CIRCUITO N3

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nยบ3 Novembro 2015


Edição #03

Novembro 2015

Capa

Carlos H. Andreassa do Amaral

Site da Revista

http://www.circus.org.br/#!circuito-02/c16tr

Conselho Editorial Eder Capobianco Andréa de Moraes Barros Carlos H. Andreassa do Amaral Guilherme G. D. Providello Priscila Constantino Sales Rafael de Oliveira Rodrigues Fernando Zanetti

Editora Responsável Priscila Constantino Sales

Projeto Gráfico Carlos H. Andreassa do Amaral

Revisão Luiz Fernando Martins

Assessoria Técnica Fernando Zanetti Wender Urias

Colaboradores desta Edição Adílio Rodrigues Baruana Calado dos Santos Carlos Eduardo Xavier e Jay Malaga Daniel Pereira Diego Pontes Fernando Del Mando Lucchesi Fernando Zanetti Guilherme G. D. Providello José Benjamim de Lima Lívia Pellegrini Márcio Blanca Naná Boletini Priscila Constantino Sales Rafael Duarte Oliveira Venancio Raquel Nascimento Gomes Tassiana Carli

Proponente do Projeto Rafael de Oliveira Rodrigues

Assessoria Contábil e Fiscal Rosana Ambrosim

Erratas: Contracapa: Falta do logo da Circus - Circuito de Interação de Redes Sociais, instituição responsável pela concretização da revista Circuito, nossas desculpas;

Contato revista.circuito@circus.org.br www.circus.org.br

Pg. 9: Foto que acompanha a música Cancioneiro da Paquerinha, de Vinicius Dias Zurlo: créditos de Leandro Stunti; Pg. 29: A foto é do cinema Cine Avenida. Foto de 1941, cedida por Ivani Cury (Blog Salas de Cinema de São Paulo), e não Cine São José; Pg. 30: A foto do Cine São Vicente data de 1967, e não 1937;

para baixar o app de leitura do qr code acesse:

Revisor da Circuito nº 2: Luiz Fernando Martins de Lima.

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Apoio


EDITORIAL Cá chegamos! Por meio de variáveis interconexões, a Revista CIRCUITO lança sua terceira edição. Em parceira com a CIRCUS e a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, por meio do Programa de Ação Cultural (PROAC), o capítulo que começou a ser escrito na edição passada continua e a revista se materializa mais uma vez em suas formas digital e impressa. Buscando cada vez mais fugir da lógica de produção serial, os materiais recebidos compõem e direcionam o produto final da revista. Uma experiência cultural que busca de modo harmonioso dar alcance e espaço aos mais diversos anseios, sejam da escrita, da imagem ou do som, enfim, tudo que toque o campo da arte e da cultura e permita criar links para o exercício da reflexão ou do puro deleite, dos escritores, leitores e mesmo dos editores. De nossa parte, esperamos que a idéia aqui concretizada de uma revista cultural atinja seu sentido pretendido: cultura para cultivar pensamentos, sonoridades, visualidades, e tantas outras inflexões presentes nesta edição. Que a aleatoriedade torne-se, nestas páginas, um personagem, e que sua principal característica seja a de ser um coeficiente potencialmente subversivo do mercado cultural superlotado de produções artísticas e literárias e até mesmo, de certo modo, do desencanto com a leitura. E o que dizer sobre a arte cultivada fora dos grandes centros? Partindo da idéia da diversidade em nosso agir, pensar e sentir, a CIRCUITO vem buscando, desde seu primeiro número, criar conexões entre a pluralidade e as múltiplas formas de se expressar. Tarefa não muito fácil se levarmos em conta os 54 materiais que recebemos – e já aproveitamos este espaço para agradecer os autores e autoras! Mas ainda resta um último e especial agradecimento, à CIRCUS, cujo investimento nos permitiu ampliar as páginas desta terceira edição, possibilitando a parceria com mais autores e autoras. Se “ler é sonhar pela mão de outrem”, como nos lembrou Fernando Pessoa, esperamos que nestas páginas, estejam impressas ou on-line, os sonhos também possam ser atravessados pelos diferentes sentidos que compõem nossa corporeidade. Desejamos um encontro rebelde, inquieto e que a leitura seja um ato de amor...


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por Fernando Zanetti

Somos homens escurecidos pelo asfalto cindido E o instante caminhado na velocidade impercebida Quando vir o mundo já à porta da morte Quando esse instado de morte nos faz ridículo e desespero Até onde seguir? Meus antepassados eram homens marinhos Caçadores de baleias e talvez um pouco tristes Eu tenho o asfalto áspero E linhas de dias inacabados Quando o chegar não se tem um dono e nem um encanto sortilégio Nossos dias são como verdades risíveis E uma alegria já um tanto mofada E corar Verdade de urbanidade cansada e nada além Existência de delicados e gestos vendidos ao acaso de olhos Quando puder Estaria aqui Alegria indita Verdade de Olhos Tomar de si olhos facínoras E aonde chegar? Minha pequena virtude Senhora de eternos cantares E um incêndio de mágoa Quando puder entrar Ela se revelará Quem? A cidade aberta E escurecida.


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José Benjamim de Lima

Não é Teseu quem quer sair daqui. Teseu está morto agora, porque assim o quis; Teseu e seus jovens gregos. Estou cansado desta vida entre quatro paredes, cansado de sacrifícios sangrentos. Aqui me puseram com que fim não sei; talvez para cumprir um rito e um destino que me foi reservado, mas nada disso pedi; se me deram essa vegetação de pedras, não foi porque escolhi. Cumpro meu destino, porque assim é o inevitável, mas estou farto desses corredores sombrios e dessas escadas escuras que conduzem sempre a falsas saídas. Às vezes arranho as paredes com as mãos, esbravejo raivoso e berro de de-

sespero; sou touro nesses momentos, e nada disso adianta. Outras vezes, quieto, penso; sou homem então, mas nada disso resolve, pois não posso descobrir a saída desse labirinto que não fiz. Conseguirei libertar-me? Os que fizeram essas paredes, com que fim as fizeram? Homem, reinicio mais uma vez a inútil tentativa. Às apalpadelas tento, no escuro, vislumbrar a luz lá fora, naquele mundo que desconheço. Meus algozes espreitarão de alguma secreta janela? Minha vegetação: essas pedras onde não bate nenhuma vida. Aqui me puseram: que crime cometi? A água que bebo e o alimento que como vêm por

um alçapão, cujo segredo não consegui descobrir. Periodicamente, os engenheiros de meu pai descem as escadas (ouço o ruído de seus passos e vislumbro, longe, um facho de luz). Virão ver se tudo anda bem? Rever, ainda uma vez, sua obra de arte, orgulho da engenharia cretense? Quem me pôs aqui e para quê? Não há resposta, nunca houve resposta. Meu alimento: pobres prisioneiros que aqui soltam, para apaziguar minha fome e minha fúria. Homem, tento controlar-me, faço firme propósito de não sucumbir. Mas touro, possesso, caio sobre eles, devorando-os, urrando de prazer e gula. Depois, choro


sobre aqueles ossos e aquele sangue. Que fizeram eles, vítimas como eu? Teseu é mito lá fora. Aqui dentro, está morto. Teseu, o vitorioso, o que ganha sempre, aplaudido pelo povo. Teseu, o libertador. Teseu, vítima, também, mas embriagado de vitórias, herói: assim são os heróis: vítimas também; objetos do poder que sempre vence. Mentira ter-me matado, mentira toda a história de Ariadne e seu fio. Os homens inventam mitos, quando não querem enxergar a sua própria condição. Teseu esteve aqui, sim, e conversamos. Tentei convencê-lo a tirar-me daqui, tentei mostrar-lhe que era vítima também, como eu: vítima do próprio poder e suas vitórias, objeto de sua própria presunção. Com que tortura lhe falei! Tenho dificuldade de falar: ora escapa-me um berro, às vezes um mugido ou então um urro. Sou touro, também, e nunca sei se no minuto seguinte serei homem ou besta. Mas Teseu era demasiado presunçoso; cego pela força e poder, riu de mim. Por isso, num acesso de fúria o matei, e por isso criaram o mito de Teseu, o vitorioso.

Teseu viu a luz lá fora e gozou da liberdade. Poderíamos ter voltado juntos, mas ficou horrorizado ao ver-me, meio homem, meio touro (como meus algozes, como Ariadne, minha irmã). Não quis guiar-me pelo labirinto e preferiu morrer. Que Deus me fez assim, que não sei se sou touro ou se sou gente? Tenho cabeça de touro, mas o peito é humano e penso às vezes como homem pensa, tenho desejos e vontades. Que mal fiz eu? Sinto meus chifres e olho minhas mãos. Estou cansado dessa vida entre quatro paredes, cansado de sacrifícios sangrentos. Como rebelar-me, se meu destino é caminhar sem destino por esses corredores e escadas onde a luz não penetra? Os homens enxergam em mim a própria imagem, e por isso me escondem, horrorizados? Que mal eu fiz? Nada disso pedi. Terei alguma culpa? Terei? Essas paredes sem luz pesam-me como um fardo terrível. Lá fora o mito de Teseu atravessa o dia, o tempo, os homens. O Minotauro está morto! O monstro morreu! Teseu, o vitorioso, o luminoso Teseu o matou. Matou-o? Ah! Ah! Ah!


