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O DESENHO COMO CAMINHO PARA A CRIANÇA SE EXPRESSAR NO MUNDO

O desenho perpassa pelo corpo todo!

Crianças são inteiras o tempo todo. Enquanto nossa adultice tenta fragmentar e compartimentar nossas vidas, as crianças nos ensinam inteirezas de saberes. E é assim que elas iniciam esse importante caminho da expressão pelo desenho, com seus olhos, ouvidos, tato e corpo todo bem presente. Na possibilidade delas experimentarem objetos na vivência com o corpo, se apropriam de conceitos e sedimentam importantes processos de aprendizagem.

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Trouxemos como movimento inicial a fruição de quadros do artista abstracionista Wassily Kandinsky, justamente por entendermos que “o gosto infantil tem que ser educado da mesma forma que os outros aspectos, de maneira que a estética da sala também faz parte da configuração desse modelo de beleza” (BARDANCA, 2018, p. 69). Se tratando de obras que apresentam, mesmo que abstratamente, diversas formas circulares e sensações esféricas, tivemos como intencionalidade iniciar olhares e diálogos sobre a apropriação desse movimento tão importante para a construção de registros que comunicam.

Como ampliação de movimento e repertório, demos início às danças circulares, importante forma artística brasileira, propondo cirandas para nossas crianças. Inicialmente, apresentou-se um pouco confusa a necessidade de movimentos coletivos harmoniosos por crianças tão pequenas, gerando algumas boas risadas entre elas pelos desencontros. Entendemos que é preciso permitir e confiar em nossas crianças, da capacidade rítmica às demais descobertas.

Compreendemos também que “todos os seres humanos têm uma forma de lidar com o ‘espaço’, um ritmo ao falar ou se mexer (‘tempo’), uma intensidade na movimentação ou ao tocar em coisas ou nas pessoas (‘peso’) e um modo de controlar ou deixar seguir o movimento, que é o fator ‘fluência’ (RANGEL, 2006, p. 123).

O que nos coube enquanto professoras foi apresentar possibilidades das diferenças se harmonizarem, entre danças e risos.

Nossas crianças brincaram (e seguiram brincando) com muitas bolas e todas as possíveis brincadeiras que esse antigo brinquedo propõe. Ao constatar o peso e/ou a leveza delas, nossas crianças perceberam diferentes tamanhos de esferas e criaram infinitas brincadeiras com elas. As bolhas de sabão, tão efêmeras, também surgiram em momentos brincantes, sendo uma conquista coletiva quando uma das crianças conseguia produzir uma grande bolha levada pelo vento.

Chegamos, então, aos diálogos sobre o formato de diversas frutas, sendo proposto um piquenique coletivo para que cada criança trouxesse sua fruta arredondada preferida. De uvas a melões, nossas crianças compartilharam um pouquinho de seu gosto pessoal com seus amigos. Mesmo os paladares mais restritos não resistiram à experimentação de frutas descritas de forma tão suculenta e adocicada por seus pares. Os registros se tornaram uma extensão do vivido, com propósito e intencionalidade de eternizar sua fruta preferida.

Já a caça por objetos arredondados expandiu as fronteiras da escola, invadindo de bom grado os lares de cada criança, onde selecionaram um objeto para partilhar com seus pares em sala de aula. Bonecas, bolas, pratos e tampas, dos objetos mais diversos, o divertido foi partilhar em roda essa pequena extensão de suas casas com seus amigos. Novamente, os registros de observação ganharam outro significado após a partilha coletiva, o que levou as crianças a detalharem as minúcias de objetos que foram salientadas durante a roda de conversa.

Os desenhos ajudam as crianças a observar o pensamento uma das outras. Todas as crianças podem ver e comentar sobre um desenho. Um desenho é um compromisso com os detalhes. As professoras desejam que as crianças tornem esses compromissos explícitos, de modo que acordos e desacordos específicos possam ocorrer

(FORMAN, 2016, p. 170)

Recentemente, ao propormos um desenho de observação através de um vidro, as crianças vivenciaram alguns singelos momentos carregados de significado. A possibilidade de acompanhar como um amigo escolhe lhe retratar, expande as possibilidades de ambos os desenhistas.

O processo aconteceu com a fixação de um acetato à porta de vidro da sala, onde a criança desenhista se posicionava na parte interna da sala, enquanto a outra se propunha a ser desenhada e se posicionava na parte externa da porta. B. (4 anos e 2 meses), ao observar seu amigo finalizar seu retrato, sentiu falta de algo e, rapidamente, colocou a cabeça para dentro da sala e falou ao seu retratista “Ei! Eu quero um nariz, faltou ele (sic)”. O compromisso com os detalhes se modificam para cada criança. Enquanto para B. a falta de nariz lhe incomodou, a ausência de orelhas não foi pontuada, por exemplo

João Batista Freire (1992, p. 26) nos diz que “pela corporeidade existimos; pela motricidade nos humanizamos. A motricidade não é movimento qualquer, é expressão humana” e, enquanto professoras, acreditamos que pelo movimento nossas crianças se expressam no mundo e se entendem como parte dele.

