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Cor da pele e condição social, muitas vezes, determinam qual será a próxima vítima fatal
Quase um ano depois, a família de Geni valdo Santos, morto pela PRF em Umbaúba, ainda luta por justiça; levantamento aponta que jovens negros são a maioria dos mortos durante abordagens policiais
Por Wendal Carmo
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Genivaldo de Jesus Santos, um homem negro de 38 anos, acordou naquele 25 de maio para cumprir uma rotina com a qual já havia se habituado: antes de tomar café, vestiu uma camiseta vermelha-bordô e uma bermuda jeans na cor azul. Da janela da casa onde morava, observou que as nuvens escuras a cobrir o céu como um crepe indicavam para um dia de chuva. De lá, foi à cozinha, cumprimentou a esposa, Maria Fabiana, e seu filho Enzo. Antes de sair, ainda olhou os bolsos para certificar-se que não estava esquecendo a cartela de Quetiapina 25mg, medicação prescrita pelos médicos desde que Genivaldo foi diagnosticado com esquizofrenia, aos 18 anos. Nas primeiras horas da manhã, levou o filho à escola e depois o visitou no recreio. Prometeu à esposa que o buscaria na unidade de ensino, mas antes passaria na casa da irmã, localizada em uma das vias que dá acesso ao centro de Umbaúba, cidade de 22 mil habitantes distante cerca de 100 km de Aracaju (SE).
Damarise dos Santos estava deitada no sofá marrom da sala quando ouviu os passos de Genivaldo entrando em casa. Temendo ser algum desconhecido, levantou-se e, ao ver o irmão, disse que tinha algo a incomodando, como se estivesse a pressentir o ‘abalo sísmico’ que ocorreria na vida da sua família horas depois. Genivaldo, então, respondeu: “Levante a cabeça, vai dar tudo certo”. Ao lado da irmã, ele ainda comeu uma maçã, pacientemente, e depois pediu emprestado uma Honda Biz 125 vermelha estacionada em frente ao imóvel, com o argumento de que logo a devolveria a motocicleta. Assim como o filho, Marise também ficou esperando em vão.
No caminho de volta, três agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que faziam uma patrulha nas redondezas, abordaram Genivaldo às margens da BR101, uma rodovia importante no escoamento da produção de estados do Nordeste para o resto do país. No boletim de ocorrência, os policiais Kleber Nascimento Freitas, Paulo Rodolpho Lima Nascimento e William de Barros Noia dizem que o sergipano foi parado por não usar capacete. Relatam, ainda, que ele havia se recusado a levantar a camisa e colocar as mãos na cabeça - o que, segundo o documento, teria aumentado “o nível de suspeita da equipe”. As imagens feitas por moradores que presenciaram a abordagem, contudo, depõem contra a versão dos PRFs.
As gravações que circularam nas redes sociais dizem o contrário. Quem assistiu às imagens pela televisão pôde ter certeza que não houve reação à abordagem e, mesmo assim, ele foi derrubado ao chão, teve as mãos algemadas e os pés amarrados com fitas. Também foi alvo de xingamentos, rasteira e chutes. Depois de imobilizado por dois agentes que colocaram os joelhos sobre seu tórax, Genivaldo ainda foi introduzido no porta-malas da viatura da PRF e obrigado a inalar gás lacrimogêneo, em uma prática semelhante aos campos de concentração da Alemanha Nazista - à época, negros, homossexuais, comunistas e pessoas com deficiência eram encaminhados a chuveiros que, ao invés de água, despejavam gases tóxicos da tubulação, levando-as à morte por asfixia.
Em outros momentos do vídeo é possível ver fumaça escapando da viatura enquanto Genivaldo grita e tenta se desprender do compartimento. Nem mesmo os gritos de “vai matar o cara” e as câmeras dos celulares que filmavam aquela sessão de tortura foram capazes de impedir a ação dos militares. Tudo registrado, à luz do dia, diante de olhares perplexos que questionavam suas próprias humanidades.
