Escrever Com Arte, 3ªedição - 2014|2015

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Título: Concurso Literário Escrever com Arte, 3.ª edição, 2014/2015 Autores: AAVV © Escola Secundária Artística António Arroio e autores Ilustradores: alunos premiados, entre outros. Prefácio: José Rocha e Julieta Silva Capa: Ana do Canto e Nuno Santos, a partir do cartaz do concurso da autoria de Filomena Garlito. Contracapa: Filomena Garlito Organização: Ana do Canto e Julieta Silva - Biblioteca | centro de recursos educativos Data: maio 2015


escrever com arte Prémio António Arroio 3.ª edição 2014 2015



PREFテ,IO


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ESCREVER COM ARTE

[…] Pela António Arroio passaram poetas - poetas (daqueles capazes de “caminhar em cima das águas” (Herberto Helder): o já citado Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, são bons exemplos a seguir dos que não se deixaram enganar com o que lhes atiraram ao caminho, preferindo procurar outros lugares – os seus - onde a paisagem era menos frequentada. Que esta edição sirva o mesmo princípio ou a mesma recusa. José Nunes da Rocha

Esta presente publicação em digital contém os textos premiados da 3ª edição do Escrever Com Arte. As ilustrações são da autoria dos alunos premiados ou de colegas que com a sua disponibilidade também quiseram participar na atividade. Aqui fica o nosso agradecimento a todos os alunos que se candidataram ao concurso, aos professores colaboradores nesta iniciativa, nomeadamente o grupo de Desenho, o curso de Comunicação Audiovisual e, mais uma vez, à direcção da escola que nos tem apoiado desde o primeiro momento.

Biblioteca | Centro de Recursos e Grupo de Português EAA, 2014-2015

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POESIA

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Inês Isabel Salgado de Brito 12ºK 6


não faço arte por encomenda. faço arte como emenda da vida que levo.

dá-me a liberdade que em mim grita pra ser libertada.

afaga-me os cabelos e dá-me os carinhos que preciso. não me interessa quem és.

só não me deixes mais na chuva da noite a subir estradas douradas e indetermináveis, com o choro fininho numa mão e a dúvida noutra. como dantes.

deixa-me pedir-te o favor de não o fazeres.

és capaz de me sentir?

temos ignorado.

os dias têm passado por cima das nossas ambições verdes e as réguas não têm precisão suficiente para afagar nos nossos focos. afogam-nos.

as moedas tilintam sim, mas subentendidas. as músicas dão na rádio alto, são as tais, 7


mas não as sabemos ao certo, ainda de cor, pois há um corvo inexistente que nos esmaga o sentimento e a ideia, sabemos lá nós, pouco pensadores, injetados a nitro impingido, donde irá, e porquê, vir um corvo?

não me deixes desamparada numa luz que eu não pedi a questionar que vida quero afinal, se estiver escuro.

compreende-me.

quero uma ilha amarela e ter os pés ao Sol. quero uma tela sem rugas e seja o que for que tiver de ser.

o genuíno sim, o intuitivo, o que me ou nos apetecer... sem ter objetivo de caber ou encaixar do drama ou do lugar da hora, da trama, da gama do alucinar, da medida da lua e do grito a que soa o mar. ou da rua para onde ir marcada àquela hora.

esta alma não demora. entretanto, de mãos nos joelhos com o silêncio a conter-se na verdade que temos para dizer a linha de raciocínio é como o sono, ou como o nevoeiro. pois a rir, nada tem a dizer, senão o que a seguir, irá por hábito conter.

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espera-se que o dia passe. e que o dia não volte.

a chuva cai-nos na bacia, e se há hora própria a que nasce o dia a vida não sabe tão bem...

é a liberdade que esmaga o peito é o quente que esmaga o ar

viver é tão esquisito! disse o silêncio ao grito... a alucinar. 1º Prémio Inês Isabel Salgado de Brito 12ºK

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Aluna do 10ยบC

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O sol chega, e com ele Um Homem de cara preta, Aquele que comigo partilha Um autocarro sem portas, Um autocarro feito de vozes, Um autocarro em voltas.