Mas de que importa tudo isso?

No Infantil 3, as crianças vivenciaram momentos de pesquisa sobre o desenho, experienciando exploração com o corpo, rodas de conversas para compartilharem suas ideias e pensamentos sobre o objeto de estudo e, por fim, situações de registros através de suas observações.

No início do ano, as crianças apresentavam desenho mais exploratórios e circulares, com movimentos amplos que vinham de seus cotovelos. E foram através das investigações que, afinaram seus traços e colocaram em prática suas observações, evidenciando a intenção figurativa em seus registros.

Ao desenhar, nos apropriamos do objeto desenhando, revelando-o. O desenho responde a toda forma de estagnação criativa, deixando que a linha flua entre os sins e nãos da sociedade (DERDYK, 2020).

As obras de Kandinsky, iniciaram as discussões em sala de aula sobre os círculos. Os alunos do Infantil 3, apreciaram as pinturas, manipularam objetos redondos, reproduziram as obras utilizando massinha, folhas e canetinhas. Momentos como este, abasteceram as teorias das crianças, possibilitando novas observações e ideias sobre o objeto de estudo: círculo.

Professora: “Vocês gostariam de me contar algo sobre as obras de Kandinsky?”

Aluno 1: "Tem um monte de bolas voando!”

Aluno 2: “As bolas são coloridas!”

Aluno 3: “Eu consigo desenhar uma bola igual a ele!”

Professora: “E como você faria o desenho das bolas?”

Aluno 3: “Eu faria assim…” (movimento circular no ar com o dedo indicador)

Diante desses pensamentos, que surgiram na roda de conversa, as crianças revelaram suas percepções sobre o círculo em seus registros gráficos, levando em consideração as ideias levantadas pelo grupo.

“O desenho é indecifrável para nós, mas, provavelmente, para a criança, naquele instante, qualquer gesto, qualquer rabisco, além de ser uma conduta sensório-motora, vem carregado de conteúdos e de significações simbólicas”

(DERDYK, 2020, p. 45).

Diariamente, territórios investigativos são organizados em sala, contribuindo para as ideias levantadas pelo grupo, pois é durante as investigações dos materiais oferecidos nos espaços que as crianças, observam, exploram, manipulam e expõem durante as discussões suas percepções e pensamentos sobre o sujeito de pesquisa.

Através dos espaços organizados, que uma pergunta se tornou alvo investigativo por todos.

“A banana também é uma fruta redonda!”

Essa afirmação dividiu opiniões do grupo. Será que a banana poderia ter um formato circular? Como? Cada criança revelou suas observações sobre o questionamento, expondo seus pontos de vista, sejam elas, de defesa ou não da dúvida surgida.

Professora: “Vocês concordam que a banana pode ser redonda?”

Aluno 1: “ Eu não… a banana é compridinha e não redonda!”

Aluno 2: “Eu nunca comi uma banana redonda!”

Aluno 1: “A maçã é redonda!”

Aluno 3: “Mas quando a mamãe corta a banana, ela fica redonda!”

Pensando em toda a discussão, as crianças observaram suas frutas preferidas durante um piquenique que organizaram no Colégio. Uma roda cheia de amigos, frutas redondas e muitas descobertas!

Momentos como estes, ofereceram repertório para os alunos do Infantil 3 se apropriarem de detalhes de cada elemento e suas características para representar suas frutas prediletas em seus registros gráficos.

O ato de desenhar envolve

“um raciocínio que liga aquilo que se acaba de aprender com o conhecimento já adquirido, de tal modo que, dessa forma, aprendemos o que antes era desconhecido” (DERDYK, 2020, p. 75, apud PIGNATARI, 2004).

Em continuidade às descobertas, as crianças foram convidadas a buscar pelo espaço as formas circulares, após terem sido abastecidas de hipóteses, reflexões e experiências suas indagações ficavam cada vez mais palpáveis.

Professora: “Olhando o nosso parque, onde podemos encontrar figuras circulares?”

Aluno 1 : “A casinha tem bolas!”

Aluno 2: “Não, não tem! Ela é comprida.”

Aluno 1: “Tem sim, olha aqui a bola! (Apontando com o dedo para a cabeça de um prego).”

