas agora. Todo o povo lá estava. As crianças das escolas deram para a Coroa todo o dinheiro que tinham em seus cofrinhos. Os mais velhos, falsamente comovidos, fizeram elogios, com vozes trêmulas, para o bom irmão, o filho fiel de Édipo, o príncipe leal. Até eu fiz um discurso. E todos os sacerdotes de Tebas, todo paramentados, com caras de compungidos. E as honras militares... Era preciso. Sabes bem que eu não podia me dar ao luxo de ter dois crápulas do mesmo lado ao mesmo tempo. Ma vou te dizer algo. Vou te dizer algo que só eu sei, algo horrível: Etéocle, esse poço de virtude, valia tanto quanto Polinice, isso é: nada. O bom filho havia tentado , também ele, assassinar seu pai, O príncipe leal havia decidido, também ele, vender Tebas ao que desse mais. Foi mesmo, achas que isso é engraçado?! Essa traição pela qual o corpo de Polinice está lá ao sol apodrecendo, ficou mais que provado que Etéocles - que agora dorme em sua tumba de mármore- estava se preparando, também ele, para cometer. Foi mero acaso se Polinice conseguiu dar seu golpe antes dele. Nós estávamos nas mãos de dois ladrõezinhos de feira que se enganavam um ao outro e a nós todos e que se degolaram um ao outro - como dois pequenos bandidos que eram – num regulamento de contas. Apenas aconteceu que eu tive necessidade de fazer um herói de um deles Fui então buscar seus cadáveres no meio dos outros. E os encontramos abraçados, pela primeira vez na vida deles certamente. Eles haviam se esfaqueado um ao outro e depois a carga da cavalaria argiana acabou passando por cima deles. Eles estavam todo despedaçados, Antígone, irreconhecíveis. Eu então mandei catar um dos corpos, o menos estragado dos dois, para meus funerais nacionais e dei ordem de deixar que o outro apodrecesse aonde estava. Nem tenho a menor idéia de qual dos dois era. E te garanto que para mim dá na mesma. Há um longo silêncio. Eles não se movem, sem se olhar, até que Antígone diz com doçura. ANTÍGONE Por que me contaste isso?

Creonte recoloca o casaco CREONTE Valeria a pena te deixar morrer numa história pobre dessas? ANTÍGONE Talvez. Eu, eu pensava que sim. Há ainda um silêncio. Creonte se aproxima dela CREONTE

E o que é que vais fazer agora? ANTÍGONE Levanta-se como uma sonâmbula.

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Vou para meu quarto. CREONTE Não fica muito sozinha. Vá ver Hemon, hoje de manhã. Casa-te logo. ANTÍGONE

Ofegante Sim. CREONTE Nada mais conta. E tu ias jogar fora isso! Eu te entendo, eu faria como tu na tua idade. É por isso que eu bebia tuas palavras. Eu escutava vindo dos fins dos tempos, um pequeno Creonte magro e pálido como tu e que só pensava em servir (22), também ele... Casa-te, Antígone, sê feliz. A vida não é o que pensas. É uma água que os jovens deixam escorrer sem o saber por entre seus dedos entreabertos. Fecha tuas mãos, fecha tuas mãos rápido. Segure- a Verás, isso se tornará uma pequena coisa dura e simples que se roe, como um pedaço de pão, sentada ao sol. Eles te dirão todos o contrário porque eles têm necessidade de tua força e de te arrojo. Não os escute, Nem me escute quando eu fizer meu próximo discurso diante do túmulo de Etéocles. Não será verdade. A única verdade é aquilo que não se diz. Aprenderás isso também tu, tarde demais: a vida é um livro que se ama, é uma criança que brinca a teus pés, um instrumento que se pode segurar com firmeza na mão um banco para se repousar à noite diante de sua casa. Vais me desprezar agora, mas descobrir isso, verás, é o consolo irrisório de envelhecer. A vida talvez não seja mais que a felicidade! ANTÍGONE Murmura, o olhar perdido. A felicidade... CREONTE Envergonha-se um pouco repentinamente. Uma palavra pobre, não é? ANTÍGONE Devagarzinho. Qual será minha felicidade? Em que mulher feliz irá se tornar a pequena Antígone? Que pobrezas ela precisará fazer, também ela, dia após dia, para arrancar com os dentes seu pequeno naco de felicidade? Dize, a quem deverá ela mentir, a quem sorrir, a quem se vender? Quem ela deverá deixar morrer , retirando seu olhar? CREONTE

Dando de ombros Estás louca, cala-te! ANTÍGONE

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Não, não me calarei. Eu quero saber como eu também vou poder fazer para ser feliz. Imediatamente, pois é assim de repente que se precisa fazer uma escolha. Disseste-me que a vida é bela. Eu quero saber como eu me agarrarei a isso para viver. CREONTE Amas Hemon? ANTÍGONE Sim, eu o amo. Amo um Hemon forte(23) e jovem, um Hemon exigente e fiel, como eu. Mas se vossa(24) vida e vossa felicidade deverem passar por sobre ele com seu desgaste, se Hemon não deve mais empalidecer quando eu empalideço, se ele não deve mais pensar que estou morta quando me atraso por cinco minutos, se ele não se sentir mais só no mundo e me detestar, quando eu rio sem que ele saiba porque, se ele deve se tornar junto a mim o Senhor Hemon, se ele deve aprender a dizer “sim” também ele, então eu não amo mais Hemon! CREONTE Não sabes mais o que dizes. Cala-te ANTÍGONE Sim, eu sei o que digo, mas és tu que não me queres entender. Eu te falo de muito longe agora, de um reino onde não podes entra com tuas rugas, tua sabedoria, teu ventre. Ela ri.

Ah eu estou rindo! Creonte, estou rindo! Por que de repente te vejo com 15 anos! Estás com esse mesmo ar de impotência e ao mesmo tempo de quem crê que se pode tudo. A vida somente te ajuntou essas pequenas dobras sobre o rosto e essa gordura ao redor do corpo. CREONTE

Sacode-a Vais te calar, enfim? ANTÍGONE

Por quê me queres fazer calar? Porque sabes que tenho razão? Pensas que não leio em teus olhos que o sabes? Sabes que tenho razão, mas não o confessas jamais, Porque estás tentando nesse momento é defender tua própria felicidade como se fosse um osso. CREONTE A tua e a minha, isso sim, imbecil! ANTÍGONE Tu me dás nojo com tua felicidade! Com tua vida que se precisa amar custe o que custe! Perecem-se com dois cães que lambem tudo o que encontram. E esta pequena sorte, para todos os dias, se não se é muito exigente. Eu? eu quero tudo, e tudo logo – e que tudo seja inteiroOu então eu recuso! Não quero ser modesta, eu, e me contentar de um pedacinho se eu for obediente. Quero estar segura de tudo hoje e que isso seja tão belo como quando eu era pequenina.

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Isso ou morrer. CREONTE Então começa, começa como teu pai. ANTÍGONE

Como meu pai, sim! Nós somos daqueles que põem as questões até o seu fim. Até que não reste mais a menor chances de esperança que sobreviva.

A menor chance de esperança que se possa estrangular. Nós somos daqueles que pisoteamos a ela quando a encontramos, Quando encontramos essa tua esperança, tua cara esperança, tua suja esperança!. CREONTE Fecha essa boca! Precisavas te ver proferindo (25) tais palavras... Ficas feia! ANTÍGONE Ora, eu sou feia! É nojento, não é mesmo?! gritarias, sobressaltos, essa luta de cenourinhas, de garis, lixeiros.(26). Papai só se tornou belo após, depois que ele ficou bem certo de que havia matado seu pai, e que era exatamente com sua mãe que ele tinha ido para a cama. E que nada, nem ninguém, jamais poderia salva-lo. Aí ele se acalmou de repente, deu algo parecido com um sorriso, e se tornou finalmente belo. Estava acabado. E não teve mais que fazer senão fechar seus olhos para não mas vos ver a todos(27)! Ah vossas cabeças...que pobres cabeças de candidatos à felicidade! Tendes todos algo de feio no canto do olho ou da boca. Bem disseste ainda agora Creonte: “à cozinha!” Tendes cabeças de cozinheiros. CREONTE Torce-lhe o braço. Eu te ordeno que cales essa boca, estás me entendendo? ANTÍGONE Me dás ordens, mestre Cuca?!(28) CREONTE A sala de estar está cheia de gente! Queres mesmo te perder? Eles vão te ouvir!(29) ANTÍGONE Pois que ouçam, abram-se as portas! Que me ouçam( 30)! CREONTE Tenta fechar-lhe a boca à força. Vais finalmente te calar, bom deus?! ANTÍGONE Debatendo-se. Anda! Rápido, Cozinheiro! Chama teus guardas!

A porta se abre. Entra Ismênia

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ISMËNIA Gritando.

Antígone! CREONTE

Que queres tu também?! ANTÍGONE Antígone, perdoa-me! Antígone, vês , eu vim, eu tenho coragem. Eu irei contigo. ANTÍGONE Aonde irás comigo, tu? ISMËNIA Se a fizerdes morrer, tereis que me matar com ela ANTÍGONE Ah não. Agora não. Não tu. Sou eu e apenas eu. Nem vais pensar que poderás vir morrer comigo agora. Seria bastante fácil. ISMËNIA Eu não quero viver se tu morres, eu não quero ficar sem ti. ANTÍGONE Escolheste a vida e eu a morte. Poupa-me agora tua choradeira ( jeremiadas .(31) Tinha-se que ir hoje de manhã Tinha-se que ir rastejando, Tinha-se que ir de noite

Tinhas que arrancar a terra com tuas unhas(32) enquanto eles vigiavam de perto. Tinhas que te fazer ser pega por eles como uma ladra. ISMËNIA Tá bem, eu irei amanhã! ANTÍGONE Estás ouvindo isso, Creonte? Até ela! Quem sabe se isso não vai pegar em mais alguém ao me escutar? Que esperas para me tapares a boca, Que esperas para chamar teus guardas? Vamos, Creonte, um pouco mais de coragem! É apenas um momento mau a mais a se passar! Vamos, cozinheiro, faze o que deve ser feito! CREONTE

Grita de repente Guardas! Guardas aparecem imediatamente. Levem-na! ANTÍGONE Dando um grande grito, aliviada. Enfim, Creonte!

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Os guardas se lançam sobre ela e a levam. Ismênia sai gritando atrás dela. ISMËNIA Antígone! Antígone! Creonte ficou só. Entra o Coro e vai até ele. CORO És louco, Creonte! O que fizeste? CREONTE Olhando ao longe à sua frente. É preciso que ela morra.(33) CORO

Não deixe Antígone morrer, Creonte! Nós teremos que suportar essa ferida aberta ao longo dos séculos. CREONTE É ela quem o queria. Nenhum de nós não era bastante forte para fazê-la decidir viver. Agora posso compreendê-la. Antígone foi feita para ser morta. Ela mesma talvez não o soubesse, mas Polinice era mero pretexto. Quando ela teve que renegá-lo, logo encontrou outra razão imediata.( 34) O que importava para ela, era mesmo se recusar e morrer. CORO

Era só uma criança, Creonte! CREONTE Que querem que eu faça por ela? Condená-la a viver? HEMON

Entra gritando Pai! CREONTE Corre em sua direção e o abraça.

Esquece-a Hemon, esquece-a meu pequeno! HEMON Estás louco, pai. Me deixa. CREONTE Segura-o mais forte ainda. Tentei tudo para salvá-la, Hemon. Tentei de tudo, te juro. Ela não te ama. Ele teria chance de viver. Ela preferiu sua loucura e sua morte. HEMON Grita, tentando escapar de seu abraço.

Mas, pai, não estás vendo que eles a estão levando! Pai, não deixe esses homens levá-la! CREONTE Agora ela falou. Toda Tebas sabe o que ela fez. Sou obrigado a mandar executá-la.

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ANOUILH & MICHELOTTO HEMON

Escapa de seus braços. Deixa-me! Um silêncio. Estão frente a frente. E se olham. CORO Aproxima-se. Será que não se pode inventar qualquer coisa, dizer que ela está louca, interná-la? CREONTE Eles dirão que não é verdade. Que eu a estarei salvando porque ela seria mulher de meu filho. Não posso. CORO

Será que não daria para se ganhar tempo e fazê-la fugir amanhã? CREONTE

A multidão já o sabe e urra ao redor do palácio.(35) Eu não posso. HEMON Pai, o povo não é nada! Tu, sim, és o senhor!(36) CREONTE Eu sou o mestre antes a da lei. Não após. HEMON Pai, sou teu filho, tu não podes deixar que a tomem de mim. CREONTE Sim, Hemon. Sim, meu pequeno. Tem coragem. Antígone não ode mais viver. Antígone já se foi. HEMON

E pensas que eu...que eu posso viver sem ela?(37) Crês que eu aceitarei essa vossa vida? E todo dia, da manhã à noite, sem ela? E vossa agitação, vosso vazio, sem ela? CREONTE Será melhor que aceites, Hemon. (38). Cada um de nos tem um dia, mais ou menos triste, em que ele acaba aceitando ser um homem (39) Teu dia é hoje.(40) E eis que é pela última vez que assim ficas diante de mim, com lágrimas nas bordas dos olhos e um coração te magoando, meu pequeno rapaz. Quando me tiveres dado as costas, Quando tiveres atravessado esse limiar daqui a pouco, tudo isso terá terminado. HEMON

Recua um pouco e diz devagar. Já acabou de terminar.(41) CREONTE Não me julgues, Hemon. Não me julgues também tu..

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HEMON Olha-o e diz imediatamente. Esta grande força e esta coragem, esse deus gigante que me carregava em seus braços e me salvava dos monstros e das sombras, eras tu? Este odor proibido deste pão bom da ceia já iniciada (42) e eu sob, a lamparina, ainda a ver livros que me mostravas em teu escritório, eras tu, esse cheiro, eras tu? CREONTE

Com humildade Sim, Hemon. HEMON Todos esse cuidado, todo esse orgulho, todos esses livros cheios de herói, era então para chegarmos até aqui? E ser um homem, como o dizes, papai E muito feliz em viver? CREONTE Sim, Hemon HEMON Grita de repente como uma criança, Se jogando em seus braços.

Pai, não é verdade! Não és tu. Não é hoje. Nós não estamos todos dois aos pés desse muro aonde somente se deve dizer sim. És ainda poderoso, tu, como quando eu era pequeno. Ah te suplico, pai, que eu te admire, que eu ainda te admire! Estarei muito sozinho e o mundo será excessivamente nu se eu não puder mais te admirar. CREONTE Afasta-se dele. Estamos sós, Hemon. O mundo é nu. E tu me admiraste por tempo demais. Olha para mim, isso é se tornar um homem, frente a frente, olhar no olho de seu pai um dia. HEMON Olha para ele e recua gritando.

Antígone! Antígone! Socorro!

Sai, correndo CORO Vai até Creonte. Creonte, ele saiu como um louco.

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CREONTE Com o olhar ao longe, reto à sua frente. Sim. Pobre pequeno. Ela a ama. CORO Creonte, há que se fazer alguma coisa! CREONTE Não posso mais fazer nada. CORO

Ele saiu, tocado até à morte. CREONTE Gravemente. Mas nós fomos todos tocados até à morte Antígone entra no palco, empurrada por guardas que se curvam sobre a porta como que impedindo a multidão que se advinha urrar do outro lado GUARDA Chefe, eles estão invadindo o palácio! ANTÍGONE Creonte, eu não quero mais ver vossos rostos, eu não quero mais ouvir seus gritos, eu não quero mais ver ninguém!. Tens minha morte agora e basta. Faze com que eu não veja mais ninguém até que tudo isso se acabe. CREONTE

Sai gritando para os guardas Guardas à porta! Que se esvazie o palácio! Fica aqui com ela, tu! Os dois outros guardas saem, seguidos pelo Coro. Antígone fica só, com o primeiro guarda. Antígone olha para ele. ANTÍGONE De repente. Então, és tu? GUARDA

Quem? Eu? ANTIGONE Meu último rosto de um homem. GUARDA Não tem outro por aqui. ANTÍGONE Que eu te olhe... GUARDA

Afasta-se, envergonhado Tá legal...

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ANTIGONE Foste tu quem me prendeu ainda agora? GUARDA Sim, fui eu. ANTÍGONE Me machucaste. Não tinhas necessidade de me machucar. Eu tinha cara de quem iria fugir, tinha? GUARDA

Ei, ei, nada de histórias! Se não fosse você, seria eu quem ia se ferrar. ANTIGONE Que idade tens? GUARDA Trinta e nove. ANTÍGONE Tens filhos, tens? GUARDA Sim, dois. ANTIGONE Tu os amas? GUARDA Isso não é de sua conta! Ele começa a andar nervoso pela sala. Durante um momento não se ouvem a não ser seus passos. ANTÍGONE

Pergunta com humildade Há muito tempo que és guarda? GUARDA

Após a guerra. Era sargento. Me reengajei. ANTIGONE Ë preciso ser sargento para se ser da guarda? GUARDA Em princípio, sim. Ou sargento ou haver participado do pelotão especial. Uma vez guarda, o sargento perde seu grau. Por exemplo, se eu me encontro com um recruta do exército, ele pode deixar de bater continência. ANTÍGONE É mesmo? GUARDA É. Bem, observe que em geral ele o faz. Um recruta sabe que um guarda é um oficial graduado. Agora, em matéria de grana, tem-se o soldo ordinário da Guarda, como o do pelotão especial, e , durante seis meses, a título de gratificação um acréscimo como suplemento ao soldo de sargento. Apenas que como Guarda, têm-se outras vantagens, como casa própria, salário família,(43) (Que Creonte quer incorporar todas ao salário, essa é a promessa dele...)(44)

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Um guarda casado e com dois filhos pode ganhara mais dinheiro que um sargento da ativa, ao final . ANTIGONE Mas é mesmo?! GUARDA Ah é. É isso que explica as rivalidades entre Guardas e Sargentos. Você deve ter podido observar que um Sargento sempre faz de conta que despreza um Guarda. O grande argumento deles é a ascensão funcional. Num certo sentido, estão certos. A ascensão de um Guarda é mais lenta e mais difícil que no exército. Mas não se deve esquecer que um brigadeiro da Guarda é bem diferente que um SargentoChefe. ANTÍGONE

Diz repentinamente para ele Escuta... GUARDA

Diga lá. ANTIGONE Eu vou morrer daqui a pouco. O Guarda não lhe responde. Um silêncio. Ele recomeça a andar pelo salão. Após um momento ele retoma a conversa anterior sobre Guardas e sargentos.. GUARDA Por um outro lado, tem-se mais consideração por um Guarda que por um Sargento da ativa. O Guarda é um soldado, mas é quase um funcionário ANTÍGONE Achas que morrer dói? GUARDA Não sei lhe responder. Durante a guerra os que eram feridos na barriga sofriam um bocado. Mas eu nunca fui ferido. E num certo sentido, isso até que atrapalha minha ascensão funcional, sabia? ANTÍGONE Como é que irão me matar? GUARDA Nem sei ainda. Penso que ouvi dizer que para não sujar a cidade com seu sangue eles iriam te emparedar num buraco. ANTÍGONE Viva? GUARDA Sim, no início. Um silêncio. O Guarda enrola um cigarro.(45) ANTÍGONE Ó túmulo! Ó leito nupcial! Ó minha habitação subterrânea! Ela parece bem pequenina no meio da grande sala vazia. Dir-se-ia que ela sente um pouco frio. Ela se rodeia com seus braços. Ela murmura. Sozinha... GUARDA Que joga fora o cigarro e o pisa. Nas cavernas de Hades, às portas da cidade.

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ANOUILH & MICHELOTTO Em pleno sol. E que trabalho danado de ruim, para os que estarão de serviço. Tinha-se pensado no início de se chamar o exército. Mas, pelas últimas notícias, vai ser mesmo a Guarda que irá fornecer o pessoal. Tem costas largas, essa Guarda! Vai você ainda se admirar que hajam ciúmes entre um Guarda e um Sargento da Ativa. ANTÍGONE

De repente cansada. Duas bêstas...(46) GUARDA Como, duas bêstas? ANTÍGONE Bestas, animais, se juntariam uma à outra para se esquentar. Eu , porém,estou só. GUARDA Se você tiver necessidade de alguma coisa, aí é diferente. Eu posso pedir... ANTÍGONE Não. Eu gostaria somente que você entregasse uma carta a alguém depois que eu morrer. GUARDA Que história é essa de carta?! ANTÍGONE Uma carta que eu vou escrever. GUARDA Ah, isso nunca! Nada de histórias, viu? Uma carta! Como vocês querem logo tudo, né? Eu vou correr muito risco, ora, nessa brincadeirinha sua! ANTÍGONE Eu te darei esse anel, se o fizeres. GUARDA É de ouro? ANTÍGONE Sim, é de ouro. GUARDA Você entende, se me dão busca, eu vou parar no tribunal militar... Tanto faz para você, não é mesmo? Olha mais uma vez o anel. O que posso fazer se você quiser é escrever no meu próprio bloco o que você tivesse querido dizer. Depois, eu arranco a página. Com minha letra já não é mais a mesma coisa,certo? ANTÍGONE Com os olhos fechados. Ela murmura com um pobre rictus. Com tua escritura... Tem um pequeno arrepio.

É muito feio tudo isso, tudo é muito feio. GUARDA Chateado, faz menção de lhe devolver o anel. Você sabe, se não quiser assim, eu... ANTÍGONE

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Rápida Sim. Guarda o anel e escreve. Mas anda rápido.... Temo que não tenhamos mais tempo. Escreve: “Meu querido....” GUARDA Que pegou seu bloco e melhora sua cara. É para seu namorado?. ANTÍGONE “Meu querido, eu quis morrer e talvez tu não me amarás mais...” GUARDA Repete lentamente com sua voz grave enquanto escreve “Meu querido, eu quis morrer e talvez não me amarás mais...” ANTÍGONE E Creonte tinha razão, é terrível um momento como esse ao lado de um homem destes, e eu nem sei porque morro. Tenho medo. GUARDA “Creonte tinha razão, é terrível...” ANTÍGONE Ö Hemon, nosso jovenzinho. Agora entendo como viver era tão simples... GUARDA Parando. Ei, pérai, tá indo muito rápido. Como é que quer que eu escreva? Precisa-se de mais tempo... ANTÍGONE Onde estavas? GUARDA “É terrível um momento como esse ao lado de um homem desses...” ANTÍGONE Eu nem sei mais porque eu vou morrer. GUARDA Escreve aborrecido (47)) “Eu nem sei mais porque eu vou morrer” ANTÍGONE

Continua Eu tenho medo Ela para. E imediatamente se levanta. Não. Apaga tudo isso. É melhor que ninguém nunca saiba. É como se eu estivesse nua e eles viessem tocar em mim depois de morta. Bota aí somente: “Desculpe!” GUARDA Então, eu apago o final e boto desculpa no lugar? ANTÍGONE Sim. Perdão, meu querido. Sem a pequena Antígone, todos vocês estariam bem mais tranqüilos... Eu te amo... GUARDA “Sem a pequena Antígone, todos vocês estariam bem mais tranqüilos. Eu te amo...”

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Só isso?! ANTÍGONE Só isso. GUARDA É uma carta estranha. ANTÍGONE É, é uma carta engraçada. GUARDA E para quem devo entregar? Nesse momento a porta se abre. Os outros guardas aparecem. Antígone se levanta, olha para eles, olha para o primeiro guarda que estava com ela, ele bota o anel no bolso e ajeita o bloco no bolso, com ar importante.. Ele vê o olhar de Antígone. Ele grita para mostra que tem o controle da situação. Ei, vamos lá, e sobretudo, nada de histórias! Antígone tem um sorriso triste. Abaixa a cabeça. E caminha sem dizer nada em direção dos outros guardas. Saem todos. CORO Entrando imediatamente. Que coisa! Acabou-se para Antígone! Agora está chegando a vez de Creonte. Todos deverão passar por isso. MENSAGEIRO Irrompe gritando. A rainha? Onde está a Rainha? CORO

Que queres dela? Que tens a dizer-lhe? MENSAGEIRO

Uma terrível notícia. Acabava-se de jogar Antígone em seu buraco. Não se havia ainda acabado de rodar as pedras por sobre a entrada, quando Creonte e todos os que o rodeiam começaram a ouvir lamentações que saiam de dentro do túmulo. Cala-se um a um , pois não era a voz de Antígone. É um novo lamento, que sai das profundezas do buraco. Todos olham para Creonte, e ele que foi o primeiro a adivinhar, ele que já sabe antes de todos os outros, ele urra repentinamente como um louco? “Retirem essas pedras! Retirem essas pedras!” Os escravos se lançam por sobre os blocos de pedra amontoados e, por entre eles o Rei, suado, com as mãos já sangrando. As pedras se abrem enfim e o mais magrelo se esgueira por entre a abertura. Antígone está no fundo do túmulo pendurada pelos fios de sua cintura, por fios vermelhos, fios verdes,

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ANOUILH & MICHELOTTO fios azuis como se fôssem um colar de criança e Hemon, a seu lado ajoelhado a segura sem seus braços e chora, o rosto escondido na saia dela.. Move-se mais um bloco e Creonte pode enfim descer. Vêem-se seus cabelos brancos na sombra, no fundo do buraco. Ele tenta fazer com que Hemon se levante, ele lhe suplica, Hemon não o escuta mais. Até que de repente ele se levanta, com olhos negros, e ele nunca se assemelhou tanto ao pequeno menino de antigamente, ele olha para seu pai, sem nada dizer, por um minuto, repentinamente cospe-lhe no rosto e puxa sua espada. Creonte pula para longe de seu alcance. Hemon, então, o mira com olhos de criança, cheios de desprezo, e Creonte não tem como evitar esse olhar como uma lâmina. Hemon observa esse velho homem tremendo no outro canto da caverna e, s em mais dizer, afunda a espada em seu próprio ventre e se estende por sobre Antígone, (48) abraçando-a numa imensa poça vermelha.

