Revista CIRCUITO #02

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Junho 2015


Edição #02 Junho 2015 Capa Carlos H. Andreassa do Amaral

Conselho Editorial Andréa de Moraes Barros Carlos Andreassa do Amaral Guilherme G. D. Providello Rafael Furlan Moraes Priscila Sales Rafael de Oliveira Rodrigues Ricardo Abussafy Editor Responsável Guilherme G. D. Providello Projeto Gráfico Carlos H. Andreassa do Amaral

Site da Revista http://issuu.com/circuscircuito/docs/revista_n2 Contato circus@circus.org.br www.circus.org.br

Fotografias Éder Copabianco Assessoria Técnica Fernando Zanetti Wender Urias Assessoria Contábil e Fiscal Rosana Ambrosim Colaboradores desta Edição Jefferson Moura Afranio Borges de Freitas Ana Lúcia dos Santos Rafael de Oliveira Rodrigues Priscila Constantino Sales Andréa de Moraes Barros Éder Copabianco Fernando Zanetti Guilherme G. D. Providello Vinicius Dias Zurlo Wender Urias Manoela Maria Valério Proponente do Projeto Rafael de Oliveira Rodrigues

Apoio



DITORIA

A Revista Circuito chega ao seu segundo número, desta vez em formato digital e impresso, fruto de uma parceria com a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo - através do Programa de Ação Cultural (ProAc) - e a Circus. Efetuar, logo na segunda edição, uma transição para o meio impresso é um desafio para uma revista ainda tão jovem. Tal desafio se revela ainda maior quando a premissa editorial é a de provocar interconexões não apenas sobre diferentes temas, quando procuramos abarcar os mais diversos assuntos e possibilidades de expressão, mas também pelo caráter pluriforme do conteúdo selecionado. As ferramentas digitais permitem o hipertexto, as referências acessíveis a um click, ao texto que se refere à um tema audiovisual. Já nas mídias impressas os formatos são mais estanques, compostos, entretanto, por uma originalidade onde podemos exercer outros aspectos de nossa linha guia, a de tecer (inter)conexões livres entre pessoas, contatos, locais, histórias e formas. Essa premissa que nos motivou a começar a Circuito ganha um novo contorno em um novo capítulo. Esta experiência em edições impressas retorna no próximo semestre, na terceira edição da Circuito. Desejamos a todos uma boa viagem, seja ela online pelo tablet, seja folheando tranquilamente em um clássico banco de praça!

para baixar o app de leitura do qr code acesse: https://goo.gl/gPBK4


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por Afranio Borges de Freitas

A borboleta passageira O que não faz uma bela borboleta! eis horas da manhã de um domingo S aquietado como tantos, caminhei pela rua deserta até o ponto do ônibus. O 104 me levaria à quadra da pensão onde morava no centro da cidade. Trabalhara no turno da noite e saíra da empresa àquela hora. sperando o coletivo, deixava correr o E tempo vendo as novidades da vitrine de uma loja a poucos metros do ponto de parada. Pardais vagabundos pipiavam na árvore perto. Uma borboleta azul guiada pelo Destino deixou as flores próximas e, ziguezagueando bonito, veio pousar no vidro transparente. Observei o jeito dela. Parecia olhar muito interessada os objetos expostos à venda, como uma menina favelada um presépio de

Natal. Também fora contaminada pelo consumismo geral da humana gente? vizinhava-se o meu circular. Fiz sinal, A o veículo parou. A porta abriu, entrei. O barulho dos freios havia espaventado a borboleta, e ela, abruptamente desperta do sonho consumista, agitou-se no ar, por um instante, desorientada e aflita, e, querendo fugir da solidão da rua, tomou uma decisão repentina: aproveitou a porta ainda aberta e entrou célere no coletivo, quase colada a mim. Ônibus moderno, sem cobrador, passei pela catraca ao lado do motorista, e fui sentar-me no último banco. A borboleta inquieta esvoaçou agitada de um lado para outro e, por fim, pousou incrédula e trêmula no teto.



rodante partiu quase vazio. Além do O motorista, de mim e da borboleta, apenas um cidadão grisalho observava pela janela distraidamente as lojas apressadas fluindo no sentido contrário. Pouco povo nas ruas. ecerto as pessoas recuperavam, horiD zontalmente, as baterias gastas nas folganças do sábado. Até o meio-dia, ressonariam bem-aventurados os cidadãos daquela metrópole. ais atenção prestei na borboleta. Bela M lepidóptera! me recordavam os longínquos bancos escolares. Maravilhosas asas azuis! Seriam azuis seus olhos também? ônibus voava pelas avenidas que eram O só nossas. Meu pensamento voou longe, longe, várias décadas atrás, à procura de uns olhos azuis sepultados no cantinho mais escondido da memória. esde muitos anos era meu costume D passar férias num famoso balneário catarinense. Certa vez, na praia, estendido sobre uma esteira, após um mergulho, aquecia-me ao sol, feito um jacaré solitário do Pantanal matogrossense. ma bola de borracha me bateu nas U pernas. Sentei-me. Linda banhista veio apanhar a bola benfeitora chutada pelo irmãozinho. Descerrou belo sorriso. Sorri também. Trocamos rápidas palavras. Ela voltou para junto dos pais sob uma barraca próxima. esde aquele momento não mais olvidei D aqueles olhos de turquesa. ônibus passou por um buraco do asO falto, sacolejou. Assustada, a borboleta alçou voo. Deu duas voltas, escreveu um oito no ar e veio pousar, tentadora, mais perto de mim. Ao alcance de minhas mãos. Tivesse mãos de mágico a pegaria facilmente. As belas asas azuis pareciam dois leques japoneses abanando vagaro-

