Diariamente nossa realidade é descrita por meio do Audiovisual, mas quantas vezes percebemos este mecanismo? É importante pautar o cinema e suas vertentes como espelho da vida.
A Corte Seco - Revista de Audiovisual nasceu há 3 anos a partir do interesse de professores e alunos da Universidade Federal do Cariri (UFCA) em compartilhar reflexões sobre o Audiovisual e ampliar o debate sobre produção cultural. Foram 5 edições que se debruçaram sobre filmes, séries e conteúdos de diferentes linguagens, origens e formatos, e sua capacidade singular de conectar pessoas por meio de suas histórias e, ao mesmo tempo, gerar impacto único sobre quem assiste.
Para celebrar esta paixão em comum, temos o prazer de apresentar o primeiro Almanaque Corte Seco, que também é a primeira versão impressa da nossa revista. Esta edição singular uniu toda uma equipe em um trabalho multidisciplinar de produção e possui atividades interativas para nos aproximar de você. Com uma leitura dinâmica e formato diferente, o Almanaque Corte Seco traz textos que acompanham e analisam outros mundos, enxergam o cotidiano pelo ângulo da diversidade.
Neste rumo, os textos que compõem este almanaque abrem nossos olhos a diferentes questões e meios de viver que estão presentes em obras audiovisuais, levantando reflexões profundas sobre como enxergamos os trabalhos aqui comentados. De Glauber Rocha a RPG, passando por um ensaio especial produzido com muito carinho, e séries como Euphoria e Our Flag Means Death, a Corte Seco espera, com este número, marcar nossos 3 anos de história e, de alguma forma, impactar sua jornada também. Boa leitura!
Com amor, Corte Seco.
Su má rio 06 09 10 14 20 23 28 24 36 40 44 48 49 51 Mas é assunto pra criança? Sexualidade e gênero sob a perspectiva da animação Steven Universo RP... O quê? Será que eles ainda não usam black-tie? No hemisfério da dor, o sexo A vulnerabilidade masculina em Our Flag Means Death “Deus e o Diabo na Terra do Sol”: entre a fé e o facão Quiz: Que filme é esse? Vem se divertir! Euphoria um prato cheio para os amantes de cinema Jogo: Encontre os filmes escondidos! O cinema é aqui e agora Teste: Quem é você na Corte Seco? Caça-palavras: Encontre as 10 séries! Ilustrações para recortar! Cruzadinha: Descubra as 10 novelas seguindo as dicas
Alexia Mesquita
Bárbara de Alencar
Cauê Henrique Our Flag Means Death, E5T1 (07:05-07:15)
Paulo Rossi Batman vs. Superman: A Origem da JustiçaUltimate Edition (01:59:0901:59:11)
Redatores Revisão Expediente
Pétrus David Ninfomaníaca, Vol. 1 (14:5515:09)
1º EDIÇÃO Outubro de 2022
Comissão Editorial
Beatriz Silva
As Vantagens de Ser Invisí vel (1:38:00 - 1:38:28)
Ficou curioso com essas minutagens? Corre pra conferir alguns dos nossos momentos favoritos do audiovisual!
Diagramação e Projeto Gráfico
Júlia Marques Gilmore Girls, E19T2 ( 01:45:03)
Marielly Silva Com amor, Vincent (1:27:17 - 1:27:50)
Ilustrações
Cauê Henrique Benjamim Mariano Thamyres de Souza
Marcello Nunes Paulo Rossi Pétrus David
Felipe Oliveira
O Fantástico Sr. Raposo (41:28 - 41:47) Jayne Machado
Natália Alves
Auris Flor Paulo Júnior
Marcello Nunes Marielly Silva Natália Alves Paulo Rossi Pétrus David
Júlia Marques
Jayne Machado Felipe Oliveira Cauê Henrique
Euphoria: um prato cheio para amantes de cinema
Por Bárbara de Alencar Foto:
Criada por Sam Levinson, Euphoria é produzida . pela HBO e fala sobre estudantes do ensino médio que enfrentam vários dilemas como drogas, preconceito, racismo, violência sexual, ansiedade, depressão, exposição nas redes sociais, padrões de beleza e relações interpessoais. Uma série que tinha tudo para ser apenas mais um clichê adolescente se destaca pela super produção e inovação na hora de contar a história.
A trama oferece um verdadeiro combo sobre os problemas da juventude, não como algo fantasioso, mas sim, palpável. Não são apenas adolescentes com problemas supérfluos, são seres humanos com problemas reais. O telespectador se identifica com as histórias, com os personagens, com seus anseios, e entende que todas as suas ações também terão consequências. Um exemplo disso é a personagem principal, Rue (Zendaya), que é viciada em drogas e relata que isso é apenas um escape; quando todo o efeito passa, o sofrimento continua, muitas vezes ainda pior que antes.
Euphoria não glamouriza, romantiza ou incentiva comportamentos perigosos e autodestrutivos, ainda que a série pareça fazer isso quando fala abertamente
Divulgação
sobre o abuso de substâncias ilícitas para preencher lacunas da vida. Há um cuidado na construção do texto, fazendo com que os personagens jovens pensem e analisem sua vida sob um aspecto próprio, fazendo eles mesmos julgarem e repensarem suas atitudes.
Aspectos técnicos
Um dos maiores destaques da produção é a qualidade técnica de tudo que é apresentado. A maneira artística como a série trabalha o aspecto visual chega a ser poética, imergindo o espectador em um universo único. Euphoria é um prato cheio para os amantes de cinema, com personagens bem construídos, história fluida e honesta, fiel ao seu tema e público, além de proporcionar para quem está assistindo um mix perfeito entre narrativa e técnica cinematográfica.
Direção, direção de arte e montagem trabalham juntas e fazem saltar do roteiro a história pulsante com a qual temos contato. O desenrolar da série, em suas duas temporadas,
explora muito bem o uso da câmera, potencializando o que está sendo contado
em closes , planos abertos e médios bem trabalhados, o que proporciona empatia com as cenas.
Fotografia e edição dão um show, os cortes são bem feitos e os filtros estão alinhados
à iluminação. A luz e as cores escolhidas, vibrantes, neons, os tons em roxo, rosa e azul se destacam, bem como o brilho das maquiagens (são quase sempre exageradas), que dão um toque especial na narrativa e criam as sensações certas no público.
A trilha sonora é a alma da série e quando combinada a todos os outros elementos proporciona uma atmosfera singular, o que torna a produção ainda mais poderosa. As músicas sempre fazem sentido junto aos momentos vividos pelos personagens… e que personagens!