Aquele Homem de cara preta, O que comigo viaja Na estrada limitada por pontes, Na estrada aguada dos fortes, Na estrada ceifada por mortes.

Esse Homem de cara preta, Que se senta acompanhado, Sozinho entre cadeiras almofadadas, Consigo atrás das cadeiras empedradas, Comigo nas cadeiras estragadas.

O Homem de cara preta Que comigo se encontra Num horizonte com paredes, No horizonte entre parentes ausentes, Num horizonte sem correntes transparentes. 2º Prémio João Barroqueiro Lopes 10ºC 12


Maria Joรฃo Pires 12ยบ G

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A Mosca

A mosca passa, A mosca vem. Não para a mosca.

Os meus olhos seguem-na, Os meus ouvidos matam-na, As minhas mãos procuram-na E o gato segue-a atento.

A mosca que não para, Por nada pára a mosca. Vai contra a janela, Cheira a flor da abelha, Mas nada a para. Nada para a mosca.

A minha avó está lá em cima E eu aqui a seguir a mosca. E eu aqui a escrever um poema. E eu aqui a escrever um poema Que seria um conto. E a mosca não para. 3º Prémio Mariana Marques 12º G

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Madalena Dias 12ยบ E

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Meias Extravagantes

Entre madeixas de cabelo desalinhado, Entre orgulho ferido e arrastado Nasceu uma rua sem chão.

De palavras irrelevantes Pisadas por meias extravagantes Outrora partilhadas.

De vontades cortantes degoladas.

Mas é apenas uma rua sem chão, Onde a tinta é nada E o caminho é vão.

Menção Honrosa Madalena Dias 12º E

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Ana Beatriz Graรงa 10ยบK

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Lembro-me que doía, olhar para ele doía. Olhar para ele encostando a minha cabeça sobre a parede áspera e fria enquanto se ditavam coisas que nunca chegariam a ser usadas, nem sequer relembradas, doía. E a cadeira estremecia a cada movimento que ele fizesse, com medo de me desequilibrar entre os seus bocejos e suspiros. Lembro-me que doía, ouvi-lo doía. Ouvi-lo a rir com o ar gelado da manhã a tocar-lhe na cara como eu nunca toquei, doía. E sentia inveja do ar, e sentia inveja da pessoa que o tivesse feito rir e sentia uma dor dentro das costelas não sabendo bem onde. Acho que se soubesse, ainda mais me iria doer. Lembro-me que doía, quando ele se ia embora doía. Quando passava por mim e me olhava mas não se despedia, doía. E ouvia o motor a trabalhar ainda com esperança que voltasse, para o confrontar com o facto de que dois anos se tinham passado e eu ainda não sabia para onde apontar quando me perguntavam pela dor. Lembro-me que doía, ele doía-me. Fiz dos cordéis do seu casaco azul meu baloiço. Quando ninguém estava a olhar, plantava os meus males nas suas pálpebras caídas. A sua rouquidão era o meu pão e água. Os baloiços foram abandonados. Nenhuma flor brotou no jardim acima do seu nariz. Fiz greve de fome. Lembro-me que doía, e oh Deus, tentei eu recriar essa dor tantas vezes. Procurei bocados dele em todos os que conhecia, perguntei por ele em cada esquina de alma daqueles que me rodeavam. Mas nem tesoura mais cortante me cortava a respiração e o pensamento como tu fazias. E nem faca mais afiada recriava o momento em que viajava pela A5 gritando “Ele beijou-a, mãe, ele beijou-a”. Sei que hoje tenho peito onde descansar, sem picos ou pedras ou algo que magoe. Sei que hoje tenho a quem tocar na cara, sem

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que o frio me gele a mão. Sei que hoje comida nunca vai faltar e flores, só oferecidas. Mas fizeste do meu primeiro grande amor a dor e tenho medo que não a possa repetir tão apaixonadamente.

Diria “e tenho medo que não te possa repetir”, mas não se pode repetir o que nunca se teve. Lembro-me que doía, e ainda sei que dói.