samente um rosto invisível. Hipnotizavam-me. a praia, também fora imanizado por N aqueles olhos azuis. A dona deles brincava com o maninho, me olhava e sorria. Eu retribuía o olhar consumindo com vagar e gosto aquele inesperado momento de felicidade. s pais, indiferentes a tudo o que ocorO ria à volta, tagarelavam sobre tudo, como dois adolescentes. vento pelas janelas abertas agitava as O asas da borboleta. Alheios ao belo quadro que só eu contemplava, o motorista abria a boca num bocejo, e, num canto do ônibus, dormitava o velho. m dado momento, os pais deixaram o E guarda-sol e foram tomar um banho no mar. Os cabelos dourados da filha ondulavam ao vento da praia. proximei-me da borboleta dourada de A olhos azuis. Conversamos alegremente por algum tempo. Apaixonara-me instantaneamente pela encantadora alemãzinha. Disse-me que morava com os pais no interior do Estado. Nas férias, viajavam regularmente para o litoral catarinense. s pais voltavam do banho. A pedido O dela, regressei depressa ao meu lugar. Pouco depois, a família deixou a praia. fastando-se de mim, ela se virava e A sorria, caminhava mais um pouco, voltava o rosto e sorria. Mandava-me adeusinhos disfarçados. Até que desapareceu na floresta colorida das barracas e guarda-sóis. o dia seguinte, pela praia toda a procurei. N Inutilmente. uito curto foi o nosso bate-papo, não M sabia em que hotel estava, impossível localizá-la. Obstinado, voltei a procurá-la na praia por uma quinzena. Esforço em vão.


borboleta dourada devia ter voltado A para a cidadezinha dela. Nos verões seguintes, tornei a procurá-la pelas praias da região. Nunca mais a vi. Admirando a misteriosa borboleta pousada no encosto do banco dianteiro, sentia-me envolvido por uma doce brisa poética. Fantasiei sobre um poema famoso. aqueles doces momentos da juventude N uma borboleta de olhos azuis surgira no meio do meu caminho. No meio do meu caminho surgira uma borboleta de cabelos dourados. Tão junto a mim, ao alcance dos meus dedos. Como pude perdê-la? idoso puxou a cordinha, o ônibus paO rou no ponto. O cidadão desceu. A borboleta se alvoroçou toda e saiu também pela porta aberta. O coletivo reiniciou a caminhada. Pelos vidros traseiros, via lá longe a borboleta serpenteando graciosa no ar, me dizendo adeus. O veículo virou uma esquina. Não mais a vi. Foi-se a borboleta passageira.

Tudo na vida é passageiro. este grande ônibus esférico que no esN paço gira sem rumo, somos todos involuntários passageiros. A parada final do percurso só a conhece o Grande Motorista. Que passageiro não é. quela noite, na cama de uma pensão da À cidade grande, distante centenas e centenas de quilômetros das praias catarinenses, tive um sonho em que bailavam ao meu redor uma multidão de borboletas. Borboletas douradas, borboletas azuis. ora viciado em jogo, tacava, logo de maF nhãzinha, na borboleta, do primeiro ao quinto. o dia seguinte, ao voltar para casa, enN contrei no ônibus o mesmo cidadão idoso, o habitual companheiro de viagem. Ao seu lado, sentei-me, fizemos amizade. Era um professor de faculdade, entomologista. erguntei-lhe se observara a lepidóptera P do dia anterior.

uão efêmeros os vôos seus em torno de Q mim! Quão brevemente na minha vida entrara e dela saíra! Por fugazes instantes embelezara os meus olhos, como aqueles olhos azuis da praia catarinense.

Respondeu-me sem entusiasmo:

ue distantes caminhos estará percorQ rendo neste momento, neste preciso minuto, aquela borboleta dourada de olhos azuis?

Diacho!!!

- Ah! sim, aquele era um belo macho da espécie Morpho cypris. Um borboleto ???!!!

Consolei-me.

quele Galileu sonolento, sentado ao A meu lado, podia olhar a Lua, quantas vezes quisesse, mas, certamente, não veria o luar.

essas horas, qualquer filosofia de boteN quim serve de consolo. Toda frustração dói, mas passa. E os anos tinham passado.

estruiu no nascedouro, sem saber, o D Drummond tardio que despontava em mim!


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“CANCIONETA DA PAQUERINHA” (VINICIUS DIAS ZURLO)

Vamos passear juntos amanhã à noite na quermesse da igreja Tem pastel e guaraná e na pescaria eu vou ganhar um vestido branco um laço de fita um vinho barato um porta retrato que é pra eu me lembrar do dia em que peguei em sua mão pela primeira vez


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Outro dia, inevitavelmente tive que ir ao supermercado, lugar repleto de produtos que me causam vertigens, devido ao excesso de ofertas. Enxurradas de anúncios que vorazmente tentam me devorar ou, o que é pior, querem que eu os devore a todos ilimitadamente. – Se consumir guloseimas serei feliz, se usar tal pasta de dente meu sorriso atrairá todos os homens que desejar, o desinfetante X transformará minha casa no ambiente mais saudável e alegre do mundo... Não posso nem mesmo ter meus próprios delírios de Poder e Sedução, eles já vêm embalados em caixinhas multicores e neons – estão à venda nos supermercados. De repente, uma criança desconhecida, de no máximo quatro anos de idade, me chama à atenção com a seguinte e pergunta: – Você viu a minha mãe? Fragmentos de respostas passam pela minha cabeça... – Criatura, eu nunca te vi. Como posso conhecer tua mãe? – Supermercado vende muitas coisas, mas mãe eu nunca vi. (Ah, mas ele é só uma criança). Outra indagação me invade advinda de alguma dimensão daquele inesperado encontro: – Seremos nós, consumidores, inocentes crianças perdidas em um vasto mundo de ilusões, repetindo em cada gôndola a mesma pergunta? Por fim, com voz trêmula, formulo uma resposta para dar à criança: – Vamos procurá-la. E minhas formulações me atormentam. Talvez possamos reconhecê-la se escaparmos dos cantos das sereias nesse mar de possibilidades chamado “supermercado”, ou também possamos nos deparar com uma verdade crua, sem sabor, cinza e escura como nos revelou Criolo “eu cresci no mundão, onde o filho chora e a mãe não vê”. por Ana Lúcia dos Santos