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não há tempo para a música trabalhotrabalhotrabalho Desde menino, trabalho ouvindo música, na esperança de que a parte direita continue andando enquanto a sinistra fique dançando

por Fernando Del Mando Lucchesi Psicólogo, doutorando em Psicologia, nasceu em Guarulhos-SP e atualmente reside em Bauru-SP. Trabalha com pesquisa e escrita científica e escreve poesia nas horas vagas.


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por BARUANA CALADO


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De um sonho antigo à realidade de sua 5ª edição, o Encontro de Palhaços encanta, emociona, instiga, alegra e transforma, não apenas o sonho da CIRCUS, mas de todos os admiradores do artista do riso, o palhaço. O V Encontro de Palhaços é formado por encontros, desencontros e trombadas. São palhaços de muitos lugares e com muitas histórias, trombando com o público assisense, com os artistas da região, com pessoas envolvidas em projetos culturais pelo interior. Todos eles se encontram no picadeiro armado pela CIRCUS durante esse grande evento. Respeitando todas as facetas do palhaço, convidamos artistas mambembes, circenses tradicionais, do circo contemporâneo, artistas locais, pesquisadores, e tantos outros. Juntos, formarão um circuito cultural no interior, que tem Assis-SP como ponto de encontro, o palhaço como protagonista e o riso como enredo. Estão todos convidados para mais essa festa do riso, repleta de encontros e muitas trombadas.

Equipe de Produção do V Encontro de Palhaços


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*Rafael Malvar Ribas

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m 1971, Raul Seixas trabalhava como produtor da CBS no Rio de Janeiro. Ainda na Bahia ele havia gravado o LP Raulzito e os Panteras, que teve pouca vendagem e praticamente não teve divulgação que não local. Entretanto, sua mudança para o Rio de Janeiro e seu vínculo à gravadora tinham a ver com o sonho de continuar gravando e cantando seus próprios discos. Na época, ele produzia discos normalmente ligados à Jovem Guarda, com ritmos mais ao estilo Rock and Roll de que tanto gostava. Nomes como Jerry Adriane e Diana são alguns dos cantores dos quais Raul Seixas trabalhou como produtor. A essência contracultural de Raul Seixas vem à tona na gravação de um disco que também praticamente não teve vendagem de início, essência esta que começa no longo nome do disco: A Sociedade da Grã Órdem Kavernista Apresenta – Sessão das Dez. O tamanho do nome do disco faz com que até hoje seja citado de forma abreviada, ora como Grã-Ordem Kavernista, ora como Sessão das Dez. Segundo Sérgio Sampaio, em entrevista concedida à Editora Abril, “o nome da sociedade saiu na hora. O “kavernista” pintou porque naquela época a gente falava muito de volta às origens, aquele papo que os homens iriam viver em cavernas depois da explosão da bomba atômica, essas maluquices” (PRUDÊNCIO apud NHMPB, 2010, p.22). alvez influenciado pelo movimento troT picalista com o disco Tropicália ou Panis et Circenses, que inovou com um notável hibridismo de influências e estilos, a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista não foi diferente. Apesar de Raul Seixas

Integrantes da Sociedade da Grã Órdem Kavernista

estar à frente do movimento, o disco foi gravado de forma conjunta com Sérgio Sampaio, Edy (Star) e a sambista Miriam Batucada. O próprio Raul Seixas contou algumas vezes que, aproveitando sua condição de produtor, gravou o disco de forma rápida, sem autorização, aproveitando a ausência do diretor da CBS, o que acarretou em sua demissão, como cita Neto: ão teria sido ele um tipo de produtor N musical comum, afinal, quantos deles teriam se aproveitado da ausência do chefe para gravar um oneroso LP de caráter experimental às escondidas, quase na calada da noite? Essa história, narrada diversas vezes pelo próprio Raul Seixas, se tornou uma das

lendas que gravitam em torno de sua imagem: juntamente com seus amigos e artistas contratados da gravadora – Edy Star, Sérgio Sampaio e Miriam Batucada –, Seixas teria se utilizado do estúdio da CBS sem permissão do diretor Evandro Ribeiro para gravar o LP Sociedade da Grã-Ordem Kavernista (CBS, 1971). Tal ato de insurgência teria resultado na expulsão sumária de Seixas dos quadros da CBS, pondo fim à sua promissora carreira. (NETO, 2013, p.7) Apesar de Raul Seixas normalmente não ser associado a nenhum movimento específico, formando uma espécie de movimento próprio, o Raulseixismo, esse álbum é de grande relevância, pois


Referências Bibliográficas DUNN, Christopher. Brutalidade jardim. São Paulo: UNESP, 2009. NETO, José Rada. Raul(zito) Seixas como produtor musical: Aprendizado prático e construção da imagem artística. Natal: ANPUH, 2013. PRUDÊNCIO, Whashington Luís Teodoro. Sérgio Sampaio: Antritropicalismo na canção de um tropicalista convicto. Porto Alegre: UFRGS, 2010.

*Psicólogo formado pela UNESP – Assis, especialista em Psicologia Política, Políticas Públicas e Movimentos Sociais pela USP e mestrando em Educação, Arte e História da Cultura pelo Mackenzie – SP.

foi a tentativa de se formar um movimento e obter assim sua ascensão. Foi a primeira vez que o antigo Raulzito se autodenominou como Raul Seixas. O caráter contracultural se inicia na capa do disco, na qual escorre sangue pelas letras do título “Sessão das Dez”, e eles aparecem com vestimentas irônicas, com destaque para Miriam Batucada vestida de Super Homem:

apresentação de circo e termina com o som de uma descarga. Na verdade, uma vinheta com tons de ironia introduz cada canção – influência de Frank Zappa, artista norte-americano cujo destaque era justamente o romper com as normas musicais e sociais. Prudêncio nos demonstra esse aspecto do disco em sua monografia de graduação sobre Sérgio Sampaio:

J á nas melodias e letras, essa ruptura com o que havia no cenário musical da época fica ainda mais evidente. A exemplo disso, o disco abre como uma

Sessão das Dez rompia com qualquer linha. A exemplo do músico americano Frank Zappa, na admissão do processo criativo e anárquico, de improvisação

Capa do Disco

e sátira, representante de uma atitude oportuna de quebra de paradigmas, Seixas e Sampaio ousaram tomar à frente. Ou, como provocou o Piauiense Torquato Neto, poeta-suicida de Paupéria, “desafinar o coro dos contetes”. Sessão das Dez é, dentro da disposição identificada na Tropicália de Gil e Caetano, um rompimento atrevido com a ordem ou a linha evolutiva de qualquer espécie (PRUDÊNCIO, 2010, p.21). Após o lançamento do disco e a demissão de Raul Seixas da CBS, o LP foi retirado das lojas, ficando apenas poucas cópias de divulgação enviada às rádios. Após o sucesso dos primeiros discos solos de Raul Seixas, a Grã-Ordem Kavernista foi relançada em 1974, ainda com a contracapa com as fotos significantes dos artistas em poses nada convencionais. Já nas outras duas edições em LP mais comum de serem encontradas, a contracapa foi lançada sem as fotos. O movimento durou muito pouco e os artistas partiram para sua carreira solo, cada qual com sua devida importância para a música brasileira. Por isso este disco possui valor histórico, ficando muito à margem de sua importância. Tanto que quase não encontramos material a seu respeito. Nas bases de dados acadêmicas de relevância como a Scielo, não aparece qualquer resultado ao se pesquisar pela palavra Kavernista. Quando encontramos material acadêmico sobre o movimento, é sempre um breve resumo ao se falar sobre o Raul Seixas ou sobre Sérgio Sampaio, nunca sobre a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista em si.