Desenvolvimento da trama
No começo de cada episódio é apresentada a história de um personagem, com Rue nos
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Não são apenas adolescentes com problemas supérfluos, são seres humanos com problemas reais.
levando a uma viagem desde a infância até o tempo em que se passa a série. Nesse momento os espectadores observam as perspectivas de cada um, como eles cresceram e os traumas que formaram seu caráter. É como se por mais superficial que você ache que é algum personagem, ele acaba tendo uma história complexa que justifica suas atitudes.
Seus episódios são orgânicos, estruturados de maneira criativa e compreensiva, e trazem reflexões extremamente profundas e delicadas. Os atores e atrizes foram muito bem selecionados e transparecem de maneira impecável as mais diferentes emoções, fazem com que você passe de amor a ódio por alguns deles em questão de instantes.
É uma série pesada, por muitas vezes difícil de assistir. Mexe bastante com nossos sentimentos, principalmente por retratar a realidade nua e crua da juventude atual, o que pode ser incômodo, mas vale a pena cada instante.
Euphoria
2º temporada, Ep. 04 - 00:59:20 Foto: Divulgação
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Quiz
Que filme é esse?
O jogo consiste em adivinhar o nome de cada um dos filmes a partir das dicas do enunciado e das oito citações abaixo. Divirta-se!
Neste filme, uma personagem diz: “O amor é como um precipício, a gente se joga e reza pra nunca chegar o chão”.
Essa frase é uma das mais conhecidas do cinema mundial: “Eu sou o rei do mundo”.
demais; e se você não parar de vez em quando para vivê-la, acaba perdendo seu tempo”. Sucesso da comédia nacional, esse cômico trecho se eternizou em nossa mente: “Não tem noitada nenhuma, não tem nada. Porque eu não quero. Porque não”.
Nesse filme, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”.
De qual filme é a frase que recentemente virou meme: “Já olhou para alguém e se perguntou o que passa na cabeça dela?”
O lema dessa cidade fictícia é: “Se for, vá na paz”.
Clássico da cultura pop e da Sessão da Tarde, o personagem principal diz a seguinte sentença: “A vida passa rápido
Por fim, essa frase pertence a um filme nacional atual que emocionou a nação: “Vocês estão matando um brasileiro”.
Respostas: Lisbela e o prisioneiro, Titanic, Cidade de Deus, Bacurau, Curtindo a vida adoidado, Minha mãe é uma peça, Divertidamente e Marighella.
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Desenho animado é uma das maiores diversões ..quando se é criança. Animações lúdicas, cheias de cores e assuntos leves: é assim que a vida de uma criança deve ser, sem narrativas complexas, porque isso é coisa de adulto. Se assistimos desenhos animados quando adultos, eles precisam ter um caráter mais sério, com narrativas que abordem o dia a dia do que é ser adulto, porque já temos idade para compreender assuntos difíceis. “Ter idade” é algo diariamente discutido em relação às crianças, pois existe a falsa crença de que elas não são capazes de compreender pautas complexas, o que é um disfarce dos adultos para não conversarem sobre assuntos considerados tabus.
As novas animações estão introduzindo cada vez mais crianças no exercício de pensar sobre questões que estão presentes na sociedade e que também podem ser discutidas entre elas, como amor, sexualidade, raça e gênero. Lançada em maio de 2013, pelo canal Cartoon Network, a série animada Steven Universo tem como ponto chave a transformação. Dentro e fora de seu enredo, questões de raça, gênero, empoderamento e aceitação são abordadas em uma narrativa que
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Sexualidade e gênero sob a perspectiva da animação Steven Universo
permite que pessoas de todas as idades compreendam a necessidade de pautar tais assuntos.
A série conta a história de Steven Universo, uma criança híbrida: metade humana, metade gem – seres humanóides alienígenas que possuem poderes mágicos. Ele vive com outras três gems, que estão no planeta Terra com a missão de protegê-lo da sua própria raça, que pretende conquistar e exterminar os seres humanos. Durante os episódios da série, Steven e as gems tentam salvar o planeta de diferentes formas, vivendo as mais inimagináveis aventuras. Mas como uma série tão fantasiosa trata de assuntos complexos?
Rebecca Sugar, criadore da animação, coloca toda sua criatividade para que isso aconteça. Seus personagens são das mais diferentes formas, cores, raças e gêneros. Os personagens denominados gems são seres assexuais, e, apesar de performarem o gênero feminino, não tem uma identidade de gênero definida. Stevonnie é um ser gerado a partir da fusão entre dois personagens, sendo uma identidade não-binária que transita entre o gênero masculino e o feminino. Questões de gênero e de sexualidade são mostradas de diversas formas no universo de Steven, de maneiras que adultos e crianças compreendem, sem esvaziar tais pautas.
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Por Natália Alves Foto: Divulgação
As novas animações estão introduzindo cada vez mais crianças no exercício de pensar sobre questões que estão presentes na sociedade.
Sugar faz com que seus personagens não tenham um padrão, tendo eles os mais diferentes tipos de corpos, principalmente as mulheres. Todas elas têm opiniões fortes, uma história interessante que não necessariamente precisa ser a clássica de luta e sofrimento. São guerreiras apenas por existirem, são complexas e empoderadas dentro das suas particularidades e todas elas são um exemplo para o crescimento de Steven. Relacionamentos LGBTQIA+ estão dentro da animação e são tratados com naturalidade. Duas personagens gem se casam em determinado momento da série, e, existindo juntas, conseguem se transformar em um ser maior e baseado simplesmente no amor que sentem uma pela outra. O ser criado a partir delas é um dos personagens mais fortes e importantes da série, mostrando o poder que a aceitação do amor entre duas pessoas do mesmo sexo pode proporcionar. Rebecca Sugar conta que desenvolver esse romance não foi tarefa fácil, pois existia uma barreira na época sobre relacionamentos LGBTQIA+
em animações. Na época, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não era legalizado nos Estados Unidos, e o boicote à produções animadas que pautassem tal assunto era algo que limitava a criatividade de Rebecca.
Steven é uma criança que chora bastante quando se sente lesada por alguma atitude externa, como também quando se sente confusa sobre suas próprias escolhas. Ele é um menino que não tem medo de expressar em meio a lágrimas o seu descontentamento com o mundo e consigo, porque meninos podem chorar também e isso não faz deles pessoas frágeis. Existem diversos momentos na série em que Steven chora e que poderes que ele não imaginava ter surgem, em meio ao apoio de pessoas que o amam e o compreendem.
Exibir em uma série de animação assuntos considerados tabus não apenas ajudam crianças a construírem empatia, mas também a se descobrirem e a enxergarem particularidades delas na sociedade. As pessoas podem e devem
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compreender como elas se sentem. Conversar com crianças sobre assuntos complexos se dá também pela necessidade de elas entenderem situações que podem ser de risco, como por exemplo o abuso sexual, situação que poderia ser evitada com uma simples conversa e esclarecimento sobre limites.