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a criança desconhecida, de no máximo quatro e chama à atenção com a seguinte e pergunta: nha mãe? um sapo engasgado na minha vida. Ele espostas passamTem pela minha cabeça... me atormenta existência. Não salta, se esunca te vi. Como posso conhecer atua mãe? conde; silencia-se. É um sapo que vende muitas coisas, masnão mãecoaxa, eu nunca vi. não engulo, está camuflado entre as coisas ó uma criança). em decomposição. Já o despachei para lono me invade advinda de alguma dimensão dage, mas ele sempre retorna. o encontro: Esse bicho não perdidas salta, não consumidores, inocentes crianças empula, apenas aparece e diante dele encaro o de ilusões, repetindo em cada gôndola a mes-o vil, o repulsivo e o pusilânime.

oz trêmula, formulo resposta para darde à Quintana os saNos uma sonhos fantásticos pos são incríveis acrobatas, que despertam á-la. a inveja dos imponentes elefantes. Mas este sapo não é metafórico, ulações me atormentam. Talvez possamos re-nem metafísico, é marrom e rajado demar verde. caparmos dos cantos das sereias nesse de Gosmento e repugnante, não tem nada hamado “supermercado”, ou também possa-de poético e muito menos Não é uma representação r com uma verdade crua,filosófico. sem sabor, cinza e ou metáfora, é físicoonde e assim s revelou Criolo “eu cresci no mundão, o permanece. mãe não vê”. É um sapo que não se explica. Se fosse uma perereca, me apoiaria no bom e velho Sigmund. Mas é um sapo! Sei que na cadeia

por Wender Urias

alimentar tem papel de destaque, mas para mim é um estorvo e nada mais. Não me sensibiliza o fato de caçar moscas e pernilongos. Pois estes mato com incensos, repelentes e raquetes, mas contra o sapo não consigo levantar um dedo. Se coragem tivesse o esmagaria, mas por compaixão ou recalque apenas indico o caminho da rua. Não levanta bandeiras, mas invade meu quintal. Fica na fronteira da propriedade, rente ao muro. Camufla-se entre as folhas e se esconde no gramado. É um sapo gosmento, feio e persistente. Três vezes botei-o para fora e por quatro retornou. Pergunto-me: por quê? Por que comigo? O que eu fiz? Dentre tantos lotes e diversos quintais, por que ele encasquetou com o de número 63? É um inquilino repulsivo, não o suporto mais! Inferno. Ou some o sapo ou mudo eu.


Por Eder Capobianco Antimidia

Like it, yes, I do, oh well, I like it, I like it, I like it!


13 Por Eder Capobianco Antimidia

Os abutres

e a carne fresca

Porque ele não tinha a menor ideia do que fazia em mais da metade do tempo, e achava que não tinha nada a perder, ele – somente ele – foi lá e fez – mas a Márcia, o Renato e a Paula não guardaram segredo, e agora o Cenora teria muito a perder; porque na Educação Física ninguém jamais queria ele no time – quando te escolhem primeiro você é o vencedor, e o último é

e um monte de gente o chamava de lorpa. E a velocidade da informação + o Facebook + a falta do que fazer de quem não faz nada tinham colocado ele no topo dos trending topics da escola. Porque para ele tinha sido legal, e ele era o maior de todos, e não falava nem que sim nem que não, só dava uma risadinha enigmática; porque o Cenora não tinha a menor ideia do que tudo aquilo significava, sentia-se um astro. Como em Hollywood, quando os artistas percorrem o tapete vermelho e todo mundo quer tirar fotos e fazer perguntas e estar ali com eles. Mas agora ninguém queria

o último, e ninguém o escolheu; porque a diretora queria falar-lhe depois da aula, e a professora o tratava de maneira diferente, disse que ele não precisava jogar e podia ficar olhando do banco. Como se ele fosse o próprio Renton, destinado a um fim triste e esquecido. Como em Kids, quando os esqueitistas ficam com as garotas bonitas e felizes. Quando ele falou para a Márcia, o Renato e a Paula que tinha conseguido a maconha, todos acharam legal, mas ninguém sabia o que fazer com aquele montinho de mato prensado. Porque tudo o que eles sabiam sobre maconha tinham visto nos programas da History e da Discovery. Era só enrolar, fumar, esperar o mundo começar a mudar de cor e a polícia chegar. Atrás da quadra, na hora da saída, enquanto estiver todo mundo lá no portão. Como a Márcia tinha asma e o Renato e a Paula estavam com medo, só o Cenora fumou. E agora ele era o garoto estranho drogado da oitava série, pronto para pegar uma arma e sair atirando para todos os lados, porque ninguém gostava dele

saber como tinha sido, nem se ele tinha mais, nem se ele ia atrás da quadra todo dia, por causa do que disseram a Márcia, o Renato e a Paula – que ele tinha dado um trago e tossido tanto que caiu rindo, e os três foram embora assustados e não fumaram. E o Cenora jogou o que sobrou fora porque pensou que já estava muito louco, e o jardineiro achou aquela coisa e levou para a conselheira que descobriu tudo. E agora ele não jogava bola, ficava sentando num canto esperando alguém dizer qual era o próximo passo. Porque ele não tinha a menor ideia do que estava acontecendo, e estava gostando de ver todo mundo cochichando


e o olhando, não dizia nada, apenas sorria. Quando ele entrou na sala da diretora, a professora também estava lá, e a conselheira, e o seu pai e a sua mãe, sentados com cara de que o fim do mundo era só questão de mais uns tragos, e o Cenora pensava em como fora difícil quebrar aquele mato, e que as folhas de caderno não quiseram grudar uma na outra, e que a folha começara a pegar fogo, e ele sentira a mão queimando, e engolira aquela fumaça, e tossira tanto a ponto de perder o ar, ficar tonto e cair. Porque tudo era uma questão de ver o mundo com a mente aberta. Como o Russell Hammond em Quase Famosos ou as músicas do Planet Hemp. Porque a diretora disse que a maconha é só o começo, e que se eles perdessem o controle agora perderiam para sempre. E a mãe dele começou a chorar, e o pai balançava a cabeça, e a conselheira queria saber se ele tinha conseguido aquilo dentro da escola. E o Cenora não estava mais no tapete vermelho, não sabia o que dizer, e começou a chorar e correu para abraçar a mãe dele, que chorava também, e agora o pai dele chorava, e a conselheira e a diretora colocavam a mão no rosto