Situações como estas revelam o olhar atento às minúcias do cotidiano em que as crianças estão diariamente inseridas. No que refere-se ao ato grafoplástico, esse olhar observador, sensível e sedento por descobertas faz com que comunique em seus registros o contexto à sua volta, o que foi vivido e experimentado.

A criatividade é um valor reconhecido na vida de nossa escola, é parte de sua filosofia que se torna visível nas ações cotidianas. Expressa-se de múltiplas formas nos espaços da escola, nas experiências que são propostas às crianças, no alto nível de participação e de respeito pelas iniciativas dos professores, das crianças e das famílias, em seu comportamento organizacional, que dá espaço à construção de uma cultura criativa (DUBOVIK, 2020, p. 34).

A criatividade da criança está diretamente relacionada ao que lhe é oportunizado e ao que vivencia, sendo assim ela externaliza nas mais variadas formas: em suas hipóteses, em seus refutamentos, ideias e em seus desenhos.

O passeio pelos espaços, buscando por formas circulares, instigou essa criatividade, pois objetos que não eram de fato circulares, se tornaram a partir das intervenções feitas pelas crianças.

Observar, olhar, tocar e sentir foram algumas das sensações que as crianças apreciaram para relatar e comunicar através do registro gráfico as percepções das faces dos amigos do grupo. Em um primeiro momento, tiveram como elementos de pesquisa através de territórios investigativos: fotos de diferentes rostos humanos, livros sobre o corpo humano, lupas e espelhos.

Após as observações, puderam relatar suas hipóteses a respeito do que viram.

Aluno 1 : “Tia, a cadeira tem bola, quer ver?”

Professora: “Quero sim, me mostre!”

Aluno 1: “Pronto!” (Mostrando o círculo feito utilizando as cadeiras do lanche).

Além do conhecimento de si mesma, que a criança, tem ao desenhar, ganha compreensão do mundo. Ela desenha porque existe desenho no mundo. Aprender a ver e a executar o que vê. Tende a assimilar níveis de conhecimento e produção artística e estética cada vez mais complexos, agindo sobre os objetos de conhecimento (desenhos) de diversas culturas, tempos e lugares (IAVELBERG, 2008, p. 24).

Professora: “Querem falar algo sobre o que viram nos territórios?”

Aluno 1: “Pessoas!”

Aluno 2: “Não, o rosto das pessoas.”

Aluno 3: “Estavam felizes!”

Professora: “Como você sabe que elas estavam felizes?”

Aluno 3: “Estavam dando risada.”

Ao observar os elementos de pesquisa, as crianças ampliaram seu repertório:

Aluno 1: “Nossos olhos são diferentes!”

Aluno 2: “ O meu é verde e o dele é marrom escuro”.

Aluno 1: “Até nosso cabelo é diferente.”

Em um segundo momento foram convidadas a comunicar através da representação grafoplástica a face de um amigo e, através do desenho, representaram com riqueza de detalhes o que foi vivido e observado, levando em consideração todas as características.

O aprendizado do desenho é bastante favorecido quando as crianças podem observar como os colegas resolvem problemas para desenvolver seus trabalhos pessoais. Por isso, é importante organizar conversas em que as crianças verbalizem como chegaram até o produto final e as dificuldades que encontraram durante esse processo. Além disso, deve-se autorizar a comunicação entre os pares na sala de aula enquanto trabalham

(IAVELBERG, 2008, p. 73).

Acreditamos que esse momento de interação entre os pares, possibilitam uma aprendizagem para além do que se é esperado, pois são seres individuais, potentes e cheios de estratégias, que podem contribuir para que seus parceiros se apropriem das ideias e evidenciam em seus registros as trocas significativas para a construção e desenvolvimento do desenho, este desenho que revela, que comunica e potencializa o pensamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARDANCA, Ángeles Abelleira; BARDANCA, Isabel Abelleira. Os fios da infância. Tradução: Tais Romero. São Paulo: Phorte, 2018.

DERDYK, Edith. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil p. 151-166. In: EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George. As cem linguagens da criança. A abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Penso, 2016.

3. ed. São Paulo: Panda Educação, 2020.

DUBOVIK, Alejandra. A linha como linguagem: repertório do visível.

São Paulo: Phorte, 2020.

FORMAN, George. Cap. 10: Múltipla simbolização no Projeto do Salto em distância.

IAVELBERG, Rosa. O desenho cultivado da criança: prática e formação de educadores. 2. ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2008.

RENGEL, Lenira. Fundamentos para análise do movimento expressivo. p. 121-130. In: MOMMENSOHN, Maria; PETRELLA, Paulo (org.). Reflexões sobre Laban - o mestre do movimento.

São Paulo: Summus Editorial, 2006.

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