Os avisos de que o procedimento poderia ser fatal, vale dizer, eram recebidos com deboche pelos policiais, como relembra a irmã de Genivaldo. “Um dos agentes dizia: ‘ele está melhor do que nós, lá dentro é tudo ventilado’. E meu irmão lá dentro, com a cabeça baixa, todo pálido”.
No boletim de ocorrência, os três agentes chegaram a admitir o uso de gás, mas disseram que o óbito não teve relação com a abordagem e o atribuíram a um possível mal súbito. “Por todas as circunstâncias, diante dos delitos de desobediência e resistência, após ter sido empregado legitimamente o uso di ferenciado da força, tem-se por ocorrida uma fatalidade, desvinculada da ação policial legítima”, afirmou a equipe.
De acordo com o laudo pericial do Instituto Médico Legal (IML), a principal causa da morte foi asfixia mecânica. O órgão, no entanto, não soube definir qual a substância que provocou a insuficiência respiratória. “Foi identificado de forma preliminar que a vítima teve como causa mortis insuficiência aguda secundária a asfixia. A asfixia mecânica é quando ocorre alguma obstrução ao fluxo de ar entre o meio externo e os pulmões”, disse o instituto.
A Rotina Do Medo
A ação dos policiais testemunhada pelos moradores de Umbaúba nem sempre é regra. Geralmente, as abordagens são feitas quando não há quem possa depor contra a conduta dos homens da lei que, em tese, têm o dever de garantir a segurança no local. A reportagem colheu relatos de moradores que, sob reserva, descrevem um cenário de medo e terror em relação à atuação das forças policiais em Sergipe. Dois dias antes da abordagem e na mesma cidade, os agentes da PRF Paulo Rodolpho e William Noia já haviam ‘tocado terror’ com dois jovens de 21 e 16 anos por estarem sem capacetes. Eles relatam que mesmo algemados foram alvos de xingamentos, chutes e tapas nos rostos dos policiais. Dizem, ainda, que os agentes “o agrediram com chutes na cabeça, no abdômen e no tronco em si” mesmo estando imobilizados.
Em meio ao desespero, o mais velho implorou para continuar vivo: “’Não me mate não, me leve preso”. Um dos policiais, segundo consta do boletim de ocorrência registrado em 27 de maio, disse que o levaria “pra mata”, sem detalhar o que isso significaria. Depois da ação, o rapaz foi introduzido no camburão e levado ao posto vda PRF mais próximo, em Cristinápolis, a 16 km dali. O jovem que estava na garupa vestia a farda da escola e, segundo conta no depoimento à Polícia, foi liberado após dizer que era menor de idade. “Após ter sido agredido, foi levado para o camburão da PRF e lá informou que era menor; que assim que os policiais tomaram conhecimento desse fato, o adolescente foi liberado; que um dos policiais lhe disse: ‘Suma da minha vista’”.
Quase um ano depois, a frase “Justiça por Genivaldo” estampada em cartazes dá o tom da luta por Justiça – um sentimento ainda abstrato para quem acompanha de perto a peregrinação de familiares pela condenação dos policiais. O juiz Rafael Soares de Souza, da 7ª Vara da Justiça Federal em Sergipe, decidiu que Kleber Nascimento, Paulo Rodolpho e William Noia vão a júri popular, mas ainda não definiu a data do julgamento (ambos aguardam o Tribunal do Júri no Presídio Militar de Sergipe onde estão presos desde outubro de 2022). Eles responderão pelos crimes de tortura-castigo e homicídio triplamente qualificado que, somadas as penas, podem chegar a quase 40 anos de detenção. O Ministério Público Federal também havia denunciado os policiais por abuso de autoridade, mas o magistrado descartou a possibilidade de enquadrá-los no delito.