e olhavam com compreensão. Porque Christiane F. não é só um filme barato de trinta anos atrás, é a verdade, é o que acontece, e a mãe dele via acontecer todo dia no programa da Márcia Goldsmith, e o pai dele tinha um primo que estava preso que tinha começado igualzinho. Como todos aqueles roqueiros drogados que morreram com 27 anos porque fumaram um baseado na escola. E tudo porque ninguém fez nada no começo, e eles fariam. Porque o Cenora precisava entender o quanto aquilo era horrível e o quão perto ele estava do abismo. Porque a Márcia, o Renato e a Paula tinham sido amigos dele contando tudo para a diretora. Porque todo mundo só queria o bem dele. Porque ele tinha uma vida inteira pela frente. Porque ele era inteligente, legal e bonito. E por causa disso ele só tomaria uma suspensão, e teria que ir à psicóloga, e não poderia mais jogar vídeo game nem sair do eixo escola-casa /casa-escola, ou ir para a Disney nas férias, ou ao clube no final de semana, e teria que dar a senha do Facebook para o seu pai, dormir cedo, levar o cachorro para passear e limpar o quarto o resto do ano.


15 AN

IN CON TRO LÁ DE FUGIR DE MIM ESSE SER LIMITADO;

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INÍCIO, MEIO E FIM.

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PROGRAMADO.

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(Autor: Jefferson Moura)

VEL DESEJO

TE DESEJO

...MAS SIGO OLHANDO DENTRO DO FUNIL.

TRANSFORMAR ROMPER O O CERCO REINVENTAR SER ILIMITADO!

Por Eder Capobianco Antimidia

Aqui somos todos iguais!


16 por Manoela Maria Valério

RISCO Uma queda e começa outra história. Mas e esse sabor... de onde vem? O circo para, ainda que parar possa ser apenas um estado do movimento. Uma pausa. Um repouso após a queda. Um pedaço do tempo. Ele remonta agora, em cansaço, alguns cacos daquilo que em seu corpo habitava. Mas aquilo era o que? Era quem? Uma multidão solitária, uma artista, uma história que são tantas... Talvez nenhuma. Ele, o circo: -Depois da morte é o que mesmo? Como é essa história de depois de agora? -Não vamos conseguir sem ela! Mas... não faz sentido, já que um agora lhe habita a presença absoluta...parece até que a vida continua depois que... (...) Ela acorda numa dessas manhãs com um sonho no gosto da boca, sem saliva ou música. Um sobressalto claro como se entendesse: é inevitável. Foi-se o dia em sonho, uma mulher sem rosto. A mais linda do circo – era o que inventava para si para ter uma alegria. Uma trapezista vestida num figurino vermelho, fulgurante, destas bruxas que enfeitiçam o público. Ela sobe e dança na energia da lona. Abraça a corda, a barra do ferro puro. O público treme em silêncio nos volteios do balanço circense. E salta, e dança, e brinca.


A artista, então, inicia a preparação para o grande final. Inspira todo o ar que lhe cabe e solta lentamente pelos lábios minimamente abertos... Está tão leve que o estômago gela. De pé sobre a barra segura nas cordas paralelas e impulsiona com tamanha força que o corpo todo toca o céu do circo. E a lona inteira vibra como a pedra quando lançada sobre a água. Vai fazer a queda que é rara e a mais bela. Num lampejo que dura a duração menor do mundo ela erra. E erra como se fosse um sonho do qual pudesse acordar aliviada. Ela erra. Ela era. Nos segundos que pertenciam ao espaço entre o trapézio e o picadeiro sente o calafrio mais quente que lhe era irreconhecível. A queda de uma lágrima no rosto brota ao tempo em que ela escorre rumo ao chão. Do silêncio faz-se um ruído em uníssono sufocado do público na orla fúnebre. Emudecido como num cortejo. Era vida. Era morte. Eram dribles. E aquela noite encerra, dorme o circo que despertou noutra cidade... após o estranho sabor de um espetáculo forjado na morte.

(Trecho de Passagens Circenses, dissertação de mestrado, UFF/RJ, 2007) Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista/SP, Mestre e doutoranda em Psicologia pelo Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense/RJ. Possui cursos e formações em artes cênicas. Sócia-fundadora, no ano de 2001, e integrante da CIRCUS – Circuito de Interação de Redes Sociais até 2012, participando da gestão da instituição, projetos e eventos sociais, artísticos e culturais. Atua na área de docência e clínica.


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Filmar o áudio do samba de roda...e filmar Cla e Du sambando alucinadamente (como aquelas vezes que vi em festas). Sincronizar o som com o manifesto do TomZé. <<corta>> A negação do Brasil Catatau...Catatau...(lembrar: buscar em minhas anotações trechos do Catatau!!!). Enquanto leio trechos em off do Catatau, filmar trilhas de formigas...grandes, pequenas, em close-up...fade-in, fade-out...catatau.

2º Ato Past continuum TV nos dias de hoje...eu bem próximo à câmera...vitrola rodando e tocando Cartola, Caymmi...livros...filmes...discos...numa prateleira organizada. Deve estar tudo bem rápido...cortes, edições...à luz vermelha!

Cena Câmera com anteparo negro...ao fundo se ouve o diretor gritar: “(...) silêncio no estúdio...Silêncio...Si-LÊN-cIO!.....gra-vando!” O anteparo é retirado e mostra uma estrada de terra, sem ninguém...vazia...A câmera caminha lentamente (sem tremer, pqp)...lentamente um belíssimo plano sequência que termina com um puta close de um mata burro (...cela de uma cadeia...foi que eu...Caetano estourando!) >> fotos de uma Revista qualquer com fotos de Neil Armstrong, caminhando...>>


Cena Vários takes de LP’s...rodando rápido, com muitos cortes..bule...água fervendo...café...vapor...café...açúcar...sangue!!! sangue!!! Quanto sangue tem em nosso açúcar: - Quanto sangue, meu deus!!! Aqueles pobres, pretos, mulatos, caboclos, sujeitados aos podres poderes...que mundo é esse...

3º Ato Diáconos (diálogos?) embriagados sobre a legenda de qualquer filme estrangeiro...arrancar a página de um livro nacional..Drumond talvez... - usar pra limpar a bunda! - bater essa página no liquidificador...bater bemm...e jogar fora.