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O PODER DA CAPOEIRA ANGOLA na volta que o mundo deu na volta que o mundo dá se eu conseguir nesta roda, colega véi na outra dá pra levar, Camaradinho por Márcio Blanca

Ladainha retirada do CD Brincando na Roda, do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP)

Em uma viagem com os integrantes do projeto Moleque é tu realizado pela Gerência de Cultura de Echaporã e pela Escola de Capoeira “Os Angoleiros do Sertão”, observei uma criança de aproximadamente 7 anos que, com olhar atento, nos observava enquanto afinávamos os instrumentos e nos aquecíamos realizando alguns movimentos corporais. Isso antes de nossa apresentação representando o município de Echaporã na festa de 7 de Setembro da cidade de Lupércio/SP. Tive certeza com relação à atenção do menino quando conversava com outro profissional. Este menino chegou até mim e me questionou se nossa apresentação começaria logo, pois ele queria muito vê-la. Seus olhos brilhavam! Fiquei emocionado! Tal olhar ativou minha memória com relação à primeira vez que vira capoeira e a quando começara a praticá-la, em 1993. Diante daqueles olhos encantados e encantadores, disse que não sabia, mas que enquanto não começava, podíamos praticar um pouco. Ele topou de imediato! Comecei a ensinar-lhe a tocar agogô e, enquanto tocávamos, falei para ele que se apresentasse conosco, pois não é que o danado levava jeito! Curiosos começaram a se aproximar vendo a interação e o som que produzíamos. O menino foi, rapidamente,

Fotografia Mirian Antonia - Roda de Capoeira Angola - Feira de Santana/BA

ficando envergonhado, até que disse que não conseguia. Abaixei-me junto a ele e, no mesmo instante, uma aluna se aproximou e começou a me ajudar. Na verdade, ela assumiu a posição de ensino e eu de auxílio, mas o mais importante foi que o menino retomou a confiança, e quando nos apresentamos ele se juntou a nós, apesar da maneira ainda acanhada devido à quantidade de pessoas que nos observava. Quando terminamos ele veio até mim e disse: você pode me treinar? Assustado com tal pergunta, falei para ele que já estava indo embora. Ele disse: enquanto você não vai,

você pode me treinar? Surpreso com a vontade do menino, avistei um moleque da Escola de Capoeira “Os Angoleiros do Sertão”, aparentemente de mesma idade, praticando bananeira encostando-se à parede, e disse: comece seguindo ele! Ele feliz foi praticar e, com o roncar do ônibus, percebi que meu jogo com o menino havia chegado ao fim. No olhar e no peito, a vontade de encontrá-lo novamente para um novo jogo, pois assim acredito na Capoeira Angola: a Roda da Capoeira simboliza a Roda da Vida e ela, neste caso, tem grande potencial junto a esse menino.


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por ** Daniel Pereira Há quanto tempo o senhor fuma? A pergunta, que não queria calar desde que, há alguns anos, fui admitido no clube dos hipertensos, agora era assustadora. A sentença do terrorista de jaleco branco depois de uma breve aula sobre fibrilação atrial (FA), o tipo mais insinuante de arritmia cardíaca, foi curta e grossa: apague definitivamente o cigarro, beba com moderação e pratique uma atividade aeróbica. Caminhe! Era sexta-feira. Medrei. Não fui ao happy hour. No domingo, 11 de setembro, acordei com o rádio repetindo à exaustão a retrospectiva dos 10 anos do pior pesadelo do século XXI. Girei o dial para a Bandeirantes e pesquei o âncora desafiando os ouvintes a responder a pergunta que copiou da propaganda de uma empresa aérea: Quando foi a última vez que você fez alguma coisa pela primeira vez? Topei a proposta. Ainda não conhecia o calçadão (antigamente isso era conhecido como pista de cooper) da Avenida Caetano Álvares. Poderia ir ao Horto Florestal, como sempre fazia. Mas não seria conveniente para um sedentário e ex-fumante recente enfrentar subidas que exigem muito esforço físico. De qualquer forma, ou por cagaço mesmo, pensei que seria boa ideia levar uma companhia. Ninguém estava disponível. Levo o cachorro? Melhor não, o cara é antissocial. Já sei! Vou levar Sagarana, do Guimarães Rosa para ler à sombra de uma bela árvore depois da caminhada. O mineiro de Cordisburgo (hibridismo do latim e alemão que significa Vila ou Cidade do Coração), também foi diplomata e médico (entre outras atividades),

era hipertenso, obeso, sedentário e fumante inveterado. Fico imaginando como deveria ser o diálogo entre o médico e o escritor. Eleito imortal da Academia Brasileira de Letras, despediu-se com um discurso apoteótico e premonitório: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Encantou-se três dias depois. * e volta à terra. A decisão de não levar o cão foi acerD tada: ali ele seria apenas mais um na matilha. Aliás, para quem é cinófobo, o calçadão da Caetano Álvares não é lugar mais recomendável para uma caminhada tranquila. Caninos à parte, o percurso de quase cinco quilômetros logo se revela um prato cheio de informações em todos os sentidos. A paisagem dos dois lados da avenida reserva situações que vão do hilário ao bizarro. Ou trágico, como o assassinato de um valente coronel da PM, em 2008. Um caminhão se intromete entre os carros na pista em direção à marginal, e até esse intruso tem o que dizer com sua filosofia de para-choque copiada de Charles Chaplin: “A vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe”. Talvez seja assim que se sente a garota-propaganda com pernas de pau, que se arrisca no asfalto 40 graus berrando as atrações de uma concessionária de carros. Um pouco à frente, o exemplo de banalização do sincretismo sexo-religioso: no andar de cima do sobrado, a escola de dança do ventre; no térreo um templo evangélico,


que bem poderia chamar-se “Igreja das Putas Tristes” porque, nos fundos, funciona um bordel com o sugestivo nome de “Vem cá, meu bem!” E como tem freguês, meu camarada! Aleluia, irmãs, aleluia! Perto do meio-dia, o aroma de picanha na brasa que exala das churrascarias é um desafio torturante para os ‘atletas’ do calçadão. Melhor acelerar o passo e segurar a vontade. É o que faz a menina de walkman vermelho e rabo-de-cavalo esvoaçante que me ultrapassa, como Peter Pan flutuando entre as árvores da alameda. Visual interessante e generoso, um colírio, mas que dura só o tempo de ela sumir na primeira curva. Gostosa! * Nesse devaneio não me dei conta do magote de gente invadindo o calçadão. Era uma gincana. Uma pretensa sacada de merchandising. À frente, um agitador de trejeitos delicados tentava imitar Silvio Santos, Faustão, Lula, Clodovil e similares. Se tivesse planos de seguir carreira de comediante estaria ferrado. O fato é que o sujeito convidava os transeuntes a aderir ao que ele chamava de passeata ecológica. Uma fajutice, claro! A primeira vítima do animador foi um afrodescendente com silhueta de armário e cara de Vovó... Zona, personagem do ator Martin Lawrence. Tipo enjoado, logo se via pela elegância do agasalho de grife marrom com listras amarelas. No peito um brasão, em amarelo e vermelho, com as iniciais KGB. – Alemão?! Diante do olhar de galinha do animador, não deixou dúvida: – É, isso mesmo: A-LE-MÃO! (“Além de tudo um gozador”, pensou o rapaz. “Me ferrei”). Não teve tempo de engatar o papo. Um camarada, com jeitão de leão-de-chácara, tomou-lhe o microfone e despejou um caminhão de esporros na cabeça dele. Aos trancos e barrancos o rapaz ameaçou correr, mas foi barrado logo à frente por dois homens que saíam de uma viatura da polícia. Um dos policiais identificou-se como delegado. O outro, investigador. O rapaz tremeu na base, mas logo foi tranquilizado. “Fica calmo. A gente sabe da bronca da pensão alimentícia da tua mulher, mas essa aqui não é contigo”. – Então, doutor, tô liberado? – Negativo, campeão. Este (mostra a foto) é o sujeito com quem você estava conversando, certo? É seu amigo? – Ah, doutor! O negão é um gozador. Disse que se chama Alemão. Sujeito esquisito. Pelo tamanho, tem jeito de ser jogador de basquete americano, ainda mais porque no peito do seu agasalho tinha umas letras...Q...não..K...G...B. Isso, KGB. * Os policiais se entreolharam. “Hum, aí tem”, balbuciou o delegado. Reuniu a equipe. Até aquele momento ele não havia revelado aos seus subordinados o verdadeiro motivo da caçada ao tal Alemão. – Bem, pessoal. Chegou a hora da verdade. Prestem atenção. Vocês estão participando da Operação KGB. Estamos cooperando com a Interpol na busca de um alemão criminoso de guerra. Ele era agente duplo e também trabalhava para a polícia secreta da antiga União Soviética, a KGB. É acusado de crimes contra a Humanidade. O rapaz aí é conhecido como o Alemão da KGB e seria o filho do criminoso. Entendido? Vamos lá. Tá no papo. Os incautos transeuntes começavam a se aglomerar, impressionados com o aparato policial na porta da LAN house onde o Alemão acabara de entrar. “Será que prenderam o Beira-Mar?” “Não”