Rebecca Sugar é a primeira pessoa não-binária a escrever e dirigir uma série para o Cartoon Network, sendo também uma pessoa bissexual. Steven é uma criança esperta, que não sabe de tudo e que busca entender o que lhe é estranho, assim como qualquer criança. Sua vida é uma aventura, não só por causa das missões alienígenas que ele precisa viver, mas também pelo desafio que é compreender e aceitar as pessoas que vivem com ele, que são suas amigas e que são diferentes dele em diversos aspectos. Amor e respeito são sim assuntos para criança.
3ºtemporada,Ep. 26 - 00:04:10 Foto: IMDb
StevenUniverse
RP... O quê?
Os role-playing games crescem nas redes audiovisuais, elaborando novas perspectivas sobre jogos, interpretação e cultura pop no universo digital.
Por Auris Flor e Cauê Henrique
Foto: Divulgação
Porões empoeirados, caixas de pizza e ...fantasias de magos compõem um dos estereótipos cinematográficos mais famosos da ficção: o jogador de RPG. Sendo traço clássico, de preferência dos nerds escolares criados nas histórias norteamericanas, jogos como Dungeons & Dragons já se estabeleceram nas telas.
Desde os anos 80, há um fenômeno que interliga games e produções audiovisuais. Castlevania, Devil May Cry e diversos outros jogos tiveram suas adaptações para um formato de animação. Esse não é um movimento recente, tendo em vista que esses são jogos de muitos anos atrás. No entanto, para além dos games de console, outra categoria também vem ganhando seu espaço nas animações e produções audiovisuais: os RPGs tradicionais.
Seja nas retomadas audiovisuais que fazem referência aos anos 70/80, com séries como Stranger Things, ou em séries especificamente voltadas para a cultura nerd/geek, como The Big Bang Theory, o RPG construiu um arquétipo
narrativo próprio, às vezes pejorativo, às vezes um marcador reivindicado na contação da história. Hoje, nas várias possibilidades de conexão e transmissão, o RPG avança como uma força própria de produção audiovisual, ora na forma de filme ou jogo, ora na forma de mesas transmitidas.
Na série Stranger Things, ambientada nos anos 80, temos jovens pegando seus dados e fichas de personagens para um jogo de interpretação no porão de casa. O estilo de jogo RPG marca toda uma geração e estabelece nichos específicos de cultura pop, adentrando o espaço audiovisual como possibilidade tanto em consoles quanto nas produções de mesas e adaptações. Saindo de uma perspectiva recente, os RPGs já compunham histórias como a do filme The Goonies, clássico dos anos 80 que ganhou adaptação para um RPG de tabuleiro baseado no lema “Never say die”. Sobre os RPGs de mesa, muitos dos filmes que abordaram a temática deixaram a narrativa dos jogos como um fundo de personagens pontuais. Com exceção, é claro,
As multitelas nos apresentam hoje o RPG como uma categoria própria.
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dos filmes feitos como adaptação de histórias de RPG. Mas um destaque interessante a ser considerado é a construção audiovisual de Jumanji, tanto em seu clássico de 95, quanto na releitura com sua versão de game digital criada em 2017, que elabora-se toda em torno da lógica de um role-playing game.
Há alguns anos, especula-se sobre o lançamento de um filme adaptativo do universo de Dungeons & Dragons, com direção da dupla Johnathan Goldstein e John Francis Daley. O filme vem encontrando-se com as dificuldades de adaptar o mundo do RPG para o cinema, oscilando entre as expectativas de quem acompanha trajetórias no universo de D&D e a consciência do quão limitante pode ser uma perspectiva única sobre mundos tão vastos de criação.
Mas o que é RPG?
Role-playing games, os famosos D&Ds, jogos de cartas e tabuleiros com elfos, druidas, bárbaros e interpretação. Roleplaying game é o nome extenso da categoria de jogos RPG, um gênero que consiste em elaborar narrativas a partir da interpretação e interação de personagens. É uma metodologia baseada na construção de histórias específicas para mundos específicos, através da qual diversas dinâmicas de jogos podem ser elaboradas. Cada mesa é mestrada por uma pessoa que
abordará suas narrativas de formas particulares; tendência essa que se ramifica para todas as variações de RPG criadas desde seu nascimento em 1971.
Os jogos podem comportar diversas temáticas, estando abertos a contar com cartas, dados, figuras de ação, cadernos de construção de personagens (entre uma série de outras possibilidades de elaboração narrativa) para cada partida e cada universo temático. O RPG comporta consoles digitais, com universos de MMORPG, simulações e games mais primários que consistem em elaborar narrativas pelas escolhas pontuais de seus personagens. Mas o método clássico de jogo é a mesa mestrada, organizada em torno de um mundo previamente elaborado, o qual pode derivar ou não de um tabuleiro específico.
Existem questões consideradas chaves na elaboração de um jogo de RPG, e uma delas é a caracterização do jogador. Estar em um RPG é estar atuando em uma história, elaborar bem essa história é um ponto fundamental para ter boas partidas. Por isso, o RPG (em especial o chamado RPG de mesa) levantou diversas vezes o estereótipo das fantasias, escondendo durante muitos anos o fantástico universo de interações criativas e produção interpretativa contidas em cada jogada.
Com as altas de consumo da cultura geek/nerd ao longo dos anos, globalizando inclusive modos de jogar, o RPG popularizou
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seu formato para além dos Estados Unidos, sendo muitas vezes adaptado para novos contextos e possibilidades de histórias.
Saltando alguns anos à frente, várias redes sociais implantaram formas de fazer conteúdos ao vivo com duração de horas, sem que fossem previamente gravados: as lives. Com o tempo, foram surgindo plataformas específicas para esse tipo de entretenimento. A Twitch sendo a mais famosa hoje em dia, pela quantidade de streamers e pelo alto número de viewers, divide espaço com redes como Youtube e Facebook/Meta.
As mesas criaram e cativaram públicos específicos, contornando a premissa antiga estabelecida pelo universo do cinema de que o RPG é uma atividade restrita e disfarçada. Como uma categoria de entretenimento, as partidas atraem não só pontuais jogadores, mas comunidades digitais inteiras gerando conteúdos diversos baseados nas produções.
Sua grande audiência se deve principalmente pela possibilidade de ver pessoas jogando nos mais diversos formatos, com transmissão à distância: novos lançamentos, jogos antigos, ao estilo MOBA, FPS, Co-op, Just Dance e Guitar Hero. E entre esses se encontram também os RPGs. Poder ver e rever pessoas jogando com histórias de vários estilos e com jogadores conhecidos (por quem assiste) gera uma nova experiência de jogo.