- Essa é a juventude que diz que quer tomar o puder?? Entra em cena o personagem negro, magro, mulato, mirrado – e metido à intelectualóide chamado Jean Jacques. Reprodução sonora do barulho do rio... do rio Amazonas...do rio do Naná Vasconcelos! om mani --- salão de atos --- padme hum humm (humm..) ¬VOCÊ NÃO ETENDERAM NADA!!! NADA!!! – esperando Godard (ou Godô?). Territorialização não-representativa...totalmente encenatória, mas cruelmente nua e de si mesma (mesmo que ao contrário)!!!!!!!!!!!! Toda vez que JJ aparece (porra: Jean Jacques!), ignora os demais participantes da cena...mas se insere friamente nos diálogos, nas conversas...sempre olhando prum espelho, mirando e arrumando os cabelos!!

2º Ato Dois (ou mais) personagens na iminência de arrancarem numa disputa...numa corrida...eminência...vai...(mas sem nunca concluírem seu ato). Esse movimento deverá durar muito tempo (vozes embaralhadas num diálogo indiscernível ao fundo)...durar muito tempo.... muito tempo...até que quem assista se canse. <<áudio aqui será de composição>> - OU, cê já escovou o dente? - Não. Já leu Caosmose? - Vai...vai... Egberto Gismonti: - Meu, sublima! (Notas de um cineasta em formação às seisemeia. De: Rafael de Oliveira Rodrigues)


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Ela é porco no horóscopo chinês, todavia serpentes eram sua fascinação. Por isso, observava-as pela janela. Uma cobra gigante se mostrava parcialmente por detrás daquele morro azul. Esse momento era o ápice do seu dia escolar. Fora dali, do mesmo modo, em vários momentos de sua vida passava com esses animais reconhecidamente assustadores, quiçá mortais, mas extremamente interessantes. Claro, numa enciclopédia de pesquisa escolar. Imaginava como seria tocar sua pele – pareciam escamas! Seriam geladas? Ásperas? Lisas? E mais uma coisa a instigava: como pode um bicho não ter pés e andar tão rápido? De cima de um banco, na varanda da casa da roça, viu com seus próprios olhos uma delas se safar da foice malévola de sua avó! E olha que aquela senhora não era de brincadeira. Nem mesmo os enormes porcos, com duas orelhas, uma boca grande cheia de dentes e, o mais extraordinário, com quatro pés e pernas grandes, conseguiam vencer sua força... Pobres animais! Gritavam – ora se gritavam – tão alto que a menina não conseguia se acercar, como costumava fazer em face de qualquer ação que envolvesse algo que não conhecia. E não importava para quão longe fosse, para debaixo da cama por exemplo, ainda podia ouvir aquele grito de desespero. Grito sabedor do inevitável. Capitulação. Fim. O momento em que o grito, esvaindo-se aos poucos, finda finalmente com o cerrar dos olhos irresistentes sem vida. Por pior que pudesse parecer a situação, atônita espreitava a menina, afastada pois sim. O medo não conseguia vencer sua curiosidade. Assim, pode presenciar um momento de transformação – do ser vivo ao ser morto. Acabou o porco. Chegou a linguiça. Não muitos anos depois, podia encontrar algum paralelo daquela cena com suas elucu-

brações. De tantas voltas que dava sua mente por ali e acolá nos morros azuis avistados pela janela, se sentiu porco. Enfileirada, assustou-se com a estridente e áspera toada de uma voz: “Menina acorda! Presta atenção! Parece que está no mundo da lua!”. “Puxa vida, quem me dera...!” – pensava. Até que viajava por aí, mas estava mesmo é na escola. Pensava em responder: “Não. Estava no mundo das serpentes... E também pensando na morte de um porco na casa da minha avó. Tudo muito mais interessante do que esta aula sobre raiz quadrada, que a gente não consegue entender para que serve!” Calou-se, porém, aborrecida.


Aquela situação era muito contraditória com os momentos precedentes ao início das aulas. Esse descontentamento parecia improvável, mesmo impossível, quando se preparara para ao ano letivo e comprara seu material escolar. Passara tempos e tempos apreciando os cadernos, as canetas de cores variadas. Tudo indicava que adorava a escola... Mas claro que sim. A escola que imaginava em seus devaneios... Durante as férias escolares esquecia, talvez por força de sua vontade de saber das coisas e de se comunicar, que naquele espaço era obrigada a pensar e comunicar-se num formato determinado, que lhe custava muita energia,

garantia-lhe pouco prazer e resultava sempre em um grito porco desesperado de resignação... Cantar o Hino Nacional. Entrar na fila – uma de menino e outra de menina. Silêncio e imobilidade. Que sentido havia em ir para lá todos os dias se a cada dia um pedacinho de si morria através da intolerância e opressão ao invés de permitir-lhe o exercício da liberdade? Por que haviam de ficar quietos, presos na sala de aula quando não se apresentasse um professor? Por que aquela colega estúpida se prestava ao papel de anotar o nome de quem conversasse nesses períodos? Por que não aprendiam sobre o tatu e a cobra cipó, que de vez em quando via no quintal de sua avó, em vez de aprenderem sobre ouriços do mar na aula de Ciências? Por que não achavam bonito quando ela pintava seus morros de azul nos desenhos de Educação Artística já que os via assim? As respostas dadas a suas perguntas fizeram sua extraordinária visão de ver azul nos morros adormecer por algum tempo. Passou a ver tudo verde mesmo. Por outro lado, passou a colorir suas notas e ficou boa em um tipo de matemática. Quatro bimestres. Nota máxima: 10; média mínima para aprovação: 5. A soma tem que dar no mínimo 20 no final do ano. Os números mais altos eram atingidos no início do ano, quando ainda se iludia que poderia ser interessante a vida ali dentro. Depois, de acordo com seu fôlego, buscava outros números para completar sua conta. Fazia-se de serpente. Esquivando-se daqui e dali. Ser serpente parecia ser porco. O fim inevitável e incontestável. Resignação. Grito desesperado em vermelho, sangue, olhos cerrados. Acabou o porco.

por Andréa de Moraes Barros


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Se só guardamos lembranças dos momentos tristes ou alegres: enlouquecemos. Felizmente existem os restos. Geraldo de Barros

Decerto os hábitos das cidades deixaram outras lembranças que não apenas as tristes ou alegres. A experiência da vida urbana foi também capaz de produzir efeitos menos úteis, mas, nem por isso, menos relevantes. Desde a lixeira no canto da casa, até seu destino final, o lixo carrega a memória daquilo que não teria mais serventia para as luzes da cidade.

xão estética mais conceitual e que dialogue com as realidades urbanas contemporâneas.