CREONTE

Entra com seu pajem Eu os fiz dormir juntos, um ao lado do outro enfim! Agora eles estão lavados e descansados. Estão apenas um pouco pálidos, porém tão calmos, Dois amantes no alvorecer da primeira noite. Esses, esses chegaram ao fim CORO Mas não tu, Creonte. Falta ainda algo a saberes. Eurídice, tuia mulher... CREONTE Uma boa mulher que sempre está a falar de seu jardim, de suas geléias, de seus tricôs, de seus eternos tricôs para os pobres. Que engraçado como os pobres têm eterna necessidade de tricôs .Parece até que eles não precisam de outra coisa que de tricô. CORO

Os pobres de Tebas terão frio neste inverno, Creonte. Ao saber da morte de seu filho, a rainha guardou suas agulhas, como uma boa menina,

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após haver terminado sua fileira de pontos, com toda a classe, como em tudo o que ela sempre faz, talvez até mesmo um pouco mais tranqüilamente que de costume. Dirigiu-se depois a seu quarto, seu quarto com odor de lavanda, com suas pequenas toalhinhas bordadas de fios de ouro afiados por sobre a pelúcia, bons para se cortar a garganta neles, Creonte.(49) Ela se estendeu agora por sobre uma das pequenas camas gêmeas e fora de moda, No mesmo lugar em que viste uma jovenzinha uma certa (50) noite e com o mesmo sorriso apenas um pouco mais triste. E se não houvesse essa larga mancha vermelha por sobre os lençóis, ao redor de seu pescoço, poder-se-ia dizer que ela ainda (51) está dormindo. CREONTE Ela também. Eles todos foram dormir. Tá bom. O dia foi cansativo.

Um tempo. Ele fala gravemente Dormir, isso deve ser bom. CORO E estás só agora, Creonte. CREONTE

Bem sozinho. É isso. Um Silêncio. Ele pousa sua mão por sobre as espáduas de seu pajem.

Pequeno... PAJEM

Senhor? CREONTE

Vou te dizer uma coisa. Os outros, eles não sabem de nada. Estamos aqui, diante da obra, e contudo não podemos nunca cruzar os braços. Eles dizem que isso é uma porcaria de serviço. Mas se não o fazemos, quem o fará. PAJEM

Não entendo disso, senhor. CREONTE

Mas claro não compreendes. Tens sorte! O que seria necessário era jamais se entender isso. Estás com pressa para crescer, estás? PAJEM

Claro, senhor. CREONTE

Tás louco, menino. Que história é essa de crescer logo, nunca, rapaz, nunca! (52)

O relógio bate as horas na sala ao longe. Ele murmura.

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Cinco horas! Mas o que é que temos para hoje às cinco horas?! PAJEM O conselho, senhor. CREONTE Bem, se temos o Conselho, menino, vamos lá! Saem. Creonte se apoiando no pajem. CORO Adiantando-se.(53)

Ah enfim! Sem a pequena Antígone, é verdade, todos eles teriam ficado bem tranqüilos. Mas agora, acabou-se. Eles estão, de uma maneira ou de outra, tranqüilos. Todos que tinham que morrer, morreram. Todos que acreditavam em algo e os que criam no contrário, mesmo aqueles que não acreditavam em nada e que se viram pegos na história sem nada compreender. Mortos da mesma maneira. Todos bem esticados, bem inúteis, bem apodrecidos. E os que vivem ainda vão começar devagarzinho a esquecê-los e a confundir seus nomes. Acabou-se. Antígone agora esfriou (54) não saberemos jamais de que febre. Seu dever foi cumprido. Uma imensa tranqüilidade triste pesa (55) sobre Tebas e por sobre o palácio vazio onde Creonte vai começar a esperar a morte... Enquanto o Coro falava, guardas entraram. Instalaram-se sobre um banco, seu litro de vinho tinto ao lado deles, seu chapéu sobre a nuca, e começa uma partida de baralho. CORO

Só restam guardas. A eles, tudo isso não interessa. Não é um troço deles. Pois continuam a jogar cartas... A cortina cai rapidamente logo que os guardas baixam seus trunfos.

FIM DE ANTÍGONE

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notas em azul, como blues

University of Califórnia .LA

(0) Bloodwedding , (1) Devrais/devais: usamos o condicional pois o brasileiro não tem a sutileza do francês nesse caso. Por polidez, lá, se usa o imperfeito no lugar do condicional...não se condiciona o outro, por respeito...Ora para dar ao papo o calor brasileiro da relação das duas, eu mantive o condicional, Antígone não falta ao respeito falando no condicional, está sendo familiar. Essa a razão dos dois outros termos no verso: Babucha por Nounou (não temos “Nounou”!), braba por brava/méchante; e, mais acima: matina por manhã / matin (2) A frase foi alongada para seguir a respiração brasileira num tipo de relação desse, bem mais íntimo e familiar aqui e, portanto menos seco & dar tempo da cama esfriar! ”et quand tu arrives le lit est froid”. (3) Il est vert de peur... o medo infelizmente é colorido. Franceses ficam verdes, nós amarelos, há os que ficam branco-pálidos como as Babás, azuis jamais ouvi dizer, mas quase dava nosso pavilhão de horrores.. (4) Pelo estilo de Anouilh o cara deve falar assim.Pois ele é uma figura que faz contraposição ao drama, como a Babá no início Acontece que um bronco lá em França & Oropa fala bem mais certo que um bronco aqui na Bahia. Só isso. (5) Durand / Boudousse... eu sempre gostei de assinar meus textos me colocando em papéis vis quando o autor permite... Afinal os nomes deveriam ser gregos e ele colocou, de brincadeira, nomes, provavelmente de gente conhecida. Bem, entre os três, você é o mais graduado, hehehe! Todo os texto do guarda seguirá assim. Não há problema pois é só recolocar em português normal, caso fique fora das regras acordadas. Qualquer acréscimo ou complemento de texto, dentro desse estilo eu mantive em azul. É só tirá-lo para se ter o original francês. (6) no original: “elle me criait de la laisser, “ (7) Todas interrupções de Antígone a seguir em azul, foram intercaladas por nós. Razões? a- é um bife muito grande. b- Creonte fala sozinho, para ninguém. Se falar com apenas assentimentos de Antígone, essa sensação é aumentada. Se ele falar sem Antígone, pode-se ter a impressão ( eu a tenho) de que ele fala demais, para exercer poder- o que não é o caso. Ele fala para desgastar para si mesmo a coisa toda.Pois JÁ CONDENOU ANTÍGONE. É NESSA FALA QUE ELE CONDENA ANTÏGONE À MORTE!!! Tenta apenas se desculpar por ser condutor de homens. (8) “Alors, aie pitié de moi, vis”. Deu-me imensa vontade de traduzir por “Então tem piedade de mim, visse!” É a primeira vez que vejo alguém chamar o outro de parafuso , tarraxa. Mas a frase

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originalmente, se entendermos não a expressão francesa, mas o estilo, dá algo como “Então larga de meu pé!” Eu por mim adoraria colocar o intraduzível VISSE paraibano, como tradução desse “vis” . No fundo a frase fica literalmente perfeita ( = Anouilh) de um modo ou de outro, mas não consigo ver Creonte falando “visse”.... (9) hors de soi. É bom prestar atenção nessa marca de Anouilh, que em geral , em outros autores menos sutis, se toma como “tá na hora da gritaria!”. Lá embaixo (nota 10) voltaremos ao tremendo erro que é o de se interpretar assim um hors de soi refinado, raffiné em bom francês...É o próprio Anouilh que insiste, na fala de Creonte : “É hora de se bancar o chique (= raffiné?)” E apesar disso continua se mantendo elegante no estilo, hors de soi, sem berros e histerias.. A isso chamamos ter classe

(10) Mas, ó bom deus, tenta compreender, também tu, por um minuto, pequena idiota! Eu,eu bem que tentei te compreender também. É necessário contudo que existam alguns que digam sim . É necessário que existam os que conduzam a barca. Barcas fazem água por todo lado, são cheias de crimes, estupidez, de miséria.. E lemes giram sem rumo.

( Visualização do jogo de repetições e sonâncias de Anouilh seguidos na tradução. Porque aumentei a exclamação Bom dieu! de um ó bom deus! e substituí o pronome pessoal moi pela repetição do também? Para o ritmo ficar perfeito, como o original) Porque escrevi separando os parágrafos, dessa vez como um poema? Porque só vejo poema em Anouilh. Antígone é uma peça de tropos, que deslizam de um lugar a outro ( Palácio/ colina de enterro de Polinice), por isso tão finamente trabalhada em figuras de retórica (característica também chamadas tópica, de topoi, isso é de lugares Do texto, claro.....). Colocamos essa grafia aqui como modelo. Julgamos que TODO o texto deva e mereça seguir essa separação/divisão/respiração poética que Anouilh dá ao seu texto. Deus! Ë bem diferente a inflexão, o tom, a veracidade de nossa leitura de Anouilh do que se o lermos COMO está escrito na página 179 (=tudoemendadocomosefösseumCreont

foradesihorsdeluieDESCONTROLADOnumalinguagemdeseconömicaede selegantelogoelequeéumpoçodesabedoriapolíticaeque mereceráumdosmaioreselogiosquejálisobreoexercíciohumildedopodercoisaqueNÃOsedábemcomcoléricosquegritamfrasesemendadascomoeupod eriafazerquandoestoucomraiva.!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!) É apenas a edição barata e econômica que nos (= autores & tradutores) leva a desrespeitar essa grafia visual da concretude de poemas. Na América Mamet, aqui Augusto e todos os Anjos nos ensinaram isso a long long time ago. No? (11)(...) qui menent la barque. Cela prend de l’eau (...) Et le gouvernail... Anouilh usa um formidável e refinado recurso que é nos mostrar a construção de uma imagem em metáfora , isso é, a metáfora não vem pronta, ela vem imagem e vai se construindo. Como isso pode ser perdido por um público menos afeito à literatura do texto ,

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nós reforçamos essa construção figural com alternâncias entre a singularidade e a generalidadeprincípio que pode estar, estudamos nós, na base das possibilidades metafóricas também. Assim o Gouvernail virará LemeS bem como o Cela virará BarcaS, plural, em vez do singular Isso repetição do nome que permite, além, nos mantermos dentro do ritmo do fraseado lítero-francês. (12) il ne pense qu’à piler la cale estivas, porões. Colocamos a palavra mais simples após a mesma palavra mais complicada. As pessoas que trabalham em portos no Brasil, são estivadores, claro, porque seu trabalho refere-se aos porões dos navios. Para evitar a confusão, repetimos como num dicionário, mantendo-nos fiéis ao estilo de Anouilh de repetições- sobretudo nessa fala de Creonte. Ele apenas se mostra inseguro do que está a dizer...E isso pode-se fazer por repetições sucessivas....Mas, claro, numa tragédia, ele sabe que vai condenar Antígone...não é o que diz Anouilh? (13) et toutes ces brutes vont crever ensemble ´e todos esses brutos irão morrer juntos” . substituí o juntos,significando “merecem todos a mesma morte “ pela repetição da condenação, apoiando mais a idéia de que merecem morrer e assim será. Um maktub fatídico. Também porque diz Anouilh, num admirável texto dessa mesma peça, que essa é uma marca da tragédia. (14) parce qu’elles né pensent qu’à leur peau à leur précieuse peau èt à leurs petites affaires mantive a sonoridade das frases “na língua do P”. Talvez seja exagerado colocar prazeres no lugar de negócios ( no original) Para se manter Ps até o fim. Mas também me parece que o negócio desses ´brutos que irão morrer todos juntos” é a própria pele, logo o próprio prazer. (15) de savoir síl faut dire ‘oui”ou “non” como o português ficou com uma cadeia longa de sons em SE (seguindo esse savoir s’íl..) & a frase ficou difícil de ser dita em cena por um ator, interrompemos o fluxo com esse agora, que não muda em nada o sentido, muito pelo contrário pois é bem elegante.. (16) On prend le bout de bois... mas, mais adiante: on tire dans le tas... Pode-se supor que esse pedaço de pau é o cabo de uma arma de fogo, uma vez que se vai atirar com esse pedaço de pau.... Parece-me mais um argumento em favor da hipótese do estilo de Anouilh fazer um recurso constante a processos figurais da Retórica Clássica ( é só se ler Fontannier para se mergulhar nisso). Que são os que empregamos também quando necessitamos passar não só a letra do texto, mas o espírito de Anouilh, o que chamamos também de seu estilo. (17) on redresse devant la montagne d’eau se fosse o pau, ou o fuzil, seria on le redresse, se fosse a própria pessoa seria on se redresse. Mas no francês coloquial ( “nós estamos conversando!.”... é o que Creonte quer fazer passar...) pode-se dizer on redresse, para si próprio. Optamos porém por levantar o fuzil, que pode parecer uma opção justificada apenas por uma maior obviedade.Por quê? Bem, se é você que se levanta diante da montanha d’água que está a se abater sobre o navio e que é ao mesmo tempo a montanha ( tas ) de amotinados que vêm em sua direção, seu personagem ganha uma conotação mais heróica, penso eu.

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Acontece que Anouilh nunca faz Creonte dizer que sua tarefa é de herói, pelo contrário, insiste que o exercício do poder é coisa comum, de homem comum, é coisa de DEVER e não heroísmo (18) Em favor de nossa tese do trabalho poético de Anouilh se fazer nesse trecho em cima de brincadeiras sonoras e repetições como reforço retórico- processos a que chamamos também de poético – reparar a seqüência: bout de bois ( ... ) tire dans le tas (...) Dans le tas! (19) on tire dans le tas ....atira-se no bolo (de gente). Mandar bala no bolo, porém, nos permite manter nosso texto brasileiro dentro da sonância de que falamos na nota 17 acima e outras. (20)et la chose qui tombe dans le groupe “e a coisa, corpo que cai” por ” e a coisa que cai no grupo...” Estamos pegando a mania de ajuntarmos a palavra que explica (corpo) depois da palavra que é difícil de compreensão ou que pode causar dubiedade em brasileiro ou que está sendo empregada dentro de um estilo (coisa)... Exemplo daqui: coisa por corpo- aonde Anouilh se utiliza de uma expressão mais crua que nós... Em outros lugares estou certo que foi o melhor ( vide nota 12) . Nesse exemplo aqui tenho realmente dúvidas, daí a nota.

(21) cramponné à la barre. Barre é o timão. Palavra que em português quer dizer: Corinthians. Optei por brincar com esse medo ( cramponné), cuja velha expressão mundial é estar agarrado à barra da saia da mãe, para, em seguida cair na palavra exata e brasileiramente ambígua... O processo aqui foi o inverso do usado nas notas 12 e 20. (22) et qui né pensait qu’à tout donner lui aussi o verbo dar tem conotação ruim em brasileiro, seja pelo político”é dando que se recebe” seja pelo sentido comum de entrega sexual. Julgo mais prudente, num texto que tem um vocabulário mais rico e refinado- e quero dizer estranho à cena nacional como um todo - não se arriscar aos pequenos idiotas que às vezes povoam nossas platéias. O verbo posto exprime a mesma coisa e não deixa chance ao riso.\ (22,5) Pobre Antígone, com tua flor de pano Delicada como as das anáguas. (23) idem para dur em ”Amo um Hemom duro e jovem” Não fica bem aqui. (24) Mais si votre vie etc. Ela trata Creonte por Vós em toda a peça.. Comum entre os franceses, incomum entre nós, mesmo sendo ele um Rei. Uso o tu coloquial sempre, Menos aqui, pois o vós não se refere mais a Creonte, creio, mas a todo uma concepção mais geral de vida, a uma filosofia“esse reino aonde não podemos entrar com nossas rugas, nossa sabedoria, nossa pança.” É sobre isso que Anouilh tenta conversar conosco, penso. Então acho interessante que Antígone inclua nesse “vocês outros”, tanto Creonte quanto o público.

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Daí o Vós. (25) Si tu te voyais criant ces mots, tu es laide. Se tu te visses gritando essas palavras, tu és feia.

Fecha essa boca! Precisavas te ver proferindo (25) tais palavras... Ficas feia! Optamos por seqüência de sons em F e P ( Já há cala-te suficientes) O interessante é a construção aqui de Anouilh, dessa pequenina jóia de frase. a- Inicialmente a rima interna preciosa de VOYAIT/LAIDE, cheia de problemas. b- Os sons sibilantes- de uso freqüente nesse texto de víboras e condicionaisapesar de abundantes (= 5/34), são na verdade restritos- na fala de uma atriz a apenas um, o primeiro, o inaugural SI ( algo como:”si tu te voié crian ce mö, tu é léd”) c- Processo parecido com 2 dos 5 sons de T ( tu/te/criant/ mots/tu) d- Por quê me parei tanto aqui para traduzir essa pequenina frase? O que eu deduzo? Que Anouilh também escrevia para ser LIDO, isso é visto, e não apenas ouvido. Uma marca curiosa, pois não é exatamente do fazer teatral, mas do fazer literário, não? e- Creio que fica também explicada minha escolha do proferir pelo gritar, para que mais calmos pudéssemos saborear bem a frase de Anouilh e para deixar no hemistíquio, o sinal das minhas duas escolhas Pro+ Fé.... claro, rindo! (26) Em Anouilh: chifonniers. Colocamos três designações da mesma coisa, uma comum,(lixeiro) outra mais complicada ( gari) e outra popular ( cenourinha, modo pelo qual são conhecidos em recife os empregados que trabalham à noite, da Empresa Municipal de Limpeza Urbana, por causa da cor de suas vestes). Não tenho preferência. E podem ficar os 3, fazendo um crescendo sonoro. (27) A questão da entrada em cena do VÓS, já foi explicada na nota #24. Um bom exemplo de que às vezes é TU às vezes VÓS- no próprio texto de Anouilh, é porque ele faz recurso de um indicador extra para tal.Qual? Esse famoso todos , que acrescentamos nessa linha, mas que está nítido e inteiro três frases abaixo dessa: “Vous avez TOUS quelque chose de laid au coin de la bouche “ etc... (28) Tu m’ordonnes, cuisinier? Me dás ordens, Mestre Cuca? Creio que já há bastante cozinha e cozinheiro por perto. Além de que, ela está zombando dele... Mestre por Rei e Cuca por cozinheiro, nos parecem as expressões mais corretas para essa ironia de Antígone, daí o início da frase pelo pronome, em erro gramatical, coisa que ela comete apenas uma vez em nosso texto, na hora que zomba.. Sim, claro. (29) L’antichambre est pleine de monde. Tu veux donc te perdre? On va t’entendre Beleza do estofo de um Corneille! E ainda essa beleza de inversão de sons, ao modelo de trabalho poético novo de sonâncias e rimas , que Joaquim Cardoso criou: t(1)u ... v(2)eux .. . don(3)c inverso em: < O(3)n ... < v(2)a ... t’(1)en...

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(30) Eh bien ouvre les portes. Justement, ils vont m’entendre. Tá bom, abre as portas. ‘’E isso aí, eles irão me ouvir. Pois que ouçam,

Portas, se abram! Que me ouçam! No original : dois versos de sétima Sem saber manter o ritmo da frase em sétima, e para não quebrar a estrutura ritmada de Anouilh , coloquei 3 de terras em pé quebrado ( = 3+1 fraco, ou (31)

uuu

- u , na notação latina ).

Laisse-moi maintenant avec tes jeremiades. Poupa-me agora tua choradeira .

Todos que conhecem Jeremias sabem que ele ficou sendo o profeta chorão, O que é uma injustiça com tão belo profeta. Acho que meu povo desconhece o que é uma jeremiada. O problema é que se for de crentes o meu povo- dado a razoável onda de crentes atual -ele não gostará de que chamem profecias de choradeira. Então...que a palavra desapareça da fazer teatral. Que pena.. (32) Repetimos os tinha para escandir o texto. Anouilh o escreve como um lamento., como blues .É uma “complainte”. (33) Mais um belo exemplo de imagem que lida é de admirável força, mas dita em palco, o público teria que gastar meia hora só para pensar em sua beleza e creio que não teria tempo de alcançá-la, a menos que houvesse um silêncio absoluto por 5 minutos após essa fala de Hemon. Aí está escrito: Cette odeur défendue et ce bom pain du soir, sous la lampe, quand tu me montrais des livres dans ton bureau, c’était toi, tu crois? LITERALMENTE: Este odor proibido e este bom pão da noite, sob a lâmpada, quando tu me mostravas livros em teu escritório, eras tu, tu o crês? Por quê esse odor é proibido? A leitura permite entender, pois nos dá tempo de repetir indefinidamente sem passar à próxima maravilha. Textos de teatro como esse de Anouilh tem esse problema de sobrecarga de beleza figural, bem superior à nossa capacidade de retê-la auditivamente. Insisto, ele escreve também para ser lido. Vamos pois ao odor que é proibido por Creonte e que por isso mesmo o faz merecer o respeito de Hemon. Respeito, pois é um pai que é capaz de fazer com que um meninozinho prefira continuar a ver livros em sua biblioteca que descer para saborear o bom pão da ceia, o pão da noite, cujo odor sobe pelas escadas e invade o recinto. A admiração do menino se situa entre o apetite aberto pelo odor e a proibição de que ele seja satisfeito – já que ainda vai se demorar mais um pouco a ver livros. Essa foi a sugestão de Creonte naquela noite que pode ter iluminado, mesmo que com lamparina apenas, essa infância, mas certamente deve nossa velhice. Ë bom ainda também se lembrar que Creonte afirma: Nessa tragédia queres um lugar. Só que será na cozinha... De onde vêm esse odor do bom pão de fim de noite em família.

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Hemon jamais pensaria que entre o pão familiar e a lei, Creonte não pensaria duas vezes em preferir a lei (la “defénse”). Jamais pensaria que aquela “proibição” era apenas um retardamento de algo que depois se cumpriria, o ritual familiar, como acontecia na infância. Não consegue entender que Creonte insiste em que ele saia da infância. A imagem é quase a da reconstrução da castração no processo edipiano, como passo de acesso ao universo do simbólico e portanto de acesso ao Eu. Lacan quem o disse em textos sobre O nome do Pai. Or.:Quando ela teve que renegá-lo, logo encontrou outra razão imediata. Or.: A multidão já sabe e urra ao redor do palácio. Or.: Pai, a multidão não é nada! Or.: E pensas que eu posso viver, eu, sem ela? Or.: Será necessário que aceites, Hemon. Or.: e ele acaba aceitando ser um homem Or.: Para ti, é hoje..(40) Or.: Já está acabado. Or.: Este odor proibido e esse bom pão da noite. Or.: Alojamento, aquecedor, alocações familiares . Puxei para cá. (Que Creonte quer incorporar todas ao salário, essa é a promessa dele...)

nenhuma dessas palavras é de Anouilh, claro,

e deverão sair fora. Quem propõe incorporar vantagens ao salário é Fernando Henrique, credo! Fique sossegado É AÚNICA FRASE EM TODO O TEXTO QUE FOI ACRESCENTADA...E SÓ PARA BRINCAR COM VOCË...hehehe ) (45) Or.: Um silêncio. O guarda corta o fumo de rolo para mascar. Um silêncio. O Guarda enrola um cigarro. Preferimos que ele fume a que masque... aqui isso era comum , ou no interior ou com as velhas negras. Tudo muito longe de nós hoje, penso. (46) Claro que bête não é besta, mas animal. Mas aqui, para o guarda achar que está xingando seus colegas, é mais exato bêstas. Duas bêstas... Oui.: Deux bêtes (47) suçant sa mine.

Não achei a expressão. Traduzi aproximado. Vou buscar o exato quando o texto for para edição. (48) e se estende por sobre Antígone, no original: il s’étend contre Antígone (49) “aux petits napperons brodés et aux cadres de peluche, pour s’y couper la gorge” São as toalhinhas com que se cobre tudo na Europa, entupindo as casas de paninhos. Não entendo bem de bordado para saber o que é um cadre de peluche. Vou me informar. Por enquanto fica assim. De todo modo é o tipo da imagem se processando por antinomias - coisa que faz parte de Anouilh – aqui, pelúcia, de pêlos, por fios cortantes...Achei mais simples colocar fios de ouro nesses bordados- o que aliás é comum – pois permitem a visualização mais fácil do público dessa figura, Eurídice, tão cuidadosa com a casa e tão distraída com detalhes que podem ferir seus filhos. É apenas com eles que Creonte andou se preocupado todos esses anos e o Coro sabe disso. (50) Nem sei porque essa nota. Achei simplesmente melhor essa noite ser certa noite e não uma qualquer. (51) Também não sei. (52) Original: Tu es fou, petit. Il faudrait ne jamais devenir grand. És louco, pequeno. Seria necessário não vir a ser nunca grande. Preferimos:

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ANOUILH & MICHELOTTO Que história é essa de crescer logo, nunca, rapaz, nunca! (53) Adiantando-se.....Para o proscênio, claro. (54) Or.: Antígone s’est calmée maintenant, nous né saurons jamais de quel fièvre Antígone se acalmou agora, não saberemos jamais de qual febre. Além de ser um termo para dizer que morreu (= esfriou) julgamos mais de acordo com o final em febre: Antígone agora esfriou. (55) Um grand apaisement triste tombe sur Thebes Uma grande tranqüilidade triste tomba sobre Tebas. Preferimos: Uma imensa tranqüilidade triste pesa por sobre Tebas fim das notas

finis operis hujus pridie kalendas novembris anno duo milésimo secundo sub sigillum Universitatis Foederalis Pernambucanensis. In artis communicationisque centro.

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Em cena, ao abrir das cortinas, Medeia e a Babá De cócoras, perto de uma carroça ( trailler). Músicas, cantos vagos ao longe. Elas escutam.

MEDÉIA Tás ouvindo? BABÁ O quë? MEDÉIA A felicidade. Ela ronda por perto. BABÁ Estão cantando na cidade. Talvez seja uma festa para eles hoje. MEDÉIA Odeio as festas deles. Eu odeio a alegria deles. BABÁ Não somos daqui. Um silëncio. Em nosso país é mais cedo, em junho, a festa. As meninas botam flores nos cabelos e os meninos se pintam os rostos com o próprio sangue, e, de manhãzinha, após os primeiros sacrifícios, começam-se os combates. Como são belos os jovens da Cólquida quando lutam! MEDËIA Cala- te BABÁ E depois passam o dia a domar animais selvagens. E ao cair da noite acendem grandes fogueiras diante do palácio de teu pai, grandes fogueiras amarelas com madeiras que soltam um bom cheiro. Tu esqueceste, minha pequena, o odor das ervas de nosso país? MEDÉIA Cala-te. Cala-te, boa mulher! BABÁ Ah já tou velha e essa estrada é por demais longa. Por quë? Por quë saímos de lá, Medeia? MEDÉIA Grita

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ANOUILH & MICHELOTTO Partimos porque eu amava Jasão porque eu havia roubado meu pai para ele, porque eu matei meu irmão para ele, cala essa boca, boa mulher, cala essa boca, Da onde tiraste que é bom ficar repetindo sempre as mesmas coisas? BABÁ Tinhas um palácio com paredes de ouro e agora aqui estamos, de cócoras, como duas mendigas, diante desse fogo que se apaga toda hora. MEDÉIA Vá buscar mais lenha.