Menção Honrosa Ana Beatriz Graça 10º K

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NARRATIVA

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Bruno de Marco 12ยบ I

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Alegoria Lusitana

Cansado de cansar-se do cansaço, em si, por si, estagnou o homem, estacou as suas pernas em alcatrão, num longo sentar, pernas entrecruzadas, como que à espera da sua sombra habitualmente atrasada. Barba rija da poeira do tempo, abanava-a em movimento frenético, repetindo, enlouquecendo da tentativa de se livrar do fardo. O Rossio não deixava de reluzir sua brancura, todo ele congelado no tempo, muito menos mudava a calçada os seus padrões, vórtices de formas e passos. Mas o homem, aquele, era mancha e cão da paisagem, completava-a inexplicavelmente, tal como o rebuliço completa uma avenida. A sua voz era um rouco debilmente insano, declamando, proclamando, por entre murmúrios e vogais, o fim. Tresandava a ódio, e este era justificado, claro, se me permitem dizer. Eras foram vistas por aqueles olhos, do desmantelar do mundo ele fora o espectador calado, excluído do direito, do respeito moral de se ouvir uma opinião, não menos seria esperado dum rafeiro ou de qualquer homem que se preze. As mãos trémulas carregavam o peso dos séculos, agitavam, todo ele um bracejar, um empurrão buscando acordar-nos do sono social. Dormimos porém, sonhando estarmos acordados, enquanto ele, desperto, chora a insónia das ruas, em si demente de verdade. Ele é a Besta da noite fria que cheira a urina, o olho que espreita por detrás da escuridão das ruínas, nojo dos transeuntes, personificação do pavor daquele chamado rico, outro miserável,

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vagabundo. Ele é nossa paisagem citadina, mendigo, pessimista e assustado, ele é a alegoria lusitana, o verdadeiro português.

1º Prémio Bruno de Marco 12º I

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DESENHO DA EMA

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AUTORRETRATO Eu. O que sou eu? Eu sou uma rampa do lado esquerdo de um prédio onde, no terceiro andar, está uma loja de doces e chupa-chupas. É nessa mesma loja que está um menino de sete anos a comer um chocolate em forma de chapéu de chuva como recompensa de ter tido uma boa nota num teste de língua portuguesa de quarto ano. Ele está acompanhado pela mãe que olha para o relógio na ânsia que o tempo passe porque tem um encontro marcado com o namorado que conheceu na internet. Está muito ansiosa. Não sabe o que vestir e esse problema inquieta-a. Quase que se consegue ouvir o seu coração a bater rapidamente. Quase como se tivesse corrido a maratona. O coração dela bate tão fortemente como um carpinteiro une duas tábuas de madeira com um simples, frágil e magro prego de ferro. O carpinteiro bate nas tábuas com cuidado para não as amolgar. Ele tem pressa pois o cliente está quase a chegar, mas ao mesmo tempo aprecia cada segundo em que trabalha. Do outro lado da porta da sua pequena oficina, um rapaz de vinte e poucos anos atravessa a rua a correr porque quer impressionar uns amigos e fazer um jantar gourmet para o qual precisa de ingredientes especiais e o único supermercado da zona fecha dentro de dez minutos. Enquanto o rapaz corre deslumbra-o a montra de uma gelataria e aí vê um bom sítio para levar os amigos depois do jantar. Quando olha para dentro da loja vê um relógio de parede por cima da caixa registadora e apercebe-se de que afinal não faltam dez, mas cinco minutos para o supermercado fechar. Ele corre ainda mais velozmente agora, com a carteira na mão, que agarrou à pressa antes de sair de casa, que fica perto de um restaurante indiano que às sextas-feiras faz noites temáticas. Na última sexta o tema foi o mar e as senhoras do bairro foram vestidas de sereias e os senhores de marinheiro. Eles dançaram a noite toda e alguns casais levaram os filhos que se juntaram todos