– pitacava outro – “ouvi que o Marcola fugiu. Pode ser ele”. “Vi na televisão que o Bandido da luz vermelha voltou a atacar...” “Sai da tumba, meu, esse aí já era...” “Ah! Deve ser pegadinha...” E por aí caminhava o besteirol quando surgia a equipe do programa policial Brasil Alerta. Afagos, loas e confetes ao delegado que conduzia a operação e lá vem o Alemão de braços dados com dois soldados (que ninguém é herói e a PM também havia sido chamada para reforçar o cerco ao perigoso meliante). Já viram um boi entrando no corredor da morte? O olhar de tristeza do animal é um misto de autopiedade com pedido de socorro que corta até mesmo o coração de uma pedra. Esse era o Alemão que chegava à delegacia. Documentos e burocracias de praxe, começa o interrogatório. Ele, cabisbundo e meditabaixo, olhar perdido na frase fria de Paul McCartney desenhada na parede atrás da cadeira do delegado: “Se os matadouros tivessem paredes de vidro todos seriam vegetarianos”. – Então, senhor Gunther Benedito da Silva – nome chique, hein! – O senhor pode nos explicar por que é conhecido como o Alemão da KGB, conforme nos disseram várias pessoas que o conhecem e... – Com licença! – Irrompe na sala elegante senhora que se identificara como advogada do suspeito. Chamava a atenção pelo vistoso casaco branco sobre a saia vermelha que generosamente deixava seus alvos joelhos à mostra. Pinta de balzaquiana da elite. Um must para o gosto dos policiais, acostumados a lidar com a ralé, aquela era uma visão de embasbacar. E o Alemão ali, tão pasmo e surpreso quanto os tiras. – Está havendo um terrível equívoco com o méu cliente (Ela tinha um leve sotaque estrangeiro). Na verdade, abuso de autoridade. Um delírio egomaníaco. O homem que vocês estão procurando definitivamente não é este aqui... E nem existe. – Como?! – subiu nas tamancas o estupefato delegado chefe da operação – Se a dou-to-

-ra se atreve a vir no meu quintal dizer besteiras desse tipo deve também saber que, advogada ou não, posso detê-la por desacato. Quem lhe deu o direito de apontar o dedo para mim? – ISSO AQUI! – E atira sobre a mesa o documento que deixa brocha qualquer delegado: o habeas corpus preventivo. – Puta que pariu! Catso! Estou ferrado! Do que se trata, afinal de contas, doutora (agora, num tom civilizado)? Sem perder o fair play, Ingrid Oliver Mezzacappo abriu a pasta e despejou um calhamaço de documentos que, além do HC, cancelavam a iminente prisão do Alemão e comprovariam a sua inocência. Foi um soco no fígado do policial, um flash do inferno. Perplexo, incrédulo, provavelmente já antevia as consequências de todo aquele imbróglio... Que ainda não tinha terminado. – Doutor, o que o levou a empreender uma investigaçon como essa sem o aval de seus superiores? Fique sabendo que amanhã mesmo vou representar contra o senhor na Corregedoria de Polícia Civil. – Podemos conversar a sós, na minha sala? – Pediu, humilde, o delegado. – Não temos nada mais para conversar. Àquela altura, o repórter do Brasil Alerta já não estava mais sozinho. O DP saía pelo ladrão.


– Doutora (implorando, patético), a senhora precisa levar em conta que tínhamos uma pista muito forte. Não é todo mundo que é conhecido como o Alemão da KGB, concorda? – Discordo. Passar bem. * Os urubus da imprensa já a rodeavam no tradicional corpo-a-corpo, ávidos por torturar a entrevistada com microfones e câmeras fotográficas. A doutora Ingrid chamou para perto dela o Alemão, que a abraçou, beijou-lhe o rosto e derramou-se em lágrimas: – Danke, Schwester, mein Engel, danke! Cena emotiva, ninguém entendendo lhufas. Irmã? Obrigado, meu anjo??? – É isso mesmo. Não se iludam com as aparências. O Gunther, que vocês chamam de Alemão, é meu irmão. Filho da segunda esposa de meu pai. Não é o bandido que a polícia está querendo fazer crer. – Então a polícia pegou a pessoa errada? Do que ele está sendo acusado? A senhora vai processar a polícia? – Calma. Vou explicar tudo de uma vez. Não quero perguntas. alvoroço na delegacia cresce vários decibéis com a chegada do delegado-geral de polícia e do secretário de O segurança pública. Todos os olhares se voltaram para o delegado que chefiara a busca e que, àquela altura, procurava um buraco para enfiar a cabeça. Desafeto dele, o assessor de imprensa se apressava em anunciar que depois da advogada o secretário daria rápida entrevista. – Fale, doutora – pediu o secretário, um sujeito com aquela eterna cara de mau do Lee Marvin. Eficiente e respeitado, diziam. A advogada foi didática no passo-a-passo do esmerdalho. Primeiro, mostrou o habeas corpus preventivo, que ela carregava já há um ano quando soube que a Interpol procurava o seu pai. É um alívio finalmente poder contar tudo de uma vez – começou. O pai tinha sido da Gestapo, a temida polícia secreta da Alemanha. Trabalhava no setor de contraespionagem com atuação na União Soviética. onfundido com o irmão gêmeo, que também era da Gestapo, em 1943, foi acusado de traição – teria ajudado a C facção anti-Hittler conhecida como Círculo de Oster. O irmão soube antes e o ajudou a sair do país. Ele se refugiou com amigos prussianos que pertenciam à KGB – a polícia secreta da União Soviética. Mudou de identidade. Dois anos depois teve que fugir. Com o fim da guerra e a derrota do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), também seria alvo da Mossad, a polícia secreta de Israel que vingava os judeus. Foi para o Canadá, Estados Unidos e finalmente chegou ao Brasil. Havia ouvido maravilhas daqui. Com nova identidade, refugiou-se no oeste do Paraná e depois fixou-se em uma colônia de alemães no interior do estado de São Paulo. Tendo estudado engenharia, também conhecia e manuseava explosivos, fazendo dele mão-de-obra requisitada na construção de Brasília, para onde foi em 1958. Ficou lá até 1965, quando foi convidado para trabalhar na área de segurança de uma multinacional alemã fabricante de armas e munições, em São Paulo. As iniciais da empresa: KGB. Casou-se com uma descendente de alemães e teve uma filha – ela, Ingrid. A esposa morreu no parto. Dois anos depois, envolveu-se com Luzia, uma negra baiana que trabalhava na casa dele. Dessa união nasceu Gun-


ther, o nosso Alemão. Os negócios prosperavam e a vida secreta do pai já eram águas passadas. “Ele não era um criminoso de guerra”, insistia Ingrid. a multinacional, ganhou prestígio e galgou posições até chegar ao topo como acionista e diretor da empresa. A N filha foi estudar no exterior, casou-se com um italiano, e Gunther ajudava o pai na empresa, cuidando da área de atividades culturais. Ele queria mesmo era ser ator. – Meu pai morreu em 2009, aos 94 anos. Nesse mesmo ano fui procurada por agentes da Interpol. Eles me disseram que só vieram a descobrir a verdadeira identidade de meu pai recentemente, e que não encontraram nenhum indício de que ele tivesse participado das ações criminosas da Gestapo. Disseram para eu ficar alerta com informações falsas e chantagens contra a nossa família e recomendaram ter sempre em mãos o habeas corpus preventivo para os herdeiros do meu pai. O delegado não checou direito a validade da informação que recebeu de um amigo dentro da Interpol e armou essa pataquada toda. Acho que está tudo explicado. * Antes que os jornalistas pudessem interpelar a advogada, o secretário de segurança pública pediu o microfone e fez a seguinte declaração: – Nós já sabíamos desde a manhã de hoje dos riscos dessa operação, mas preferimos prestigiar e confiar na palavra do delegado que a comandou por se tratar de um dos mais competentes policiais de São Paulo. No entanto, também é nosso dever informar que um erro desse tamanho não o exime de punição. Ele errou, sabia disso e está afastado até a conclusão do inquérito que vai apurar o caso. Boa tarde a todos! Enquanto o delegado saía pelas portas do fundo, jurando depenar o amigo da Interpol que o pusera naquela gelada, os repórteres reservavam uma última pergunta à advogada: – Doutora, a senhora acha que a polícia foi induzida ao erro pela denúncia anônima equivocada? – Venham aqui, por favor – e chamou o pessoal até a janela. Estão vendo aquela BMW cinza ali fora? Meu irmão é quem mais a usa. Vejam a placa: KGB 1109, iniciais da empresa e a data de nascimento dele. Era isso!!! Eu sabia. Já tinha visto, mesmo de relance, o tal alemão saindo daquele carro. Eles moravam em uma mansão perto do Horto Florestal, por onde eu passava nas minhas caminhadas antes da pane elétrica no coração. Belo, que dia! Auf Wiedersehen! **Daniel Pereira é jornalista. Ex-futuro biólogo, e de vez em quando se acha escritor de haicais, poesias, contos, crônicas. Até pretende lançar um livro chamado “O Esquife do Caudilho”, cuja história começa em Assis no exato dia da morte do ex-presidente Getúlio Vargas e fala de vários personagens da cidade, onde o autor morou por muitos anos. Atualmente é assessor de Imprensa do Memorial da América Latina, em São Paulo.