A Babá se levanta gemendo e se afasta.

Medeia grita repentinamente Escuta! Ela se levanta. São passos na estrada. BABÁ Escuta e depois diz. Não. É o vento. Medeia se agacha novamente. Os cantos são retomados ao longe.

Não o espere, minha gata, ficas remoendo coisas. Se realmente for uma festa , eles devem të-lo convidado para ir. Ele está dançando, teu Jasão, está dançando com as moças dos Pelágios E nós duas estamos aqui, bestando(1). MEDÉIA

Grave Cala-te, velha. BABÁ Eu me calo. Um silëncio. Ela se põe de quatro para assoprar o fogo. Ouve-se a música. MEDÉIA

Imediatamente. Sente! BABÁ

O quë? MEDÉIA Esse troço de felicidade está fedendo até por sobre essa terra. Ë olha que eles nos largaram bem longe da aldeia! Estavam com medo que nós roubássemos as galinhas deles durante a noite!(2) Ela se levanta e grita.

Mas o que é que eles tëm tanto para cantar? E eu tou dançando, tou? E eu estou cantando, tou?(3) BABÁ

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Eles estão em casa. Seus trabalhos (4) por hoje findaram.

Um tempo. Ela sonha Te lembras, hein? O palácio era branco no final das filas de ciprestes quando retornávamos de nossas longas caminhadas... Davas teu cavalo ao escravo e caias por sobre as poltronas. Aí eu chamava tuas filhas para que te lavassem e te vestissem. Eras a dona e a filha do Rei e nada era bastante bonito para ti. Tiravam-se os vestidos dos cofres e escolhias, calma e nua, enquanto elas te esfregavam o óleo. MEDÉIA Cala de uma vez essa boca, mulher, és estúpida demais. Tás pensando que eu sinto falta de palácio, de vestidos, de escravos? BABÁ Fugir, viver fugindo! MEDÉIA Eu poderia fugir sempre. BABÁ Caçadas, batidas, desprezadas, sm país, sem casa. MEDÉIA Desprezada, caçada, batida, sem país, sem casa, mas não sozinha. BABÁ E tu me arrastas por aí contigo, com a idade que tenho?! E se eu morrer, aonde me deixarás? MEDÉIA Num buraco, nem interessa onde, à beira do caminho. BABÁ Ele ta te abandonando, Medéia. MEDÉIA Grita. Não! Ela para. Escuta. BABÁ

É o vento. É a festa. Ele também não voltará esta noite.

MEDÉIA Mas que festa? Que felicidade que faz feder até aqui o suor deles, o vinho forte, as frituras? Povo de Corinto, que tendes tanto a dançar e a cantar? O que há de tão alegre nesta noite que me aperta,, a mim, que me sufoca? Ah Babá, minha Babá, estou horrível (5) nessa noite. Sinto dor e sinto medo como quando me ajudavas a tirar um pequeno de meu ventre....

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Ajuda-me, Babá! Há algo se emxendo dentro de mim como outrora e é algo que diz não a aqueles lá embaixo, É algo que diz não à felicidade deles. Ela se agarra mais forte com a velha, tremendo. Babá, se eu gritar tu meterás teu punho pela minha boca a dentro, se eu me debater, tu me agarrarás firme, não é? Não me deixarás sofrer sozinha, não é mesmo? Ah segura-me, Babá, segura-me com todas tuas forças. Segura-me como quando eu era pequenina, como na noite em que quase morri ao parir. Eu tenho algo a por no mundo ainda essa noite, algo de bem mais rude, de mais vivo que eu mesma. E nem sei se serei bastante forte para isso... UM RAPAZ Entra de repente e para.

É vocë Medéia? MEDËIA

Gritando com ele.

Sim! Diz logo! Eu sei! UM RAPAZ

É Jasão quem me envia. MEDËIA Ele não virá essa noite? Ele está ferido? Morto? UM RAPAZ

Ele me manda dizer que você está salva. MEDËIA

Ele não voltará, não é? UM RAPAZ Ele mandou dizer que voltará, que você precisa esperá-lo MEDËIA

Não vai voltar para casa? Onde está ele? UM RAPAZ Na casa do Rei , Na casa de Creonte. MEDÉIA Prisioneiro? UM RAPAZ

Não. MEDËIA Ainda gritando. Sim! É para ele essa festa? Fala! Não vës que já sei? É para ele? UM RAPAZ

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Sim. MEDËIA

E estão bebendo? UM RAPAZ

Seis tonéis abertos em frente ao palácio! MEDËIA E os jogos, os fogos e foguetes que partem todos juntos para o céu. Depressa, depressa pequeno e terás terminado de representar teu papel, poderás voltar lá para baixo e te divertir.Que te interessa o que vais me dizer?Por que meu troste te dá medo?Queres que eu sorria? Pronto, taí: estou sorrindo!...De todo jeito é um,a boa notícia que me dás, já que todos estão dançando. Rápido, podes ir...eu já sei de tudo. UM RAPAZ Ele está casando com Creusas, filha de Creonte. A festa vai ser amanhã de manhã. MEDÉIA Obrigado, guri. Vá agora dançar com as meninas de Cotrinto, vá! Dance até não poder mais, dance a noite toda.E quiando fores velho, lembra-te que foste tu quem veio dizer isso a Medéia. UM RAPAZ Dando um passo adiante em direção de Medéia E o que é que eu digo para ele? MEDÉIA Ele quem? UM RAPAZ Jasão. MEDÉIA Diga-lhe que eu te agradeci. RAPAZ sai MEDÉIA gritando repentinamente Obrigado Jasão!Obrigado Creonte!Obrigado noite! Obrigado a todos! Como era tão simples: estou livre, agora estou livre! BABÁ Aproximando se/carinhosamente Minha águia orgulhosa, minha pequena ave de rapina!!! MEDÉIA Deixa estar, mulher!Não preciso mais de tuas mãos. Minha filha nasceu sozinha. E é uma filha desta vez, ô ódio! Como és novinha...Como és doce, cvomo cheiras bem! Pequena filha negra, eu só tenho tu no mundo para amar. BABÁ Vem Medéia.... MEDÉIA Deixe-me. Eu estou ecutando. BABÁ Esqueça a múisica deles. Não vamos ficar aqui fora. MEDÉIA Eu não a ouço mais. Eu ouço meu ódio. Ó doçura! Ó força perdida! Que foi que ele fez comigo, babá, com suas grandes mãos quentes? Bastou que ele entrasse no palácio de meu pai e pousasse uma sobre mim.Dez anos se passaram e só agora sua mão me larga. E eu me reencontro. Foi sonho? Sou eu. É Medéia! Não é mais esta

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mulher presa ao cheiro de um homem, esta cadela deitada a seus pés à espera.Vergonha!Vergonha!Meu rosto está em fogo,babá! Eu o esperava todos os dias, de permas abertas, metade amputada de mim... Humildemente eu era esse pedaço de mim que ele podia dar e tomar, este meio de meu ventre que era dele. Era preciso que eu lhe obedecesse, que eu sorrisse para ele, que eu me enfeitasse para ele, para lhe agradar, pois cada manhã ele saia, me levando com ele, a que ficava, ficava esperando toda feliz que ele me devolvesse a mim mesma.Foi preciso que eu lhe desse esta pele de carneiro de ouro se ele a quisesse, e lhe desse todos os segredos de meu pai e matasse meu irmão por ele e o seguisse em sua fuga, criminosa e pobre,mas com ele. Fiz tudo o que precisava fazer, é isso, e ainda poderia ter feito mais. Tu sabes de tudo isso, boa mulher, tu também amaste um dia... BABÁ Sim, minha lobinha MEDÉIA Amputada! Ó sol, se é verdade que venho de ti, porque me fizeste amputada? Porque me fizeste mulher? Para que estes seios, esta fraqueza,esta chaga aberta no meio de mim? Não seria lindo um menino chamado Medéia? Não teria sido fortte? Não teria o corpo duro como a pedra, feito para tomar e ir embora depois, firme , intato, inteiro, ele!Ah ele poderia tentar vir depois, ele Jasão, com suas mãos, tentar bota-las em mim! Uma faca em cada mão- isso!- e o mais forte mmata o outro e vai embora relaxado. Nã esta luta eo que eu só quero tocar suas espáduas, esta ferida que me fazia implorar. Mulher!Mulher” Cadela! Carne feita de um pouco de lama e de uma costela de homem! Pedaço de homem! Puta! BABÁ Beijando-a Você não, Voce não Medéia! MEDÉIA Eu sim, como todas a soutras. Mais fraca e mais idiota que as outras.Dez anos,babá! Mas esta noite acabou, eu voltei Medéia. Como é bom, babá! Como é bom! BABÁ Fique calma, Medéia! MEDÉIA Eu estou calma, eu estou doce. Estás vendo como estou doce, baba, como eu falo docemente? Eu morro. Eu mato docemente dentro de mim, Eu estrangulo docemente. BABÁ Vamos. Estás me dando medo. Vamos entrar. MEDÉIA Eu também estou com medo BABÁ Que é que eles vão fazer conosco agora? MEDÉIA Que pergunta! O que precisamos perguntar é o que é que nós iremos fazer com eles, sua velha! Eu tenho medo também, mas não é da música deles, dos gritos deles, do rei pulguento deles, de suas ordens. É de mim, de mim, que tenho medo!Jasão tu a tinhas feito dormir, mas eis que Medéia se acorda! Ódio! Grande onda de ódio, benfeitora tu me lavas e eu renasço! BABÁ Eles vão nos expulsar, Medéia! MEDÉIA Talvez. BABÁ E iremos para onde? MEDÉIA Haverá sempre um lugar para nós, boa mulher, seja deste lado da vida, seja do outro, um pais onde Medéia será rainha.Ó meu reino negro, tu voltaste também! BABÁ Gemendo pela canseira

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Vamos ter que empacotar tudo de novo! MEDÉIA Ô velha, empacotamos depois. BABÁ Depois de quê? MEDÉIA Ainda me perguntas? BABÁ Que é que, mas o que é que voce vai fazer, Medéia?

MEDÉIA O que eu fiz por ele quando trai meu pai e tive que matar meu irmão para fugir, o memso que fiz ao velho Pélias quando tentei fazer de Jasão o rei de usa ilha, o que eu fiz dez vezes por ele, mas desta vez o farei por mim. BABÁ Estás louca, não podes fazê-lo! MEDÉIA O que é mesmo que eu não posso?Eu sou Medéia, estou só, abandonada diante dessa carroça, à beira deste mar estrangeiro, cassada, odiada, injuriada, então nada é demais para mim! Música mais forte ao longe. Medéia grita mais forte ainda Que cantem e que cantem depressa o canto do casamento deles!Que eles a enfeitem logo, a noiva, em seu palácio. Há um bom caminho ainda até o casamento amanhã...Ah Jasão, tu me conheces bem, sabes bem a virgem que tiraste da Cólquida!Que é que estás pensando? Que eu iria começar a chorar? Eu te segui em sangue e crimes, será preciso sangue e crime para que eu te abandone. BABÁ Agarrando-se a ela Cala-te, cala-te te suplico! Afunda teus lamentos no fundo de teu coração, afoga aí teu ódio. Aguenta firme. Esta noite eles estão mais fortes que nós. MEDÉIA Isso vai dar em que, minha babá?! BABÁ Voce vai se vingar, minha lobinha, voce vai se vingar! Voce lhes fará mal um dia, fará mesmo. Mas nós dfuas não somos ninguém aqui. Só duas extrangeiras em sua carroça com seu velho cavalo, duas ladras de pouca coisa, apedrejadas aqui e ali pelos garotos de rua. Espera mais um dia. Espera até mais um ano, já já serás a mais forte. MEDÉIA Mais forte que nesta noite?Nunca! BABÁ Mas o que pode fazer nesta ilha inimiga? Colcos está longe e de Colcos mesmo, nossa pátria, voce foi expulsa. Jasão nos abandonou agora, o que nos resta então? MEDÉIA Eu! BABÁ Pobrezinha! Creonte é o rei e ele nos toleraram sobre esta terra só porque ele quis.Basta que ele diga uma só palavra, que ele dê licença, e eles ap-arecerão com suas facas e cacetes. E nos matarão. MEDÉIA tranquilamente Eles nos matarão. Mas já será um pouco tarde. BABÁ

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Medéia, eu sou velha, mas nãpo preterndo morrer! Eu te acompanhei, deixei tudo por voce. Mas a terra ainda está cheia de coisas boas para se fazer, o sol ainda brihará no céu, a sopa nos esperará

quente ao meio dia, as pequenas peças que ganhamos estarão em nosssas mãos, a gota que nos esquenta o coração antes de dormir (6) MEDÉIA Empurrando-a para longe dela com os pés, com desprezo Cacareco! Eu também ontem queria viver, mas agora não se trata mais de viver ou morrer BABÁ Agarrada em suas pernas Eu quero viver, Medéia! MEDÉIA Sei be,, todos só querem viver. E é por isso mesmo que Jasão está indo embora. BABÁ Repentinamente ignóbil Tu não o amas mais. Tu não o desejas mais há muito e muito tempo.trancados nesta carroça a gente acaba sabendo de tudo. Primeiro sinal: lee te disse uma noite que fazia muito calore que ele queria botar o colchão lá fora. Voce permitiu e eu te ouvi suspirar feliz por ter a cama só para voce mesma. Mata-se por um homem que nos prende ainda a ele, não por um que a gente deixa ir dormir lá fora. MEDÉIA Pega-a pelo pescoço e a levanta brutalmente até à altura de sua vista Cuidado mulher!Tu sabe muito e tu fala demais. Eu bebi leite em teu peito, tá bom,mas já tolerei demais todas tuas lamentações. E , sabes bem, não foi o leuite a causa de eu gter crescido. Eu não te devo mais do que à cabrita que poderia ter me dado leite também.Então, me_escuta: tu jáfalou demais dessa porcaria de tua carcassa, dessa tua gota e desse teu sol sobre a carne podre de teu corpo... Vá limpar a cozinha vá! Vá varrer por aí com os outros descascadores de batata de tua raça! Voce não está à alturas desse jogo que nós jogamos agora. E se voce se ferrar nele, seja por descuido ou desconhecimento, é pena, mas que se dane! Joga-a brutalmente ao chão. BABÁ Ela grita Cuidado, Medéia, eles estão chegando! MEDÉIA Volta-se, Creonte está dia nte dela rodeado por 2 ou 3 homens CREONTE É voce, Medéia? MEDÉIA Sou eu CREONTE Sou Creonte, o rei desta vila MEDÉIA Salve! CREONTE Contaram-me tua história. Teus crimes são conhecidos aqui. À noite, em todas as ilhas desta costa, as mulheres as contam aos seus filhos para lhes dar medo.Eu te tolerei alguns dias em nossas terras, mas agora deves partir. MEDÉIA Que mal fiz às pessoas de Corinto? Roubei dos pobres? O rebanho deles adoeceu? Envenenei sus fontes ao buscar nelas a água de minha refeição? CREONTE

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Não, nada disso ainda. Mas tudo isso podes vir a fazer qualquer dia desses. Vai-te embora. MEDÉIA Creonte, meu pai também é rei. CREONTE Eu sei. Vá reclamar lá em Colcos... MEDÉIA Que seja, voltarei para lá.Não sassustarei por mais tempo as matronas de tua cidezinha, meu cavalo não te roubará por mais tempo o capim raro em tua terra. Volto para Colcos se aquele que me tiruou de lá me levar de volta. CREONTE Que voce quer dizer com isso? MEDÉIA Entregue-me Jasão. CREONTE Jasão é meu hóspede, filho de um rei que foi meu amigo e ele tem liberdade sobre seus atos MEDÉIA Por que cantam lá na cidade? Por que esses fogos de artificio, essas danças, esse vinho de graça?Se esta é a última noite que me dão aqui, por que esses teus honestos corintianos me impedem de dormir? CREONTE Vim te dizer isso também. Festejamos esta noite as bodas de minha filha. Jasão se casa com ela amanhã. MEDÉIA Longa vida e eterna felicidade para os dois! CREONTE Eles não estão muito interessados em teus votos. MEDÉIA Por que recusá-los Creonte? Convide-me também para a festa. Apresente-me tua filha. Posso lhe ser útil, sabias? Fui mulher de Jasão por dez anos. Tenho muito que ensinar à menina, já que ela o conhece apenas há alguns dias. CREONTE É para que esta cena não aconteça que decidí que voce deixe Corinto hoje mesmo à noite. Atrela o cavalo, apronta as malas porque voce tem uma hora para cruzar a fronteira.Estes homens irão te fazer companhia. MEDÉIA E se eu me recusar a sair daqui? CREONTE Os filhos do velho Pélias, a quem voce assassinou,pediram sua cabeça a todos os reis da região. Se voce ficar, eu te entrego a eles. MEDÉIA Eles são teus vizinhos. São fortes. Entre reis trocam-se tais favores.porque voce não faz esse favor a eles? CREONTE Jasão me pediu para te deixar ir embora. MEDÉIA Bom menino! Eu preciso lhe agradecer, não é mesmo? Dá para me ver torturada pelos tessálios no dia mesmo de seu casamento? Dá para me ver no processo, há algumas léguas de Corinto, declarando a razão pela qual eu matei Pélias? “Pelo genro, honestos juizes, pelo genro honrado deste vosso bom vizinho com o qual vós mantendes as melhores relações possíveis!” Fazes teu trabalho de rei muito, mas muito, irresponsavelmente, Creonte! Eu tive tyempo de aprender no palácio de meu pai que não é assi m qie se goverma.É melhor me matar o mais rapído possível, sabias? CREONTE Ameaçadoramente É o que eu devia mesmo fazer. Mas prometi te deixar partir. Então, tens uma hora. MEDÉIA Plantando-se na frente dele Está velho, Creonte! És rei já há muito tempo.. Viste uma multidão de hones escravos em tua vida. Já fizeste do bom e sobretudo do pior. Olha-me bem dentro mdos olhos e tenta me reconhecer.Sou Medéia. A filha de Eates,

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que cortou a garganta de outras quando precisou e eram bema mais inocentes que eu, eu te garanto. Eu sou de tua raça. Da raça dos que julgam e decidem sem voltar atrás e sem remorsos. Não estás agindo como rei, Creonte! Se queres que Jasão fique com tua filha, manda-me imediatamente à morte, eu, àquela velha , às crianças que estão dormindo lá embaixo. E mata também o cavalo. Queima tudo isso depois com dois homens de tua confiança e duispersa as cinzas ao vento. Que não reste de Medéia senão uma mancha negra delimitando este capim e um conto, que agora sim amedrontará as crianças de Corinto à noite. CREONTE Por que queres morrer? MEDÉIA Por que queres que eu viva? Nem tu, nem eu, nem Jasão, nenhum de nós tem a menor vontade de que eu ainda esteja viva daqui a uma hora, sabes bem disso. CREONTE Faz um gesto. Diz de repente em tom de ameaça Eu não amo mais derramar sangue MEDÉIA Então, é o que digo: estás velho demais para continuar rei! Coloca teu filoho em teu lugar, que ele faça o trabalho que é preciso fazer enquanto vais cuidar dos vinhedos ao sol. Pois só serves para isso agora! CREONTE Orgulhosa! Fúria! Estás pensando que vim aqui para te pedir conselho? MEDÉIA Não, não vistes para isso, Mas aproveita que eu estou te dando. É meu direito. E o teu é o de me fazer calar a boca, se ainda tens alguma força. É simples assim. CREONTE Eu prometi a Jasão que irias embora sem que nada te acontecesse de mal. MEDÉIA Sem sofirmento?!!! E não partirei sem sofrimento, como tu dizes. Mas seria realmente bonito se eu partisse numa boa, quem sabe numa muito boa...legal se eu sumisse assim puf! Uma sombra apenas, uma lembrança, um erro lamentável essa tal de Medéia zanzando por ai durante dez anos. Foi tudo apenas um sonho de Jasão! Pois ele pode me botar para escanteio, pode se esconder atrás do saiote de teus guardas, atrás de teu palácio, atrás da inocência de tua filha, acabar te sucedendo como rei de Corinto que mesmo assim ele saberá que seu nome e o meu estarão unidos por todos os séculos dos séculos.Jasão-Medéia! Isso nunca mais poderá ser separado. Expulse-me, mate-me, dá na mesma. Com ele tua filha casa comigo também, queiras ou não, se o aceitas, me aceitas. Grita com ele Sê rei, Creonte! Faze o que tensque fazer! Expulsa Jasão. De meus crimes, a metade é dele, a mão que irá tocar a clara pele de tua filha estão tingidas pelo mesmo sangue das minhas. Dê uma hora, até menos, para nós dois. Nós já estamos habituados a fugir após cada um de nossos golpes sujos. Aprontar as malas para nós é coisa rápida, te garanto. CREONTE Não. Parte sozinha. MEDÉIA De repente, mansa. Creonte. Eu não quero te suplicar.Eu não posso. Meus joelhos não pode se dobrar, minha voz não sabe se fazer humilde.Mas és humano ainda, pois não soubestes te decidir a favor de minha morte. Não me deixes partir só. Devolva o navio à exilada, devolva-lhe seu companheiro. Eu não estava só quando vim. Porque fazr distinção entre nós dois na hora de partir? Foi para Jasão que matei Pélias, trai meu paui e massacrei meu irmão inocente quando fugi. Eu sou dele, su sua mulher e cada um de meus crimes é também e apenasum crime dele. CREONTE

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Mentes. Eu examinei tudo com cuidado.Jasão é inocente se separado de ti, sua causa é defensável, a sujeira é s[o tua.... Jasão é um dos nossos, filho de Carlos,(7) um de nossos Reis, sua juventude, como a de outros talvez trenhe sidfo louca, mas agora ele já é um homem e pensa como nós. Só tu é que vens de longe, só tu és estrangeiraaqui com teus malefícios e teu ódio. Retorna a teu Cáucaso, encontra um homem entre os de tua raça, um bárbaro como tu e deixa-nos sob este céu de razão, à borda deste mar sempre igual, que nada tem a ver com tuas paixões desordenadas e teus gritos. MEDÉIA Tempo Está bem, partirei. Mas meus filhos a que raça pertencem? A do crime ou a de Jasão? CREONTE Jasão pensou que eles só atrapalhariam tua fuga. Deixe-os conosco. Eles crescerão em meu palácio. Eu te prometo minha proteção para eles. MEDÉIA mansa Devo dizer muito obrigado mais uma vez, não é mesmo?Voces são humanos. Tem mais: são justos. Todos. E nadinha de ódio. CREONTE Guarada teus agradecimentos. Parte. O tempo já está se passando e quando a lua estiver no alto do céu, nada mais te protegerá em Corinto. MEDÉIA Apesar de bárbara, apesar de estrangeira, apesar de caucasiana rude, no Cáucaso de onde venho Creonte, as mães prezam sua prole e mantêm seus filhos agarradas a elas, como todas as outras. Os animais das florestas também. Eles dormem uns perto dos outros.Esses gritos, essas tochas no meio da noite, essas mãos desconhecidas que os agarram para tomá-los de mim, talvez seja um pouco demais para que paguem pelos crimes de sua mãe. Dê-me até amanhã à noite. Eu os acordarei pela manhã como todos os dias e os mandarei para o palácio. Creiame,Medéia, como um rei. Logo que eles dobrem na curva do caminho eu já estarei de partida. CREONTE Olha-a por um instante em silêncio e logo após diz Que assim seja. E acrescenta imediatamente, sem perdê-la de vista um instante É como disseste: estou ficando velho. Uma noite por aqui é demais para ti.É tempo suficiente para dez crimes. Eu deveria rechaçar teu pedido. Mas já matei demais também, Medéia. Eu também. E nas cidades em que entrei conquistador, à frente de meus soldados bêbados, foram muitas as crianças assassinadas. E é em troca disso que eu entregarei ao destino a noite tranquila daqueles teus dois filhos ali.Que ele se sirva disso, se quiser, para causar minha perda. MEDÉIA Sai seguido dos homens. Logo em seguida o rosto de Medéia se ilumina com toda sua força e ela grita para Creonte, dando cusparadas em sua direção. Se confiante Creonte! Confia em Medéia! Às vezes precisamos dar uma mãozinha ao destino. Mas leões não tem mãos. Perdeste as garras e agoras estás até a rezar, estás a tentar salvar crianças da morte....Ah estás pensando em deixar aqueles dois lá dormir tranquilos, porque alguma coisa começa a se remexer no fundo de teu peito quando estás só em teu palácio vazio, após o almoço e aí começas a pensar em todos aqueles que mataste. É teu estômago, velha ave de rapina (8) que está apodrecendo. Só isso. Come teus ensopados, passa teus pós no rosto e não te enterneça mais contigo mesmo, que és tão bom, aquele velho Creonte que conheces tão bem, mas que claro, também cumpriu sua cota de pescoços de inocentes, cortados quando ainda tinhas dentes e membros sólidos e fortes. Entre os animais, eles matam os velhos lobos para evitar que tenham esses acessos de arrependimento póstumo, esses ataques de auto-terrnura.Nem espere que terás direito a eles. Eu sou Medéia, seu velho crocodilo! Minha medida seria justa, casos os deuses quisessem aceitá-la. O bem e o mal, ambos me conhecem. Eu sei que quando

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se paga se paga à vista, que todos os gpolpes são bons e que é preciso se aproveitar deles o mais rápido possível..E já que teu sangue esfriou e tuas glândulas mortas te deixaram covarde o bastante para me conceder essa noite a mais, eu vou te fazer pagar por isso. Grita para a Babá Façamos as mals, velhota! Embarca tua marmita, dobra teus lençois, atrela teu cavalo. Em uma hora estaremos de partida. JASÃO Aparecendo Aonde voce vai? MEDÉIA Encarando-o Estou fugindo,Jasão, estou fugindo! Não é novidade para mim mudar de endereço. Mas a razão disso dessa vez é novidade, pois até agora foi por ti que eu fugi JASÃO Eu vim atrás deles. Esperei que se fossem para falar sozinho com voce MEDÉIA Tens ainda alguma coisa a me dizer? JASÃO Voce não acredita, sei. Em todo caso eu tenho que escutar o que voce tem para me dizer antes de partir MEDÉIA E não tens medo? JASÃO Claro. MEDÉIA Indo docemente até ele Deixa eu te olhar....Eu te amei. Durante 10 anos eu dormi contigo. Envelhecí como tu? JASÃO Sim. MEDÉIA Eu te revejo em pé, como tua primeira noite na Cólquida. Esse heroi moreno, acabando de descer de seu barco, essa criança mal criada que queria o ouro da Pele Dourada e que não se podia deixar morrer, eras tu mesmo? JASÃO Era eu. MEDÉIA Eu deveria ter te deixado ir sozinho enfrentar os touros! Sozinho voce deveria ter ido contra os gigantes que surgiam armados de dentro da terra, sózinho contra o dragão guarda da Pele Dourada. JASÃO Talvez devesse. MEDÉIA Estarias morto agora. E como teria sido bem mais fácil um mundo sem Jasão! JASÃO Um mundo sem Medéia também! Também eu sonhei com isso. MEDÉIA Mas este mundo só se entende com Jasão e Medéia, e é melhor que se o aceite como é. E poderás pedir ajuada à vontade a teu sogro, colocar teus homens para me levar para a fronteira, colocar um mar ou doies entre nós...Um mar ou dois entre nós não é o bastante, sabes bem. Por que o impediste de me matar? JASÃO Porque voce foi minha mulher por um longo tempo, Medéia. Porque eu te amei. MEDÉIA E não sou mais? JASÃO Não.