PELE-ALVO
Os dois casos são apenas uma ilustração da conjuntura de proporções gigantescas e até imensuráveis vsobre a violência policial. As reclamações sobre o comportamento das forças policiais nos quatro cantos de Sergipe são recorrentes e dão rosto a uma realidade expressa em números: 9 em cada 100 mil habitantes são alvos da letalidade da polícia no estado, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados no ano passado. O estado só fica atrás do Amapá, que possui a polícia mais violenta do Brasil – lá, o patamar chega a ser quase sete vezes maior que a média nacional. A taxa de mortes por letalidade policial dos últimos dez anos atinge a casa dos 43 mil e representam mais de 12% em relação ao total de mortes violentas do país. A ‘pele-alvo’ é a negra, segundo o levantamento. Cerca de 74% das mortes ocasionadas pela intervenção policial tem um padrão específico: são, em sua maioria, adolescentes periféricos cujas idades variam entre 18 e 29 anos. O número é 5,8% maior que o registrado em 2021 – isso porque, ao passo que o percentual de vítimas brancas caiu, o de pessoas negras aumentou significativamente. A disparidade no tratamento dispensado pelas polícias a negros e brancos chegou ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Recentemente, Volker Turk, que representa a entidade, emitiu fortes críticas ao governo brasileiro e disse que o Brasil está entre os 40 países mais críticos quando o assunto é violações aos Direitos Humanos. “No Brasil, o total de mortes em encontros com a polícia caiu em 2021 pela primeira vez em 9 anos, com uma queda de 31% para os brancos, de acordo com uma fonte - mas um aumento de quase 6% no número de mortes de afrodescendentes”, afirmou.
Esses dados, contudo, podem esconder um cenário ainda mais preocupante porque há risco de subnotificação pela ausência dos indicativos de raça, cor e etnia no preenchimento dos boletins de ocorrência, segundo os pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. De acordo com Vera Lúcia Vieira, do
Observatório da Violência Policial da PUC-SP, a estrutura que sustenta os padrões e métodos de abordagem das polícias no Brasil é fincada no racismo – na maioria das vezes, os agentes tendem a considerar “suspeitos” homens negros e a prisão se dá pela cor, pela roupa ou pela forma como essas pessoas andam. “É uma coisa absurda. Os casos, que não são isolados, são de adolescentes presos por usar um tênis de marca. Um tênis que é caro para aquela aparência que ele tem. Nós temos inúmeros casos desse tipo. Mas o buraco é mais embaixo: as autoridades, quando assumem esses cargos de formular políticas públicas, elas perpetuam esse imagético de pensar a periferia e territórios vulnerabilizados como potenciais celeiros de criminosos”, destaca.
As abordagens policiais racistas passaram a ser alvo de julgamento no Supremo Tribunal Federal no início de março. O debate chegou à mais alta Corte de Justiça após a Defensoria Pública de São Paulo pedir o trancamento de uma ação penal contra um homem condenado por tráfico de drogas pelo porte de 1,5 grama de cocaína.
Trata-se de Francisco Cicero dos Santos Júnior. Ele caminhava em uma calçada no dia 30 de maio de 2020, às 11 horas da manhã, em Bauru, cidade do interior paulista. Uma viatura da polícia de SP, que passava pelo local a caminho de uma ocorrência, avistou Santos Júnior e os policiais desconfiaram que seria um vendedor de drogas – ele tentou fugir, mas foi alçado ao chão pelos agentes, que encontraram o entorpecente em um dos seus bolsos.
No auto da prisão em flagrante, os PMs relataram tê-lo abordado apenas por ser negro, “que tinham visto um indivíduo “negro” em uma cena que parecia de venda de droga”. Nunca o STF havia se debruçado sobre o que, no juridiquês, é chamado de “perfilamento racial”. Ou seja, o peso da cor da pele por trás da conduta policial - conduta que torna “suspeitos” 56% dos brasileiros, a proporção de cidadãos autodeclarados pretos e pardos.
Um Libi No Planalto
A forma de atuação das forças policiais varia conforme a localização geográfica e classe social dos ‘suspeitos’. Desde 2019, com a ascensão do desconhecido Jair Bolsonaro (PL) ao poder, as polícias passaram por um processo definido por especialistas como “bolsonarização”. Excapitão reformado do Exército, ele prometeu ‘metralhar’ adversários políticos e defendeu abertamente o armamento da população como uma política de segurança pública. Uma vez no poder, coube a Bolsonaro propor a isenção de oficiais e militares que cometerem excessos durante operações de garantia da lei e da ordem, as GLOs. “Quem estiver portando uma arma de forma ostensiva, vai levar tiro. Porque essa bandidagem só enten- de uma linguagem, linguagem que seja uma resposta mais forte por parte da sociedade”, defendeu o então presidente.