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Corria. Eu corria. As imagens passavam. Eram árvores, plantas, ruídos e sensações. Corria ao encontro de minha fuga. Corria para afastar-me do estéril vórtice dos homens. Corria para sanar minhas memórias. Era um bosque. Corria. O cheiro sobrepôs-se com sua imponência e suavidade. Envolveu-me em um delírio onírico e ilusório. Desses que, de tão extasiantes, precisam da redundância para que sejam definidos com propriedade. A lembrança proporciona e a falta desperta. Parei. Eram as jabuticabeiras com suas flores perfumadas. O vento típico de um dia hibernal disseminava o frescor. Vontade do cheiro, visão da alma. Um fluxo sinestésico. Veio à tona a hiância devastadora e cruel decorrente da notícia daquele dia de domingo. Sentia sua falta. *** Um domingo qualquer, em que se cumpriam os deveres predestinados para tal dia. O celular. Irmã. Estarão chegando para uma visita? Não! Irmão: – (...) se foi! – Quem se foi? Está ruim a ligação! – Ele se foi... Estremeci. Minhas pernas não suportavam a notícia. Retomei-me. Urrei. Debulhei-me em prantos. Foi. Maldito livre-arbítrio. Ou seria bendito? Decidiu por interromper sua jornada. Seu fardo era ominoso. A arma. A vida. A morte. Meu pai. As jabuticabeiras. *** Revoltei a mim. Estava sentada. As nuvens caminhavam, uniam-se formando unicórnios. O céu era de um azul calmo como a paz. O sol me aquecia para buscar algumas saudades pueris. Ah! O cheiro... Leva-me, traz-me, enleia-me, enleva-me. Tudo era de uma sórdida sutileza, como se me completasse e, ao mesmo tempo, devastasse. *** Ele havia sido nomeado delegado de polícia. Dúvida: mudar-se para o interior ou permanecer próximo à capital? Amante de “sombra e água fresca” em seus períodos vacantes, escolheu o interior. “Fuga da desolação em forma de cidade”, suas palavras à outra opção. Chegamos. Ele era a única autoridade na cidade. Pasmem! Confesso que me atraía sentir aquela autoridade transferida quando, ao mínimo conflito de ideias entre mim e meus pares, bastava proferir “Meu pai é o delegado!”, e tudo se resolvia. Ele ria. Dizia que já carregava comigo o “sangue xerife”. A vizinha da esquerda era tão pequenina quanto a cidade. Cidadezinha com pouco mais de 20 mil habitantes. Resplandecia toda liberdade para alguém de tenra idade. Eu e minha Caloi Ceci. Faltavam quilô-


metros na cidade para tanta ânsia de pedalar. Ele nisso me iniciara. Levava-me ao cume de uma deserta avenida (e era a principal da cidade!) e segurava a garupa, testando meu equilíbrio, enquanto dizia sobre o guidão, o breque e os carros. Aprendi e, finalmente, pude sair a explorar. Era como me sentia: uma desbravadora. Daí veio minha fixação por árvores. Subir em árvores. Falar com elas. E só não parti para a Biologia por ter aprendido, ainda com quatro anos, a devanear pelo mundo dos signos. Não houve jeito, fez-se paixão. Aliás, o universo das palavras também me fora incorporado por ele. Jogávamos queimada na rua. Aquela vizinha, sempre tão bem humorada, resolveu nos convidar (a mim e a alguns amiguinhos) para um café em sua casa. Não teve filhos. Gostava de crianças. Entramos: foi fascínio. Amor eternizado. As flores, tão delicadas, vestiam-na de noiva. Era como ter nevado num dia de calor. Seu aroma me tornou grande apreciadora de olores. Majestosa árvore! Ao ver-me parada, Dona Inês pôs em prática seu dom pedagógico. Desses suados, conquistados com a vida. A mulher que havia cursado apenas até a antiga 4ª série era mais sábia que muito “dotô”, como dizia. – É uma jabuticabeira, minha criança! – e aproveitando para mostrar conhecimento (ela adorava!) – É uma árvore daqui da terra, do nosso Brasil. Foi ela quem, por suas incitações sempre poéticas e sutis, me abriu os olhos para a desigualdade, injustiça e tornou minha alma patriota enérgica. Ademais, plantou em mim a admiração pelo encanto ofertado pela natureza. Principalmente quando passei a perceber que tanto portento me proporcionava relações com minhas lembranças e, quiçá, com minhas memórias de um futuro bom. *** O tempo passara. A memória embalada pela brancura das flores e pelo magnetismo daquele cheiro. Sonhos construídos. Ele estava lá. Realidade em cacos. Ele estava lá. Febres, choros, machucados, pesadelos, incontinências urinárias. Ele estava lá. Agora. Mulher feita. Feita de medos. Ainda de pesadelos. Ainda de machucados e tristezas. Ele não está mais. Pausa. Lágrimas. Dor. Permiti-me embalar uma vez mais. *** Prestes a fazer oito anos. Notícia avassaladora. Minha ninfa brasileira seria cortada. Dona Inês, que falecera havia pouco mais de dois meses, deixara em testamento, orientada pela própria, a casa a uma


sobrinha. A essa altura, eu já havia sido apresentada ao romance O Meu Pé de Laranja Lima, e minha paixão por árvores tornara-se ainda mais intensa. Da calçada: – Por favor, moça! Deixa a árvore. Indiferença. – Moça, ela gostava da árvore e eu também gosto! Frieza. Reconheceu-se em mim o pior lado do homem. Sentia-me invisível. Tentei mais uma vez. – Ei, ei, ei! Ela dá lindas flores e frutas muito boas! Só me olhou. Nunca me esqueci: olhar impiedoso, penetrante, assombroso. Recuei. Não havia conversa. Corri. Daquela vez para os braços dele. Abraçou-me e me explicou sobre a vida, os homens, o dinheiro. Falou-me sobre a sensibilidade, as angústias e decepções. Aprendi. Ele estava lá. Eu estava lá. Era meu amparo, meu acalanto. Desespero. *** Um barulho. Assustei-me. Briga de saíras-militares. Tirou-me do transe. Levou-me o presente. Lágrimas escorridas. As jabuticabeiras em sua estação alva, coberta pelas flores e pelo cheiro. Sua ausência. Sua falta. Eu não sabia seguir. Não sabia retroceder. Não sabia encarar. Não queria acreditar. Não buscava entender. Abruptamente, invadiu-me aquela fragrância que, apesar de conhecida, se apresentou nova, e com ela a constatação de uma herança paterna: otimismo, tenacidade, resiliência, amor. A si, ao próximo e até mesmo a quem menos se deseja. “Eu jamais cortaria uma jabuticabeira!” Assim, meu inverno se fez em flores, e eu pude, enfim, caminhar. Caminhei. Eu caminhei...


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Por Naná Boletini Aspirante a poeta em tempo integral

Fala praquela menina Que é primavera E já é época De colher erros maduros Do pé de amores.

Leia escutando “Eu Caminho Sozinho” Letra: Carlos Eduardo Xavier e Jay Malaga Interpretação: André Luiz do Carmo


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a fotografia prenhe de Gabraz Sanna

por Raquel Nascimento Gomes >>


A poesia dos olhos adensa a fotografia de Gabraz Sanna; os olhos da poesia vêm do encontro do ser humano com o mundo tangível das coisas. Eidulis contemplante do cosmo visível das ruas, estradas e destinos. Ver é tocar a imagem, sentindo-a como uma pele revestida de conhecimento. Tocar, sentir e conhecer densamente a fotografia de Sanna é penetrar no mundo lírico que há no cotidiano. Olhar é a ação de pháos: olho e luz são diálogos que adentram as invisibilidades do cotidiano. Vir à luz é fotografar sob o signo de conhecer os pormenores do dia-a-dia. Visualizar é vidência, decifrando a vida através da ação de captar o tempo da imagem, o percurso das linhas do destino de cada foto evidenciada no alumbramento da imagem que revela o mundo. Fotografar é verbo ação. Poesia tecida pelos olhos. Olhos despretensiosos, mas atenciosos à luz que aparece e desaparece das ruas, ou mesmo das poças de água espreitadas pela curiosidade do fotógrafo em velar durante o clique o que existe diante de seus olhos: a revelação do dia a dia. Ver é tocar o mundo. Braço, corpo, mão. Mente, olho. Ver a partir da lente a janela que acessa a alma das coisas. Alma dos olhos – opheio – desejo de ver o retrato não como uma realidade empírica, o que ocorre na criação do fotógrafo é o acontecimento, ou o não acontecimento em posse