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MEDÉIA Feliz Jasão finalmente livre de Medéia! Foi por acaso teu amor repentino por essa guria de Corinto, foi seu leve e acre cheiro de mijo, seus joelhos fechados de virgenzinha que te livraramn de mim? JASÃO Não. MEDÉIA Foi o quê então? JASÃO Voce. Tempo. Estão cara a cara.Olham-se. Ela de repente grita MEDÉIA Não ficarás jamais livre de mim, Jasão! Medéia será sempre tua mulher! Podes me exilar, me estrangular daqui a pouco, e quando não puderes mais me ouvir gritar, nunca, nunca mais Medéia sairá de tua memória! Olha bem para essa cara onde só podes ler ódio, olha-a com a tua raiva. O rancor e o tempo podem deformá-la, o vício pode criar sulcos nela. Um dia ela será o rosto de uma velha mulher ignóbil de quem todos terão horror, mas tu, Jasão, tu continuaras a ler neste rosto, até o fim de teus dias, o rosto de Medéia! JASÃO Não. Eu o esquecerei. MEDÉIA Acreditas mesmo nisso? Vais beber em outros olhos, chupar a vida em outras bocas, tirar teu pequeno prazer de homem onde puderes. Oh terás outras mulheres, fique sossegado,as terás por milhares, logo tu que não aguentavas mais ficar apenas com uma. Nunca terás o bastante para procurar esse reflexo emm seus olhos, esse gosto entre seus lábios, esse cheiro de Medéia entrannhado nelas. JASÃO É tudo de que pretendo fugir. MEDÉIA Tua cabeça, a porra de tua cabeça de homem pode querer isso, mas tuas mãos derrotadas buscarão no escuro, independente do que queiras, por sobre esses corpos estranhos a forma perdida de Medéia! Tua cabeça te dirá que elas são milhares de vezes mais jovens ou mais belas. Então não feche os olhos Jasão, não deixe nada para depois. Tuas mãos obstinadas me buscariam noi corpo de tua mulher, mesmo que seja contra teu desejo. E acabarás por pegar, por fim, as que parecerão comigo, as Medéias novas em teu leito de velhice. E quando em algum lugar da Terra a verdadeira Medéia não for mais que um velho saco de peles cheio de ossos, irreconhecível, bastará uma imperceptível largura das ancas, um músculo mais curto ou mais longo, para que tuas mãos rejuvenescidas na ponta de teus velhos braços, se lembrem ainda e se espantem por não encontrar o que procuram. Corta essas tuas mãos, Jasão, corta-as imediatamente. Troca de mãos se queres um dia ainda amar alguém. JASÃO Voce pensa que lhe deixo para poder encontrar um outro amor, é isso? Voce pensa que é para recomeçar de novo? Não é apenas voce que eu odeio, é o amor, Medéia! Tempo. Eles ainda se olham. MEDÉIA Para onde queres que eu vá? Para oinde me mandas? Chegarei à Fásia, à Cólquida, ao reino de meu paui de campos banhados com o sangue de meu irmão? Me expulsas. Quais terras me ordenas ganhar sem ti? Quais mares ainda estão livres? Os detróitos do Ponto onde passei atrás de ti, enganando, mentindo, roubando por ti? Lemos, onde ninguém nunca se esqueceria de mim?A Tessália onde sou esperada para vingar um pai, assassinado por ti? Todos os caminhos, à medida que os abria para ti, os fechava para mim. Sou Medéia, a carreghada de horror e crimes. Tu podes não me conhecer mais, mas eles, eles me reconhecerão sempre. Situação embarassante, heim, para um velho cúmplice! Voce tinha mesmo era que me deixar matar, não é mesmo? JASÃO Eu salvarei voce. MEDÉIA

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Vais me salvar? Vais salvar o que? Esta pele usada e gasta, esta carcaça de Medéia, que só lhe serve para arrastar por aí a fora sua chatice e seu ódio. Um pedaço de pão e uma casa em qlagum lugar e que ela envelheça, não é mesmo, em suilêncio e que. Enfim, não se ouça mais falar dela! Por que és tão covarde Jasão? Por que não vais até o fim? Só há um lugar, uma morada onde Medéia calar-se-á de vez.Podes me dar esta paz que quererás que eu tenha, para poder viver. Vá dizer a Creonte que topas fazê-lo. Vai ser difícil, mas vai durar só um minuto.Já mataste Medéia hoje, sabes bem disso. Medéia está morta. Qual o problema com um pouquinho mais de sangue de Medéia? Uma poça na terra que será lavada depois, uma caricatura travada num rictus de horror que será escondida em uma terra qualquer, dentro de um buraco.Um nada. Mata, Jasão!Eu não aguento mais esperar. Vá dizer a Creonte. JASÃO Não. MEDÉIA Mais docemente Por quê? Acreditas ser algo demais um músculo que se rasgue, uma pele que se rebente? JASÃO Não quero sua morte. Sua morte ainda será voce. Eu quero esquecer. E a paz. MEDÉIA Não terás nenhum dos dois jamais, Jasão.Perdeste-os na Cólquida naquela noite, dentro da floresta quando me tomaste em teus braços. Morta ou viva, Medéia estará lá, como guarda diante de tua alegria e da tua paz.Este diálogo que começaste com ela, só podeá terminar com a morte. Após as palavras de amor e ternura, devem vir os insultos e as cenas, é apenas ódio agora, está bem, mas é sempre com Medéia que conversas. O mundo é Medéia para ti e para sempre. JASÃO O mundo então para ti sempre foi Jasão? MEDÉIA É isso. JASÃO Mas voce esquece rápido. Eu não vim me encontrar com voce para uma última cena de casal. Esta camada em que voce pretende nos prender ambos para a eternidade, quem foi mesmo que rompeu primeiro?Quem foi a primeira que aceitou outras mãos pousadas sobre sua pele, o peso de um outro homem sobre seu ventre? MEDÉIA Eu! JASÃO Eu cheguei a pensar que voce tivesse esquecido porque fugimos de Naxos MEDÉIA Tu já estavas caindo fora há muito tempo. Teu corpo repousava ao lado do meu cada noite, mas em tua suja cabeça de homem, fechada, já estava sendo forjada outra felicidade sem mim. Então, fui eu quem tentou fugir primeiro, tá certo! JASÃO É uma maneira cômoda essa de fugir MEDÉIA Nem tanto cômoda assim. Tás vendo: eu não posso mais fazê-lo! Essas mãos, esse cheiro, este prazer que tu nem me davas mais, eu os odiei imediatamente. Eu te ajudei a matá-los, eu te disse a hora de fazé-lo. Fui tua cúmplice contra eles. Eu os vendi para ti. Lembras ou esqueceste daquela noite em que te disse”Vem, está ai, quer pegar?” JASÃO Não me fale nunca mais daquela noite. MEDÉIA Eu fui abjeta, não fui?Duas vezes. E me desprezavas ee me odiavas com todas tuas forças e tudo o que eu podia esperar de ti era apenas este olhar frio- mas, de todo jeito, foi a ti que pedi para me levar. E olha que ele era bonito, Jasão, e como era bomnito meu pastor de Naxos! E ainda, ele era jovem e me amava. JASÃO Porque voce não disse a ele para me matar? Hoje eu estaria dormindo longe de voce, tudo estaria acabado.

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MEDÉIA Não pude! Eu precisei me colar em teu ódio, como uma mosca para poder retomar meu caminho contigo. Para que eu pudesse me deitar mais uma vez no dia seguinte ao lado de teu corpo enraivecido para pooder enfim dormir. Pensas que eu não fui mil vezes mais desprezada por tua causa? Eu urrei sozinha diante de meu espelho e me rasguei com minhas unhas para não ser essa cadela que voltava sempre para dormir de novo em sua toca.Os animais, esses se esquecem e se abandonam pelo menos e o desejo morre. Contudo eu te conheço, herói de meninas de Corinto. Eu te botei na balança e voce pesou. Eu sei o que podes dar. Estou ainda por aqui, estás vendo? JASÃO Creio que voce fez seu pastor ser assassinado um pouco depressa demais! MEDÉIA Jogando na cara dele Eu tentei Jasão, não soubeste?Eu etntei ainda com outros depois, não msoubeste? Mas não pude. Não pude, Jasão JASÃO Tempo. Mais calmo agora Pobre Medéia! MEDÉIA Indo contra ele com extrema fúria Eu te proibo de ter pena de mim! JASÃO Desprezo, posso? Pobre Medéia abarrotada de Medéia! Pobre Medéia a quem o mundo não reenvia a não ser a Medéia mesmo. Voce não (9)pode impedir de se ter pena, pois ninguém nunca terá pena de voce. E eu menos ainda, caso eu conhecesse apenas hoje sua história. O homem Jasão te julga como os outros homens. E seu caso será acertado para sempre. Medéia! É um belo nome. E no entanto apenas voce o terá em toda história dos homens. Orgulhosa! Carrega essa informação aí lá para o pequeno canto sombrio onde voce guarda suas alegrias: não haverá nunca mais uma outra Medéia por sobre a Terra! As mães jamais chamarão suas filhas com este nome. Estarás sozinha até o fim dos tempos, exatamente como neste presente minuto. MEDÉIA Melhor para mim! JASÃO Melhor?! Vamos, fique de pé!Feche os punhos, cospe, se arraste!Quanto maior o número dos que te odeiam melhor, não é isso?Quanto mais o císculo aumentar a seu redor, tanto mais voce se sentirá só, tanto mais voce sofrerá para poder odiar mais e mais isso tudo será muito bom para voce. Bem, esta noite voce não está tão sozinha, que azar! Pois bem,eu, que foi quem mais sofreu por voce e que voce escolheu entre todos para devorar, eu tenho pena de voce. MEDÉIA Não. JASÃO Tenho pena da Medéia que só conhece a ela mesma, que não sabe dar a não ser para tomar de volta, agarrada sempore a si mesma, envolta num mundo visto apenas por voce... MEDÉIA Guarda tua pena! Medéia ainda que ferida deve ser temida! É melhor te defenderes! JASÃO Voce está com jeito de um pequeno animal estripado que se debate enrolada nas próprias tripas, que ainda abaixa a cabeça para atacar. MEDÉIA Isso vai acabar mal para os caçadores, Jasão,se eles se permitirem crises de ternura que nem esta tua em vez de recarregar as armas. Sabes bem de que eu ainda spou capaz, não é mesmo? JASÃO Eu estou sabendo. MEDÉIA

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Sabe que eu não me enternecerei com voce, que não me porei a ter pena no último minuto, eu não! Voce me viu encarar as coisas e arriscar tudo outras vezes por bem menos, não foi? JASÃO Foi. MEDÉIA Então, estás querendo o quê?!Porque vens enrolar tudo com tua pena? Eu sou desprezível, sabes disso. Eu te trai como os outros. Eu só sei fazer o mal. Tu não me aguentas mais e pressentes bem o crime que preparo. Em guarda, vá! Recua! Chama os outros. Defenda-te em vez de ficar me olhando assim. JASÃO Não. MEDÉIA Eu sou Medéia! Eu sou Medéia, não te enganes! Medéia que nunca te deu nada além de vergonha. [Mentí, trapaceei, roubei, sou uma porca...](10) É por minha causa que foges e que a teu redor tudo se mancha de sangue. Sou tua infelicidade. Sou tuas feridas, as cascas de tuas feridas. Sou tua juventude perdida, teu lar dispersado, tua vida errante, tua solidão, teu mal vergonhoso. Sou todos teus gestos sórdidos , teus pensamentos mais sujos. Sou orgulho, egoismo,sacanagem, vicio, crime. Fedo! Eu fedo,Jasão! Todos tem medo de mim e se afastam.Sabes que sou tudo isso e que em breve serei apenas a decadência de tudo isso, a feiura, a velhice odiosa. De tudo o que é ruim e feio por sobre a terra, fui eu que recebeu o depósito . Então, já que sabes disso, porque não paras de me olhar assim? Não quero tua ternura. Não quero teus olhos a me olhar doces. Grita na cara dele Para, para Jasão! Ou vou acabar te matando para que não me olhes mais assim! JASÃO Tranquilamente Talvez seja o melhor, Medéia. MEDÉIA Olha para ele e diz com simplesmente Não. Tu não JASÃO(11) Vai até ela e pega em seu braço Então me escute. Não posso lhe impedir de ser quem voce é. Não posso lhe impedir de fazer o mal que voce carrega consigo. Os dados estão lançados. Esse conflitos insolúveis se desenrolam como os outros e alguém já sabe como tudo issi irá acabar. Não posso impedir nada. No máximo representar o papel que me deram já há muito tempo. Mas posso ainda voltar a dizer tudo. E se eu devo, nesta noite,estar entro o número dos mortos dessa histórias eu quero morrer como se me tivessem lavado as minhas palavras. Eui te amei, Medéia, primeiro como todo homem ama uma mulher. Voce sem dúvida provou apenas deste amor, mas eu te dei mais que um amor de homem, talvez sem que voce o tenha reconhecido. Eu me perdi em voce como a criança se perde na mulher que o colocou no mundo. Voce foi por muito tempo minha pátria, minha luz, o ar que eu respirava, a água que eu precisava beber para viver e meu pão de todos os dias. Quando te encontrei em Colcos voce era apenas a moça mais bela e mais dura que as outras que conquistei com a Tosa Dourada(12). É este jasão que voce lamenta? Eu te peguei como peguei o ouro de teu pai para te gastar rápido, para te usar rapidamente como ele. E depois, deus meu, ainda tinha minha nau, meus fiéis companheiros e outras aventuras a enfrentar. O mundo era Jasão,a alegria de Jasão, sua coragem ,sua força, sua fome. E se ambos tínhamos dentes de predador, claro um dia iríamos ver quem devoraria o outro... Até que uma noite e uma noite igual a qualquer outra noite, voce adormeceu à mesa como uma menininha, a cabeça apoiada em mim. E nesta noite em que voce talvez apenas estivesse cansada demais de uma estrada por demais longa, eu senti de repente quer tinha que tomar conta de voce. Um minuto antes e eu ainda era Jasão, e ainda eu só tinha que buscar meu próprio prazer neste mundo, fosse como fosse. Bastou que voce se calasse, que sua cabeça escorregasse cansada por sobre meu ombro para que tudo se acabasse. Todos continuaram a rir e a falar a meu redor, mas eu havia acabado de abandoná-los. O jovem Jasão acabava de morrer. E passei a ser seu pai e fui sua mãe, pois eu era aquele que carregava a cabeça de Medéia adormecida. O que sonhava dentro deste pequeno cérebro de mulher, enquanto eu cuidava de voce? Levei voce para nossa cama e não te amaie, nem mesmo desejei naquela noite. Apenas fiquei olhando voce dormir. A noite estava calma, nós havíamos nos

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adiantado de muito em relação aos perseguidores de seu pai, meus companheiros vigiavam armados ao redor de nós e contudo eu não ousei fechar meus olhos naquela noite. Eu fiquei alerta para te defender nesta noite se preciso fosse. Contra nada, foi o que aconteceu, mas eu fiquei alerta. De manhã, retomamos a fuga e os dias foram se assemelhando uns aos outros e pouco pouco todos esse garotos, os primeiros que me tinha seguido por mares desconhedcidos, todos esses guris de Iolcos, sempre prontos a atacar monstros com suas armas frágeis a apenas um sinal meu, todos começaram a ter medo. Descobriram que que não era mais o chefe deles, que eu não os levaria nunca mais a buscar lugar nenhum agora que eu te havia descoberto. Os olhos deles se tornaram tristes, até mesmo de desprezo, mas não me culparam de nada. Dividimos o ouro e nos separamos. Aí o mundo tomou esta forma. A forma que eu o via manter todo dia. O mundo tornouse Medéia... Esqueceu –se desses dias em que nada fizemos, nada fizemos que não fosse juntos? Dois cúmplices diante de uma vida dura, dois irmãos que carregavam seus fardos, lado a lado, sempre iguais, seja na vida seja diante da morte, de mangas arregaçadas e sem papos furados, cada um com sua metade das ferramentas, cada um com sua faca para os golpes violentos, cada um ficando com sua metade de cansaço, sua metade da garrafa nas refeições. Eu te envergonharia se te estendesse a mão quando a passagem era difícil, se eu tentasse te ajudar. Jasão só comandava um pequeno argonauta. Meu pequeno exército frágil , com os cabelos presos por um lenço, de olhos claros e fixos no caminho à frente, era voce. Mas ainda asssim eu poderia conquistar o mundo com minha pequena tropa fiel!... Na primeira manhã após o embarque na Argos com meus 30 marinheiros que tinham me dadpo a vida deles eu não tinha me sentido tão forte. E à noite , soldado e capitão se desnudavam lado a lado, surpresos por encontrar um homem e uma mulher por debaixo de suas duas roupas iguais, surpresos por fazer amor. Nós podemos ser infelizes agora, Medéia, podemos nos rasgar e sofrer. Esses dias nos foram dados e jamais poderá haver vergonha ou sangue que os sujem. Silêncio. Sonha. Medéia esta agachada, braços em torno de suas pernas, a cabeça escondida. Jasão se abaixa para olhá- la no rosto Ai depois o pequeno soldado retomou seu rosto de mulher e o capitão teve que voltar a ser homem e começamos a nos maltratar. Outras mulheres passaram pelas ruas e eu não podia me impedir de olhar. Pela primeira vez eu ouvi tuas risadas fundindo-se com as de outros homens e e no meio delas tuas mentiras começaram a aparecer. Primeiro uma que nos seguiu como um animal venenoso , cujo olhar não conseguíamos fixar ao tentar sair do caminho, depois outras e outras e quando à noite nós nos agarrávamos em silêncio envergonhado ainda de nosssos corpos ainda cúmplices, toda a tropa das mentiras fervilhava e respirava a nosso redor. Nosso ódio deve ter nascido numa dessas lutas sans ternura em que éramos tres agora a fugir, voce eu e a mentira. Mas para que redizer o que está morto? Meu ódio também já está morto. Ele para. Medéia retoma com doçura MEDÉIA Se nós só cuidamos de coisas mortas, porque sofremos tanto nós dois? JASÃO Porque todas coisas neste mundo são difíceis para nascer e tmabém difíceis para morrer. MEDÉIA Sofreste? JASÃO Mas claro. MEDÉIA Fazendo o que fiz eu não estava mais feliz que tu JASÃO Eu sei MEDÉIA Tempo. Medeía pergunta, rude. Por que ficaste tanto tempo? JASÃO

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Reagindo Eu ter amei, Medéia! Amei nossa vida de prisioneiros. Amei o crime e a aventura com voce. E nossos amassos e nossas lutas sujas de lixeiros e aquela cumplicidade que nos encontrava à noite, por sobre as palhas, nu m canto de nossa carroça, após nossos golpes. Eu amei seu mundo negro, sua audácia, sua revolta, sua conivência com o horror e a morte, sua fúria para tudo destruir. Aprendi a acreditar com voce que era sempre preciso tomar tudo para si e que por ser luta tudo seria permitido. MEDÉIA E não acreditas mais nisso hoje à noite? JASÃO Não. Quero apenas aceitar. MEDÉIA Aceitar o quê? JASÃO Quero ser humilde. Este mundo, o caos por onde voce me conduzia pela mão, eu quero que ele tome forma finalmente. É voce quem está com a razão sem dúvida ao dizer que não há razão, não hã luz, não há descanso, que é preciso remexer as mãos ensanguentadas, estrangular e rejeitar tudo o que arrancamos. Mas eu quero para agora. Quero ser um homem. Agir, talvez como aqueles que desprezamos, fazer o que fez meu pai e o pai de meu pai e todos que, sendo mais simples que nós, aceitaram antes de nós abrir uma pequena clareira onde o homem possa se manter no meio desta desordem e desta noite. MEDÉIA Achas que vais conseguir? JASÃO Sem voce, sem seu veneno sorvido dia após dia eu poderei sim. MEDÉIA Sem mim. Conseguiste então imagoinar um mundo sem mim? JASÃO Vou tentar com todas minhas forças. Não sou mais tão jovem para agurentar o sofrimento. A esssas contradições assustadoras, esses abismos, feridas eu reajo hoje com o gesto mais simples que os homens inventaram para poder sobreviver: eu os afasto. MEDÉIA Usas uma fala tão mansa,Jasão, para dizeres palavras terríveis. Como estás seguro de ti. Como estás forte! JASÃO Sim, estou forte. MEDÉIA Raça de Abel(13), raça dos justos, raça dos ricos, como todos voces falam tranquila e docemente! É legal, não é mesmo, ter de seu lado o céu e claro, a polícia em caso de dúvidas. É massa pensar um dia como seu pai e o pai de seu pai, como todos aqueles que sempre tiveram razão desde sempre. É bom ser bom, ser nobre, ser honesto. E tudo isso assim vapt-vupt, numa bela manhã, como sem querer, quando nos chegam as primeiras canseiras , as primeiras rugas, o primeiro ouro por sobre a cabeça. Joga o jogo, Jasão, faça o gesto, vá! Tens uma bela velhice preparada para depois, então vá! JASÃO Esse gesto, o da morte, eu jamais o faria contigo Medéia. Eu teria dado tudo para que nós tivéssemos nos tornado dois velhos, lado a lado, em um mundo acalmado. Mas voce, foi voce, não o quis. MEDÉIA Não! JASÃO Segue seu caminho. Gire, gire por aí. Rasgue-se, debate-se, despreze, insulte, mate recuse tudo que não seja voce mesma. Mas eu parei. Já está bom para mim. Aceito as aparências tão duramente, táo resolutamente quanto outrora as recusei com voce.E se é para comtinuar em combate, é por elas, as aparências, que agora me baterei, humildemente, apoiado nesta parede derrisória, construida com minhas própias mãos entre o absurdo e meu eu. Tempo. Acrescenta E é isso, ao final das contas- e nada mais que isso- que é ser um homem. MEDÉIA

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Nem tenhas dúvidas, Jasão: és um homem agora! JASÃO Aceito teu desprezo e aceito este nome. Levantando-se Essa moça é linda. Menos bela que voce quando me apareceu naquele primeiro dia na Cólquida e eu a jamais a amarei como te amei. Mas ela é nova, simples, pura. Vou recebê-la sem sorrir das mãos de seu pai e de sua mãe, daqui a pouco, sob oi sol do dia que está para amanhecer, com seu vestido branco e seu cortejo de criancinhas. De seus dedos desajeitados de garota eu espero humildade e esquecimento. E se os deuses quiserem, o que voce mais odeia no mundo, o que é a couisa mais longe de voce neste universo todo: a felicidade, ah sim, se puder espero a pobre felicidade. MEDÉIA A felicidade... Silêncio. Imediatamente, com voz baixa, humilde. Sem se mexer Jasão, é difícil de dizer,quase impossível. Isso me estrangula e me mata de vergonha, mas se eu te dissesse que queria tentar a felicidade contigo agora, me acreditarias? JASÃO Não. MEDÉIA Um tempo E estarias com a razão. Completa. Voz neutra. É isso aí. Já dnos dissemos tudo o que tínhamos para dizer, não é? JÁSÃO. Isso. MEDÉIA Tu acabaste. Estás limpo, lavado. Podes ir agora. Ciao, bye-bye... JASÃO Adeus Medéia. Não posso lhe dizer: seja feliz. Seja voce mesma. Ele sai enquanto Medéia murmura ainda MEDÉIA A felicidade deles... Recompõe-se e grita para Jasão que já se foi Não parta assim, Jasão! Volta. Gita qualquer coisa. Hesita. Sofra, Jasão, eu te suplico! Basta um minuto de desalento e de dúvida em teus olhos e estaremos salvos. Corre na direção em que ele saiu Tens razão! Tu és bom, és justo e tudo será culpa minha para sempre. Mas por um segundo, um segundo, duvida disso.Volta e talvez eu possa me libertar também... Seu braço recai, cansado. Jasão deve já estar longe. Ela chama com outro tom. Babá! Aparece a Babá na entrada da carroça Em breve o dia vai amanhecer. Acorda as crianças e os vista como para uma festa. Quero que eles levem meu presente de casamento para a filha de Creonte. BABÁ Teu presente? Pobrezinha, o que te resta ainda para dar? MEDÉIA Está escondido. Pega para mim o bau negro que eu trouxe de Cólcos. BABÁ

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Voce proibiu que se tocasse nele! Nem Jasão podia saber de sua existência. MEDÉIA Vá buscá-lo velha e de boca fechada!Não temos mais tempo para te escutar. Tudo precisa andar terrivelmente rápido agora. Dê o pacota para as crianças e leva-os até onde possam ser vistos da cidade. Quie eles perguntem pelo Palácio do rei, que digam que é um presente da mãe deles para a esposa. Que eles o entreguem em suas mãos e voltem. Escuta mais. O pacote contem um véu de ouro e um diadema, restos do tesouro de minha raça. Que meus filhos não o abram! Grita repentinamente com a velha hesitante Obedece! A velha desaparece na carroça. Ela sairá mais tarde de lá com as crianças. Medéia, só. É agora Medéia que voce tem que ser voce mesma! Ó mal! Grande animal vivo que rasteja por sobre mim e me lambe e me aprisiona. Sou tua esta noite, sou tua mulher. Penetra-me, rasga-me, incha e me queima no meio de mim. Vês, eu te acolho , te ajudo, eu me abro.... Vemnha como um peso por sobre mim com teu corpo aveludado, aperta-me comn tuas grandes mãos calosas e com tua respiração rouca sobre minha boca, me escuta. Eu final,mente estou vivendo! Sofreo e nego. Estas são minhas bodas. É para esta noite de amor contigo que eu vivi. E tu noite, pesada noite, barulhenta noite de gritos abafados e de lutas, noite encharcada de todos animais que se caçam, pegam e matam, espera ainda um pouco, por favor, não passe tão rapidamente... Ó bestas inúmeras aa meu redor, obscuros trabalahdores destas terras, inocentes, terríveis, matadoras....É isso que eles, os homens, chamam de noite calma, esse burburinho gigante de coitos silenciosos e de assassinatos. Mas eu te sinto, essa noite eu ouço todas suas vozes pela primeira vez, no fundo das águas e das ervas, nas árvoes, por sob a terra. Um mesmo sangue bate em todas as veias. Animais da noite, estranguladores, meus irmãos! Medéia é um animal como voces. Medéia vai gozar e matar comno voces. Esta terra toca nas bordas de outra terra que toca nas bordas de outra até ao limite das sombras, onde milhares de animais semelhantes se atacam e se cortam as gargantas ao mesmo tempo. Animais desta noite! Medéia está aqui, em pé diante de voces, cordata e traidora de sua raça. Eu dou vom voces este grito no escuro. Aceito como voces sem querer entender mais nada, o negro mandamento. Eu esmago com meus pés, eu apago a pouca luz que ainda resta. Faço de meu gesto uma vergonha. Eu tomo a responsabilidade para mim, eu assumo, eu reenvindico. Animais, sou de voces! Tudo o que caça e mata esta noite é Medéia! A Babá entra de repente BABÁ Medéia! As crianças chegaram no palácio, pois um grande rumor se elevou na cidade.Não sei qual foi teu crime, mas o ar já está dando sinais dele. Atrela rápido o cavalo e fujamos para afronteira. MEDÉIA Fugir, eu? Se por acaso eu já tivesse partido, eu voltaria só para me comprazer com este espetáculo! BABÁ Que espetáculo? MENINO aparecendo Tudo está perdido! O reino, o estado, tudo ruiu. O rei e sua filha estão mortos! MEDÉIA Mortos já? Tão depressa? MENINO Duas crianças vieram ao amanhecer trazendo um presente para Creusa, um cofre negro que continha um véu de ouro e um diadema precioso. Ela mal os toco, ela mal os colocou como uma menina muito curiosa se olhando no espelho quando mudou de cor e caiu se retorcendo comdores horríves, desfigurada pelo sofrimento. MEDÉIA Gritando Feia, feia como a morte, não foi?