A disposição da Polícia Rodoviária Federal em subir o morro do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, ao lado do Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia) para “atirar na cabecinha” dos suspeitos de chefiar uma organização criminosa naquela favela, por exemplo, não foi vista em outubro passado, quando meia-dúzia de fanáticos bloqueavam trechos das rodovias em protesto à vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – em sua maioria brancos de classe média. Ou melhor: o estado de vigilância da corporação não foi colocado em prática durante as motociatas em que Bolsonaro não utilizava capacete – motivo pelo qual os agentes da PRF abordaram Genivaldo. O alinhamento político ao governo de plantão, explica o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, retrocede o padrão histórico de atuação da PRF.
“Esse alinhamento político remunerou a Polícia Rodoviária Federal com uma série de benesses. Eles receberam um número maior de autorização para concursos e cargos, anúncios de aumento de salários superiores a outras forças. A gente viu um alinhamento da instituição trocando pautas mais caras, trocando um trabalho da sua missão institucional, para fazer um alinhamento com o [então] presidente”, diz ao Contexto. E completa: “A imagem que isso passou para a população foi péssima. Principalmente porque vimos que, em alguns casos, a PRF aparecia fazendo escolta da motociata do presidente, um presidente branco, que foi para as motociatas sem capacete”.
Se ainda havia dúvidas, o processo de captura política da PRF ficou mais evidente durante o segundo turno das eleições quando, a despeito de uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, a corporação realizou blitzes em rodovias do Nordeste com o objetivo de impedir o tráfego de eleitores na região em que o candidato adversário de Bolsonaro liderava as pesquisas de intenção de votos. As ações, vale dizer, trouxeram uma série de implicações ao ex-diretor Silvinei Vasques, investigado por improbidade administrativa pela Polícia Federal.
EXISTE SAÍDA?
Ao assumir o governo, o presidente Lula prometeu realizar um processo de ‘desbolsonarização’ das forças policiais. Indicado para o comando da PRF, Antônio Fernando Oliveira afirmou, ao assumir o cargo, que a instituição foi “maculada” pela última gestão e disse ser preciso resgatar a sua essência. “Nos últimos anos tivemos atos isolados, alguns que eu considero abomináveis, [que] lançaram sobre a PRF o véu da desconfiança”, destacou.
A nova direção da PRF tem indicado um maior compromisso com os direitos humanos. Após o caso Genivaldo, a corporação atendeu a uma recomendação da Procuradoria da República em Sergipe e iniciou os estudos para a instalação de câmeras corporais nos uniformes de agentes. A decisão consta de um ofício assinado no dia 15 de março pelo diretorgeral substituto do órgão, Antônio Jorge Azevedo. A proposta, que busca reduzir a letalidade policial e proteger os agentes das forças sob o controle do governo federal, está sendo construída pela Secretaria de Acesso à Justiça e pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. No documento enviado ao MPF, a PRF diz ter instituído um grupo de trabalho formado por representantes de todas as diretorias da corporação para discutir o tema no prazo de 60 dias. Ao final dos trabalhos, a comissão apresentará um relatório em que apontará se há ou não viabilidade na adoção do equipamento.
“Reprisamos os esforços desta nova gestão da Polícia Rodoviária Federal, em articulação conjunta de todas as Diretorias competentes e, em especial, com a participação da Divisão de Direitos Humanos, a realização de estudos e levantamentos técnicos preliminares sobre o uso de câmeras operacionais portáteis, reforçando que a referida demanda já está no Plano de Ação da atual gestão da PRF”, diz um trecho do ofício.
Para pôr fim a essa matança, no entanto, será necessário muito mais que medidas pontuais como as empreendidas pelo Ministério da Justiça. É preciso que o sistema de justiça compreenda e mude as técnicas sofisticadas da violência policial, como perseguir jovens negros e criminalizar territórios periféricos. Porque a polícia é apenas o núcleo duro do racismo que mata corpos específicos com tiro de revólver.
Damarise Santos, irmã de Genivaldo.