da poesia. Imagem vista no sentido primordial. Os antigos persas acreditavam no conceito de imagem como advindas da mesma raiz etimológica de magia. O fio da origem de uma tece o significado da forma de perceber a outra. Imagem é magia. Magia é a imagem inteligível do cosmos. Magie em francês vem da palavra grega mageia, que significa magos. Neste sentido, a fotografia possui a arte de empregar efeitos fantásticos através da manipulação do absoluto domínio do sobrenatural. Sanna manifesta em sua fotografia um olhar que se afasta da realidade empírica. A realidade compreende o inteligível, além dos vestígios do que é o documento subjetivo portado pelo fotógrafo: enxergar as invisibilidades. Logo notamos um retrato que se afasta das fotografias do século XVII, cuja premissa principal compreendia no retrato verossímil a tônica para a produção fotográfica. Fotografar tinha o significado de retratar a realidade pura e simplesmente como ela é. Verossimilhança ignorada pelos impressionistas que, com o pincel, captam a luz em suas pinturas. No Impressionismo, o tempo é tecido na pintura, que deixa de ter a visão estática do mundo. O tempo pregnante compõe-se de uma ideia que permite entender o movimento como uma maneira de retratar o mundo. Desta maneira, o tempo aparece dentro das bordas do quadro, antecedendo o borrão na foto-

grafia, exaurida pelo retrato fiel ao mundo. O método mecânico da fotografia permite que a captação desse movimento seja feita por meio da demonstração do instante prenhe. Deste modo, temos uma fotografia marcada pelo momento. Neste ensaio de Sanna, a pregnância na superfície da foto aparece pela imagem fantasmagórica da realidade prenhe do tempo. O parto do fotógrafo é a magia de revelar o tempo aos olhos que passam desatentos ao dia. O reflexo da poça de água deixa transparecer outra perspectiva sob a qual olhar o mundo. Suscintamente, a fotografia capta o instante. Prenhe, apreende o tempo. O borrão registra muito mais que a imagem, porque capta o tempo. O tempo registra muito mais que a ação, porque registra l’air da fotografia: ar invisível da vida, ou, podemos dizer: registrar o tempo.


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ENTRE OLHARES, LUZES E ESCRITOS ***

Em sua obra A câmara clara, Roland Barthes traz uma análise bem singular sobre a fotografia. Ela, Linguagem universal, passa a ser “lida” sob o ponto de vista dele, indivíduo. O que é a fotografia? Como se compõe a sua estética? Como se dá sua percepção? Ora, depende de como eu me sinto perante ela! Ela me tocou? Por quê? São essas questões sobre as quais apenas nós, indivíduos, podemos refletir ao dialogar com a imagem. Por isso, o que faz uma fotografia tornar-se boa – ou ruim – são os pontos de conexões subjetivos que estabelecemos ao admirar e ao “conversar” com um retrato fotográfico.

por Diego Pontes

ou fotógrafo amador, amante da fotografia, amante dos diálogos que S consigo estabelecer com a luz. Sendo assim, vejo a fotografia como indivíduo, porém não a vejo individualmente. Ela não é uma partícula isolada, um instante de 1/250s congelados e sem conexão com o mundo. Ela está ali, pronta para dialogar. Esperando nossos olhares de percepções. eu diálogo com a imagem, especialmente com as minhas imagens, M é feito através de livros, conversas, práticas e erros (muitos erros), que fui somando, milésimo por milésimo de cliques, sempre aberto às críticas e observações paralelas. Esses milésimos, então, tornaram-se fragmentos de tempo, os quais, se somados, resultariam em mais ou menos alguns segundos de vida, recortados e agrupados a partir de inúmeras vivências.

UM PA essa perspectiva, embora seja linguagem universal, a fotografia seria N órfã, seria iletrada, não fôssemos nós, os indivíduos que lhes depositam milhões de impressões e significados; não fôssemos nós, com nossos anseios e formas de interpretar e reinterpretar o mundo, retirando das imagens sentimentos que foram outrora “ceifados” pelo olhar de outro indivíduo muito especial, o fotógrafo!

Sem mais delongas, finalizo brevemente sobre fotografias de palco. Há algumas pelas quais tenho especial carinho. Foram momentos que tive o privilégio – ou a sorte – de eternizar. Porém, muito mais do que criações feitas por mim, essas imagens foram cocriações. Elas nasceram da soma. E somaram-se a partir de um diálogo. Foram conversas gostosas! Conversas em meio a danças, luzes, sombras e dramas. Fotografar palcos é um desafio, exige prática e antecipação. É preciso conversar com os artistas, com o “rapaz da luz”, é preciso sentir a peça, antes mesmo de ela ser encenada. E o mais gostoso? Você sempre se surpreende com a mesma. Para nós fotógrafos, são esses fatores que mais contam ao fotografar. Não é o clique em si, e sim o proces-


so de criação da fotografia. Para nós, fotógrafos, o “palco” não é somente um diálogo artista-plateia, nele há também o diálogo artista-luz. As expressões mudam muito com a luz. O fundo preto é algo crucial, ele destaca os protagonistas da encenação. Deixa a cena ainda mais única, expressiva. Para a fotografia, é algo sublime. São dois os momentos capturados na fotografia de palco. O primeiro é a cena como ela é. Resume-se ao ato fotográfico, é a captura do acontecido. O se-

gundo, para mim, é o melhor. É o recorte da arte e a junção das artes. É a eternização da obra de dois artistas que, juntos, formaram um texto. Um texto passível de ser lido, sentido e refletido. E podem, agora, contar uma história. Para alguns, pode até gerar um papo legal, para outros, nem tanto. Talvez isso seja o mais apaixonante em uma imagem fotográfica. É a sua capacidade de se relacionar e revelar impressões. É a sua liberdade de depositar e ser depositada em emoções.

ALCO


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|visite: insensateza.wordpress.com |

por Lívia Pellegrini

FOTO: Diego Pontes

eis que do lado de cá há rumores que do lado de lá muralha já não há e sim! brotam a todo instante cores sem que haja fim para os amores nada que não haja do lado de cá e já que nada morre lá e cá lado não há assim o que há de haver senão o que não começa nem termina?


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ENTREVISTA

JOÃO BATISTA DE ANDRADE por Priscila Sales e Guilherme Providello

O

s trabalhos do cineasta e escritor João Batista de Andrade – e aqui o plural não é mera concordância gramatical – sempre estiveram presentes no cotidiano dos entrevistadores que aqui escrevem. Seja por meio da imagem em movimento, dos passeios pelas páginas de seus livros, das discussões na mesa do café sobre os temas que seu trabalho provoca ou mesmo colhendo os frutos de suas políticas culturais que ressoaram aqui, numa cidadezinha do interior. O contato, pouco formal pelas redes sociais, permitiu-se avançar, e a receptividade generosa pelo universo virtual nos levou ao Memorial da América Latina para uma entrevista. Ou melhor, para um diálogo, porque observamos naquele momento manifestar-se sua capacidade de intervenção: um roteiro de

perguntas que vimos se desdobrar em outras paragens. Não poderia ser diferente, estávamos diante de uma pessoa cindida entre emoção e razão. Como nos contou: “sou uma pessoa essencialmente emotiva e acho que essa racionalidade veio para me aguentar”. Dono de uma trajetória marcada pela história política brasileira dos últimos 50 anos, suas obras enunciam uma vontade de intervir e provocar a sociedade. Por meio de um percurso criativo e distante de um discurso polarizador, elege o diálogo como ferramenta para incitar a reflexão. Neste caso, pouco importa se tem em suas mãos uma câmera ou uma caneta. Cineasta engajado – mas que não se importa em vestir uma gravata para atuar na direção de instituições culturais – trouxe às telas mais dúvidas do que certezas. Juntamente com


outros cineastas, ousou levar à TV documentários que mostravam “um Brasil não oficial”: um ruído que versava contra a autoridade e o conformismo. Uma vasta obra cinematográfica que não nos deixa esquecer a complexidade de um passado de ditadura: não para nos lembrar que esse passado existiu, mas para discutir esse passado em nossa atualidade. João Batista de Andrade transitou por diversas esferas: da militância dos movimentos sociais na década de 1960, criou produtoras e festivais, escreveu livros, seus filmes ganharam o mundo e diversos prêmios, produziu documentários para TV, trabalhou na Cinemateca Brasileira, foi Secretário da Cultura do Estado de São Paulo e atualmente é presidente da Fundação Memorial da América Latina. Não por acaso, em 2014, recebeu o Prêmio Juca Pato como “Intelectual do Ano” e o Prêmio de Direitos Humanos da OAB. Enfim, uma trajetória intensa, multifacetada e cheia de inspirações tão cultivadas no palco da arte e da política, ou da política e da arte, distinção realmente difícil de mensurar. Sensível às questões sociais travestidas em imagens, literatura e ações, João Batista de Andrade observa “tenho uma relação direta com a vida”, axioma presente em cada linha desta entrevista.