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MENINO Creonte correu para socorrê-la, quis agará-la, lhe tirar o véu e o círculo de outro que matavam sua filha, mas foi só tocar e empalidecer. Ainda teve um instante de terror em seus olhos para depois arriar por terra gritando de dor. Ficaram embolados um no outro respirando em sobresaltos e misturando seus membros como se protegendo um ao outro sem que ninguém ousasse tocar neles. O que se dfiz por ai é que foi voce quem enviou o veneno. Os homens pegaram paus e facões e estão vindo para a carroça. Eu corri na frente para te avisar que voce não terá nem mesmo o tempo para se desculpar, medéia. Foge. E rápido. MEDÉIA Nunca! Grita para o Menino que foi-se embora Obrigado!Duas vezes obrigado! Foge voce! É melhor que nunca me tenhas cponhecido. Enquanto os homens tiverem memória é melhor ser dpos que não me conheceram... Volta-se para a Babá Pega tua faca, corta o pescoço do cavalo para que não sobre mais nada de Medéia daqui a pouco. Ponha brasas sob as rodas para fazermos uma fogueira de festa como a fazíamos na Cólquida! Vamos! BABÁ Estás me levando para onde? MEDÉIA Sabes bem: para a morte! A morte é leve. Siga-me velha, tu verás. Nunca mais irás arrastar teus velhos nossos que só te dão dores e te fazem gemer. Acabou tudo isso! Vais descansar finalmente, que grande domingo está começando! BABÁ Livra-se dela aos urros Não posso! Quero viver! MEDÉIA Quanto tempo ainda carregarás a morte nas costas minha velha? As crianças entram correndo e se jogam assustados por entre a s as saias de Medéia Medéia para. Oh Olha os dois aí! Estão com medo desse pessoal todo que corre e urra, desses idiotas??? Tudo será silêncio já já. Puxa suas cabeças para trás, olha-os nos olhos e murmura Inocentes! Armadilhas esses olhos de crianças, pequeninos brutais e espertos, com cabeças de homens. Estão com frio? Não lhes farei mal algum. Serei rápida. Justo o tempo do espanto ao sentir a morte diante dos olhos. Ela faz carinho neles. Vamos lá, eu garanto, só vou apertá-los mais um pouco contra meu corpo, pequenos corpos quentes. É bom ficar juntinho da mãe, perde-se o medo.Pequenas vidas mornas saidas de meu ventre, pequeninas vontades de viver e ser feliz... Grita Jasão! Eis tua família, ternamente unida. Olhe-a. Assim poderás te perguntar se Medéia também não teria amado a felicidade e a inocência.Se Medéia também não poderia nter, também ela, a fidelidade e a fé. Quando estiveres sofrendo daqui a pouco e até a hora de tua morte, pense que existiu um dia uma menina Medéia, que antigamente era exigente e pura. Uma pequena Medéia terna e amordaçada dentro da outra. Pensa que ela bterá lutado sozinha, desconhecida, sem uma só mão estendida para ajudá-la e que essa é que era a tua mulher. Eu quererei Jasão, eu teria querido talvez também eu que isso durasse para sempre e fosse como nas histórias! Eu quero, quero ainda neste segundo, de maneira tão forte como quando eu era pequenina, que tudo seja luz, tudo seja bondade! Mas Medéia inocente foi escolhida para ser a presa em vez da luta...Outros mais frágeis ou mais mediocres podem escorregar através das malhas da rede até as águas calmas ou a lama. Os peixes miudos, esses os deuses abandonam. Mas Medéia era uma caça bela demais presa na armadilha e aí ela vai ficar.Não são todos os mdias que eles conseguem desta vantagem não esperada., os deuses, uma alma bastabte forte para seus rencontros, seus jogos sujos. Eles puseram tudo sobre minhas costas e ficam olhando eu me debater. Olhe junto

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com eles, Jasão, meus últimos sobressaltos. Eu tenho ainda que cortar a inocência desta meninha que a teria querido tanto e desses dois pequenos pedaços mornos de mim. Eles esperam este sangue lá no alto, eles não suportam mmais esperar por este sangue lá no alto! Leva as crianças para a carroça Venham meus pequenos, não tenham medo. Estão vendo eu faço carinho, eu protejo voces e assim vamos entrando em casa... Eles entram na carroça. O palco fica vazio por um tempo. A Babá reaparece com ar perdido como um animal que se esconde, e chama. Medéia! Medéia! Onde estás? Eles estão chegando! Recua e crita imediatamente Medéia! Chamas saem por todos os lados cercando a carroça. Jasão entra apressado conduzindo os homens. Apaguem o fogo! Não a deixem- escapar! Medéia aparece na janela e grita MEDÉIA Não te aproximes Jasão. Proiba-os de avançar! JASÃO Para Onde estão as crianças? MEDÉIA Peça- o mais uma vez para que eu olhe bem dentro de teus olhos. Grita Estão mortos! Mortos degolados todos dois e antes mesmo que andes um passo adiante essa mesma faca irá me matar. Finalmente re encontrei meu cetro, meu irmão, a Tosa do Carneiro de ouro foi decolvida à Cólquida. Renencontrei minha pátria e a virgindade que tinhas roubado de mim! Sou, enfim, para sempre Medéia! Olha-me pela última vez antes de ficares sozinho no teu mundo razoável, olha bem para mim Jasão! Eu te toquei com essas duas mãos, eu as coloquei sobre tua testa ardente para que ficasse fresca e sobre tua pele para essa ardesse. Te fiz chorar, te fiz amar. Olha-nos: teu pequenino irmão e tua mulher sou eu. Sou eu! A horrível Medéia. E agora tenta esquecer-me! Ela se esfaqueia e cai por sobre as chamas que crescem muito envolvendo toda a carroça. Jasão, com um gesto, para seus homens que iram pular no fogo e diz simplesmente Sim, eu te esquecerei. Sim, viverei e apesar dos vestígios sangrentos de tua passagem a meu nlado, eu amanhã refarei pacientemente meu pobre andaime de homem sob o olho indiferente dos deuses. Volta-se para seus homens Que um de voces vigie esse fogo até que aí só restem cinzas, até que o último osso de Medéia esteja queimado. Venham voce outros,. Voltemos ao palácio. Está na hora de viver novamente, manter a ordem, dar leis a Corinto e reconstruir sem ilusões um mundo à nossa medida para podermos nele esperar tranquilamente a morte. Sai com seus homens, salvo um que dá uma golada de vinho e vai se arrastando par a guarda do fogo. A babá entre e vem timidamente se acocorar perto dele enquanto o dia ao fundo vai se abrindo.(14) BABÁ Ela não tinha mais tempo para me escutar, ora. Mas eu tinha alguma coisa a dizer, a se tinha. Após a noite vem a manhã radiosa e há o café para se fazer e as camas para arrumar. E quando varremos tudo, temos um perqueno momento tranquilo ao sol antes de descascar os legumes. É nessa hora que é bom mesmo, pois se pudemos ganhar algumas moedas, tomamos uns tragos para esquentar o buraco do ventre. Depois tomamos a sopa e limpamos os pratos. Após o almoço é hora de lavar os lençois e as panelas de cobre e aproveita-se para bater um bom papo com as vizinhas e devagar devagarzinho sem quase a gente se aperceber vai chegando a hora da janta. Aí a gente deita e dorme. GUARDA

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117 Após um tempo

Vai fazer um dia lindo hoje! BABA Vai ser um bom ano também. Haverá muito sol e muito vinho. E a colheita? GUARDA Já começamos a ceifa na semana passada. Amanhã ou depois vamos guardar tudo nos silos se o tempo se mantiver tão bom BABÁ A colheita de voces foi boa? GUARDA Não há o que reclamar. Ainda haverá bastante pão para todo mundo durante este ano. Durante esse diálogo deles – que continua perfeitamente audívela cortina cai.

PEQUENAS NOTAS PARA UMA TRADUÇÃO

1.

et nous sommes lá, toutes les deux e aqui estamos, todas duas. Bestando (= bancando as bestas) é um bom termo para as duas largadas lá no meio do mato, longe da cidadezinha, ouvindo os ecos da festa. Também para diferir um pouco o vocabulário de ambas.A Babá no final irá se mostrar bem prática, bem terra a terra, bem menos “nobre”. Estou só lhe adiantando um pouco o estilo 2. Por alguma razão me parece que a atriz não deve dizer essa frase com seriedade, mas com zombaria. 3. Est-ce que je chante, moi, est-ce que je danse? Será que eu canto, eu , será que eu danço? Sei lá ela, está irritadíssima, acho que pode usar um tu de vez em quando... 4. Leur journée est finie. O dia deles acabou. Jornada também é um dia de trabalhos, E é sobre eles que a Babá fala. Como falará no fim da peça. Daí nossa escolha do tërmo. 5. je suis grosse ce soir 6. . bela ironia 7. Molecagem pura 8. Ave de rapina, melhor, por 9. Esse não fica esplêndido ai, melhora um pouco o frances: 10. Já disse, já disse. 11. Essse texto é muito muito muito bem escrito, caramba! 12. Toison d´Or, ou Velocínio de Ouro,ou...só palavras estranhas para dizer isso: um artefato em forma de pele de carneiro todo em ouro. 13. Essa é uma das inúmeras brincadeiras de descontexualização, uma constante na escritura de Anouilh: um grego deste tempo invocando uma história judáica da qual ele não poderia ter o menor conhecimento, é uma bela chave para futuros intérpretes e tradutores de sua obra.

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ANOUILH & MICHELOTTO 14. Cara, esse final não existe! É muito bem bolado. A coisa toda vai para o ralo, o foco distorce todo parecendo que dessa vez volta para seu lugar certo: o povo, a comida, o sol, a vida. Putz!

Um espaço neutro, paredes pintadas, uma porta estreita e alta, um banco sobre o qual estão assentados lado a lado, Édipo e Jocasta. Coro Este homem que sonha sentado sobre este banco, ao lado de sua mulher, é Édipo. Na língua dele esse nome quer dizer o que tem os pés inchados. Ele teve um acidente quando criança-ele não sabe ainda que acidente foi esse- que o deixou assim deformado. Ele manca. É essa desgraça que talvez o faça ter tanta coragem e orgulho. Ele chegou nesta cidade, fugindo de seu país, há já uns vinte anos. Ele era jovem e não tinha medo de nada.

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Um monstro que chamavam de a Cantora Cadela, meio leoa, meio mulher, aterrorizava a cidade e impedia que alguém chegasse até ela. Essa esfinge, esse um de seus inúmeros nomes, propunha um enigma aos viajantes e se eles não conseguissem resolvê-lo ela os degolava. Ela então, naquele dia, parou Édipo, como parava todos os outros no caminho de Tebas e lhe fez a pergunta fatal. Ficaram um bom e longo tempo face a face, o velho monstro fêmea e o jovem rapaz, enquanto a noite caia, olhos nos olhos, um à espera da resposta. Ele pensava que se abrisse a boca e se enganasse iria morrer nesta mesma noite, estupidamente, sem realizar coisa alguma entre tantas de que ele se sentia capaz. O velho monstro o olhava com seus olhos excessivamente maquiados por uma máscara branca com uma boca ensanguentada e pensava que dali a pouco iria beber este sangue jovem como o fez com todos os outros. Havia, contudo, no fundo de seu olho esverdeado, algo como um medo vago diante do olhar ousado deste pequeno homem, fixado o tempo todo nela. Ela sabia que na misteriosa contabilidade dos deuses um só erro lhe seria fatal. Ao final Édipo, com esta certeza estranha e que nunca o abandonava de ser sempre o mais forte em tudo, respondeu simplesmente: “É o homem”. A essas palavras a velha teve um ataque de raiva e com uivos de louca se jogou do alto da montanha. Pela primeira vez um homenzinho de nada tinha resolvido o enigma que lhe dava seu poder, retirando-a de entre as criaturas por uma decisão dos deuses que nem ela também podia compreender. Tebas assustada, à espera, havia ouvido o grito desesperado do monstro. Então,todos saíram correndo em direção do jovem que havia libertado a cidade. Os mais jovens o colocaram sobre os ombros e levaram-no ao palácio real, onde ainda se chorava a morte de Laios, o velho rei, que havia partido para o exterior para consultar os oráculos e assim livrar seu povo do monstro, mas que havia sucumbido miseravelmente, em uma emboscada feita pelos bandidos das estradas. É o que dizem. A multidão gritava que era necessário que Édipo, seu salvador, fosse também seu chefe... A rainha Jocasta recebeu-o serena e séria, um pouco perturbada certamente pela beleza deste jovem que o povo trazia nas costas e exigia aos gritos que fosse o rei deles. Houve um longo silêncio entre eles. Édipo também a olhava um tanto perturbado. A rainha tinha mais idade que ele, mas era ainda muito muito bela. Esse segundo muito era ele que acrescentava neste momento. Uma estranha doçura emanava dela, uma promessa de paz, que deixava o jovem homem meio fora de controle. Enfim, após tê-lo longamente olhado - o que só aumentou o silêncio e a ânsia da multidão – estendeu-lhe a mão. Édipo com doçura Te lembras? Jocasta Claro. Édipo Há exatos vinte anos. Me disseste:”Estrangeiro, salvaste a cidade e ela pede que sejas seu rei. Queres-me por tua rainha?” Jocasta Foi assim. E enquanto o povo urrava de alegria a nosso redor, eu comecei a ser tomada por um medo repentino. Eu ainda era jovem. Laios me tomou como esposa aos 12 anos, mas tu, tu eras quase uma criança e eu tive medo que tu só conseguisses ver essas pequeninas rugas que insistiam em começar a aparecer nos cantos de meus lábios e de meus olhos. Édipo Foram elas que eu acariciei naquela noite, quando ainda perturbado te tomei em meus braços. Eras muito bonita. Jocasta Disseste eras. Bem agora eu estou um pouco mais velha. Édipo Não, não. Continuas a mesma. Jocasta Tem um leve sorriso e faz um pequeno gesto em direção dele

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Me amaste como se deve amar uma mulher, eu o sei, e isso foi desde o início.Tua avidez em me tomar para ti quase me dava medo. Mas após o amor, tu dormias dentro de mim, a cabeça por sobre meu seio, após um grande suspiro de relaxamento. E eu ficava acordada a tomar conta de ti. Eu sentia pouco a pouco esse jovem carniceiro que havia tomado posse de mim, ir se tornando pequeno em mim, quase como uma criança. E é estranho, era alguém muito puro e mais profundo que o prazer que tinhas acabado de me dar... Édipo Murmura, com a cabeça escondida no regaço de Jocasta Eu nunca quis sair de de dentro de ti Jocasta Com um sorriso terno Mas de manhazinha acordavas um homem e corria rápido para teus cães e teus soldados. Eu precisei um bom tempo para me acostumar com isso, pois amavas a caça e amavas a guerra. Édipo Levanta-se e diz É...eu era jovem! Ser rei era como tomar um porre. Dar ordens, com o machado nas mãos, tanto aos homens quanto às feras das florestas. Ser o mais forte, logo eu, o pequeno manco de quem todos zombavam antes. Édipo Rei! Por muito tempo essas palavras foram minha cachaça. Até que um belo dia, não tenho a menos idéia porque, essas vitórias todas parecem vãs, pequeninas. O dia está ensolarado contudo, contudo a manhã é igual a todas outras manhãs, a gente continua a se sentir forte como em todas as manhãs que precederam, tem-se tudo o que se pode e se quer ter, mas acaba-se dizendo para si próprio que a vitória é apenas e somente isso... esse gosto amargo na boca. Nunca houve outra coisa que pudesse me acalmar além deste desaparecimento à noite dentro de ti . Jocasta Com um sorriso triste Eu senti quando sem mais nem menos começaste a te enjoar de tudo...Eu te mandei escravas. Eu as escolhia entre as mais belas, eu mesma, apesar de meus ciúmes... Édipo Sombriamente Minha mão não reconheciam mais seu caminho por sobre as escravas. E uma vez acabado meu prazer decepcionante, lá estava eu de volta, enfim, para o caminho reconhecido, para esse abismo profundo e quente onde eu jamais tive o menor medo! Põe a mão com um gesto terno sobre ela e ficam em silêncio. Coro que estava a olhá-los murmura: Coro Ah a felicidade! Seu dente doce até a morte poderia ter engolido Édipo que voltava, sem saber porque, à fonte de tudo, ao fundo do ventre de Jocasta. Mas os deuses haviam tomado outra decisão. Os deuses não amam a felicidade dos homens. Então decidiram que eles não haviam sido feitos um para o outro. E isso valia sobretudo para Édipo... A coisa começou em Tebas por uma garotinha doente que os médicos observavam morrer sem entender o porque. Depois seguiram-se outras e mais outras mortes de crianças e rapidamente após as crianças, os velhos e após esses também os adultos e finalmente todos animais domésticos e o gado caindo aos rebanhos, sem que se soubesse a razão para isso. Era uma peste estranha que começou a assolar a cidade. Todos se apressavam para queimar os cadáveres, os sacerdotes multiplicaram suas preces e sacrifícios. Mas nada. A sombra da desgraça continuava a planar sobre Tebas. E então lembraram-se de seu rei, e vieram ver Édipo pata que ele os salvasse pela segunda vez. E foi aqui que a história toda começou... Uma pequena multidão de homens e mulheres, camponeses, entra e se junta ao Coro, se confundindo agora com ele. À sua entrada, Jocasta se levanta e entra em silêncio no palácio. Édipo se dirige a eles:

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Édipo Homens e mulheres deste país, você pediram para me ver. O que querem então? Coro Não aguentamos mais, senhor! É por isso que viemos até você, nosso rei. Nós lhe demos o poder e fomos submissos a você. Em troca você nos deve a sua proteção. Sua cidade, Tebas, está morrendo. De todos que vieram conosco não tem um só que não chore a morte de um filho, uma esposa, um pai. E os mais felizes, os que ainda não perderam nenhum parente, já choram de há muito por seu gado e pelos animais que eles amavam e que os faziam viver e pelos campos onde não nasce mais nada. Há vinte anos você nos salvou uma vez quando ainda era jovem, ao vencer a Cantora Cadela que degolava todos nossos viajantes e assim isolava nossa cidade do resto do mundo. É preciso que você nos salve de novo! Todos se ajoelham em silêncio, com gestos de quem não sabe o que fazer , diante de Édipo, mudo. Édipo! Eis-nos prostrados diante de você. Não lhe tomamos , claro, por um deus- você é apenas um homem todos nós o sabemos – mas sabemos também que você e é o mais forte e o de mais bom senso entre nós. Quando você venceu a Cantora Cadela, há vinte anos, os deuses estavam a seu lado. Se eles ainda forem favoráveis, oferece-lhes o sacrifício que pedem e suplica a eles que nos poupem. Édipo Faz um gesto em direção do Coro E fala para um deles. Velho homem, levanta-te! Todos vocês são meus filhos, mesmo você que é mais velho que eu. Ao me darem a glória, ao mesmo tempo me fizeram me encarregar de vocês. Eu sei bem que aqui cada um sofre por causa de suas próprias dores- mesmo o mais justo entre nós. Mas eu sou o encarregado de todas as dores de vocês. Este é meu papel. Vocês não me acordaram de um sono tranquilo. Desde o momento em que minha cidade começou a sofrer, eu perdi o sono. Eu busquei todos os caminhos, noite após noite, e desesperançoso da razão dos homens eu me voltei para os deuses. Eu enviei, então, Creonte, o irmão da rainha, a Delfos para consultar o oráculo e o que o deus nos ordenar fazer, isso o farei custe o que possa me custar. E se ele exige uma vítima inocente deuses às vezes têm esses caprichos – sou eu o seu rei e então será natural que seja eu quem pague. Peço-lhes que esperemos a mensagem que Creonte nos trará. Coro Ele voltou, Édipo Eu o vejo já subindo as escadarias do palácio! Édipo Ó deus, único e verdadeiro rei! Possa ele nos trazer a salvação! Coro Deve estar trazendo boas notícias, pois colocou uma coroa de louros! Creonte entra Édipo Príncipe, filho de Manasses, meu parente, que resposta nos trazes da parte dos deuses? Creonte Uma boa reposta: para nosso mal existe um remédio. Édipo Qual? Quais são os termos do Oráculo Creonte Se achas necessário ouví-lo diante de todos então falarei, senão , entremos no palácio. Édipo Fale na nossa frente. A dor deles é também a minha. Creonte Eis então a mensagem de deus. Ele insiste em que extirpes de nossa terra a sujeira que ela está alimentando. Se a deixarmos crescer, então será o fim de todos. Édipo

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De que tipo de sujeira e como devemos nos purificar? Creonte É preciso afastar os assassinos ou pagar a morte com a morte. A terra bebeu há muito o sangue secado, mas Hécate não está sossegada. Édipo De que assassinato o deus está falando? Creonte Príncipe, Laios governava esse país antigamente. Foi a ele que sucedestes. E ele foi morto, bem o sabes. O deus ordena que se punam hoje seus assassinos. Édipo Mas já se passaram 20 anos! Onde é que eles podem estar? Como encontrar- lhes as pegadas? Creonte Eles estão aqui mesmo, declarou o deus. E acrescentou: o que se busca, se pode encontrar! Édipo Disseram-me que Laios encontrou a morte fora de nossas fronteiras... Creonte Seu propósito, ele o dissera repetidamente, era de enganar por uma noite a vigilância da Cantora Cadela e de ir a Delfos em segredo, acompanhado de alguns homens apenas para lá consulta o Oráculo. Assim ele se foi, e nunca mais voltou. Édipo Nenhum mensageiro, nenhum companheiro de viagem voltou para dizer o que havia se passado? Creonte Todos morreram, salvo um que , tomado de medo -ele o confessou- fugiu após o início do ataque. Ele só se lembrava de uma coisa... Édipo Qual? Era talvez um pequeno indício? Creonte Negativo. Tudo o que pudemos tirar dele - e eu o interroguei eu mesmo apesar do choque haver perturbado muito o seu espírito – é que os bandidos que os assaltaram e que mataram o rei estavam em maioria. Édipo Mesmo se Laios tivesse apenas uma pequena escolta, todos sabiam bem que simples bandidos das estradas não teriam tido a audácia de atacá-lo! Essa história toda não poderia ter sido montada a preço de ouro a partir daqui por seus inimigos? Creonte Chegamos a pensar nisso por alguns instantes. Mas os tempos não eram bons, a pesquisa era infrutuosa e Laios acabou ficando sem um vingador. Édipo Mas como?! O trono estava em ruínas e vocês não tentaram nada? Creonte A esfinge que v venceste estava a nos bloquear os caminhos, lembras?