Muitos streamers conseguem, por exemplo, ser contratados por empresas que reúnem equipes de jogadores para representá-
Foto: Unsplash
las ou mesmo ter um financiamento coletivo e lançar seus próprios jogos e livros de regras, ampliando a produção de RPGs e levando para mais pessoas esse tipo de jogo que nos desperta tanta nostalgia.
Foi o caso de dois RPGs em específico: OSNF - O segredo na Floresta e The Legend of Vox Machina. O Segredo na Floresta lançou 3 temporadas desde 2020 e, através de um financiamento coletivo, atingiu metas altíssimas em pouco tempo pelos próprios telespectadores, lançando sua versão de console e livro de regras (os quais as pessoas compram tão rápido que esgota no mesmo dia!). O interesse em ter em sua casa a possibilidade de seu próprio RPG é de uma vontade que não se via há alguns anos. Assim como a produção talvez nunca tenha sido tão grande.
A história de OSNF foi interpretada por outros streamers convidados pelo Mestre, streamers esses conhecidos e alguns contratados por várias patrocinadoras de E-Sports. Cada uma das três temporadas conta com mais de dez episódios girando em torno da história criada pelo RPG autoral.
Pensando sobre The Legend of Vox Machina, o jogo ganhou, agora no ano de 2022, uma série de
12 episódios baseada nos personagens e história da primeira campanha de RPG de mesa criada e produzida pelo grupo de dubladores Critical Role.
A série chegou a cativar tantos fãs que eles mesmos lançaram a ideia no Kickstarter, e conseguiram ser o projeto mais financiado da história desta plataforma de financiamento coletivo.
Agências de publicidade, marcas e os próprios usuários das plataformas de live transformaram esse entretenimento em trabalho, fazendo com que pessoas atuem profissionalmente jogando RPG por várias horas para milhões de pessoas de vários lugares distintos. E com a cultura desse jogo chegando em todos esses espaços e ganhando mais possibilidades de jogabilidade e adaptações, o RPG conquista espaço nas produções audiovisuais adaptativas e inspirativas ou como produções próprias.
Se esse parecia ser um espaço reservado apenas aos consoles e às adaptações, as multitelas nos apresentam hoje o RPG como uma categoria própria. O que outrora era um recurso de arquétipo cinematográfico, agora toma dimensões de produzir sobre si mesmo.
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Ilustração por Cauê Henrique
Será que eles ainda não usam blacktie?
Por Paulo Júnior
Há uma atualidade assustadora em algumas obras ...das artes nacionais, em especial do cinema. É um tanto interessante olhar para produções de quarenta anos atrás e as percebê-las como contemporâneas. Olhar para elas e se questionar se não teriam sido produzidas agora. É possível afirmar que ao ver Eles Não Usam Black-tie, essa é a sensação que fica. O filme de 1981 não envelheceu, ele ainda é jovem e guarda consigo reflexos muito próximos aos daqueles que o levaram às telas em sua origem.
O longa, assinado pelo diretor carioca Leon Hirszman, é a adaptação de um texto teatral de mesmo título e de autoria de Gianfrancesco Guarnieri. Leon passeia pela obra de Guarnieri e se apropria dela com a força e a densidade necessárias. Ao passar das duas horas de filme, é nítido como teatro e cinema se misturam e encontram um denominador comum. A adaptação guarda consigo camadas do teatro de arena, origem da peça, e ao mesmo tempo insere novas aos tensionamentos sociais que ali estão presentes.
Em um roteiro livre e com amarrações coerentes, é possível acompanhar animações que insurgiram
Foto: Divulgação
durante os anos finais da ditadura civil militar brasileira. Em uma imersão caprichosa, o espectador é levado ao cotidiano de uma família operária. Assim, vemos Otávio (Gianfrancesco Guarnieri), líder sindical que passou três anos preso por causa da ditadura, entrar em choque com o filho Tião (Carlos Alberto Riccelli), também operário. Otávio tem um espírito combativo, Tião percebe as coisas por uma ótica um tanto limítrofe, segundo a qual o conceito do ‘jeitinho brasileiro’ é capaz de se formar. Enquanto Otávio discute movimentos grevistas em prol de melhorias sociais, Tião limita-se à retórica de que a greve é o direito pelo qual ele não deseja lutar. Eles Não Usam Black-tie recorta momentos do renascimento da sociedade brasileira, pauta a liberdade e o direito efetivo do trabalhador. O direito a engajar-se no campo político e ocupar esta seara com organicidade e tensionamentos adequados.
Ao passar do tempo, o longa vai enchendose de sobreposições. Porém, o que poderia se
constituir como um problema, faz-se como um trunfo de primeira linha. Em tempo hábil, Hirszman faz um filme que discute aquilo que hoje está em pauta no campo social e joga ao seu espectador uma personagem viva, Maria (Bete Mendes). Alguém que não tem medo de se questionar sobre as possibilidades de aborto, por exemplo.
Maria aparece em tela inteira, ela é sensual, cativante. Ela é dona do seu destino. Não titubeia em assumir seu lugar enquanto proletária, e agir propositivamente nessa ordem. Tião fura a greve dos operários, e conclama seus iguais a fazer o mesmo. Maria ocupa as ruas e sente o peso de um Estado opressor. Maria é mulher, fibra e entendimento. Maria é uma aula sobre o abismo social de 1980 e o atual. É aula sobre o machismo de ontem e de hoje. É aula sobre a insurgência feminina de outrora e atual. Eles Não Usam Black-tie ancora-se nos grandes dogmas nacionais sem medo de colocá-los em cena. O longa usa da política como um pano de fundo para a vida. Ele caminha de modo adensado e estruturado pela
A dor enche a tela, não por que existe um ar detalhista, mas porque ela é realista.
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Ao passar das duas horas de filme, é nítido como teatro e cinema se misturam e encontram um denominador comum.
necessidade de unidade de classe, demonstra o poder dessa unidade e o descalabro de líderes pouco conectados com a sua base.
O filme é um retrato do Brasil de 2018, 2019... 2022. Nele cabem todos os paralelos que se queira traçar. Há naquele espaço a lógica de que as situações de subalternização somente são mutáveis por meio da corrupção direta e da traição aos seus. Há a representação da mentira como forma de domínio das massas, e a constatação de que isso é capaz de conduzir alguém à presidência.
O Brasil que Leon retrata se depara com uma forma policial violenta, que atira e não pergunta, que reprime trabalhador e alinhase às corporações. Retrata um Brasil que sangra e morre. Retrata a dor como fonte última de estarte à abissalidade que existe entre alguns mundos.
Em uma urbanidade em construção, é possível ver as ruas representadas por Eles Não Usam Black-tie em qualquer cidade do país. O calçamento ainda inexiste, da mesma forma que o saneamento e a moradia digna. Também
é possível se deparar com a mesma violência urbana, com a mesma esposa sem marido, com a mesma mãe sem filho. A dor enche a tela, não por que existe um ar detalhista, mas porque ela é realista.