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na zona infantil que tem mesas cor de rosa choque. Tão choque como as malas das estrelas pop do estrangeiro. Estrelas que desfilam em passarelas, que pousam para fotografias e que formam filas de fans que esperam horas pelo autógrafo do seu ídolo, para quem elas não significam nada. São apenas mais uns fans. Estas filas estendem-se e podem tornar-se tão grandes como a palavra “otorrinolaringologista”, que tem apenas vinte e duas letras mas é super complicada de pronunciar por uma criança de sete anos que ainda anda no quarto ano. Eu sou isto e muito mais, sou uma infinidade de ligações de ideias que, apesar de não parecer, estão todas interligadas. 2º Prémio Ema Ferreira 10º O

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Ana Rita simões 10º D

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Crónica

Vejo sempre novas pessoas no metro todos os dias. Têm todas as suas diferenças e os seus pontos característicos. E claro, há sempre aqueles estereótipos desnecessários que nos fazem pensar sobre uma pessoa duas vezes. Ainda me lembro de uma viagem de metro que fiz, há já algum tempo. Quando entrei na estação olhei imediatamente para a tabuleta do tempo, faltavam nove minutos para a carruagem chegar. Nove minutos. Tanto tempo! Olhei em minha volta, mil e uma pessoas na estação, todas a tentar desviar o olhar de umas das outras. Brinquei com os polegares, visto que não havia nada para fazer, apenas esperar. Cinco minutos. Perguntei-me porque é que o metro demorava sempre tanto tempo, mas é claro que nem eu sabia responder a essa pergunta. Sem ultrapassar a linha amarela que me separava entre a vida e a morte, virei a cabeça para direita e olhei para o fundo da plataforma. Nem sabia porque tinha feito isto, eu mesma sabia que ainda ía demorar um pouco até o metro chegar. Talvez para fazer o tempo passar mais depressa. Dois minutos. Ajustei o meu casaco e verifiquei se tinha tudo nos bolsos, caso alguém me estivesse roubado sem eu ter dado conta. Sem eu me aperceber, veio uma corrente de ar imensa e o metro já estava a chegar. As portas abriram-se e eu, esborrachada entre aquelas pessoas suadas, tentei entrar antes que as portas se fechassem. Agarrei-me ao poste e, atrás de mim, ouvi as portas a fecharem-se.

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Olhei outra vez em volta e um homem em especial captou a minha atenção, usava fato e gravata, tinha uma pasta preta de cabedal ao seu colo. Com uma mão estava a segurar o seu telemóvel, última geração, aposto. No entanto, o mendinho não tocava na máquina. E na outra, algum liquido num copo de plástico, provavelmente café. Conseguia ver que no seu pulso usava um relógio de cor prateada, notava-se que tinha um aspeto caro. Tinha cara de chato. Que pessoa chata. Deve viver uma vida chata, com o seu trabalho chato e amigos chatos. Se calhar a mulher dele também cozinha a mesma comida chata todos os dias. Mas tanto pensamento chato já me estava a chatear. O que será que ele fazia no metro? Talvez o mercedes dele estivesse para arranjar, quem sabe. Mistérios da vida dos outros que nunca descobrirei. A minha estação foi anunciada pela voz da senhora amigável e mecânica do metro. Verifiquei os meus bolsos novamente, sim, estava tudo no lugar. As portas abriram-se e eu saí dali como se estivesse tudo a pegar fogo, e no canto do meu olho, consegui ver a figura do homem chato a sair também. Ele dirigiu-se a uma mulher alta e esbelta, pérolas a cobrir o seu pescoço, e um vestido justo que abraçava a sua figura perfeitamente. Eu acho que toda a gente ouviu o que aconteceu. A senhora deu um estalo na cara do homem. O meu coração saltou e virei-me imediatamente, o meu andar acelerou e finalmente saí do metro. Nunca hei-de saber porque é que o senhor estava no metro àquela hora, naquele momento, nem porque não pousava o mendinho no telemóvel, ou porque a senhora o agrediu. Assistimos as vidas das pessoas todos os dias, mas muito provavelmente nunca saberemos o que se passa com elas ou o porquê de aquilo lhes acontecer, e eu acho que essa é uma das partes mais engraçadas da vida. 34