O que se produz como resíduos das relações nas cidades modernas, refugos inúteis ou dejetos putrescentes, materializa-se e acumula-se como efeito da vida urbana. Todavia, não são apenas estas formas mais conhecidas de produção de sentido sobre o lixo que vemos atravessar o nosso cotidiano. Enquanto a primeira edição da Mostra o Lixo esteve envolta na materialidade do lixo sendo utilizada como suporte ou mesmo linguagem artística, a II Mostra o Lixo pretende ocupar-se também de outros refugos. Trata-se de aliar os restos materiais e imateriais, sejam eles discursos soterrados, obras esquecidas, subjetividades marginalizadas, enfim, memórias urbanas deixadas de lado.

Essa diversidade de refugos da memória encontra ecos nas diversas produções artísticas, as quais por meio do lixo – entendido como aquilo que não é útil à sociedade – se propõem a pensar os restos da memória como uma forma de vivenciar e pensar o mundo moderno. O lixo, esse personagem, também apresenta outras expressões e sensações no cenário cultural. A produção de diferentes segmentos como o cinema, as artes cênicas e as artes plásticas pousa sobre essas montanhas de dejetos para produzirem a sua fração de realidade.

Se na edição inaugural a mostra teve como tema a utilização do lixo como inspiração ou tema de produções artísticas, em sua segunda edição a proposta é produzir uma refle-

Abordar não apenas os restos materiais, mas também restos imateriais de uma trajetória, mais precisamente, aquilo que trajetórias sociais ou íntimas “varrem para debaixo do tapete” da história da humanidade. Trabalhar a concepção de que lacunas também falam sobre os conteúdos preenchidos de nossas histórias.

Para além dos discursos pedagógicos socioambientais, vemos a relevância de trazer ao público o que as artes têm a mostrar e a expressar sobre o lixo. Entender como essas artes se realizam, bem como suas infinitas possibilidades de expressão, pode também trazer um repertório diferente para olharmos para estas questões tão importantes.

Equipe de produção da II Mostra o Lixo


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por Guilherme Gonzaga Duarte Providello1

“Cidade Cinza”, “PIXO”, “Pixadores”, ou mesmo o estrangeiro “Exit Through the Gift Shop”, são filmes que retratam o recente boom da street art, sua entrada no radar da arte e da cultura: filmes que trazem uma questão atual sobre o uso do espaço urbano; sobre visibilidade de certas expressões artísticas. Fazem-nos, também, questionar a entrada dessa forma de expressão subversiva no universo da Arte: grafite é arte? Pixo é arte? Definir “Arte” talvez seja uma das tarefas mais difíceis a se fazer no campo da arte. “Provocação” que reverbera com os filmes: a Arte pode ser pensada enquanto estrutura social. Existe hoje um circuito de Arte, circuito tal que qualifica objetos, obras advindas das mais variadas expressões artísticas que “se tornam” arte apenas ao adentrarem as galerias. Em vista disso, podemos pensar em Banksy e sua street art de contestação: a entrada de suas obras nas galerias criou uma onda de valorização dessa expressão antes marginal, de tal forma que se ouve histórias de pessoas que tiveram seus muros roubados na Inglaterra por servirem de suporte a alguma obra do artista. Ou mesmo em Arthur Bispo do Rosário, que produziu para Deus e hoje é pensado enquanto “artista”. Vejam só: ao ter sua obra exposta e validada (palavra importante, validação), Banksy foi promovido de enfant terrible das ruas – do grafite – a artista. É um atributo que é dado à obra e ao seu autor por toda uma instituição artística que inclui críticos, curadores, galerias e, claro, consumidores. Existe um mercado de arte: mercado que justifica a retirada de um muro do centro de Londres para ser exposto em uma galeria ou monetarizado pela adição à coleção de alguém. Charles Esche

– curador do museu Van Abbemuseum, na Holanda – disse em uma entrevista ao site “Outras Palavras”2:

“Ainda há pouco tempo ouvi alguém comentar que a verdadeira felicidade de comprar uma obra de arte reside na negociação do preço e no momento de vanglória ao jantar. O objeto, aqui, não é grande coisa – o que importa é o processo de consumo.”

Consumidores de arte. A expressão artística é ofício. Se produz uma obra como se produz lâmpadas ou cadeiras. Tais quais lâmpadas e cadeiras, obras de arte têm uma demanda de compra que permitiria ao autor manter-se dedicado ao ofício. Fujamos do romantismo de pensar o artista enquanto necessariamente excluído de um mercado de trabalho, idealizando a arte como algo puro que se deve fazer estritamente por amor, sem buscar retorno, “Arte pela Arte”. Mas aqui entra uma perversão desse espaço: só é Arte o que é validado pelo circuito de artes, pela instituição artística e, consequentemente, pelo mercado das artes. O urinol era apenas urinol até ser assinado e exposto por Duchamps3. A questão que essa obra nos coloca é especificamente essa: torna-se “Arte” o que é validado pela instituição artística, todo o resto é apenas “expressão artística”, sem valor. O urinol de Duchamps é vendido por três milhões de euros, o grafite no viaduto não tem valor. A “etiqueta”,


ra social que é o circuito de arte). A única forma de fazer “arte pela arte” talvez seja não fazer arte alguma, não permitir que a obra seja sequestrada. Mas e então, ainda assim, a arte teria seu papel social? Numa sociedade da informação como a em que vivemos, talvez possamos vislumbrar a possibilidade de construir espaços outros de circulação para essas obras: dificilmente as intervenções de Banksy no muro que separa Israel da Palestina5 serão “recortadas” para o prazer do mercado de arte. Ainda assim, cumpre com seu caráter social e político.