Acesse a entrevista na íntegra pelo site e tenha acesso ao vídeo deste encontro - www.circus.org.br

CIRCUITO: Você foi Secretário de Cultura e responsável pela criação do ProAC, que, inclusive, possibilita a revista Circuito em sua versão impressa. Primeiro gostaríamos de saber sobre o contexto de criação do ProAC. Segundo, passados 10 anos da criação do ProAC e pensando nas duas formas de financiamento, estatal e empresarial, tão defendidas por você naquele momento, como você avalia seu impacto para o campo da cultura? Essas duas formas de financiamento têm cumprido seus papeis? JOÃO: Bom, fui Secretário de Cultura do Estado de São Paulo em 2005, isso depois de um longo afastamento de São Paulo. Devido ao plano Collor, que acabou com a minha carreira, fui para o interior do Brasil em 1990, um autoexílio que durou 12 anos. Não queria saber de nada não! E olha que recomecei minha carreira lá também. Depois de alguns anos, criei uma produtora eu voltei a filmar. No final de 2002, voltei para São Paulo. E foi engraçado, porque eu achei que estaria completamente

por fora. Eu passei muito tempo isolado no Brasil central, no cerrado, mas quando voltei parecia que o tempo tinha feito uma dobra, puxado o tempo que eu tinha ido embora e emendado com o tempo em que eu voltei. O convite para Secretaria de Cultura se deu muito pelo fato de que, quando voltei, fizeram uma bela mostra do meu cinema, e logo em seguida outra mostra grande, sobre o Globo

EU NÃO CONCORDAVA COM A VISÃO QUE ELES TINHAM DE POLÍTICA CULTURAL, PORQUE EU ACHO QUE NÃO PODE BUROCRATIZAR O GOVERNO, MONTA-SE UMA MÁQUINA TERRÍVEL QUE SE MOSTRA IRREAL! Repórter do qual eu fiz parte nos anos 70, que era um programa de cineastas, eu era um deles, e meus filmes tiveram muita repercussão: eram filmes muito autorais, muito fortes, ligados às questões sociais. E foi um espanto para as pessoas

verem aqueles filmes, muita gente nova para pensar, gente que tinha perdido o contato comigo. Foi o maior espanto para mim, e acabei sendo convidado para a secretaria. Na secretaria, eu acabei percebendo o seguinte: existia uma luta aqui, desde meu tempo de estudante, por um programa cultural de São Paulo. O Governador era o Geraldo Alckmin, que foi quem me convidou – e o pessoal trabalhava muito com parlamentares da oposição na Assembleia Legislativa. Então, como secretário, eu disse: “para começar é o seguinte, se quer criar um programa de cultura precisa ter o governo”. Cultura é um problema que compete ao governo do Estado. Eu acho que não tem muito sentido trabalhar pedindo para o governo fazer um plano de cultura e trabalhar com os deputados de oposição (risos). Tudo bem, os deputados de oposição incorporarem e apoiarem, sugerirem fazer parte do processo, isso faz sentido. Quando fui convidado, falei para o governador que queria elaborar um programa para a cultura, a resposta foi positiva.


Iniciei a discussão, mas eu achei que faltou um componente democrático, por exemplo: “Poxa vida!” doze anos fora, para depois voltar a discutir com um pessoal que ficou aqui batalhando. Era assim:

FAZIA QUINZE DIAS QUE ESTAVA AQUI, EU PEDI PARA CONVOCAR REPRESENTANTES DAS ENTIDADES MAIS OU MENOS LIGADAS COM CULTURA DESSA REGIÃO [...] EU FIZ UMA REUNIÃO GRANDE AQUI E ELES FICARAM EMOCIONADÍSSIMOS. SABE QUAL ERA A PERGUNTA RECORRENTE: A GENTE PODE ENTRAR? Ribeirão Preto representa tanto do PIB, então teria que ter 4,75% dos incentivos fiscais, uma democracia puramente burocrática. Eu não concordava com a visão que eles tinham de política cultural, porque eu acho que não se deve burocratizar o governo, monta-se uma máquina terrível que se mostra irreal! Eles bateram o pé, eu estive em duas audiências públicas na Assembléia Legislativa: foi a primeira vez que um secretário de cultura foi a uma audiência pública, discutir política cultural. Foi um debate muito amplo e não abri mão da minha visão: tem que ser uma coisa mais livre, quanto mais janelas abrirem, melhor, ao contrário do que se propunha, que era um fundo de cultura com condições para balizar um projeto. Eu tenho quilometragem de produção cultural, de realização pessoal e conheço vários modelos: a participação do estado na cultura, não tem nenhuma que é muito boa, todas elas são problemáticas, interferem na produção cultural,

então tem que fazer o máximo de abertura possível. Naquele momento, tinha três possíveis: uma para uma TV, outra para incentivo fiscal e o edital. Por exemplo, se o produtor cultural não ganha um edital, tem a chance de procurar um empresário, e se tiver a TV, tem a chance de o julgamento da TV ser diferente, porque cada um tem um defeito: o empresário costuma julgar: “ele só olha o dele”. Mas todo mundo “olha o dele”! Essa afirmação, “o empresário só vai produzir obra reacionária ou então alienada”, não é verdade, por mais crítico que a gente seja a qualquer modelo, pois existem peças de teatro e filmes malditos que tem apoio empresarial. É contraditório! A vida não é tão simples como as pessoas querem que seja, tudo no seu quadradinho, e, assim, não se faz nada fora. Não é assim! As comissões internas, por exemplo, não são perfeitas: as corporações dominam as comissões, e o momento político também. Por exemplo, o secretário de cultura da prefeitura, Carlos Augusto Machado Calil – inclusive, me relaciono muito bem com ele – queria fazer o seguinte: fomentar produções cinematográficas, mas tinha que ser sobre São Paulo. Contudo, se o cara nasce em São Paulo, ele é um cidadão do mundo. Se quiser falar de Beirute, qual o problema? O problema é que o estado dá o dinheiro e se dá o direito de dizer o que você tem que pensar! Eu falei: o estado não é esse paraíso que vocês estão pensando. Então resolvi fazer o programa sem aquela democracia burocrática que eles propunham e, ao mesmo tempo, criando janelas, o incentivo fiscal e o fundo para editais. Não consegui incorporar naquele momento a criação de um programa na TV, mas criei depois um programa de telefilmes que existe até hoje na

TV Cultura, e assim disparo a produção de filme através do ProAC. Eu criei muito mais janelas do que se propunha, mas foi difícil. Se fosse para renovar a lei agora, eu ia estudar outras possibilidades. Por exemplo, o Estado e a Assembleia Legislativa criariam uma comissão de seleção e um centro empresarial criaria outra. Enfim, abrir a possibilidade de seleção. Estar na mão do Estado não é necessariamente melhor do que estar em outras mãos. Então foi assim, muito rápido. Tive apoio do governador para fazer, mas eu corri atrás. Das próprias comissões eu corri atrás e tinha muita resistência. Então, em um ano essa lei estava feita, e no ano seguinte eu apliquei a lei, entreguei os 500 primeiros prêmios.

CIRCUITO: E pensando as cidades do interior: como poderia ser estruturada uma política cultural que não deixasse os produtores reféns dos editais? JOÃO: Para o interior, eu pensava assim: eu sabia que ia ser importante, porque eu tinha uma relação muito grande com o interior. O pessoal costuma falar que eu era o único secretário da cultura que atendia o pessoal do interior. Quando me ligavam, prefeito, secretário, eu atendia pessoalmente. Política cultural tem que ser com uma abertura muito grande, se não vira uma ditadura cultural. E esse é o erro das prefeituras, é muito claro o porquê disso. É uma relação de respeito com a liberdade da produção cultural, com interferência mínima. Eu dizia para os prefeitos: o importante é criar também uma lei municipal. Eu cheguei a formular uma ideia de lei, pois pode ter um dinheiro também para as comissões, e pode ter um incentivo fiscal, IPTU, serviços, coisas assim. Porque o produtor


cultural que está numa cidade do interior e tem um apoio local vem mais forte para competir na lei estadual. O produtor que tem a lei estadual está mais forte para competir na esfera federal, uma coisa vai fortalecendo a outra. A idéia é sempre diversificar a relação do produtor cultural com o Estado, não submeter o produtor cultural aos mandos do Estado.

CIRCUITO: Como diretor do Memorial da América Latina, você declarou diversas vezes ser contra a subdivisão da cultura e em prol de um espaço que abarque a pluralidade cultural. Como tem se dado essa gestão? Qual o impacto e receptividade?