3º Prémio Ana Rita Simões 10ºD

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Alexandra Marguerita 12ยบ M

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O espelho de mim

E aqui estava eu, um simples aluno de Filosofia Contemporânea, sem saber que caminho escolher para poder chegar a casa, mesmo sabendo as minhas alternativas, infinitas, não reconheço o poder delas me conduzirem até lá. Tal e qual como o problema mais grave discutido em sala de aula, o caminho para o conhecimento da verdade absoluta. É um absurdo e especialmente ridículo para alguém como eu que me mato nas escolhas que tomo para poder chegar onde quero mesmo não conhecendo a realidade. 3015 é a minha realidade, e percebo que em termos de evolução do pensamento, a lugar algum chegamos. Continuamos no ir, porém, não vamos. Nem mais perto chegamos. E então eu, afogado nas profundezas da minha mente e no meio da capital portuguesa me questiono “Qual é a minha pedra?”. - A nossa realidade. – responde alguém. Não estava à espera de tal resposta, nem sequer que alguém me respondesse… Mas quem? Olhei para trás e não vi ninguém no que os meus olhos pudessem alcançar, fechados. Acabei mais tarde por perceber que ficar ali, questionando-me por tudo e por nada, de nada iria ajudar e meti-me rapidamente em movimento. Com um objectivo mas com uma pedra na mão, que me impedia de lá chegar independentemente do caminho que, por livre-arbítrio, escolhia seguir. Entretanto, acordei. Levantei-me, confuso com todo o meu inconsciente, que até ao momento me vendava a vista e decidi ir lavar os dentes. Rotina automática. Olhei-me no espelho da casa de banho e aí percebi. Percebi tudo aquilo que não me cabia a mim perceber.

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O que estava à minha frente não me deixava ver para lá de mim, para lá da minha realidade. Esfreguei os olhos e a minha realidade não desaparecia, pois é minha e de mais ninguém é. Realmente, essa era a pedra que carregava, aquela que levo comigo para onde quer que seja que vá, pois não pertence a mais ninguém. E o conhecimento nunca irei alcançar enquanto me possuir a mim próprio. Ela tinha razão. A minha mente tinha razão. Menção Honrosa Alexandra Marguerita 12º M

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Lucio Fontana-| concetto spaziale | Attese, 1968

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O fim da estrada

Debaixo do sol abrasador do Verão de 98, o negro alcatrão parecia voltar ao seu estado viscoso e ardente, colando-se a ele uma ténue camada de borracha que derretia a cada volta dada pelas rodas da bicicleta do carteiro. O quadro rangia ligeiramente com cada pedalada repetindo-se som com regularidade digna de metrónomo no silêncio enlouquecedor da planície alentejana, e sua cor vermelha lembrava o exterior brilhante de uma cereja pronta a ser mordida. Com destreza e confiança o carteiro pedalava, curvado com as mãos no guiador envolto com uma fita tom de marfim assemelhando-se também pela sua curvatura aos cornos de um touro raivoso, avançando a direito, muito rapidamente ao longo da estrada. Mas apenas o guiador nos recordava uma imagem tão pesada pois o resto da bicicleta parecia pesar menos que as tiras de cortiça acabada de cortar que se viam amontoadas à entrada das quintas, prontas a serem transportadas pelos terríveis camiões que passavam ao seu lado, na estreita estrada, fazendo estremecer o alcatrão aumentando o bafio seco e desagradável que se sentia naquele ar. Em torno da roda traseira assentavam os alforges em cabedal trabalhado que transportavam dentro de si precisamente 50 cartas, limite que até hoje nunca havia sido quebrado por pouco se escrever para os locais que percorria na sua bicicleta. Da sua rota dependiam as cartas que familiares enviavam para duas recônditas aldeias, ambas apenas habitadas por aqueles que a morte parecia esquecer. A primeira que ele visitava na sua rota encontrava-se apenas, e como os seus habitantes gostavam de repetir, seguindo uma estrada de terra batida rodeada dos mais belos e antigos