validação pela estrutura social que é a arte, monetariza, torna objeto de desejo e, consequentemente, coloca um tipo de expressão artística dentro de um regime de sensibilidade que nos diz quais expressões artísticas “valem” e quais “não valem”: quais devem ser vistas como arte e quais são qualquer outra coisa. Entramos então em um campo minado: o artista deve se desvencilhar do mercado para produzir arte pela arte? Deve admitir o caráter mercadológico de sua obra? Com essa admissão, propor obras que contestem o mercado de artes4? Não há respostas. Mas há aí uma questão interessante: observando desta forma o mundo da Arte, podemos nos questionar sobre o caráter intrinsecamente político, econômico e social da produção artística. Quando produzimos para as galerias (ou quando o mundo da arte coopta uma expressão artística), estamos fazendo política, estamos produzindo uma arte útil (à estrutu-

Talvez devamos apenas assumir que toda expressão artística pode 6 ser útil , é política, e começar a questionar “útil para o quê”? A fruição artística e a experiência estética independem da etiqueta de validação da estrutura social das “altas artes”, e possibilitar a circulação dessas obras não validadas (como a Revista CIRCUITO, por exemplo, se propõe a fazer) talvez seja uma forma particular de subversão.

1) Professor universitário e doutorando em Psicologia Social pela UNESP – Assis. Membro integrante da CIRCUS desde 2012, onde além de tesoureiro, auxilia na elaboração e execução de projetos culturais 2) http://goo.gl/TWPTkA 3) http://goo.gl/nlbjXk

4) Merda de artista, de Piero Manzoni (http://goo.gl/ VDdLc2) seria um exemplo. 5) http://goo.gl/GMgDNM

6) Charles Esche, na mesma entrevista citada, nos diz

que “util” em espanhol é também Ferramenta: Arte-Ferramenta.


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Petit Croquis et Dessin II

por Fernando Zanetti

Rapidamente cores seditavam ao alcance Aquilo de ductos instanteavam uma volta Nada locado Exceto infundido aquilo Aquilo encetou lábio E uma nova corrente de flores Cantando Cantando Paraíso sob lápide Exceto em fonte pequena Quando poderia morreu Dormir só podado pela cora de glosa Vê que átrio poderia Parado O Paraíso escrito Solo Judeu Quase morto Lápide do Cairo China vencida.


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Porque lembrar é viver! Um pouco do que se sabe e um pouco do que se imagina do cinema em Assis

por Priscila Constantino Sales

Território e memória: as cidades se fundem nessas duas topografias. Palco de atuações do trabalho coletivo, das lutas políticas e simbólicas, mas também das mais fascinantes ações imaginativas. Lugar de contradições e vivências, as cidades, mesmos as menores e mais distantes dos centros, tornaram-se também espaços de atuação cinematográfica. Com essas linhas iniciais, convido os leitores para rememorar um pouco da trajetória das imagens na cidade de Assis através das salas de cinema, que tanto fascinaram a po-

pulação urbana, e que ainda se fazem presente, mesmo que sua arquitetura tenha dado lugar a outras funções e formatos ou desaparecido da paisagem da cidade. O ato de demolir e reconstruir sentidos para os espaços e memórias do passado é característica dessa mesma modernidade que, ao trazer movimento, velocidade, estímulo e mudança no ritmo de vida, tanto cria vivências como ligeiramente as apaga de nossas vistas. Contudo, essa memória subterrânea da cidade ainda sobrevive por meio de narrativas, que mesmo fragmentadas, dão conta de reviver

as mais diversas experiências, das quais o cinema felizmente não se esquiva. O cinema adentra o início do século XX e rapidamente insere-se no universo da cultura moderna, ao criar uma nova linguagem e se constituir como artefato de intensa comunicação com a população, influenciando decisivamente a forma de perceber e estruturar o mundo. De origem popular, exibido juntamente com narradores, dançarinas, música ao vivo em feiras de atração e parques de diversão, a novidade das imagens em movimento torna-se parte do cotidiano dos grandes espetá-


culos e ganha seu próprio ritual nas salas de cinema. No estado de São Paulo, esse universo ganha contornos com Francisco Serrador, grande empresário da exibição cinematográfica que em 1905 organiza a trupe ambulante “Empresa Richabony” e realiza as primeiras exibições no interior paulista. Não temos relatos de que essa trupe tenha chegado ao vilarejo de Assis, mas poucos anos separam a chegada da ferrovia – com seu apito gritante, sua fumaça escura e sua janela que em forma de quadro possibilitava aos passageiros a visão de imagens que rapidamente movimentava a paisagem – e a chegada do primeiro cinema à Assis. Já na década de 20, o cinema encantou os assisenses, que se aglomeravam em filas para assistir as sessões de filmes. Era o lendário cinema mudo exibido no Cine Gato Preto que, após sociedade com a empresa Peduti, tornou-se Cine Theatro Avenida. O responsável pela exibição de alta qualidade era o moderno projetor Holmes distribuído pela empresa Bygthon & Cia., que tinha como “cúmplice” na tarefa de encantar o público a execução de música ao vivo que ora se davam pelas mãos dos pianistas Célia Valente, Zenite de Almeida e Waldermar Hansted, ora pelas diferentes bandas que se revezavam por trás da tela. Os intervalos para a troca

de rolos de fita iluminavam uma plateia atenta: homens e mulheres com trajes de noite, adolescentes e personalidades assisenses. Responsável pela exibição dos maiores sucessos hollywoodianos, o cinema apresentava as comédias de Charles Chaplin, as aventuras de Bang-Bang e as grandes estrelas do cinema que nesse momento se tornavam atrações dos filmes, por intermédio das quais Assis entrava em contato com novos costumes de vestir, falar e se portar. Foi ainda em 23 de agosto de 1930 que o cinema falado, que tanto alarmou o mundo cinematográfico e criou inúmeros obstáculos para a produção e exibição do cinema brasileiro, chegou ao território assisense com o filme Alvorada e Paixões. Outro cinema importante foi o Cine São José, construído pela empresa teatral Peduti e que teve seu auge nas décadas de 50, 60 e 70 (quando se esvazia pela democratização da televisão em Assis). A programação se dividia entre os filmes épicos, comédias e faroestes, com destaque para o western spaghetti italiano, que naquele momento alcança amplo sucesso com suas cenas de duelo, nas quais o herói faz justiça com as próprias mãos, e seus recorrentes personagens Django, Sartana, Sabata, Trinity, entre outros. Localizado em ponto estratégico perto do centro da cidade, foi também marcado por intensa

Cine Theatro Avenida: Situado onde atualmente se encontra o Assis Plaza Shopping. Constam como proprietários Irmãos Cury, Empresa Teatral Peduti e Luis Tarcitano.