Eles Não Usam Black-tie é o Brasil de agora, deste instante. É a clarividência da divisão política e o surgimento de oportunistas que ascendem, é a urgência de consolidar um espaço social plural e aberto, é um grito de união e identidade. Eles Não Usam black-tie é um reflexo do que precisa ser feito, é um pedido de esperança, é uma afirmativa de que os mártires não podem ir à toa. É a afirmativa de que as grandes mudanças são demoradas, mas possíveis. Ao terminar o filme, por algum tempo ainda será possível ouvir os feijões separados por Romana (Fernanda Montenegro – divina) caindo na bacia. Talvez fossem lágrimas, eram dela e minhas, acho que também serão suas.
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Encontre os filmes escondidos!
Meu amigo Totoro, Pulp Fiction, O Auto da Compadecida, Har ry Potter, Lisbela e o Prisioneiro, It, Thor, O Chamado, Sniper Americano, Forrest Gump, Bacurau, Pequena Miss Sunshine, Jogos Mortais, Senhor dos Anéis, Precisamos falar sobre o Kevin. Ilustração por Cauê Henrique
Respostas:
Na gramática do sofrimento, a sintaxe ...performativa da dor, em comunidade, permite diferentes elementos composicionais e arranjos combinatórios. Há quem permaneça em estado de tristeza, enquanto trabalha em si para, então, seguir adiante. Há quem utilize substâncias (álcool, entorpecentes etc.) para apaziguar a dor. Há quem, em dados momentos, se inflija dor para, em uma equação psicossomática, anular outra. Há, ainda, aqueles que se utilizam do próprio corpo para, em um momento de euforia, não sentir. É sobre este último caso que tentarei tratar aqui brevemente: o uso do sexo, na dinâmica do ato sexual, como remédio paleativo para os males da dor psíquica. Nesse exercício reflexivo, gostaria de buscar em três filmes do diretor dinamarquês Lars Von Trier alguns pontos que possam me ajudar nesse percurso. Tomarei Anticristo (2009), Melancolia (2011) e Ninfomaníaca, vol. 1 (2013) como companheiros de jornada.
No primeiro filme, a protagonista inominada (Charlotte Gainsbourg) e seu marido igualmente sem nome (Willem Dafoe) experienciam, em conjunto, o luto pela morte “acidental” de seu filho, em uma cabana
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A angústia pulsante em Lars Von Trier
Por Pétrus David
chamada Éden, à beira de uma floresta. Durante as quase duas horas do longa, percorremos diferentes fases do luto da protagonista e as formas que seu cônjuge tenta trabalhar esse estado. Em determinado ponto, Ela afirma que a ansiedade que sente ultrapassa o psíquico e se transforma em física. A dor que a perda do filho lhe causou toma seu corpo de assalto e a tenta controlar. O sexo surge aqui como catalisador da dor, ao mesmo tempo que insurge como paleativo. No prólogo, o espectador é posto na posição de voyeur, enquanto assiste ao casal transando, ao mesmo tempo que é posto na posição de testemunha da morte da criança. Na montagem organizada por Trier, cada momento do ato sexual do casal é justaposto a um passo que a criança dá em direção ao seu derradeiro fim: com o corpo estatelado na calçada coberta de neve. O ápice da protagonista ocorre, portanto, no mesmo instante em que a criança chega ao parapeito da janela e escorrega logo em seguida. Sexo e morte, aqui, são postos no mesmo plano semântico, em uma sintaxe infeliz. A partir de então, durante boa parte do filme, o sexo se torna remédio. O desejo sexual da protagonista incendeia seu corpo, a fazendo usá-lo como método para não sentir a dor da perda e a culpa que carrega pela morte da própria cria. Sexo e anestesia,
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Foto: Divulgação
Nas produções de Trier, sexo não é apenas sexo. Ele é locus de poder, de angústia, de medo, de dor, de fraqueza.
aqui, são postos no mesmo plano semântico, em uma sintaxe desequilibrada.
No segundo filme, Justine (Kirsten Dunst) acaba de se casar com Michael (Alexander Skarsgård) e está a caminho de sua festa. Desde o início do longa, sabemos que há algo diferente com a personagem: aquele que supostamente deveria ser um dos momentos mais felizes da sua vida, lhe causa um estado quase incontornável de melancolia. Somos informados, ao observarmos o trato dos demais personagens com Justine, que aquele estado lhe persegue e lhe é recorrente. Na primeira metade do filme, a melancolia atinge só e somente Justine, causando desconforto e até mesmo raiva em seu entorno. Em um dado momento da festa, para fugir daquele ambiente sufocante, Justine caminha por um campo de golfe e encontra com um convidado qualquer. Depois de conversarem brevemente, eles acabam transando. Terminado o ato, Justine volta para a festa e para seu marido. A dinâmica aqui apresentada é a de utilizar a fugacidade do sexo rápido para apaziguar uma
angústia latente, que lhe sufoca, que não lhe é permitida sentir em público. No sexo sem laço algum, Justine procura não sentir o que lhe desconforta. Novamente, sexo e anestesia são postos no mesmo plano semântico.
Para nosso terceiro companheiro, tive que separar um momento específico, já que, como o próprio título sugere, o filme inteiro é cheio de sexo. Mas há duas dinâmicas específicas nele que gostaria de me deter. Em determinado ponto da narrativa, Joe (Stacy Martin) acaba perdendo contato com aquele que considera ser o amor de sua vida, Jerôme (Shia LaBeouf). A partir de então, ela decide manter relações sexuais desenfreadas com totais desconhecidos. A questão aqui é bastante específica: os parceiros escolhidos por Joe remetem a Jerôme de alguma forma (o olhar, o pescoço, as mãos, a boca, etc.) A jovem cria uma criatura de Frankenstein a partir de pedaços de outros homens. O sexo, aqui, é ferramenta para tentar conseguir o prazer que ela acha que sentiria se tivesse o objeto original e completo de seu desejo. O
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segundo momento que escolhi acontece logo após Joe ver seu pai (Christian Slater) ter um episódio ruim da doença que lhe aflige. Ao ver o homem que cuidou dela durante toda a vida, acamado, à beira da morte, sem total controle de suas funções físicas, ela se desespera e sai pelos corredores do hospital aos prantos. Na busca de tentar se recompor, acalmar sua dor e se utilizando da única arma que tem, ela decide transar com um funcionário qualquer, sobre uma maca qualquer, em um lugar qualquer do hospital. Aqui, temos dois aspectos do sexo para Joe: de um lado, uma ferramenta de tentar encontrar um resquício de prazer num memória fantasma de um amor ido; do outro, o anestésico nuclear para qualquer mal-estar que sinta. Os dois pólos, no entanto, interligados pela dor do luto (imediato ou iminente), pelo desespero, pela ânsia de não sentir ao sentir.