Édipo Após um silêncio Bom, este mistério tem que ser eu quem deve esclarecer. Fui eu quem sucedeu a Laios no trono; sou eu, portanto, o vingador designado. Já que o deus exige que se limpe a sujeira para dar a paz a esta cidade que se tornou minha, o assassino de Laios já me condenou. É minha causa também que vou defender contra ele. Tenha ele o poder que tiver, eu o desmascararei. Vão! Juntem o povo e digam que com a ajuda do deus eu ou conseguirei ou morrerei tentando resolver essa questão. Ele entra no palácio e todos se retiram, menos o Coro que avança em direção ao público Coro

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E mais uma vez já vai o coxo correndo! Ele estava adormecido na felicidade do ventre quente de Jocasta. Há muito que não havia mais guerras na região e há muito que os animais da floresta, agora pegos com a maior facilidade não serviam mais de elogios à sua destreza de caçador. Ele se sentiu de repente tão jovem e forte quando , há vinte anos, enfrentou a Cantora Cadela naquela noite. Nesta noite em que os homens o levaram sobre as espáduas até ao palácio, entre gritos e o cheiro de alho e de suor, pra fazer dele um rei. Vingar Laios iria ser sua obra. Iria, enfim, sair da felicidade tranquila e obesa e poder lutar novamente- poder voltar a ser homem, ora! Havia chegado a hora enfim de abandonar a cama confortável de casal onde a ternura terminava por nos engolir para dentro deste ventre eternamente protetor. É por isto que os homens partem para as guerras, quase alegre, enfim: de novo entre homens! É como se fosse um segundo nascimento da virilidade! E depois, salvar a cidade era seu ofício de rei. E os homens amam bastante seu ofício. Não é que vingar Laios fosse no fundo a coisa mais importante. Ele nem havia conhecido o ”velho” como às vezes ele e Jocasta na intimidade o chamavam. Eles falavam raríssimas vezes dele, apesar de sua sombra nunca ter saído dentre eles. Ela, ela não podia esquecê-lo , esta grande presença terrível, idoso como seu pai, a quem a entregaram um dia em que ela mal era uma menina. Este velho que tinha se divertido algum tempo com seu corpo de jovenzinha, antes de voltar a suas concubinas e a sua devassidão , abandonando-a ao vasto tédio de seu gineceu. E ainda houve aquele filho, seu único filho, nascido um ano depois que ele não quis ter nem manter vivo. E isso são coisas de que mulher nenhuma se esquece. Ela só havia se tornado mulher nos braços de Édipo. Com o outro ela não teve a menor idéia do que pudesse ser o amor, foi isso que ela confessou a Édipo daquela primeira noite e Édipo sabia disso. , mas a imagem do velho que foi o seu primeiro a torturava permanentemente e muitas vezes ela pensou em se livrar dele. Os bandidos resolveram o problema para ela, que bom! E agora era ele quem iria se tornar o seu vingador! A vida decididamente é absurda, mas, feitas as contas ele nem é tão má assim. E no dia seguinte, na hora da caça, Édipo saiu todo radiante de seu palácio.... Os camponeses voltaram a fazer parte do Coro quando Édipo reaparece. Édipo Homens e mulheres deste país, minha decisão foi tomada, mas é preciso que todos vocês me ajudem. Eu parto com vinte anos de atraso como um homem que não sabe nada dos fatos, nem das versões que correram na época do crime e minhas pesquisas darão em nada se vocês não me ajudarem. Se qualquer um de vocês tiver algum indício e que se tenha calado antigamente por medo, que ele fale agora. Seu silêncio covarde lhe será perdoado. Mas se alguém se calar, se temendo por si ou por um amigo deixar de confessar, escutem bem o que resolvi: seja lá quem for o culpado, eu proíbo – em toda extensão territorial de minha autoridade que alguém o ajude, fale com ele ou reze por ele. Vocês todos devem se afastar dele como se ele fosse a sujeira. Eu que sucedi a este rei, eu que tenho por esposa a sua mulher, que teria tido por filhos os seus filhos caso ele tivesse procriado- mas nisso a fortuna lhe foi adversa – eu estou decidido a combater por sua causa como se ele fosse meu próprio pai e a castigar seu assassino. Falem. Digam o que sabem, esta é minha ordem. Coro Príncipe, nenhum de nós jamais soube de nada. É ao deus que pede que se retome a busca a quem cabe designar o assassino. Édipo Sem dúvida. Mas nenhum homem jamais forçou a vontade dos deuses. Coro Uma outra versão do crime era contada antigamente. Mas era muito vaga e muito antiga... Édipo Diga-a. Devo examinar todas as possibilidades. Creonte Alguns dizem que não eram bandidos mas sim viajantes estrangeiros que atacaram o rei. Édipo

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ANOUILH & MICHELOTTO E eles se baseiam em quê para dizê-lo? Creonte Eles não levaram nada. Não foi roubo.

Édipo Já me haviam dito isso também. Mas nessa época não conseguimos nenhuma testemunha ocular. Agora, então, como é que iríamos encontrar? Creonte Tirésias, príncipe, ara o sumo sacerdote nesta época e ele tinha o dom de visões. Foi ele quem disse isso. Depois, tornado velho e cego ele se retirou para as montanhas e só reza e só se cala. Talvez ele pudesse esclarecer esse negócio. Édipo Já me sugeriam isso também e guiados por Creonte eu já lhe enviei dois de meus homens. Devem chegar aqui pela manhã. Coro O assassino, sabendo que você tomou tais medidas vai viver agora sob o medo e quem sabe acabe se traindo. Édipo Esperemos que sim. Mas o homem é o mais rude dos animais e se não tremeu na ação, temo que não se assuste com uma ameaça. Coro Pode ser. Mas já está chegando aquele que pode desmascará-lo... Aparece Tirésias conduzido por uma criança Édipo Velho e venerável Tirésias, estás diante do rei. Parece que tu sabes tudo, as verdades que podemos verificar e as verdades de verificação proibida., as coisas do céu e as coisas da terra. Teus olhos estão cegos e sei que vives há muito tempo retirado lá nas montanhas. Mas certamente não ignoras o mal que nos assola e o que os deuses exigem para nossa liberação que é a punição pela morte ou exílio do ou dos assassinos de Laios. Fala, então. Dize- nos o que sabes sobre essa história e rememora tudo o que já soubeste antigamente. Diante da exigência dos deuses, como qualquer um de nós, tu também não tens mais o direito de te calares. Tirésias Gravemente, após uma pausa. Sou velho demais. O que eu soube antigamente, e já o esqueci. E é por isso que eu aceitei vir. Édipo Mas por quê? O que há contigo? Por que estás perturbado? Tirésias Imediatamente Deixa-me ir embora. Será melhor para mim e para ti, creia-me.

Édipo Recusas ajudar teu pais numa desgraça? Tirésias Sou velho demais e já me retirei do meio dos homens. Édipo O quê?! Conheces a verdade e te negas a proferí-la? O destino de tua cidade está em jogo e eu ainda sou o rei dela. Ordeno-te então que fales! Tirésias Tu me interrogas em vão. Para que serve fazer-nos ambos sofrer? Permita-me que eu me vá. Esse menino conhece o caminho e me guiará. Édipo

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Velho homem, és um santo, parece, e te retiraste para viveres de montanhas e de preces, está bem. Mas eu sou o responsável por este país e não posso me dar ao luxo de me livrar das coisas deste mundo. Saiba bem que de um modo ou de outro eu te obrigarei a falar! Tirésias Um tempo. Ameaçador As coisas acontecem por elas mesmas, mesmo que meu silêncio as oculte. Deixa-me partir, estou velho e cego. Édipo É uma saída fácil, a velhice!!! Mas creia-me: eu não te deixarei ir embora! Silêncio. Édipo endurecido perscruta Tirésias Queres que eu diga porque essa tua obstinação em te calares? Claro, não foste tu quem bateu, mas conheceste o crime antigamente e então podes ter tu o sido o instigador ou o cúmplice.E é por isto que foste para as montanhas quando me tornei rei, santo homem, porque teu golpe não funcionou! Mas és como uma mosca em minha mão agora. Eu te ordeno falar ou o pouco de sangue que te resta irá ser derramado. Tirésias Repentinamente muito violento Pois bem, eu, eu te ordeno, pela força do edito que proclamaste, que fujas desta terra que sujas, pois é de ti que nos vem todo o mal. Édipo Estás sabendo com quem falas? Tirésias Claro. Édipo A pessoa do rei é sagrada, sabes bem. Acusá-lo é um crime e eu posso te destruir imediatamente. Tirésias Eu trago em mim a verdade viva e a verdade não se pode matar. Édipo Zombando A verdade? E foi certamente tua arte que a revelou?. Sacerdotes orgulhosos!Pensadores! Eunucos! Como se fosse um ofício de homens o ofício de pensar! Os que me carregaram nos ombros até o palácio para me fazer rei o que me pediram não foi que eu pensasse! Mas sim que eu arregaçasse as mangas e e tomasse a vida- a vida deles- em minhas mãos para ajudá-los a viver, a lutar contra a miséria, a insegurança e os crimes que nos emboscam entre povos de lobos...Pediram-me para ser seu chefe e não seu pastor! Acima deles, certo, mas com os pés sobre a mesma terra que os deles. Diante dos Argivos de longos dentes que começavam a se mexer para dentro de nossas fronteiras quando o trono ficou vacante, acreditas que eles precisassem mesmo era de um adivinho? O que iria acontecer não era difícil de adivinhar, te garanto, pois toda presa fraca encontrada no meio da mata está perdida. Para defendê-los era necessário um homem. Os deuses estão muito longe de nós, sabes, e não entram em detalhes: é entre homens que a vida se regula. Eu fiz o que tinha de ser feito e a cidade foi salva. Tirésias ameaçador E voltaste a perdê-la... Édipo Após tê-lo contemplado por um instante, Com um sorriso malévolo nos lábios Que naufrágio que é a velhice, não?! Tremes durante a noite e durante o dia és só papo furado! [0] E Creonte foi mesmo um maluco em me aconselhar ir te buscar...Talvez antigamente pudesses ver com clareza, mas esses tempos estão muito longe agora... És um cadáver bem longe de nós, com as idéias embaralhadas. Quem sabe mesmo já esquecestes o que acabaste de me dizer. Estás lembrado ainda?.. Tirésias Eu disse- e repito- que tu és o assassino que procuras!

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Édipo Está bom, dessa vez já passou dos limites! Chama Guardas! Coro Adiantando-se Édipo, este homem é um santo! Sempre foi venerado e escutado em nosso meio! Todo mundo ficaria muito perturbado se tu tocasses nele! Édipo Virando-se para ele, fulo de raiva Ah é?! Esse traidor tem direito a dar sua opinião? Foi ele que seduziu a Cantora mutante? Cansaram-se de mim? Minha polícia já me havia advertido disso. Andaram trabalhando com belas palavras, por detrás das bodegas de Tebas, o cérebro desses obtusos artesãos que fedem a alho? Estão acordando a opinião pública que andou meio adormecida? Isso é uma conspiração? Primeiramente foi ele , esse velho resto de gente que imaginou essa história que só vai servir, no final das contas, para rebentar em pedacinhos esses seus velhos ossos. A quem mais essa história poderia servir , a que outro ainda vivo, escondido aí por detrás deste velho e augusto maluco. Creonte, talvez? Tirésias Violento [00] Creonte não tem nada a ver com tua infelicidade. És o único artesão dela! Édipo Repentinamente começa a gritar Ó riqueza! Ó realeza! Ó talentos, ó coragem! Todos esses caminhos que julgamos belos, a inveja não pensa em outra coisa que sujá-los e destruí-los. O poder que esta cidade me colocou entre as mãos sem que eu o tenha desejado, Creonte o deseja, eu o sei. Creonte, o irmão de minha mulher, meu amigo desde o primeiro dia! Ele estava bem próximo do trono no dia que cheguei. E agora ele não pode fazer nada: eu o afastei e está difícil para ele esperar outra vez. Ele está fazendo algum complô e por isso me envia esse feiticeiro intrigante, este esperto charlatão, esse cego que possivelmente nunca viu nada , esse sábio venerado pela credulidade pública e que só usa bem seus olhos quando pode tirar proveito deles. E agora, cita-me um, somente um caso em que tenhas acertado tua adivinhação, velho impostor! Quando a Cantora Cadela estava por ai e cantava seus enigmas, por que foi que não encontraste a boa resposta e assim livrar toda tua cidade da maldição? Claro não era qualquer um que podia resolver, não é, só adivinhos!!! Mas certamente o que se precisava mesmo era arriscar a pele, isso sim, olhos dentro dos olhos da fera. E o que viste então? Nem os pássaros nem os deuses te revelaram nada. Eu era apenas um viajante solitário, com um saco nas costas e um bastão na mão. Não consulte os augúrios através das aves apenas olhei a Cantora entro de seus olhos e por fim arriscando tudo lancei-lhe minha resposta obrigando-a a votar para o nada. É assim que eu me tronei rei. Mas como eu estou atrapalhando hoje, vocês estão chamando os deuses para ajudá-los. E tu já te sentes sentado à sombra do trono de Creonte. Pensas ser o mestre secreto do poder com tuas pequenas frases iniciando por “eu penso, companheiros, que...”!!!. [0] Velho palhaço! Essa regeneração vai custar caro a ambos. A vida é dura, mas eu sempre venci. Chama mais uma vez Guardas! Coro Colocando-se entre eles. Eles fala sob o império da paixão, Édipo, e você também. A verdade só aparecerá se os dois procurarem juntos. Édipo Eu sou o rei e disse que encontraria a resposta sozinho. Então assim será. Tirésias

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És o rei. Mas tenho o direito de te responder de igual para igual, pois não estou a teu serviço: sou um sacerdote. É a um outro rei que sirvo. Deste-me vergonha ao seres tão cego, então escuta o que vou te dizer. Aquele que vê tudo tão claramente, não está enxergando o abismo para onde se dirige, nem vês onde moras e nem quem te deu a vida. Sabes ao menos de quem nasceste? Dos teus, mortos ou vivos, és o inimigo sem o saberes. E em breve, se aproximando terrível e com golpes sobre golpes, para teu pai e tua mãe, a maldição ligada a teu sangue te expulsará deste país. Então, tu que tens tão boa visão, ficarás em meio à noite e compreenderás que caminhos proibidos você trilhou, cego, contra o vento. Jamais mortal algum terá sido, como tu, um brinquedo tão terrível dos deuses. Édipo perceptivelmente perturbado [1] Velha sombra! Velho ódio! Vieste para me fazer medo, foi? Tirésias Vim porque me chamaste Édipo Gravemente, após tê-lo contemplado um instante em silêncio. Vá-te embora velho! Eu pouparei teu velho corpo repugnante. Volta para tua montanha velho louco! Tirésias Os autores de teus dias me julgavam um sábio e me pediam conselhos. Conduz-me pequeno! Édipo Dando repentinamente um grito Quem? Espera aí. Falaste dos autores de meus dias. Sabes a quem devo minha vida? Tirésias Antes desta tarde receberás a luz e a perderás. Édipo Que luz? Uma vez por todas pára de falar em enigmas! Tirésias Com um certo brilho irônico dentro de seu olho [2] Não és tão bom em resolvê-los? Reflete pois, do mesmo modo que fizeste com a Cantora Cadela e encontrarás as respostas. Édipo Sorrindo Vou te contar uma coisa. Nunca me perdoaste de ter descoberto o enigma sozinho, apenas com minha razão humana, não foi mesmo?! Tua arte nunca te ajudou, não é verdade?! Tirésias Este grande sucesso de tua razão foi o que te perdeu; Édipo Se salvei meu país, o que importa o resto? Tirésias Duro Não era teu país e ainda não é teu país. És um estrangeiro aqui e é um estrangeiro que matou Laios. Agora me leva daqui pequeno, voltemos para casa. Édipo É isso, tá na hora dele te levar para tua cabana para continuar profetizando no deserto. E todos vocês saibam que eu sou Édipo, eu sou o rei e já demonstrei para vocês que não tenho medo de enigmas. Tirésias sai, levado pelo seu pequeno guia. Édipo entra no palácio, os homens e mulheres de Tebas se retiram, sobra apenas o Coro no palco. Coro Chegamos lá. Édipo está agora pronto para representar a peça pra a qual ele foi sem dúvida criado desde toda eternidade.

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E ele irá até o seu fim. O homem é um rei que manca.[3] Ela anda com um pé na sombra e o outro no caminho claro de sua razão e avança sem saber bem para onde vai. Sobre a estrada de luz ele reconstrói orgulhosamente o mundo e , mesmo com apenas uma perna, ele pode tudo.! Mas o outro pé segue pela trilha obscura e escorregadia no fundo de seu ser. E é por isso que ele manca, o infeliz! Algumas vezes ele crê ter vivido como um justo, mas ele apenas esqueceu a besta que mora nele e que vai se vingar. Algumas vezes ele viveu como um animal, cedendo a todos seus desejos, mas esqueceu o pequeno garoto que ele foi outrora e que, quando chegar sua vez, vai julgá-lo, jovem anjo exterminador que é. Pois no topo de seu triunfo um homem é apenas uma presa dos próprios remorsos, estranho animal que ele é! Em todo caso, agora, ele vai regrar suas contas. Vai ter que fugir diante dele mesmo. As fúrias infalíveis se acordaram de seu pesado sono e estão a cercá-lo. A palavra de ordem foi lançada. E o miserável que agora circula no meio dos bosques selvagens, touro perdido, morno, só, com o ruído dos próprios passos, vai tentar escapar em vão, tentando em vão roubar sua vítima aos deuses. Creonte Entra com o resto do Coro Cidadãos, não é possível o que me disseram! O rei Édipo lançou contra mim uma estranha acusação! Venho aqui, portanto, para que me façam justiça! É verdade que ele disse que eu subornei o velho adivinho para que ele mentisse?! Coro É o que ele pensa... Creonte Mas como! Estava em seu juízo perfeito, vendo as coisas com clareza como sempre o vimos fazer? Quem o induziu a isso? Coro Talvez o deus que quer a sua perda. Mas aproveita para perguntar a ele próprio! Édipo Édipo entrando, em em sobressalto ao ver Creonte Estás aqui?!!!! Como ousas? Desejas me tomar o trono e minha vida, fazes complôs contra mim e ainda vens me desafiar? Tomavas-me por um cego ou por um covarde quando tramaste essa coisa toda? Acreditavas que essas tuas intrigas iriam rastejar até mim sem eu vê-las?? Pensavas que pela boa fé de teu velho cúmplice eu me deixaria ser tosado como um carneirinho sem me defender? Que tentação absurda! Conheces-me mal! Creonte Calmo Eu te conheço,Édipo, bem melhor que pensas e acreditava que me conhecias também depois de tanto tempo. Em, vez de se atacar como um touro enlouquecido contra um pano vermelho, não daria para me escutar antes? Édipo És um bom advogado e um bom político, eu o sei. Teu ofício são as palavras. Mas mostraste teu ódio ao me enviares este velho idiota e aí as palavras não resolvem mais. Há um crime agora entre nós e tu me deves explicações. Creonte Que crime? Édipo Foste tu quem me aconselhou a chamar o adivinho, não foi? Creonte Ora, foste tu quem me enviaste a consultar o oráculo. Só resta agora interpretá-lo. Édipo Da maneira que te convir melhor não é mesmo?! Essa desgraça pairando sobre a cidade, que ocasião maravilhosa para uma boa política de oposição, não é mesmo!? Esperavas, ansioso por esta ocasião: a desgraça de Tebas. Ora, é bem triste, mas que é uma excelente ocasião ah isso é! Creonte

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Estas divagando, Édipo! Mal me conheces. Teu orgulho e tua sede de poder te deixam perdido. Eu fiz tudo para te servir honestamente durante vinte anos e tu vivias suspeitando de mim?! Essa a grande fraqueza dos homens: projetar sobre os outros o que eles trancaram dentro deles mesmos! Édipo Há quanto tempo Laios sumiu misteriosamente? Creonte Logo antes de tua vinda, há vinte anos. Édipo Nesta época o adivinho já exercia sua arte? Creonte Sim. E todos nós o venerávamos. Édipo Nesta época, ele te falou de mim? Creonte Nunca. Nunca na minha frente, em todo caso. Édipo E vocês não fizeram uma pesquisa a respeito do assassinato? Creonte Fizemos uma, como era de nosso dever, mas sem resultado algum. Édipo Podes me explicar porque esse tão hábil homem teria guardado segredo sobre estas coisas que ele acredita ser seu dever nos desvendar hoje e somente hoje? Creonte Sei tanto sobre isso quanto tu. Édipo Pois deixa-me te dizer uma coisa. Se ele não fosse teu cúmplice após esse tão longo silêncio, sua memória não teria voltado assim tão subitamente. É a seu favor que ele veio intervir neste desastre. É um fenômeno conhecido , a oposição se esconde sempre logo após os desastres! Creonte Calmo Édipo, governaste bem este país e até agora tua cabeça tem estado clara. Então, deixa-me também te colocar uma questão: esposaste de bom grado minha irmã quando o povo quis que fosses nosso rei? Édipo Sim, mas não vejo o que isso tem a ver... Creonte Ela divide contigo as prerrogativas reais, não é mesmo? Édipo Ela era uma rainha antes de mim e eu sempre a respeitei como uma rainha. Creonte Eu era o terceiro na cidade e ambos sempre me trataram como um igual, não foi?

Édipo Foi assim, mas isso não bastou pelo que parece! Creonte Com calma Falas por ti, Édipo, projetas sobre mim teu orgulho. Tu não poderias viver certamente em paz nesse lugar aí às escondidas. Mas eu sim. Porque não sou orgulhoso... Eu amo a vida, Édipo e vou te dizer outra coisa que vai te revoltar porque não conheces o significado: eu adoro a felicidade. O poder pelo qual vocês lutam como cães por um osso, eu o julguei pelo que ele vale. Eu envelheci, Édipo! Eu amadureci. E é uma das aventuras que acontece a bem poucos homens ao final das contas.

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Eu abandonei junto com os cravos e espinhas de minha cara, a presunção e a sede vã de poder próprios de meus quinze anos. Mas não vocês, que vivem lutando nos pátios das escolas para ver quem é o mais forte, não vocês... [3] Sou muito rico e não tenho vergonha de sê-lo – isso é um sentimento que só bem mais tarde os homens aprenderão a apreciar. Sou influente, minha irmã tu nunca me negaram nada, não concordas? Eu sou o que chama por ai se preferires, um corrompido. Acontece-me de ajudar sorrindo esses velhos guris cheios de intrigas que pululam ao redor do poder, confesso. Eu os empurro até perto de ti em troca do prazer de suas mulheres, de uma bela escrava ou de um objeto raro da casa deles que me agradou. É , em resumo, uma troca de ilusões! Pois , creia-me, eu sei colocar também o prazer em seu lugar! Mas creio também que os homens não descobriram nada melhor para adocicar esse tempo de vida tão absurdo. E acreditas então que eu iria, trocar tudo isso- que me diverte e muito- pelo tédio pesado e destruidor que é o do exercício do poder? Sou um homem superficial, Édipo, com tudo o que isso pode significar de lucidez , de desprezo e de sabedoria. Te enganaste. Nunca tive a menor vontade de ficar em teu lugar, tuas suspeitas são puro absurdo para mim. Édipo Jogando pesado [00] também, depois de um certo tempo És um homem hábil e de uma conversa fácil, isso eu já te disse. E esses bobalhões que te escutam nunca tiveram que enfrentar realmente a dura realidade de cada dia. Sorri, com amargura Eles fingem odiá-los, mas no fundo os pobres adoram os ricos: é o teatro deles! [5] Mas devo te dizer que teus belos discursos o eram apenas para eles. Eu não sou um público tão indulgente! [6] Creonte Que queres? Expulsar-me do país? Édipo Com um sorriso malévolo no canto dos lábios [7] Para que vás tramar tua teia entre os Argivos? Fizeste um complô para a minha morte. Eu quero a tua em troca. Creonte endurecido Havia leis em Tebas, antes de ti, sabias? A esta acusação contra um homem livre deverás acrescentar as provas. Édipo Podes crer que as encontrarei! Creonte Eu sei. Com uma boa polícia, nunca se estará em falta de provas... está certo que tu nos garantiste a ordem, mas também sua contrapartida: a porrada! Mas Tebas é ainda uma cidade livre desde sempre e eu era seu cidadão antes de ti, estás esquecendo? Édipo Jogando-se contra ele Estás me ameaçando? Um rebelde, meu guri, a gente esmaga! Eles lutam até a intervenção do Coro. Coro Péraí, ó Príncipes![8] Vocês são irmãos e respeitem Jocasta,que acaba de chegar, ela é a irmã e a esposa ! Que ela consiga separar vocês!! Jocasta se joga aos pés deles e os aparta. Eles se levantam ligeiramente envergonhados. Jocasta Infelizes! Que disputa insana é esta entre vocês?O povo está doente e vem suplicante até vocês- e vocês em resposta se esmurram??!! Vocês são príncipes! Creonte Calmo

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Minha irmã, eu não teria jamais levantado meus punhos contra Édipo que é teu marido e meu rei. Foi ele quem se lançou contra mim, só porque eu lhe disse que há leis ainda em Tebas que lhe impediriam de fazer o que quer. Jocasta E o que ele quer, bom deus!? Creonte Meu exílio e minha morte. Jocasta Pálida, volta-se para Édipo O que é que ele está dizendo, Édipo?! Creonte Frio A verdade. Acabei de surpreendê-lo tramando com pérfida destreza um complô contra mim. Oh começo a conhecê-lo este teu irmão! Creonte Para o povo, de repente, com solenidade Escutai-me todos! Que a maldição divina caia sobre mim, que eu morra imediatamente pela mão dos deuses se por acaso eu tiver feito qualquer dessas coisas de que ele me acusa! Jocasta Em nome dos deuses, creia nele, Édipo! Respeita seu juramento solene! E me respeita também e a esse povo que te escuta! Coro Príncipe, estamos em Tebas, onde um juramento é garantido e tem direito ao respeito. Entre nós o homem que jurou é sagrado e só uma prova irrefutável pode ir contra ele. Essas são as leis de Tebas. Édipo Sombrio Eu conheço igualmente as leis de Tebas. Elas também dizem que sobre a maldição que lancei não posso voltar atrás. Se vocês escolhem acreditar nele e neste adivinho- muito bem guardado por vinte anos em seu bolsovocês estão escolhendo me condenar ao exílio e à morte [8] e é isso o que querem? Um silêncio geral. Ele conclui com calma Contudo, minha esposa, eu não quero aumentar teu pesar. É teu irmão então eu o pouparei por amor a ti. E que ele desapareça. Que deixe essa cidade de uma vez por todas. Que vá fazer seus complôs lá no fundo dos infernos! Mas que saiba que leva consigo todo meu ódio. Creonte Com dureza Adeus, Édipo. Esta noite eu atravessarei a fronteira. Mas teu orgulho e tua violência serão tua perda. Acabarão por destruir também a ti. Édipo Grita de repente exasperado Vais ou não vais me liberar de tua presença? Creonte Está feito. Te deixo sozinho contigo mesmo. É o bastante para que eu me sinta vingado. Sai rapidamente. Todo mundo está pasmo até que finalmente o coro fala. Rainha, o que esperas? Pega Édipo pelo braço e vá para dentro do palácio com ele. Se não ele não se acalmará nunca! Jocasta Voltando a si Mas, de que ele é acusado? Édipo duramente

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ANOUILH & MICHELOTTO De ter matado Laios. Jocasta

Grita, espantada Isso é monstruoso! Sobre o que nisso se fundamenta? Sobre qual relatório, sobre qual pesquisa? Édipo Duramente Ele não se acusou a si próprio, mas ele subornou o velho adivinho que mandou buscar das montanhas. Jocasta A partir das visões de um adivinho?!!! Posso te acalmar, Édipo, com apenas uma palavra: ninguém sabe o que os deuses querem e eles não tem necessidade de ninguém para nos fazer conhecer sua vontade. Eles dão conta disso sozinhos. Escuta antes o que vou te contar e verás o que valem os oráculos. É uma coisa triste sobre a qual eu nunca mais quis pensar, mas se ela pode te ajudar a te acalmar, eu te conto. Um oráculo enviado a Laios antigamente, claro que não pelo próprio Apolo, mas por um de seus sacerdotes, lhe havia anunciado que ele deveria morrer pelas mãos de um filho que ele teria de mim. Pois bem: foram os bandidos das estradas, exatamente quando lá ia ele de novo consultar os oráculos, que o assassinaram num país estrangeiro, no cruzamento de duas estradas. Além disso, 3 dias apenas após o nascimento da criança. Laios mandou amarrar os pés dele e jogou-o pela montanha abaixo. Apolo não realizou o oráculo de seus sacerdotes e Laios não morreu pela mão de um filho como ele andava obcecado pensado e com medo. Contudo foi este caminho que as profecias lhe haviam traçado. um pequeno silêncio e ela acrescenta. Não dês demasiada importância a o que esse velho diz e deixa os deuses decidir sozinhos o que eles bem quiserem e quando eles bem o quiserem. Os deuses não tem necessidade de adivinhos. Vem agora, entremos em nossa casa. Édipo Sonhador É estranho, minha mulher, mas ao te ouvir alguma coisa me perturbou. Jocasta O quê, meu amor? Édipo Disseste-me que Laios foi morto numa encruzilhada... Jocasta É o que se dizia antigamente e todo mundo sempre acreditou nisso. Édipo E em que região isso se passou? Jocasta O país se chama Fócida e o assassinato teve lugar onde a estrada que vem de Delfos cruza com a de Daulis. Édipo E quanto tempo se passou des desse acontecimento? Jocasta Soubemos do crime pouco antes que tu chegasses aqui Édipo Murmura estranho, como que para si Ó Zeus! O Que premeditaste para mim?! Jocasta Inquieta Que pensamento assombra tua face, Édipo? Édipo Espera! Não me interrompa agora. Diga-me antes qual o aspecto de Laios, com quem ele se parecia? Jocasta Mas já te disse mais de mil vezes! Seus cabelos começavam a embranquecer. O aspecto? Que posso te dizer? Parecia-se contigo agora, grande forte, se mantendo bem ereto.

