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100 ANOS SEMANA DE ARTE MODERNA

Uma das principais referências nas artes brasileiras tem nome, sobrenome, espaço e tempo. A Semana de Arte Moderna, que ocorreu em fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, ficou conhecida como o marco do início do Modernismo no Brasil. Para muito além de um simples marco, a semana foi a concretização de um sentimento de renovação e questionamento da arte no Brasil daquele momento.

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Podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que a semana não começou propriamente em 22 e também não terminou ali. Muito antes de sua concretização, as propostas das vanguardas artísticas europeiasFuturismo, Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo - já mostravam seus frutos na formação do olhar do artista brasileiro. A famosa polêmica envolvendo a pintora Anita Malfatti e o escritor Monteiro Lobato pode ser considerada o estopim da Semana. A artista, recém-chegada da Europa e dos Estados Unidos, onde havia estudado pintura, com o apoio de amigos, organizou uma exposição de pintura moderna em dezembro de 1917, acreditando que já era hora de a arte no Brasil abandonar modelos tradicionais. Até aquele momento, a arte brasileira era pautada ainda pela repetição de padrões europeus já consagrados. Lobato, assumindo um posicionamento bastante conservador, criticou duramente a artista e a arte modernista no artigo que ficou conhecido como "Paranoia ou Mistificação?", publicado no jornal O Estado de S. Paulo no mesmo ano. A repercussão foi imediata. Muitos artistas da época, como os escritores Mário de Andrade e Oswald de Andrade, saíram em defesa do modernismo e iniciaram um movimento em resposta a um posicionamento entendido como conservador. Surgia ali a semente da Semana.

Em 1921, alguns intelectuais, como Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, sugeriram que a comemoração do centenário da independência no ano seguinte se transformasse em um evento cultural que propusesse a ruptura com a arte tradicional e apresentasse as ideias inovadoras modernistas. Inspirados em um modelo de festival francês, o grupo dos Cinco, como ficaram conhecidos os idealizadores da Semana - Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, tinham como objetivo a renovação do ambiente artístico e cultural da cidade e a apresentação do que se fazia em escultura, arquitetura, pintura, música e literatura naquele momento.

Assim, reunindo artistas de diferentes áreas, Mário de Andrade e Oswald de Andrade na literatura, Anita Malfatti e Di Cavalcanti na pintura, Victor Brecheret na escultura, Villa Lobos e Guiomar Novaes na música, para citar apenas alguns - a Semana propôs a discussão dos valores que fundamentavam o gosto nacional e, por causa disso, causou profunda revolta na maioria do público do evento, ainda bastante afeito a um estilo de arte mais conservador.

Em 1922, a Semana teve pouca repercussão e acabou se dividindo em diferentes movimentos artísticos (Movimento Pau-Brasil, Movimento VerdeAmarelo, Movimento Antropofágico), devido às diferentes ideologias de seus participantes. Ao longo do século XX, no entanto, ela foi ganhando importância e influenciou diferentes movimentos artísticos, como o Teatro Oficina de Zé Celso, o cinema de Gláuber Rocha, a Bossa Nova, o Tropicalismo, a geração do Lira Paulistana, o Movimento Armorial.

Ainda que a contribuição da Semana tenha sido inegável para a análise crítica dos rumos da arte no Brasil do século XX, ela guardou, em sua concepção, muitas contradições. Uma delas diz respeito à proposta de romper com uma arte importada da Europa, mas as vanguardas europeias estavam na base das manifestações artísticas ditas modernistas. Outra limitação relaciona-se ao fato de, por muito tempo, ter se acreditado que apenas os artistas que participaram da Semana, em sua maioria homens, brancos, elitizados, eram modernistas. Ou ainda, imaginar que o modernismo brasileiro teve início em 22 e em São Paulo, quando, na verdade, é possível afirmar que havia diferentes modernismos ocorrendo em outras regiões do Brasil.

De qualquer forma, cem anos depois da semana, a tarefa que nos cabe é celebrar sua ocorrência, imbuídos de um olhar crítico.

O que é arte brasileira hoje?

Quando pensamos ou tratamos de arte brasileira, a resposta é inclusiva ou excludente

Há limites para o que é arte?

Quanto avançamos no que diz respeito a uma arte efetivamente brasileira?

Na tentativa de responder a essas e outras perguntas, propusemos aos nossos alunos do Ensino Médio que olhassem para a arte construída ao longo desse século e, em especial, para as manifestações artísticas atuais, analisando seu papel na construção de diálogos possíveis. O resultado dessa busca transformou-se no Sarau Uirapuru deste ano, em celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna, um trabalho protagonizado pelos alunos, mediado pelos professores e ampliado pelos olhos, ouvidos e ações da comunidade escolar.

Na disciplina de Arte, com aa 1ª e a 2ª série do Ensino Médio, construímos reflexões em torno da identidade visual criada por Di Cavalcanti para a Semana de Arte Moderna. Tal identidade é representada pelo famoso cartaz contendo um desenho de uma árvore jovem de formas muito simples. Essa árvore é representada em processo de crescimento, com raízes fortes, grandes e profundas, anunciando, portanto, que grandes transformações na forma de se pensar a arte e a cultura estariam por vir.

Após analisar o cartaz e suas proposições metafóricas e estéticas, foi lançada a pergunta para os alunos: cem anos se passaram, como essa árvore estaria nos dias de hoje? Assim, em diversos momentos de produção nos espaços da escola, os alunos realizaram suas reflexões, recriando a árvore segundo seus próprios processos criativos e adicionando camadas de reflexão ajustadas aos novos tempos.