Nas produções de Trier, sexo não é apenas sexo. Ele é locus de poder, de angústia, de medo, de dor, de fraqueza. As representações do sexo, em suas obras, flutuam da completa
demonização ao seu aspecto sacro-ritualístico. No hemisfério da dor, o sexo insurge como ato em uma encenação, onde os atores sociais o utilizam como máscara para esconder suas faces contorcidas pelo sofrimento. No hemisfério da dor, quantas Elas, Justines e Joes caminham entre nós? No hemisfério da dor, quantas vezes fomos uma delas, nem que por um único dia de nossas vidas?
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O cinema é aqui e agora
De quantas formas diferentes pode a arte nos marcar e moldar as nossas experiências sensoriais mundanas? Seja linda, seja feia, seja ríspida, seja agradável, seja cho cante, seja alegre, a sétima arte tem inventado e reinven tado formas de viver e desejar. Incorporado ao Cariri Cearense, o cinema tem a capacidade de despertar em nós sentimentos e ações, tem feito pensar, sorrir, lutar, acreditar, sonhar. Mais que isso, tem imortalizado. Pode a vida ser eterna? O cinema responde que sim. Num abraço do cotidiano, num sorriso singelo, numa dança pela rua, num afeto dramático. Mas é cinema ou vida real? Tudo se mistura. O espetáculo está posto, o Cariri é o cenário nesta aventura imagética distópica, entre o dia-a-dia e o encantado se revive tudo aquilo que foi visto antes numa tela de cinema. Ah, o cinema… É aqui. E agora.
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O Show de Felope
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O Poderoso Cauêzão
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Palmolive e Piscose
Curadoria:Cauê Henrique
A Mágica do Cariri
Assistente de produção: Auris Flor
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O Invocado
Imagens: Jayne Machado e Cauê Henrique
Elenco: Cauê Henrique, Felipe Oliveira, Júlia Marques, Marina Marques, Paulo Rossi e Pétrus David
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Sunlight
Central do Cariri
O Bonequeiro da Luz Vermelha
Edição das imagens: Cauê Henrique e Júlia Marques
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Dançando na Quentura
Corre, Felope, corre!
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O Céu de Júlia O Destrambelhado Destino de Júlia Marques
Coringando no Cariri
A vulnerabilidade masculina em Our Flag Means Death
Por Alexia Mesquita
Foto: Divulgação
Criada por David Jenkins, a série é uma comédia romântica sobre piratas no ano de 1717. Lançada em 2022, possui apenas uma temporada e está esperando renovação. Com dez episódios de uma estimativa de trinta minutos, cada um é dirigido e roteirizado por uma pessoa diferente, incluindo Taika Waititi, diretor de Thor: Ragnarok e O Que Fazemos nas Sombras, que também interpreta um dos protagonistas da produção.
Nesta história, o público é apresentado a Stede Bonnet (Rhys Darby), um homem que decide deixar sua família e sua vida de luxo pelos perigos e pela escassez da pirataria. Não se sabe se por sonho ou crise de meia-idade, mas Stede foi inspirado em uma pessoa real que deixou seu conforto voluntariamente para se juntar ao mar, o que já era estranho naquela época, visto que a maioria dos piratas entraram nessa vida obrigados ou por falta de opção.
Com debates sobre racismo, colonialismo e sexismo, a produção, feita para ser uma fantasia histórica, consegue se tornar
extremamente atual. Aspectos técnicos como figurinos, fotografia e construção de cenários também contribuem para a qualidade da série. A trilha sonora não fica para trás, com músicas clássicas que possibilitam a imersão em alto mar e até uma canção de Caetano Veloso, The Empty Boat, sem contar a memorável cena da invasão ao som de The Chain, da banda Fleetwood Mac.
De acordo com a revista Smithsonian, “a pirataria era um estilo de vida, uma profissão e uma causa política no início do século XVIII. Muitos dos homens que se voltaram para a pirataria na costa americana eram escravizados fugitivos e servos contratados ou colonos que não conseguiram ganhar a vida em terra”. Assim, destoando dos outros desde sua história de origem e por não ter nenhuma experiência naval, Stede ficou conhecido como “o pirata cavalheiro”. A série, então, tira proveito disso para desenvolver o lado cômico do roteiro. Com roupas nobres e chamativas, uma biblioteca em alto mar e com o lema de sempre dialogar para resolver os problemas, o
A série consegue falar sobre masculinidade e papéis de gênero de forma leve e divertida.
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protagonista não é o que se espera de um capitão nem mesmo para sua tripulação, que logo se prepara para organizar um motim e o matar, assumindo seu lugar como líder.
Tudo muda quando, também baseado em fatos reais, Stede começa uma amizade improvável com o temido e respeitado pirata Barba Negra (Taika Waititi), que adquire um inesperado interesse nas peculiaridades do cavalheiro.
O mito da heteronormatividade
O que não se fala tanto sobre os piratas na Era Dourada da Pirataria (1650 - 1730) é que boa parte deles mantinham relações homoafetivas uns com os outros. No podcast The Pride Podcast, a historiadora Rebecca Simon comenta que alguns historiadores acreditam que esse tipo de relação pode até ter sido a norma. “Piratas eram pessoas que navegavam fora da lei, independentemente e contra todas as normas sociais”, diz. Assim, ainda que os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo fossem ilegais e punidos com a morte na época, a pirataria também era.
Eles possuíam até uma forma de união civil chamada “Matelotage”, que consistia em uma maneira de testamento para divisão dos bens entre dois piratas do mesmo gênero. Isto não se restringia apenas à homens, a prova foi Mary Read e Anne Bonny, na qual Mary era uma mulher que se apresentava como um homem - inclusive, sendo a inspiração para o personagem de Vico - e manteve uma relação com Anne, que também precisava se apresentar como homem quando estava fora do navio.
A produção, que conta com diversos roteiristas da comunidade LGBTQIA+, chega para reafirmar esses dados e acabar com o mito da heteronormatividade dos piratas, o qual se instalou no imaginário popular com suas representações de homens agressivos, furtivos, sanguinários e mulherengos.
Assim, a série conta com personagens que possuem abertamente relações homoafetivase em nenhum momento há um estranhamento por isso, mesmo em 1717 (já estando melhor que boa parte do mundo em 2022) - e um
Foto: IMDb
personagem não-binário, interpretado por Vico Ortiz, que também o é.
Além disso, a série consegue falar sobre masculinidade e papéis de gênero de forma leve e divertida. Assim, em contraste com a opulência afeminada de Stede, temos a esperada hipermasculinidade¹ de Barba Negra, conhecido como o terror do Caribe. Uma história de amor nasce, apenas para entender que nada é o que parece.