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Édipo Podes me dizer algum outro detalhe mais preciso? Jocasta Abraçando-o Mas por que, meu amor? Para te fazer sofrer mais ainda? Havíamos combinado de nunca mais voltar a falar dele.. Édipo Sim, mas eu creio que esta noite precisaremos falar mais uma vez. Jocasta O que é que estás querendo dizer? Estás me dando medo..Eu não ouso mais levantar meus olhos para ti. Édipo Acho que lancei minha maldição um pouco precipitadamente. Pede ainda timidamente Podes me responder ainda sobre um último ponto? Jocasta O medo está começando a me paralisar, mas pergunta que eu te responderei. Édipo Laios viajava com uma pequena escolta ou viajava bem escoltado como um chefe de estado. Jocasta Ele queria enganar a Cantora Cadela e por isso partiu com apenas 3 de seus homens e um rastreador. E o único carro era o seu. Édipo Estranhamente calmo Está certo. E quem te contou essas coisas, mulher? Jocasta Um doméstico. O único sobrevivente do massacre. Édipo E ele vive ainda nesta casa? Jocasta Não. Pouco após tua chegada ele te viu colocado como rei no lugar do rei defunto e então me suplicou para deixá-lo ir-se embora para os campos como pastor. Ele não parava de ter medo desde que chegou aqui. Dizia que não queria mais ver a cidade. Eu o deixei partir. Mesmo para um escravo,era o mínimo que eu poderia fazer para pagar por sua fidelidade. Édipo Pergunta, neutro. Ele morreu depois disso? Jocasta Creio que não Édipo Poderemos encontrá-lo ainda? Jocasta Claro. Mas por que o faríamos? Édipo Neutro Eu quero vê-lo. Quero escutar sua história. Jocasta Faz um gesto terno, de mulher. Ele virá, te prometo. Vou mandar buscá-lo. Mas sou tua mulher, Édipo, e sinto que há um segredo entre nós e sabes que deves me dizer sempre tudo. Édipo faz um gesto também com sua mão Está certo. Nunca tive outro confidente que tu. Sempre fui meio solitário... Quando vim, eu fugia de meu país. Eu apenas te disse que eu era gente de bem e respeitaste meu silêncio.. Hoje vou te contar eu sou o filho de Políbio, rei de Corinto, minha mãe Mérope é também uma princesa dórica. Cresci lá como um dos principais do reino,

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junto com meu pai.. E depois, um dia, eu tinha pouco menos de vinte anos, um homem pegou do vinho- e todo mundo já havia bebido um pouco além da conta, e me tratou como se fosse supostamente seu filho. Ferido em meu orgulho, e também bastante bêbado por outro lado, eu me joguei por sobre ele. Os outros nos separaram me dizendo que ele não sabia o que dizia. E logo no dia seguinte eu fui perguntar a meu pai e minha mãe. Eles se indignaram também e me acalmaram com palavras carinhosas.Apesar da ternura deles ter-me sido agradável, a queimadura do insulto havia penetrado profundamente em meu coração. Então, algum tempo depois, sem que eles soubessem, eu pretextei ter que fazer uma viagem de há muito desejada e parti para consultar o oráculo de Delfos. O oráculo não se dignou de responder à minha questão, curiosamente. Mas o sacerdote que o interrogava me olhou de repente com um tipo de terror. Eu a enchi de perguntas em vão. Só que um pouco de ouro desatou a língua dele, pois esses santos homens não desprezam o ouro, e ele acabou por me dizer, aos trancos e barrancos, como se já se arrependendo de tê-lo dito, uma coisa monstruosa: que eu mataria meu pai e que me casaria depois com minha mãe. Assustado eu despedi os que eram de minha comitiva e seguí sozinho pela estrada, decidido a nunca mais voltar a Corinto. Eu não conseguiria mais, após o que ouvi, voltara vero rosto de meu pai e o de minha mãe. Um silêncio. Continua gravemente És minha mulher, Jocasta, me salvaste de tudo e o mais difícil ainda me resta a te dizer... Ao atravessar a Fócida em um caminho estreito, perto do cruzamento de duas estradas, um carro avançou contra mim. Estavam atrelados dois cavalos novos, precedido por um rastreador, conduzido por um homem de estatura elevada, cabelos já meio brancos. O rastreador primeiro e depois o ancião começaram a me insultar, exigindo que eu saísse do caminho. O criado me derruba e me joga contra os arbustos. Logo eu bati nele e parti para cima do mais velho. Ele, vendo-me passar ao lado do carro, me bate duas vezes na cabeça com golpes violentos. Cego pelo sangue, endoidecido, batí-lhe com meu bastão . Ele cai e roda para baixo do carro com os cavalos apavorados e então a roda acaba de lhe quebrar o crânio. Um tempo. Retoma pesadamente Tive medo. Aí sai matando todo mundo. Espero quer não seja ele. Mas se Laios tem algo em comum com esse viajante, a maldição solene cai sobre mim mesmo que a lancei. Ninguém daqui por diante poderá me dirigir a palavra em me dar abrigo. Serei expulso de todas as casas, pois com essas minhas mãos que o mataram eu estarei sujando a memória do morto. Jocasta Ficou por um momento espantada E imediatamente se joga em seus braços urrando Não, não foste tu, meu amor, não foste tu. Não foste tu! Édipo Afasta-a docemente Agora não ouso mais te tocar, Jocasta. Jocasta Grita, ajoelhada, agarrando-se em seus joelhos Meu amor! Meu único amor! Eu sei que não foste tu! Édipo Sombrio Só este pastor pode no-lo dizer. Era sem dúvida o quarto e deve ter fugido rapidamente, pois eu matei apenas três. Se ele contar a mesma história mas disser que havia uma gangue de assaltantes então meu medo desaparecerá pois eu matei a todos sozinho. Jocasta Ele não pode voltar atrás no que disse, meu amor. Toda a cidade o ouviu e eu também. E toda a pesquisa que foi feita dizia a mesma coisa.. Creonte mesmo te dirá isso... Ela o acaricia timidamente Ó meu amor, eu vou expulsar todas essas sombras de ti e te reencontrar como eras antes. Édipo Esperemos este homem. Só ele poderá fazê-lo. Jocasta

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Mas mesmo que ele volte atrás em seu testemunho- o que é possível pois ele deve estar já bem velho – se sobre um ponto ou outro ele não estava tão seguro de si, nunca seu testemunho poderá provar que Laios foi morto segundo as profecias, já que o oráculo lhe havia predito que ele iria ser morto por um filho meu. E como poderia então o pobre pequeno matar seu pai, se ele morreu antes? Disse isso estranhamente. Édipo, tocado toma-a por entre as mãos Édipo Isso está te fazendo mal, não é mesmo? Nunca quiseste me falar deste menino... Jocasta Num estranho tom neutro Eu nem tive tempo de amá-lo... Sorri, expulsando sua tristeza e beija a mão de Édipo Mas não estás vendo bem, meu amor, que não se pode acreditar nos oráculos?! Ela o arrasta, puxando-o pelos ombros Vem. Vem meu pequenino que tem medo de fantasmas. Vem dormir. Já é tarde e esta jornada foi por demais rude. Mas sabes bem que perto de mim, todas tuas penas desaparecem... Édipo Seguindo-a, dócil Tu és boa. Tu curas tudo. Mas esperemos ainda a chegada deste pastor.... Entram no palácio. O Coro vá em direção do resto de pessoas que ficou no fundo do palco. Coro E eis meus amigos que a noite cai sobre Tebas e o rei e a rainha vão tentar dormir... O que vocês ouviram esta noite, é melhor não dizê-lo a ninguém mais. Os segredos dos reis não são tão bons assim para que a gente os descubra. Entrem em suas casas , vocês também, pessoas boas. Entrem em suas pobres casas onde em troca de sua dura vida de trabalho , pelo menos o cansaço, ao tombar a noite, terá piedade de vocês e lhes acalmará. Não creio que os dois dormirão hoje sob cortinas de púrpura.. Vocês invejam tantas vezes a sorte dos grandes e pensam sempre que os deuses são injustos, uma vez que eles teriam podido se ocupar melhor de vocês. Não se deve pensar assim. Felizes, isso sim, aqueles a quem os deuses esquecem! A luz cai quando eles saem até a escuridão. Quando Jocasta retorna, é de manhã. Ela sai do palácio seguida de suas filhas( [Antígone e Ismênia] E vai colocar oferendas num pequeno altar doméstico que se vê ao fundo. O povo humilde já está lá, esperando também para fazer suas oferendas Jocasta Gente de Tebas, eu venho oferecer ao deus em seu altar familiar essas coros e esses perfumes. Jumtem-se a mim com suas oferendas. Édipo, o rei de vocês é um joguete de mil pensamentos que o estão deixando perturbado.. Um homem razoável, comparando as profecias, julgaria as novas pelas antigas que mentiram e não prejudicaria a vontade dos deuses. Ele, infelizmente acredita em tudo o que se lhe dizem se for de encontro a suas crenças. Eu passei toda noite em vigília a seu lado, balançando-o como se balança uma criança doente no berço e finalmente ele conseguiu dormir.... Ajoelha-se diante do altar e deposita nele suas oferendas Ó Apolo Liceu, guarda de nossa vizinhança, venho te oferecer essas primícias. Tu que sondas os corações e os rins, conheces meu marido. Faça com que ele apareça livre de toda sujeira. O pavor toma conta de todos nós quando o vemos assim, a ele, nosso chefe, igual a um piloto que perdeu a cabeça... Envia alguém, envia um de teus mensageiros celestes para livrá-lo disso... Todo estão prosternados. Um homem aparece do lado onde está situada os montes atrás deles.

Hirsuto ,bebum. À primeira vista ele parece estar sóbrio. Um Homem [9]

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Ô desgraça como está quente! E que estradinha ruim! Talvez um de vocês pudesse me informar... Tira de lado uma garrafa de sua blusa e bebe um gole furtivo. Depois interpela. Ei pessoal. Dá para me dizer se já estou em Tebas? Onde posso encontrar o palácio do rei Édipo? Ou melhor, onde eu poderia encontrar o próprio? Coro Que se levantou junto com os outros O palácio está bem ali, fácil de encontrar. E esta mulher que estás vendo aqui é a mão de seus filhos.. O Homem Tira seu chapéu sujíssimo E a saúda com uma ênfase grotesca. Eu desejo à esposa do rei todo tipo de prosperidades para ela e para todos os que andam em redor dela e... Jocasta Voltando-se e cortando os agradecimentos Te agradeço, estrangeiro, Mas por que queres nos ver? Que tens a nos dizer? O Homem Boas notícias para tua casa e teu marido, rainha! Jocasta Notícias!...e da parte de quem?! O Homem Notícias de Corinto. Quando digo boas...bem são boas para uns e ruins para outros, não é sempre assim? É a vida, minha rainha! Mas como rainha conheces melhor que eu que não passo de um pobre pobre... Jocasta Com um leve sorriso Explica-te melhor. Pareces bem cansado. O Homem Esse calor, minha rainha! E a estrada está em péssimas condições e eu vim na toda porque queria ser o primeiro a dar a noitícia. Então antes de dizer, já que ninguém chegou na minha frente, permita-me dessecar e lubrificar um pouco minha goela com um pequeno golinho de nada, minha rainha?! Bebe, enxuga a boca passando o braço de lado por sobre ela e fala Bem, lá vai. Estão dizendo lá em nossa terra que se precisa encontrar Édipo o mais rápido possível, pois vai ser eleito rei pelos habitantes do Istmo. Jocasta Por quê? O rei Políbio não está mais sobre o trono? O Homem Deitadinho está ele sobre seu último trono, a cova! Todo mundo chega lá, minha rainha, até...me desculpe! Jocasta Dá algo como um grito de libertação interior Estás certo que o velho Políbio... O Homem Foi-se embora...tão verdadeiro quanto eu estar aqui à sua frente vivo. E em sua homenagem, para pranteá-lo um pouco, peço humildemente a vossa majestade a licença de dar um brinde à grandeza do papai de Édipo, tão tristemente falecido, ok? Como o homem, madame, é um ser fraco, não é mesmo?! Jocasta Com um grande suspiro dessa vez de alívio, ela grita Ah Jocasta, corre para dar essa notícia a teu marido! E grita para o céu, com ódio Oráculos divinos, pois sim! Bando de mentirosos! Édipo se trancou dentro de casa por temer haver matado seu pai. E ale acaba de morrer agora, que belo! Édipo

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Aparece esfregando os olhos, olhar desgarrado Jocasta, tive a maior dificuldade em dormir. Por que, então, me chamaste tão cedo? Jocasta Jogando-se contra ele, agarrando-o, apertando-o Acorda, meu home! Acorda querido! Escuta este estrangeiro e verás que os oráculos não valem nada! Ela o aperta contra si histericamente Ah! Meu querido! Meu querido estás de volta, enfim esses sombrios augúrios nos abandonam. Édipo Mostrando o velho Homem que se acaba de tanto fazer rapapés grotescos saudando-o Estás falando deste homem aí? O Homem De mim mesmo, meu rei! Édipo Quem é ele? E o que deseja? Jocasta Veio de Corinto para anunciar que Políbio, teu pai, acabou de falecer. Édipo Empalidecendo Que disseste, estrangeiro? Diga-me de novo a tua mensagem! O Homem Faz desajeitadamente uma saudação de antigo militar Quando a situação é grave, na ausência do chefe, diziam os chefes, é preciso ter iniciativa. Foi o que fiz., por decisão própria! Parti correndo, bem não tanto porque estava muito quente e a garganta toda hora ficava seca, mas mesmo assim cheguei aqui primeiro. Teu pai passou a arma para o outro lado, chefe! É Isso aí: foi riscado da armada! Édipo Por mão criminosa ou por alguma doença? O Homem Faz um gesto explicativo Ora, você sabe chefinho, nesta idade basta uma corrente de ar e puf ... lá se foi nosso rei. Já estava na hora mesmo, o velho já tinha vivido bastante, podes crer. Édipo Tendo dado um enorme suspiro de libertação, grita Quem lerá agora o futuro ouvindo pipiar de aves agourentas!!? Se fosse para crer neles eu deveria ter matado meu pai, e ele morreu enquanto eu estava aqui dormindo e eu não saí daqui. Grita enternecido A meu caro e velho pai que não matei, perdoa-me esta alegria indigna – mas para o Hades onde foste repousar, carregaste junto todos meus pesadelos! Jocasta Eu não tinha te dito, meu amor, eu não tinha te dito!!! A noite toda eu acariciei tua fronte molhada de suor e fiquei repetindo que não se pode confiar nos oráculos... Édipo Gravemente Eu estava com muito medo. Jocasta Mas acabou, meu amor! Volta para cá, meu herói. Estás livre! Podes olhar o destino na cara , como o fizeste com a Cantora Cadela e o vencerás também! Édipo Mas mamãe vive ainda...

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Jocasta Vai para de se atormentar, não vai? Esquece tua mãe, tu só tens a mim agora! Sou eu agora quem a substituo. Já cresceste. Não és o primeiro homem que dividiu em sonhos o leito de sua mãe. É preciso vencer esses medos absurdos e deixar a vida voltar a ser simples. É preciso deixar a noite para a noite e não esperar nada dos sonhos. Teu pai morreu, Édipo e não o mataste! Édipo ...Mamãe está viva ainda....... O Homem Que os escutou, meio bebum ainda, bebericando mais uma golada de lado fala Quem é essa mulher que te dá tanto medo, chefe, se não for muito indiscreto de minha parte perguntar? Édipo É Mérope, velho, a mulher de Políbio. O Homem Mas qual é mesmo o tipo de seu medo, meu chefe? Édipo Um oráculo enviado pelos deuses O Homem Será que daria para eu também saber o que é, meu chefe...claro, claro, se não for um segredo de família... acho que tenho uma idéia, não é muita coisa não, mas certamente pode ajudar Édipo O sacerdotes predisseram antigamente que eu iria para a cama com minha mãe e que eu derramaria o sangue de meu pai. Essa a razão de eu ter fugido de Corinto. O homem É por isso que você se mandou um dia , como se tivesse ido virar monge trapista [10] Todomundo andou te procurando, meu chefe!!! Édipo Eu sei meu bom homem. O Homem Ó Chefe, tudo o que eu queria era servir à vós, uma pena mesmo que eu não tivesse sabido desses teus pobremas antes! Édipo Fique tranquilo. Serás bem recompensado por me teres trazido notícia tão boa .(pensando no pai) Meio boa. O Homem Tenta mais uma vez saudá-lo desajeitadamente como soldado O primeiro chefe! Fui o primeiro a chegar aqui! Tomei a iniciativa como me diziam os velhos chefes e sai na toda porque eu sabia que você não conseguiria nunca deixar de pensar em mim no dia em que voltasse a nosso país! Édipo Políbio está morto, mas Mérope está viva e isso significa que não voltarei nunca a Corinto! O Homem De repente Meu filho- permita-me dar mais uma relembradazinha eu ficou seco por dentro quando ouço essas coisas terríveis... Bebe outra golada de lado, cada vez a bebe furtivamente, apesar de pedir licença Meu filho, digo eu, a gente vê bem que estás falando sem saber bem o quê.. Édipo Estás querendo dizer o quê com isso meu velho soldado? O homem Que se é só esse negocinho ai de tua mão estar viva, que te impede de voltar a Corinto, tás te esquentando por um nada, filhote... Sabe esse negócio de teus pais...todo mundo acreditava nisso, mas eu não. E eu estou cheio de razão, presta atenção! Édipo

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Crispado repentinamente. Agarrando –o pela frágil gola de sua camisola de época Que que estás dizendo, ó homem?! Eu não sou o filho deles, é isso??! Um bêbado é quem tem razão?! O Homem Protestando por ter sido sacudido Ei, ei, ei, péraí, meu chefe, qual é essa agora de sair saacuudiindooo o velho, olha a terceira idade ai, mêu! Calma! Estou te prestando o maior serviço de toda essa tragédia e fico ai sendo saacuudiidoo, oh! Posso garantir que o Políbio não tinha uma gotinha só de sangue seu. Ou é o contrário?! Édipo Políbio não era meu pai? O Homem Com todo respeito, meu grande chefe, ele era teu pai tanto quanto eu era tua mãe! Édipo Grita ainda angustiado E porque Hades ele me chamava de filho, então?(11) O Homem Foi ele quem te criou, então era assim como se fosse, né! Mas fica sabendo que há muito tempo ele recebeu você de minhas mãos... Édipo Após um silêncio de espanto E esse seu menino adotivo, ele o amava muito? O homem Mas claro! Bote-se no lugar dois dois, meu chefe! Eles não podiam ter filhos, nem ele nem a rainha. É isso! Édipo Mas quando você me deu para ele, você tinha me comprado, tinha me achado ou o quê? O Homem Na maior felicidade por poder enfim representar seu papel Descoberto no meio dos arbustos, num desfiladeiro do Cíteron! ... Bée.Bée.Bée.... Eu pensei que tinha perdido um cordeirinho, sai procurando e olha o que encontro: um garotinho cagão de 3 aninhos . Com todo respeito, mas você criancinha cagava muito, ave! Édipo Estavas fazendo o que lá no Monte Cíteron? O Homem Tomando conta dos rebanhos na montanha. Édipo Eras pastor nômade ou a soldo de outra pessoa? O Homem Eu pertencia ao mestre, mas era um homem livre! E depois que importa, eu consegui te salvar, meu filho! No estado em que estava não iria durar muito não,sabe?!Restou uma lembrancinha aí em você...Olha pro chão, tas vendo os pés? Pois é todo mundo sabia que ias suceder a Políbio, então nas cozinhas , nas estrebarias do palácio tinha gente que dizia:” porque rei se coxo?!” e eu sempre respondia te defendendo: “ porque coxo, se rei?!” [12]... Tem gente ruim pra todo lado, sobretudo nas cozinhas dos palácios, sabes.... Édipo Crispado, gravemente Por que me relembras este antigo sofrimento? O homem Porque fui eu que desfez as cordas que te amarravam, e olha que foi um serviço bem feito! Você tinha a ponta de cada pé transpassada. É por isso que te deram esse apelido... Édipo Grita Quem? Quem fez isso comigo? [13] Meu pai ou minha mãe? Diga logo! O Homem

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Sei lá, nunca soube da onde isso saiu... Mas o que te entregou a mim deve saber porque essa coisa ruim toda... Édipo E porque você não o encontrou você mesmo? O Homem Temos que nos entender, meu chefe! Fui eu quem te salvou. Sem mim os lobos não iriam demorar muito a te encontrar o outro apenas te coloco nos arbustos e como éramos amigos ele lhe liberou para mim antes de se mandar. Édipo Era também pastor? Lembras como era? O Homem Claro, a gente pastoreava um do lado do outro lá na montanha. Édipo Podias nos dar indicações sobre como achá-lo? O Homem Fazendo um gesto de negativa Já se passaram muitos anos. Em todo caso dizia-se que era escravo de Laios. Édipo De Laios? De que Laios, o antigo rei deste país? O Homem Dele mesmo. Ele me dizia que tomava conta dos rebanhos do rei. Édipo Mas será que ainda vive? O Homem Um gesto indicativo. Bem quem sabe aqueles ali que são da região saibam ainda alguma coisa... Édipo Para o Coro Algum de vocês conhece este pastor de quem ele está falando? Alguém o encontrou alguma vez? Falem! Agora é a hora dos esclarecimentos. Eles todos olham para ele, mudos. Ele se volta para Jocasta, pálido Mulher, pensas que o homem que mandei buscar, o que deixou a cidade logo após o assassinato é o mesmo homem que esse pastor de Laios? Jocasta Voz sem expressão Era um doméstico de Laios, já te disse. E ele pediu para se tornar pastor. Édipo Tornar-se pastor, é o que me dizes!? Ele já havia sido pastor antes então? E por que Laios o havia tomado como doméstico em seu palácio, tirando-o da condição de pastor? Ele deve ter prestado um enorme serviço a Laios, não?! O Homem Repentinamente com voz dura Não sei. Cala-te. Todas essas palavras. Todas palavras! O que é que vocês homens têm sempre que ficar procurando? Não basta estar vivo? Eu sou tua mulher, eu te amo, tu me deste 4 filhos, Polinice e Etéocle , meninos fortes e belos como tu, e a terna Antígone e a doce Ismênia... Essa é a tua vez de seres um homem. Por que buscar um pai. Esqueça teu pai e tua mãe, eles não são mais nada para ti. Por que remexer nessas sombras? Por que se perguntar de quem você é filho? Tua realidade, tua única realidade somos nós, tua mulher e teus filhos, esse é teu ofício. Nós somos tudo o que podes tocar com tuas mãos de homem, tudo o que pode te alimentar todos os dias. Deixa que os deuses se divirtam com os restos!! Édipo Tenho impressão que eles já começaram a se divertir... Jocasta