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sobreiros, de casca virgem, intacta, nunca antes tocada pelo gume frio da machada do corticeiro. Na sua berma o vermelho vibrante da papoila que dançava com a brisa contrastava com o verde escuro das cobras que saíam da erva alta para se virem expor ao sol no meio da estrada. Era frequente avistar animais passando a estrada ou o ocasional sardão, no topo de uma rocha, com a típica postura de animal de sangue frio buscando o calor relaxante. Por esta hora o carteiro não o veria da mesma maneira, jorrando pela sua testa rios do mais refrescante suor com o típico odor de quem se esforça. Quando chegou ao fim do caminho viu-se na primeira localidade. O pó que se levantava da estrada não se misturava com o branco límpido da cal, e percorrendo as inúmeras casas, todas elas pintadas com este mesmo material, o carteiro ia cumprindo com a sua rotina e função no mecanismo da sociedade. Foi então que um velho pintor que ele conhecia por ser amigo de seu pai, sentado na fresca esplanada do café central junto à fonte, a pintar as mulheres que nela lavavam a roupa, o chamou dizendo-lhe que tinha novidades sobre seu pai. — Como vai a vida, compadre? — perguntou o carteiro. — Comigo está sempre tudo na mesma mê amigo, mas tenho que lhe contar que o sê pai apanhou a lebre depois de tropeçar num bajolo e ficou todo desmangaritado. Não fosse também ele alentejano de gema, não haveria entendido que o seu pai, um senhor também já de idade considerável, que habitualmente ia àquela aldeia de carro para conversar com os seus compadres, havia tropeçado numa pedra quando lá esteve, caindo e aleijando-se seriamente. Tudo teria acontecido naquela mesma tarde enquanto entregava as cartas às outras aldeias, e o seu pai havia sido levado de carro de volta para casa, onde também o carteiro vivia, sendo 41


que era lá que terminava a sua rota. O tal velho dissera-lhe tudo isto e ainda que o seu pai, antes de ter sido levado, teria pedido para avisarem o seu filho, assim que o vissem, de que ele tinha algo de urgente para lhe contar antes que alguma coisa de pior pudesse acontecer, pois sentia nos ossos o aproximar da morte. Sabendo isto, e faltando-lhe apenas entregar as cartas aos seus próprios vizinhos, o carteiro meteu-se à estrada olhando sempre para o relógio para calcular o tempo que demoraria. Indo no seu ritmo habitual de fim de dia demoraria cerca de uma hora, aproveitando a brisa que surge ao anoitecer para refrescar após um longo dia de trabalho. No entanto, dado o pedido de urgência de seu pai, comprometeu-se para consigo mesmo a chegar lá em meia hora. Nunca havia atingido tais velocidades naquela estrada mas estava numa batalha contra o relógio, sabendo que o seu pai estava mal e teria algo de importante para lhe contar. O caminho entre a aldeia onde estava e a sua, onde o seu pai se encontrava, era também o mais belo momento do dia. Nas margens da estrada reluzia o trigo que ainda captava as últimas luzes do longo dia de Verão. Misturavam-se campos repletos de cores como o amarelo e o azul e pairavam no ar as mais perfumadas fragrâncias. Os pássaros voltavam aos ninhos, os pequenos mamíferos às suas tocas e os répteis procuravam abrigo por entre as rochas. A chegada aproximava-se quando, subitamente, o último brilho solto por aquele tremendo pôr do sol, refletindo num pedaço de espelho caído na estrada, encandeou o carteiro levando-o a virar bruscamente para a esquerda no preciso momento em que um camião passava carregado da virgem cortiça que tinha finalmente sido colhida. Menção Honrosa António José Guerra 12º B

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Índice Prefácio POESIA 1.º Prémio

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2.º Prémio

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3.º Prémio

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Menção Honrosa

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Menção Honrosa

17

NARRATIVA 1.º Prémio

23

2.º Prémio

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3.º Prémio

32

Menção Honrosa

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Menção Honrosa

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Cartaz de divulgação de 2014-2015


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