Embora a série queira destacar relações masculinas saudáveis e a vulnerabilidade a que elas podem chegar, fica claro o que é apenas amizade e o que é romance, não deixando espaço para qualquer queerbaiting².
trazer uma biblioteca inteira para um navio no qual apenas dois membros da tripulação sabem ler, mostra o quanto Stede estava longe do pirata comum. Preocupado com as artes e os sentimentos de cada tripulante, até conta histórias para eles dormirem.
Stede e a luta contra a masculinidade
Com figurinos extraídos diretamente da nobreza da época (com direito a peruca branca e tudo) e um navio feito sob encomenda, o protagonista não causaria medo em ninguém que fosse saquear. O fato de resolver os problemas através do diálogo e não da violência, além de
Caracterizado por seu próprio pai em lembranças traumáticas como fraco e covarde, o sucesso de Stede na pirataria não era esperado, mas logo ele foi capaz de estreitar as relações de sua tripulação através da compreensão e comunicação. Além de Stede, o público conhece um Barba Negra já cansado do impacto que seu próprio nome carrega, buscando na companhia do mais inexperiente uma certa válvula de escape de si mesmo e de todo o peso e violência de suas obrigações.
Ao desafiar estereótipos masculinos em um meio ainda hoje conhecido pela hipermasculinidade, em seu Twitter, o criador David Jenkins reitera sobre a série: “Tudo o que nos ensinam sobre ser homem está errado”.
1. termo psicológico para o exagero do comportamento estereotipado masculino, como a ênfase na força física, agressão e sexualidade.
2. estratégia de marketing usada para se aproximar da comunidade LGBTQIA+, dando a entender que os personagens de um projeto vivem um relacionamento homoafetivo, quando, na verdade, isso nunca fica claro.
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Quem é você na
Corte Seco?
Cada um tem o seu jeito de ver um filme, seus diretores favoritos, seu gênero predileto e a sua ligação com a sétima arte, mas nada melhor do que encontrar pessoas que curtem as mesmas coisas que a gente, né? Por isso, preparamos um teste especial com base em quem faz a Corte Seco - Revista de Audiovisual, para que você entenda mais sobre seu gosto e conheça outros cinéfilos que compartilham das mesmas opiniões. Afinal de contas, quem é você na Corte Seco?
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Uma boa cervejinha ou um vinho. Um sanduíche, uma batatinha com refri. Uma pipoquinha com refrigerante.
2. Que tipo de gênero cinematográfico você curte?
Terror, suspense, true crime, ação. Drama, comédia romântica, ficção científica. Aventura, animação.
3. Quais diretores você mais gosta?
Kubrick, Hitchcock, Snyder, Ridley Scott, Afonso Poyart. Karim Aïnouz, Nolan, Kleber Mendonça Filho, Jordan Peele, M. Night Shyamalan. Wes Anderson, Tim Burton, Hayao Miyazaki, Alê Abreu, Henry Selick.
Cinquenta Tons de Cinza (2015), de Sam TaylorJohnson.
A Maldição da Chorona (2019), de Michael Chaves. Velozes e Furiosos (2001), de Rob Cohen.
Jogos Mortais (2005), de James Wan. Duna (2021), de Denis Villeneuve. Túmulo dos Vagalumes (1988), de Isao Takahata.
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5. Se tiver que escolher entre estes três filmes, qual você prefere?
4. Você ODEIA este filme com todas as forças (ou pelo menos entre os três, é o que menos gosta!):
1. Quando você assiste a um filme, qual tipo de acompanhamento gosta?
6. O que você busca em um filme?
Ser provocado, levar aquele sustinho, sentir tensão. Se sentir tocado, chorar até desidratar, viajar por outros universos, mesmo os mais estranhos e agoniantes.
Dublagens brasileiras e engraçadas, estéticas diferentes, explorar realidades e contextos diferentes.
7. Um clássico nacional que marcou a sua vida foi…
À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), de José Mojica Marins.
O Auto da Compadecida (2000), de Guel Arraes (baseado na obra de Ariano Suassuna).
Uma História de Amor e Fúria (2013), de Luiz Bolognesi.
8. Qual destes três clássicos da Sessão da Tarde e do Cinema em Casa te marcaram mais?
Gremlins (1984), de Joe Dante.
De Repente 30 (2004), de Gary Winick.
Todos os Cães Merecem o Céu (1989), de Don Bluth.
9. Qual destas adaptações você mais ama?
O Exorcista (1974), de William Friedkin.
O Senhor dos Aneis (2001), de Peter Jackson.
A Morte do Superman (2007), de Lauren Montgomery, Bruce Timm, Brandon Vietti.
10. Como você prefere assistir filmes?
No cineminha pegando estreia.
Na televisão.
No streaming, pelo celular, enquanto almoça.
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Seu gosto é peculiar, hein? Assim como Pétrus, Alexia, Cauê, Marielly e Paulo Rossi nada pra você é mais gostosinho que um bom filme provocativo e cheio de desgraças para esculhambar ainda mais a sua cabeça! Mas o que importa no final das contas é que você entende melhor do que ninguém que o cinema é acima de tudo provocação e reflexão, mesmo quando seus filmes ou diretores preferidos não são lá os mais amados e mais unânimes entre os cinéfilos.
Um bom drama, uma comédia romântica ou uma ficção científica não fazem mal a ninguém, não é verdade? Assim como Jayne, Beatriz, Bárbara, Natália, Júlia e Marcello, você entende que a vida é complexa e exige uma leitura atenta de tudo aquilo que nos rodeia. Além disso, as relações que nos cercam nem sempre entendem bem pelo que estamos passando, só a sétima arte é capaz de fazer isso, mesmo quando encara com o bom humor de uma comédia essas situações ou com muita adrenalina em uma ficção distópica! É sobre isso e tá tudo bem…
Nem sempre o live-action dá conta de suprir todas as possibilidades que o cinema é capaz de oferecer. Se você, assim como Felipe, curte uma boa animação, seja ela stop motion, slow motion, 2D, 3D, anime, etc. sabe bem do que estamos falando. Você gosta de explorar estéticas, ficções, visualidades e sonoridades diversas. Do gore ao romance, a animação pode te transportar para cenários e mundos novos, numa experiência única capaz de te causar os sentimentos mais diversos e controversos.