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Jogando-se em seus braços Sejamos felizes enquanto nos deixam em paz, como dois animais que se esquentam um ao outro sem nada saber. Os animais são mais sábios que nós. Enquanto a flecha não tocar neles, eles continuam a viver e a morte deles não será mais que um simples acidente: eles a colocam a morte em seu lugar! Só os homens é que gostam de fazer perguntas. Édipo, nesse momento nós ainda podemos viver! Não peças mais nada. Édipo Livrando-se dela Eu devo saber. Como que tendo um rictus monstruoso repentino E quando com meus pés traspassados descobrirem que sou escravo há três gerações, a desonra não será tua! Jocasta Caindo de joelhos agarrando-se em suas pernas Eu te suplico, Édipo! Deixa-me viver! São as mulheres que sãos as sábias. Elas são as únicas que conhecem a vida porque elas é que a carregam e a dão. Elas cuidam, alimentam, consolam, sem jamais fazer perguntas. Elas são sábias: elas aceitam. Édipo Repelindo-a brutalmente Eu começo a me encher a paciência com esse monte de sabedoria! Jocasta Derrubada por terra Olha-o ternamente E murmura, estranha. Meu pobre menino. Pudesses nunca saber quem em verdade és. Édipo Urra, andando como um animal feroz em sua jaula. Irás me trazer esse pastor ou não afinal? Não ligue para ela, deixe-a contar vantagem sobre sua rica família! Jocasta Levantando-se com dificuldade Subitamente envelhecida, apenas diz Minha pequenina criança! Vou te esperar lá dentro de casa! Entra no palácio. O Coro se junta a Édipo Coro Édipo, tua mulher entrou no palácio com o rosto empobrecido daqueles que não tem nem mais força para gritar. Junte-se a ela. Fale com ela. O silêncio dela é cheio de infelicidades que não vão tardar , tememos, a explodir. Édipo Urra imediatamente como que liberado Ora, que explodam! Não aguentamos mais esperar por isso, essa a verdade! Xinga Que raios está fazendo esse pastor? Por mim não me importa quão baixo seja meu nascimento, eu quero saber de onde vim! As mulheres são vaidosas,que ela fique lá para dentro para esconder-se da vergonha de minha origem humilde. Eu me proclamo o filho da Fortuna e a Fortuna me tratou bem, eu não a renegarei. É essa minha verdadeira mãe! Ao longo de meus dias eu conheci altos e baixos, mas assim nasci eu e assim vou ficar. E venha eu de onde vier, eu o aceito!Eu sou mais eu! Eu sou Édipo, o coxo que se tornou ei! E os deuses, eu gosto de olhá-los bem nos olhos! Entram dois homens, trazendo um velho apavorado. Édipo o olha e pergunta. Quem é este homem? Coro Mansamente É ele, Édipo. O antigo pastor de Laios! Édipo

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Com um suspiro de alívio Enfim! Olha-me bem, velho homem, sem medo! Não te desejo mal algum. E responde bem às minhas perguntas. Estavas ao serviço de Laios outrora? Pastor Sim, como escravo. Acrescenta com um certo orgulho insólito Não comprado, nascido na casa. Édipo Você trabalhava em quê? Pastor Passei toda minha vida a tomar conta dos rebanhos Édipo Em que região tu os apascentava habitualmente Pastor Ora no Cíteron. Ora nos pastos ao redor. Dependia da estação. Édipo Mostrando-lhe o Homem Estás vendo este homem? Lembras-te de tê-lo encontrado antigamente nesta região? Pastor Olha- o durante um pesado silêncio. Finalmente diz com voz pesada O quê ele fazia lá? De que homem você está me falando? Édipo Com uma calma assustadora Este homem aqui. Olha-o bem. Nunca fizeste nenhum negócio com ele? Pastor Há já muito tempo atrás. Eu esquecí-me de muitas coisas, sabe... O Homem Não é admirável, meu mestre, como ele foi paparicado! Mas vou lhe refrescar a memória. Os pastores ficam sempre sós com o cão e as ovelhas, durante meses. Então não é bem assim como na cidade onde vocês, vocês têm o hábito de...Breve, quando se tem um colega, as gente nunca esquece. Ele me conheceu muito bem lá no Cíteron. Nós conduzíamos sempre ele dois rebanhos e eu um só, era ou não era, companheiro? Por três vezes nós trabalhamos lado a lado durante um semestre, da primavera ao se pôr da Ursa Maior. E quando veio a estação ruim, nós voltávamos com os animais, eu para minhas cocheiras , ele para as de Laios. Será que eu estou enganado, meu amigo? Não foi assim que as coisas se passaram? Pastor Grave Talvez você tenha dito a verdade. Mas isso tudo já passou, já passou. O Homem Mas há coisas sempre que não dá para esquecer. Nem vais me dizer que esqueceste o dia em que me entregaste uma criança para que eu criasse como se fosse meu próprio filho! Pastor Firme Porque estás me perguntando isso? O Homem Mostrando Édipo Tás vendo ali! È o nosso bebê de antigamente! Precisas de mais razão? Ele prosperou, tás vendo?! Pastor Enrolando os sons em gromelatto Que a peste te esgane, velho falador! Não podes segurar um pouquinho essa língua já que estás perto de te ferrar? Édipo

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Sisuda mas docemente Não ache ruim dele, velho homem. Creio que é você quem merece ser repreendido Pastor Gemendo, apavorado EU não me lembro de mais nada! Estou muito velho! Que é que eu fiz de errado?! Édipo Mesmo jogo Nada, velho homem. Não te afobes. Responda-lhe somente a respeito da criança. Pastor Ele é um velho também! Ele não sabe o que diz. Está naquela idade do “ eu penso, camaradas, que...”!!! Édipo Se não quiseres falar, toma cuidado. Eu saberei como te forçar a fazê-lo! Pastor Aterrorizado Não! EM nome dos deuses! Não deves maltratar um ancião! Édipo Rápido, para os guardas Que se lhe amarrem imediatamente as mãos atrás das costas. Os guardas se lançam sobre o velho, derrubando-o brutalmente Pastor Gemendo Oh infeliz de mim! Para que tudo isso? Por que tens necessidade de saber das coisas? Édipo Enquanto os guardas o seguram bem forte A criança de que esse homem falou...foi você quem a deu a ele? Pastor Enrolando as palavras por entre os dentes (isso é o gromelatto...), Após um silêncio pesado. Foi. Mas eu teria feito melhor se tivesse escolhido minha morte naquele dia. Édipo Sossega, pois isso irá acontecer hoje finalmente, caso deixes de me falar algo importante. Pastor Grave Se eu falar é que eu vou morrer, isso sim. Édipo Grita para os guardas Este homem está zombando de nós. Apertem mais os nós das cordas! Pastor Apavorado, dando um grito de dor Tá bom! Tá bom Eu já disse que entreguei a criança! Édipo Inclinado por sobre o pastor, torcido de dor Onde você o pegou? Ele era teu? Ganhaste-o de outro? Pastor Não era meu não! Eu o recebi. Édipo De quem? De que família? Pastor Eu te suplico, meu mestre, para por ai tuas buscas! Édipo Estarás morto antes de me ouvires repetir esta pergunta. Então...

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Pastor A criança nasceu na casa de Laios! Édipo Escravo ou filho do rei? Pastor Grave Ô meu deus, porque me meteram nisso! Como é que eu vou dizer isso??!! Édipo Com dureza E é mais duro ainda para mim ouví-lo. Mas é preciso que eu o ouça! Pastor Dizia-se que era filho de Laios. Mas a mulher que está no palácio poderá te explicar melhor que eu teu próprio passado. Édipo É ele quem te entregou a criança? Pastor Foi ela, meu rei. Édipo Por quê? Pastor Para ir matá-lo Édipo Sua mãe? Ah, miserável! Pastor Ela era uma menina ainda. E temia a ameaça do oráculo. Tens que entendê-la! Édipo Que ameaça? Pastor Que a criança mataria seus pais. Édipo Mais docemente Mas você, porque você a entregou a este homem em vez de cumprir as ordens e matá-la? Pastor Por pena! Eu me dizia que o levaria para o estrangeiro, bem longe, para seu país. E que assim, a pobre criança pelo mesmo viveria. Mas, infelizmente, foi o pior que aconteceu! Pois se tu és a criança que ele diz ser, teria sido melhor que não tivesses sobrevivido! Édipo Com uma calma aterradora Obrigado, pastor. Fizeste o que tinhas que fazer. Desamarrem-no. Deixai-o retornar à sua montanha. Pastor Eu não quis o mal. Édipo Ninguém nunca quer o mal. Mas ele está aí para se tropeçar nele. Eu sou a criança que não era querida e eu realizei meu destino. Olha por um momento para o sol e diz simplesmente: A luz do dia está me ferindo. Volta-se e entra em seu palácio sem dizer mais nada. O Pastor, o Homem e as pessoas do Povo saem comentando com voz baixa os acontecimentos O Coro fica sozinho. Coro

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Para o público Eis ai. Tudo está acabado.Leis muito antigas exigem que do fundo do buraco obscuro sobre o qual o homem nada, agarrado a sua razão, dizem que é preciso matar seu pai para “ser” e voltar ao ventre de sua mãe,a terra, para onde tudo volta e de onde tudo veio. O homem crê na felicidade e se bate por ela com coragem, noite a noite, contra a noite, mas quando ele acredita ser o levantar da alba, ele é devorado do mesmo jeito que o carneiro no rio do lobo. E tudo entra de novo na ordem incompreensível dos deuses. As Fúrias, as Eríneas fizeram sua parte, O resto é apenas detalhe. O mensageiro sai do palácio, perturbado. Ele é jovem O Coro lhe pergunta, fazendo pose de coro. Como foi que a a coisa se passou? O Mensageiro Todo pálido Jocasta está morta. Coro Mas claro. As mulheres, elas sempre morrem. Mensageiro Louca de horror ela atravessou o vestíbulo sem nos ver, com uivos de animal, depois correu para seu quarto, batendo a porta com toda força. Nós a ouvíamos amaldiçoar Laios, o velho rei, que a havia possuído sem amá-la. Depois houve apenas silêncio e estávamos lá, assustados, sem ousar tocar na porta. Foi então que Édipo surgiu, sem rumo. Gritava que se lhe dessem uma espada, mas nenhum de nós não conseguia se mover. Ele nos perguntava também onde estava sua mulher e de repente ele começou a se jogar contra a porta dela como se ele tivesse compreendido o que estava se passando. Os pesados batentes resistiam a seus golpes de espádua, mas ele estava com uma força sobre humana nesse momento e sob seus golpes, a porta finalmente cedeu. No fundo do quarto, toda reta, mas sem os pés tocar no chão, jazia Jocasta a olhar-nos fixamente do alto de sua écharpe vermelha... Penso que houve um minuto de silêncio,depois Édipo com um poderoso grito louco, partiu em sua direção, cortou o nó e o cadáver caiu sobre ele derrubando-.’Ele ficou ali estendido por terra coberto por aquele corpo que fora o de sua mãe e que fora o de sua esposa.... O tempo parou para nós também que lá ficamos estátuas de cera junto com todo o resto que não conseguia sair do lugar naquele quarto. E de repente ele se move e o que fez nos aterrorizou. Arrancou os pingentes de ouro que enfeitavam as vestes da morta e berrando feito um animal ele os enfiou pelos olhos a dentro, com ódio e gritava:” Não quero mais ver! Não quero mais ver nada!”. Ele levantava suas pálpebras e golpeava sem para fazendo jorrar sangue pelo rosto, queixo abaixo, mas não em fios, em jatos como de uma chuva negra e uma saraivada de granizos sangrentos. Só aí conseguimos sair daquele aturdimento e nos lançar sobre ele, tentando para o sangue de qualquer maneira. Mas ele se debatia e berrava que devíamos abrir todas as portas para que todas crianças de Cadmos vissem cara a cara um parricida! Não foi fácil ver aquela cena e foi preciso que se juntasse muita gente mesmo para contê-lo. Foi tratado, ficou mais calmo. Pediu um bastão, dizendo que ele mesmo se baniu e que não pode ficar em casa. Que precisa retomar as estradas. A pequena Antígone, sua filha preferida, decidiu partir com ele e ser seu guia. Nem Ismênia sua bela irmã, nem sua babá tentaram dissuadí-la desta decisão, mesmo que todas já soubessem como é impossível fazer Antígone voltar atrás depois que ela se decide a fazer algo.[14] Só restou a ambas o pranto. Coro E quem podia detê-los? A rainha está morta. Creonte está longe e ambos são duas mulas cabeçudas! Quanto aos filhos, Etéocle e Polinice, dois pequenos salafrários, com o boca crispada e os olhos endurecidos, esperavam apenas o momento de disputa entre si a herança e matar um ao outro caso não fossem controlados. Édipo aparece, olhos vendados, conduzido por Antígone, uma pequena adolescente negra e bem magra. Pergunta Édipo Já estamos do lado de fora? Antígone Sim. Cuidado com os degraus. São três. Édipo

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Está bem. Avancemos. Guia-me. Vamos sair pra estrada do norte. Creonte aparece. Antígone pára Édipo pergunta Por que paraste? Quem está aí? Antígone Direta Creonte. Édipo Voltaste? Creonte Sim Édipo Tinhas razão, estás vendo?! Estás saboreando teu triunfo? Creonte Não Édipo Não hesites. Já espero tuas zombarias. Creonte Não posso triunfar sobre ti, Édipo, nem te culpar por teu passado. Acho apenas que deverias voltar e entrar em casa. Não é decente se mostrar a infelicidade em praça pública. Édipo Os homens e os deuses têm direito ao espetáculo. Creonte Murmurando triste Orgulhoso antes, e para sempre orgulhoso! Édipo Sim. É tudo o que me resta. Poupa-me de tuas lições. Mas se tens alguma pena, ajuda-nos apenas a sair da cidade. É uma criança que me guia e eu estou cego. Creonte Onde pretendes ir? Édipo Não importa onde, contanto que eu não tenha mais que falar com ninguém. Sobre o Cíteron que minha mãe e meu pai haviam escolhido para túmulo de seu filho recém nascido. Lá morrerei , vítima deles, como eles o quiseram no passado. Devemos obedecer a nossos pais... Eu peço para enterrares... Pára de repente ..É estranho, eu não sei mais qual nome lhe dar..Enterra aquela que jaz dentro do palácio. Creonte E teus filhos? Édipo Cuidarás deles. Não se preocupe com meus meninos. Eu nunca os amei, nem eles a mim. Já estão grandezinhos e terão também que cumprir o que o destino traçar para eles. O futuro está escrito no ódio que cultivam. Acaricia Antígone, triste Mas minhas filhas, não. Toma conta delas. São ainda meus doces cordeirinhos. Doces porque mulheres, e por isso já armadilhas. Cuida delas. Creonte Eu o farei. Édipo Quando está me tiver conduzido ao Cíterom, manda teus homens buscá-la e toma bastante cuidado com ela. É uma alma coberta de fragilidade, mas dura e sombria no fundo. Não enfrentes nunca! Creonte docemente

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Vou tentar, Édipo, vou tentar! Mas vocês são todos de uma família difícil de se lidar com ela e o orgulho está engastado dentro de vocês.O que é que faz com que os Édipos, as Antígones, continuem em pé, assim, eretos e duros e inflexíveis? Estou quase certo que terei bastante problemas com ela também... Um tempo. Mais firme Ontem me desprezaste quando te disse que a felicidade era o suficiente em nossa vida. Não podemos chamar a atenção dos deuses, Édipo! Temos que nos fazer de bem pequeninos, para que eles nos esqueçam. É preciso tentar nossa pouca felicidade cada dia, arrancando-a com as unhas , arranhando mas sem fazer barulho. Dançar enquanto houver música ! E isso é tudo! Édipo É uma vergonha isso!! Creonte Sim. Mas é a única chance do homem. No momento em que ele não aceita isso , no momento em que ele começa a fabricar alguns planos, aí começa o massacre. Um silêncio pesado Édipo Se desviando Vamos, minha pequenina. Leva-me para longe daqui. Já falei demais com os homens. Nós tomaremos a estrada de montanha e me deixarás sozinho lá em seu sopé. Creonte Com um leve sorriso de certeza Boa viagem, de todo jeito, seu velho louco! Agora eu tenho que entra em casa, porque me resta botar ordem em tudo de novo. Alguém vai ter que fazê-lo, e essa vez é a minha. Entra no palácio enquanto Édipo e Antígone saem e o povinho se desfaz pelas laterais, triste, abanando as mãos em adeus para os viajantes. Resta apenas o Coro Coro Acabou. Acabou por essa vez. Todos outros voltaram para Tebas, onde a vida de todo dia vai continuar. E aí virá a estação em que se deve semear e se esperar que a colheita seja melhor que a do ano que passou.... Quando houver desgraças, as desgraças passarão sozinhas. Serão apenas uma história envelhecida que os velhos da cidade contarão para seus filhos e eles aos seus e aos seus e assim por diante. E ainda haverá outras doenças, outras coisas chatas, outras misérias.... E bom ano, mal ano, sempre morre um punhado de gente, não é mesmo?!.... A infelicidade, é o que vocês acabaram de ver na história de Édipo, nunca foi uma coisa tão excepcional assim.... A cortina se fecha em frente ao Coro

Fim 28 de março de 1978 [15]

NOTAS QUE Muito importa LER [SE ASSIM O QUISERES] [0] radotages/radotes. Essa palavra no português tem história e talvez isso valha mais que toda nossa tradução. Nos tempos de Zé de Alencar e Machado de Assis, seria “parvoíce”( de parvo, criança), lá pelos idos de 60/70 Roberto Carlos lançou o “papo furado”( que usamos aqui também em homenagem à data de escritura da peça:1978); láá pelos idos de 70/ 80 Asdrúbal Trouxe o Trombone cunhou como “besteirol” suas obras dentro

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do mesmo sentido; os anos 90 não foram pródigos em gírias e radotes eram bobagens mesmo, MAS em sua segunda metade começamos a ouvir a abertura de um maravilhoso discurso político, que repercute até hoje em dia (estamos em 2010, data do centenário de Anouilh), concentração total de parvoíce, papos furados, besteirol & bobagens e falta de pensamento: “eu penso, companheiros, que...”. Glória a Lula, seu inventor, difusor, mas graças a deus único utilizador, que conseguiu assim fazer evoluir a besteira/ radotages do domínio das crianças em 1800 para o domínio do poder em 2010. Passando por Roberto Carlos incólume! [00] sourdement. É a didaskalia mais comum. É uma palavra ampla em francês de teatro. Vai de pesado a violento, passando por grave e outras tantas emoções (são tantas...). Eu saí as distribuindo conforme meu conhecimento do português/brasileiro, de Anouilh e do teatro francês me permitiam. Sou ótimo nas 3 coisas. (não disse “humilde” disse ótimo!) [1] imperceptiblement troublé. Se imperceptible, a didaskalia se torna desnecessária. Por isso vertemos ao contrário. Distrações acontecem. [2]por vezes acho que Anouilh se diverte colocando didaskálias mais para o cinema que para o teatro... “un lueur ironique dans son vieil oeil”, disse ele! UUU(boquinha de bico nisso) seguido de iiiii, o todo religado pela oposição l/r : lueur ironique...vieil oeil... & o na o ironique dans son. Passou-lhe batido? É porque é uma mera didaskalia!.. Mas nos permite dizer que o autor estava se divertindo com as possibilidades de sua bela língua.. Isso é:” Anouilh is the guy!”, diria Barak Obama [3] boiteux, o que manca, o coxo. Se coxo porque belo, se belo porque coxo- diria Machado no tempo em que essas palavras ainda não eram proibidas de serem escritas assim. Em politicamentecorretês seria : Édipo o desfavorecido, em apenas uma das pernas, de movimentos seguros. Que título para uma peça! Sabendo que esse é o índice pelo qual Édipo tem o tilt e saca que está ferrado, entendemos porque assim Anouilh nomeou sua peça. É um escritor sagaz. Mas nos dá alguns problemas nessa época correta em que , eu penso companheiros que apenas não se pode corrigir o poder. A lembrar que o francês preferiu a imagem de lata para a designação e nós em português preferimos a forma de um verbo francês (politicamente incorreto) : o que manca. Manquer é faltar. E nas pessoas nada falta hoje em dia, há apenas alguns desvios. Até no poder, até no poder. Essa talvez a razão de uma certa perda de interesse, nesses tempos bicudos (gíria do tempo dos modernistas de 22), por Anouilh: porque tenta atingir o poder. [4] ah eu amo Anouilh! Cada vez que se elege um ditador, um presidente, um senador, um deputado, um vereador, um pequenino reitor, um diretor de centro, um chefe, um coordenador, um ” professor do ano”, um Lula, eu só consigo pensar nisso: “ah como eu amo Anouilh!” [5] Joãozinho XXX copiou deslavadamente essa frase anos depois. A diferença entre ele e Anouilh é que há algo mais a se dizer, disse Anouilh: ”isso é teatro deles”. Eis a diferença entre um grande escritor e um livre mas pequeno pensador. João XXX confundiu tudo e meteu a realidade pra dentro da ficção e , mais ou menos como Lula, acreditou por demais só em sua grandeza, ou adiantou-se à frase: “eu penso, companheiros que....”. Como se uma bobagem dessas valesse a pena ser dita (talvez) e registrada(certamente é o erro comum dessa espécie de ignorante!). [6] viram o que eu disse acima ( notas 3, 4 e 5)? Nós não somos público indulgente! Anouilh & Micheloto dixerunt. [7] não resisti, não pude resistir. Didaskalia é dos poucos lugares onde a gente pode se divertir à vontade. Anouilh dixit (=fecit ) ! Esse conjunto gracioso de didaskalias- que me lembra o posterior Nelson em Valsa #6 – Anouilh conseguiu certamente por ser um dos maiores conhecedores e “vertedores para o palco” de Marivaux. É preciso ler suas outras obras para me acompanhar nas entrelinhas dessas minhas notas, ok? O tradutor também deve ser um escritor. Sem pudores.

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[8] c´est me condamner à lá mort et à l´exil. Claro que inverti. Mais acima acontece a mesma coisa. O que podemos supor que Anouilh não está cansado e distraidamente (erros acontecem até com Anouilh!0 fez tal frase. A lógica nos impede de primeiro matar um homem e depois fazer com que ele vá andando até a fronteira e lá fique exilado. Foi difícil. Mas como não refleti o suficiente sobre o porque do Anouilh ter feito essa inversão (isso não se configura como nenhuma figura de estilo na Retórica de Fontannier ] preferi re-inverter. Uma vez que suponho ser uma frase para ser dita( logo esquecida rapidamente), podendo pois ser antes mal entendida que entendida no sentido que o autor lhe deu e eu não encontrei. Se eu não [estou aqui há 3 anos], imagina nosso

público que passará apenas um segundo por aqui, né não????... Já teve gente que foi capaz de pensar que faço notas só para dizer que sou belo, inteligente, maior que o leitor etc. Sou mesmo e não me vexo. Mas leiam com cuidado e verão que eu tenho tido o maior cuidado do mundo em minhas traduções. Escrúpulos mesmo. Sei que ao apressado não parece, mas gastem 3 ou 4 anos me relendo e o descobrirão. Eu gasto tempo vertendo meus bons autores. E quando não acho, digo. Não é vergonha, é meu tamanho!... [9] toda linguagem do Homem de Corinto foi traduzida literalmente e indexada de mais alguns efeitos para se adequar bem a nossos bêbados brasileiros. Em Antígone Anouilh faz apelo a 3 soldados com nomes franceses, em vez de gregos, para criar esse tipo de situação extra-temporal, que permite ampliar a atuação para o grotesco.. Essa marca está presente aqui pela primeira vez, neste personagem. Só seguimos os passos de Anouilh ao longo de sua obra. [Cfra Recomendações de R.Bigi para o presente trabalho] [10] ah eu amo Anouilh! Ele toda hora pula através dos tempos. Com a linguagem... Olha os trapistas ai entrando com São Bernardo de Claraval e tudo mais dentro de uma tragédia grega! Isso é que é dar uma super-mãozinha para seus futuros tradutores!!! ah eu amo Anouilh! [11] apesar de Anouilh fazer pulos no tempo, ele é o autor, mas eu humílimo tradutor apenas não posso fazê-lo. Então, como não se falava em diabos na Grécia, joguei tudo pro Hades, porque a expressão correta de Édipo é: Cacêta, porque diabos...etc. Isso é: Tá p. da vida! [12]... eu perco minhas amizades mas nunca perco uma piada! Anouilh , em vida, fazia assim também... [13] o texto diz “ quem me chamava assim”. Adiantei, trocando-o por que me fez isso. A história do apelido e de sua falação já está dita e bem acima , no lugar onde coloquei a nota anterior. Repetir aqui fica fraco e desnecessário. Creio que Anouilh pensou, Quem me fez isso, e escreveu outra coisa. A resposta do Homem confirma minha tese: a função dessa fala é permitir ao Homem informar-nos sobre quem lhe entregou a criança. Um testemunho ocular de tudo. O elo perdido que Édipo busca metodicamente desde o início. As falas dele às vezes soam chatas. Porque levam todas essa marca de inquirição. Ele pesquisa o tempo todo e não se dá por contente com informações que podem enganar. Ele tenta ir ao fundo das respostas. Claro, pro falta de um testemunho ocular. E é isso que O Homem veio lhe dar. Esse é seu papel, e ele percebeu que este é O papel da peça!!!! A troca de texto feita por Anouilh deve ser explicada porque devia estar cansado, como este texto indica às vezes, através de um ou outro escorregão. Estamos em 1978 e parte da confusão com ele toda está sedimentada. Provavelmente escreveu essa peça ainda com um certo sabor amargo na boca em relação à França.. O que não diminui em nada sua beleza. Pelo contrário! E é a isso que estou fazendo jus com essas notas! E é por isso que me empenho tanto em trazê-la para o Brasil neste centenário. [14] Anouilh dá uma pequena chamada para sua peça de 42 acrescentando a história de Ismênia e as babás tentarem dissuadí-la. Ele dá uma deixa sobre o caráter de Antígone. Retocamos a frase para ficar mais forte ainda, para reavivar a memória da outra peça, sessentona que nem eu, uma vez que o tempo se passou, já temos um século por sobre Anouilh e o tempo de uma juventude por sobre Édipo o rei que manca.. [15] Acabada 3 dias antes de meus 34 anos. A peça faz 32 anos em 2010.

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E agora a traduzi, poucos dias depois de meus 66. A semelhança de números é sempre mera obra do destino. Mas esta certamente é uma história envelhecida que eu contarei para meus filhos e eles para seus filhos e eles para os seus e os seus e assim por diante ... até se mudarem as estações [16]

Nota bene final: Entre as páginas 48 & 52 do original francês está escrito: Jocasta Voltando a si Édipo duramente Jocasta Grita, espantada Édipo Duramente Jocasta Com um sorriso Um pequeno silêncio e ela acrescenta. Édipo Sonhador Jocasta Édipo Jocasta Édipo Jocasta Édipo Jocasta Édipo Murmura estranho, como que para si Jocasta Inquieta Édipo Jocasta Édipo Jocasta Abraçando-o

Eu adoraria, em homenagem a Anouilh, deixar assim minha tradução. E isso é puro Anouilh de 1978, entenderam???? O resto é desnecessário. Mas sei que assim acabaria expulso dessa cidade que também não é minha, assim dirão.

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