Os alunos da 1ª série foram convidados a pensar, também, sobre que Brasil temos 100 anos depois da Semana De Arte Moderna. Num trabalho integrando Artes e Linguagens - leitura e produção de texto - eles foram convidados a fazer uma curadoria dos retratos do Brasil feitos pelos pintores modernistas e, na sequência, buscaram manchetes veiculadas nos principais jornais e revistas do Brasil nos anos de 2021/2022. O propósito era unir as pinturas modernistas a fatos recentes e refletir: O Brasil mudou em 100 anos? afinal, é no trânsito crítico e dialógico entre passado e presente que podemos refletir sobre os rumos que tomamos para o futuro.

Seguindo a mesma linha de raciocíniotrazer a Semana de Arte Moderna para o tempo presente - propusemos aos alunos a pergunta: quem vocês chamariam para o palco nos dias de hoje? A ideia era que os alunos aprofundassem repertórios própriosmúsica, literatura, teatro - através de uma análise interdisciplinar. O interessante dessa proposta é que não existe uma orientação por parte do professor ou do conteúdo; eram, de fato, estéticas artísticas que faziam sentido na individualidade de cada aluno. É sempre uma inspiração perceber o quanto eles têm a apresentar, discutir e nos ensinar.

A exemplo da Semana de 22, o diálogo entre áreas também ocorreu na proposta deste ano. Em um trabalho interdisciplinar envolvendo, principalmente, as disciplinas de Literatura, Arte, Matemática e Física com a primeira série, foi desenvolvida a coleção “Centenário da Semana de Arte Moderna: As relações entre o ontem e o hoje”, que conta com 31 NFTs.

Para tanto, os alunos foram divididos em grupos e receberam um texto produzido durante a primeira fase do Modernismo brasileiro. Após a leitura e interpretação do texto, os grupos elaboraram uma releitura da obra analisada com base em imagens criadas por eles, estabelecendo possíveis relações entre o texto lido e a imagem produzida. Como forma de ampliar o repertório visual, os alunos pesquisaram e conheceram diferentes artistas plásticos, entre pintores e escultores, que participaram da Semana de Arte Moderna e do Modernismo brasileiro, e utilizaram parâmetros estéticos desses artistas como referência para a produção das cenas visuais originais.

Para a criação das cenas visuais, os alunos criaram imagens utilizando um software de inteligência artificial. Essas imagens foram registradas como tokens não fungíveis (NFTs) na Blockchain da Polygon, uma segunda camada da Rede Ethereum. A coleção possui um perfil no Instagram com todas as NFTs verificadas como colecionáveis digitais, onde também é possível ler as poesias que deram origem às imagens. Além disso, foram criadas duas implementações em metaversos, uma exposição das obras no Spatial.io e uma exposição de realidade aumentada no pátio do colégio, utilizando o projeto “Over Reality”.

De fato, pensar o Sarau, como se pode observar nas descrições anteriores, é deslocar-se para o universo das infinitas possibilidades, já que os alunos - tomados pela autonomia artística - ultrapassam os limites do projeto pedagógico de forma extremamente autoral. Dois exemplos fortíssimos desse processo são qualificados como "impactantes", por oferecerem à audiência a chance de frequentar universos discentes plurais; "viscerais", por serem o reflexo da formação cidadã e interdisciplinar durante o Ensino Médio; e "autênticos", por revelarem, com a coragem de quem não tem medo de se comprometer diante da vida, posicionamentos políticos consistentes e coerentes.

O primeiro deles chama-se "Pindorama", construído por alunos das três séries do Ensino Médio. O vídeo "Pindorama", baseado nos ideais dos movimentos modernistas, é um manifesto audiovisual interdisciplinar, composto por inferências filosóficas - com o conceito de "violência", de Francis Wolff; sociológicas - com a metodologia de "análise de conjuntura"; midiáticas - com imagens do documentário "Ilha das Flores" (Jorge Furtado, 1989); e pedagógicas - com o combate de Paulo Freire à educação bancária. Ele desperta reflexões sobre como o "deglutir" das artes há 100 anos ainda gera efeitos na contemporaneidade e como os sujeitos, ao longo da história, abriram brechas de existência e reflexão. De acordo com uma das autoras, Julia Perrella, o vídeomotivado pelas aulas de teatro no colégio"intenta vociferar urgências contemporâneas em diálogo com os manifestos mencionados", na tentativa de valorizar a antropofagia como fio condutor, sem perder a centralidade no coletivo nacional.

O segundo, responsável pelo fechamento dourado do evento, foi construído e desenvolvido por uma das nossas estrelas do Ensino Médio: o aluno Gabriel Felipe Oliveira da Silva. Assim como "Pindorama", a obra é um manifesto audiovisual, idealizado a partir da releitura do Manifesto Antropofágico, cujo objetivo principal é romper o silêncio e defender o estatuto da arte como um direito a ser conquistado arduamente todos os dias. Integradamente, Gabriel chama para o palco do cotidiano autores-sobreviventes - Bezerra da Silva, Mano Brown, Emicida - e integra-se a eles por meio de uma poesia urbana intensa e legítima: "a arte nativa passou a ser minoria / mesmo destinada pra maioria / 100 anos da Semana Moderna de 22 / e o discurso é sempre 'deixa pra depois'". De fato, enquanto o sistema continuar produzindo "Gabrieis" como sintoma, a ruptura será sempre possível, e a educação seguirá emancipando tantos quantos queiram se aventurar pelo universo artístico das letras.

Felizmente, arte é movimento: ela rompe e ajuda a construir, ela salva não só porque conforta, mas porque incomoda. Esse foi nosso resultado, que é também indicativo de um processo contínuo: um projeto feito por muitas mãos que lutam para a construção de um mundo bem melhor.

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