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Deus e o Diabo na Terra do Sol: entre a fé e o facão
Por Paulo Rossi Foto: Divulgação
Marco do cinema novo, Deus e o Diabo na Terra do Sol, mais um trabalho de excelência de Glauber Rocha, alçou seu nome aos quatro cantos do mundo. Talvez sua obra mais reverenciada, entre tantas na sua icônica carreira atemporal, o longa traz reflexões filosóficas, faz pensar sobre política, tema recorrente nos longas de Rocha, e nos leva a uma inquietante pergunta: entre a fé e o facão, como mudar os rumos do país? Ao tratar de 1964 com tamanha lucidez, Glauber demarca um país inteiro e deflagra situações que ainda hoje, infelizmente, são fortes. Mais que isso, desnuda um projeto político de nação fadado ao fracasso mesmo em 2022, quase 60 anos depois.
Deus e o Diabo na Terra do Sol narra a história do sertanejo Manoel (Geraldo del Rey) e de sua mulher Rosa (Yoná Magalhães), que levam uma vida miserável e sofrem com a injustiça de um coronel, o que logo motiva Manoel a matá-lo e fugir. Ambos se juntam a um grupo religioso liderado pelo beato Sebastião (Lídio Silva), que lutava contra latifundiários, porém um ritual “macabro” promovido por ele assusta Rosa, gerando uma consequência inesperada. Enquanto isso, os
latifundiários decidem contratar Antônio das Mortes (Maurício do Vale) para matar o grupo religioso. Manoel e Rosa, então, se juntam a cangaceiros. Consistente entre ficção, História e literatura de cordel cheia de plot twists, o premiado longa possui duração de 2 horas.
“Chocando” Durval Muniz e seu limitado conceito de “Nordeste Inventado”, que esbarra em discussões identitárias, Glauber faz um estudo profundo sobre as manifestações políticas que movimentaram o Nordeste brasileiro em determinado momento histórico, revelando raízes que ainda hoje podem ser sentidas, e que perpassam inclusive as demais regiões (cujas figuras históricas se perpetuam por meio das gerações, e não recebem o mesmo rótulo de “coronéis”, mas, muito pelo contrário, são celebrados como grandes preservadores de legados, revelando a xenofobia incrustada no país, o que não deixa a contribuição de Muniz passar despercebida).
As questões sobre pertencimento à Terra geram momentos poderosos de contraste entre a figura do sertanejo e a do “dono” das
terras, em um país que permanece “frouxo” e distante de resolver seus problemas agrários. Nem de Deus, nem do Diabo, este solo é do Agronegócio (que, por um lado, pode ser entendido como o Diabo, de fato).
Com toda a parte musical composta pelo diretor em conjunto com Sérgio Ricardo e Heitor Villa-Lobos, outros grandes artistas nacionais, o resultado é um clássico que se mantém e deve permanecer imortal pela forma como é construído e faz o cinema vivo, nos lembrando mesmo a contragosto: a arte é política! Aliás, a música utilizada como narradora rebusca a produção e traz inovação na maneira de contar uma história. E as variações entre silêncio e som fazem parte da construção deste produto. A fotografia é um elemento importante aqui também e apostando em planos amplos, abertos, a direção de Glauber explora a territorialidade, já que ela é um dos temas principais da obra. Apesar das limitações da época, vistas principalmente sob o olhar de hoje, o diretor consegue entregar um resultado impecável. O
Política, religião, ficção e realidade: a mistura perfeita que traduz o encontro entre a história do nosso sertão e o cinema.
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Ao tratar de 1964 com tamanha lucidez, Glauber demarca um país inteiro e deflagra situações que ainda hoje, infelizmente, são fortes.
ritmo do filme, interessante, pode soar “chato” para alguns e realmente não é o mais fluido de sua carreira. Ganha força da metade final com a adição do cangaço à trama. A dublagem feita pelos atores também parece bastante rudimentar, mas novamente: não à época.
Interessante reparar na fé neste tipo de produção como instrumento de rebelião (para a libertação, não para a alienação), contrapondo o único outro instrumento apontado como possível de produzir mudanças: a violência. Mesmo colocadas em diversos momentos como contrárias, ambas quase sempre andam juntas ao longo da trama. Apesar da fé popular, a Igreja andando lado a lado com a classe política chama atenção pela lucidez da crítica. Um retrato fiel: a fé popular como ameaça à ordem. E os por tantas vezes verdadeiros criminosos são aqueles que punem. Nesse aspecto, o próprio filme cita Canudos. Lembra o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto também.
Glauber nos abrilhantou com uma obra complexa e poderosa, de alcance e repercussão
mundiais. Muitas das frases marcam e ecoam nas nossas cabeças e grande parte da ambiguidade de Antônio das Mortes e de tantos outros personagens ajudaram a fazer esta produção tão “fechadinha”. O elenco se entrega em performances excelentes. A “decolonialidade”, que tanto se fala hoje em dia, Glauber já fazia há 60 anos e desconstruía parâmetros sociais e estéticos, trazendo novas ideias ao centro do debate público brasileiro. A luta de classes está presente aqui e não à toa sua obra influenciou tantas gerações (Bacurau, mais recente, às vezes parece prestar merecida homenagem). Lembremos: “o homem não pode ser escravo do homem”.
Os figurinos são outro elemento importante. Certamente muito do que hoje é visto como a “identidade nordestina” também advém de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que reafirma todos os estereótipos e personagens possíveis em meio ao sertão. Os sotaques mais reais fazem das caricatas interpretações atuais de nordestinos no cinema e principalmente na televisão uma grande piada - o que de fato são.
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Glauber traduz de forma muito mais fiel e com muito mais cuidado e “carinho” o Nordeste.
Política, religião, ficção e realidade: a mistura perfeita que traduz o encontro entre a história do nosso sertão e o cinema. Glauber Rocha produz, ao acrescentar o cangaço ao núcleo de Manoel e Rosa, um resultado inteligente e os personagens da ficção se juntam aos personagens políticos que marcaram a história do país, como Lampião, Maria Bonita e Padre Cícero. Pena que o grande confronto se resolva ao final de forma tão rápida, ainda que na verdade todo o filme o tenha feito.
“O destino é maior que a morte”, diz Manoel. E a grandeza de sua obra perpetuará Glauber Rocha alçando-o à imortalidade. Deus e o Diabo na Terra do Sol celebra seu brilhantismo ao sair da caixinha e produzir filmes que falam de um país que vive na ânsia de ser tão grande quanto deseja ser absolutamente medíocre. Entre a fé e o facão, Glauber Rocha, em 1964, já havia respondido sobre o tema que perpassa pelas questões mais básicas e fundamentais do Brasil: A terra deve ser do homem (de todos eles)!
Deus e o Diabo na Terra do Sol 01:54:25
Foto: Divulgação
Caça-palavras
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Encontre as 10 séries! Respostas: Pose, Glee, Dallas, Heartstopper, Friends, The Boys, Mad Men, Aruanas, Westworld, Lost Abaixo selecionamos 10 séries e as escondemos. Você écapazdeidentificá-las?