Foto: Antonio Ricardo Soriano - Cine São José (Blog Salas de Cinema de São Paulo).

sociabilidade ao seu redor. Popular entre a população local, o findar das sessões de cinema nos finais de semana eram marcadas por encontros, amizades, namoros, paqueras e confrontos tão típicos das noites das cidades interioranas. Nos anos de 1960, o antigo Centro Católico se torna Cine São Vicente, que na década de 1980 dá lugar ao atual Teatro Municipal. Localizado na Rua Floriano Peixoto, o prédio leva o nome do Padre Enzo Ticinelli, tendo sido um ponto central de sociabilidade da comunidade assisense, recebendo até mesmo excursões de habitantes das ci-


O Cine São Jose localizava-se na esquina das ruas Floriano Peixoto e Capitão Francisco Rodrigues Garcia, com o encerramento de suas atividades o prédio dá lugar a uma loja de móveis.

dades vizinhas para as sessões cinematográficas que depois se aglomeravam na praça em frente do cinema, que contava inclusive com bandas tocando no coreto. Segundo Marcos Barrero, o Cine São Vicente tem como maior bilheteria o Filme italiano Dio Come Ti Amo, dirigido por Miguel Iglesias: a fita leva o nome da canção de sucesso da cantora e estrela do filme Gigliola Cinquetti. Quando exibido no Brasil, levou multidões às salas de cinema e na cidade de Assis não foi diferente. Por fim, temos o Cine Peduti, que surge no início da década de 1970, de propriedade da empresa Teatral Peduti, apresenta como diferencial uma arquitetura luxuosa e moderna, excelente sistema de som e ótima

programação. Esbarrando no fenômeno da TV, logo atrairia público intelectual e estudantes universitários e firmaria convênio com o Clube de cinema de Assis. Podemos notar que as imagens cinematográficas tiveram vida intensa na cidade de Assis, tanto no quesito exibição quanto na conformação da sociabilidade e dos costumes. Notamos também o pouco espaço que tiveram os filmes brasileiros e os que não se enquadravam nas fitas da “moda”. O papel de oferecer espaço a esses segmentos seria desempenhado pelo Clube de Cinema (1966-1983) de Assis, primeiramente dentro da UNESP/Assis e posteriormente na cidade, juntamente com o Cine Peduti. O Clube teve como

Reinauguração do Cine são Vicente em 02/09/1937 – foto cedida por Ivani Cury (Blog Salas de Cinema de São Paulo).

Foto: Antonio Ricardo Soriano - Cine São José (Blog Salas de Cinema de São Paulo).

Padre Enzo Ticinelli foi responsável, juntamente com a comunidade católica da Paróquia Sagrado Coração de Jesus (Catedral de Assis), por arrecadar fundos para sua construção. Foi responsável ainda, por desenhar o projeto do prédio com características de castelo napolitano e que possui uma excelente acústica.


O que é cineclube?

Foto: Antonio Ricardo Soriano - Interior Cinema Municipal Piracaia antigo Cine Peduti (Blog Salas de Cinema de São Paulo)

Posteriormente, o Cine Peduti é assumido pela prefeitura e se torna o Cinema Municipal Piracaia.

objetivo promover a apreciação e o debate da arte cinematográfica, por meio de projeções, debates, mostras, cursos, ciclos de cinema, trazendo para Assis uma nova forma de recepção no campo da cultura cinematográfica; buscou integrar escolas de Ensino Médio e Fundamental, promovendo ciclos de filmes infantis; trouxe, ainda, nomes importantes, tanto de diretores quanto de estudiosos e críticos de cinema. Os jornais de Assis foram testemunhas dessa agitada movimentação em torno do cinema.

Um acontecimento de expressiva importância para as crianças em idade pré-escolar, e para as demais também (...) segundo manifestações de pais e professores, veio de encontro a uma visível carência em nosso meio social. (VOZ DA TERRA, 27/09/1967)

Hoje, a cidade de Assis conta com o Cinema Municipal Piracaia, única sala de cinema de rua da cidade ativa até os dias atuais, o Cine Plaza Assis, per-

Trezentos e quarenta e sete pessoas assistiram o “M, O Vampiro de Dusseldorf”, exibido sábado no Peduti, pelo Clube de Cinema da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. Após a projeção cerca de 80 pessoas ficaram para o debate, que durou quase duas horas. (VOZ DA TERRA, 27/09/1967)

Currículo: Priscila Constantino Sales é mestranda em História pela Unesp-Assis, tem especialização em Gestão Cultural e é associada da CIRCUS, com afastamento para realizar a pesquisa neste momento, em que atua em projetos culturais e artísticos. A pesquisadora conta com o apoio financeiro processo 2013/27093-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). “As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”.

Mais Informações tencente ao Grupo Chainça de Cinema, e outras formas fragmentárias de exibição fílmica protagonizada por instituições, associações e amantes do cinema. Este momento que trás outras causas e coisas já é outra história... mas permite dizer que reviver essa memória dos cinemas de ontem nos ajuda a contar muito do cinema de hoje.

Arquivo Clube de cinema de Assis/ CEDAP/UNESP-Assis. BARRERO, M. Assis de A a Z: a enciclopédia do século 1905 2005. São Paulo: L2M comunicação, 2008. Blog Salas de Cinema de São Paulo > http://salasdecinemadesp.blogspot.com. br/ GALVÃO, M. R. E.. Crônica do cinema paulistano. São Paulo: Ática, 1975. CHARNEY, L.;SCHWARTZ, V. R.(Orgs) O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004. CHRISTOFOLETTI, R. Assis em Mosaico: caminhos para a construção de uma história. São Paulo: All Print editora, 2009.



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