JOÃO: Eu vim para o Memorial com essa visão que eu tenho sobre política cultural. Eu achava o Memorial extremamente fechado nele mesmo, e com acontecimentos que mais valorizavam quem estava aqui do que serviam a po-

pulação. Quando iniciei a minha gestão, eu até criei um novo slogan: “Memorial: espaço público da cultura”, com a ideia de valorizar não só o que está aqui dentro dos prédios, mas também a praça e o espaço, dizendo o seguinte: quem vem para a praça está cercado de ofertas culturais e vai aprender a visitar a galeria, a Biblioteca Latino-americana, vai ver o Portinari, o Pavilhão da Criatividade, vai ver o que eram os povos originais da América. Fazia quinze dias que estava aqui, eu pedi para convocar representantes das entidades mais ou menos ligadas com cultura dessa região: jornais de bairros, Metrô News, Lions, Rotary, entidades que trabalham com jovens, sociedades de amigos de bairros, uma quantidade grande de entidades. Eu fiz uma reunião grande aqui e eles ficaram emocionadíssimos. Sabe qual era a pergunta recorrente: a gente pode entrar? Foi aí que eu criei esse slogan para responder a Foto: Bruna Sanches (Memorial da America Latina)

eles. Imagina como era a relação antes: não é que os caras eram ruins, mas não tiveram essa preocupação. Sabe, aqui no metro passam 300 a 400 mil pessoas por dia. Como é que eu posso virar as costas para essas pessoas que vêm de longe? Batalhei assim, um acordo com o metrô para poder interligar mais o metrô com o Memorial, e resolvi criar uma praça da cultura com eventos aos sábados e aos domingos, e aí o pessoal começou a aparecer. E dizia: não vejo diferença, a não ser de forma e mais ou menos de intensidade, entre culturas. Por exemplo, o Palhaço na praça é uma representação cultural tão forte quanto uma orquestra sinfônica. O palhaço joga com o comportamento do outro, a forma do outro, a malandragem oculta do outro. É um personagem que a humanidade viu uma forma de representação do próprio ser humano, uma grande comédia. Eu sou o maior fã do palhaço, porque


uma das sagas da origem é o indivíduo que perante a população se mostra como sendo o pior de todos, o mais feio, o mais ridículo, o mais vagabundo, o mais falso, o mais traidor, tudo o que tem de pior. Todo mundo adora, não sabe que estão falando deles [o público]! Então, o que eu dizia: tem

basicamente, em 10 dias, foram 20 mil pessoas visitando a exposição; aproveitavam e entravam no Pavilhão da Criatividade e já ficavam sabendo o que era o Memorial, ao mesmo tempo satisfaziam o desejo, ficavam na fila horas para ir lá ver o cenário do Chaves. Então, tenho o maior prazer de ter feito.

O FILME QUE, POR INCRÍVEL QUE PAREÇA, TOCOU NISSO DE UMA FORMA MUITO FORTE FOI O MELANCOLIA [...] NO 3° FESTIVAL, ESCREVI NO JORNAL SOBRE DUAS COISAS QUE ME CHAMAVAM À ATENÇÃO: O RELATÓRIO, E A ALEGRIA DE MUITA GENTE, PORQUE TINHAM DESCOBERTO UM PLANETA MUITO LONGÍNQUO E MUITO PARECIDO COM A TERRA. ERA MUITO COMUM CONVERSAR COM AS PESSOAS E AS PESSOAS TEREM UM CLIMA DE SUCESSO: “JÁ TEMOS PARA ONDE IR!”. O QUE SIGNIFICAVA ISSO? JÁ TÍNHAMOS DESISTIDO DA TERRA! que ter palhaço na praça, circo na praça, pipa, teatro de rua e tudo quanto é coisa que puder. E bons shows do mais alto nível aos mais populares. Assim, o Memorial foi mudando nesse sentido. Por isso, a frase fazia sentido: o Memorial é um espaço público da cultura. É dessa forma que estamos trabalhando, com muita dificuldade, porque o espaço é muito grande e o orçamento muito pequeno para o espaço. E orçamento, por mais boa vontade e boas relações, não muda, ainda mais em época de crise. Cheguei aqui há dois anos e pouco, as coisas difíceis, aí você pensa: o orçamento aqui é 16, 17 milhões, mas deveria ser 30 milhões. Isso não existe, o Estado é uma coisa que, para mudar, demanda certo esforço, ir pensando em novos sentidos, convencendo os secretários das áreas. Então, eu tenho que trabalhar com esse orçamento e ter bastante criatividade para tocar um projeto. Mas o Chaves foi fruto dessa visão ampla que tenho da cultura sem preconceito. E foi espetacular, porque,

Aliás, eu gosto do Chaves, sem preconceito. Aquela coisa, eu gosto do Beethoven e gosto de uma coisa de raiz.

CIRCUITO: Você participou de várias instituições que articularam cultura e meio ambiente, tal qual a CIRCUS, da que fazemos parte. Como se deu seu envolvimento com esses campos e como avalia o diálogo dessas esferas no Brasil de hoje?

JOÃO: Olha, eu instaurei em Goi-

ás o FICA, o maior Festival de Cinema e Meio Ambiente. Era uma ideia que existia no governo, então organizei e dei forma para ela em 1989. Fui até o 3º, depois eu vim embora e saí da organização. Ele continua com muito sucesso. No 3º, eu levei para Goiás cientistas brasileiros que tinham participado do relatório do meio ambiente da UNESCO e debateram o tema por três dias. Quando foi? Acho que em 2002, logo que saiu o relatório do meio ambiente, um relatório terrível, riscos muito grandes, a “causa humana”. Apontava-se para que o meio ambiente passasse a ser um

tema quase que obrigatório da cinematografia. Dessa forma, participei também em Goiás da criação de outra instituição independente que tratava de cinema ambiental, direitos humanos, cultura e meio ambiente. Eu fui presidente e criador, junto com duas moças de Goiás. Foi criado na minha casa. Articulo, hoje ainda, um festival de curtas que faz muito sucesso. O pessoal de Goiânia gosta muito, tem um pessoal muito bom. Quando voltei para São Paulo, fiz parte de outra entidade que se chama Festival Ecocine. Eu achava que isso seria uma coisa cada vez mais forte no cinema. Eu confesso que não aconteceu muito isso. Foi o intuito do FICA, mas parece que na época o cinema sobre o meio ambiente não explodiu como achava. A questão ambiental está cada vez mais forte, mas vejo que reflete pouco no cinema. Eu achava que ia ser mais forte, pelo peso que tinha aquele relatório do meio ambiente. Mas olha: é um assunto que está em pauta hoje em dia, o cinema comercial tem falado muito de um final apocalíptico, fim do mundo, evasão espacial, terremoto, maremoto, tsunami, explorando por meio de uma visão muito comercial. O filme que, por incrível que pareça, tocou nisso de uma forma muito forte foi o Melancolia. Esse filme captou o clima do qual eu tinha falado quando fiz o festival lá. No 3° Festival, escrevi no jornal sobre duas coisas que me chamavam à atenção: o relatório, e a alegria de muita gente, porque tinham descoberto um planeta muito longínquo e muito parecido com a terra. Era muito comum conversar com as pessoas e as pessoas terem um clima de sucesso: “já temos para onde ir!”. O que significava isso? Já tínhamos desistido da terra! Eu tinha razão, em 2002: o comportamento humano


hoje é assim, torcendo para aparecer outro planeta, dizer como é que vai, como que a humanidade pode povoar esses outros lugares. Se formos sondar, uma porcentagem alta desse sentimento, não é qualquer coisa!

CIRCUITO: Sua formação se deu dentro do movimento estudantil e também do movimento cineclubista. Posteriormente, seus filmes foram distribuídos pela Dinafilme. Na produção, você fundou diversas produtoras. Tendo participado em várias esferas do cinema – produção, direção e público – perguntamos: existe saída para essa problemática histórica do cinema brasileiro que é o de fazê-lo chegar ao público? Qual o papel e o lugar dos cineclubes hoje?

JOÃO: Não sei, porque de certa forma o cineclube foi para a telinha. É muito difícil todo esforço de recriar a cultura: deslocar as pessoas para ver um filme especial numa sala não é muito fácil. E o sentido de militância cultural também caiu muito. Porque a tecnologia obstruiu um pouco a mobilidade das pessoas, você não precisa sair de casa para assistir um filme, você compra pela internet e vê em casa. Antes comprava-se o DVD nas lojas, agora compra pela internet. Encontramos também essa dificuldade de deslocamento: insegurança, trânsito, flanelinha, local para estacionar, preço

de estacionamento. O cinema no shopping, onde paga-se estacionamento, a pipoca que vale dois reais na rua você paga dez no cinema. Então o cineclube sofre com a dificuldade desse deslocamento e com a perda do sentido de militância, temos o sentido de consumo que é o que a atual tecnologia propicia. É um momento de porre: parece um bando de crianças com um brinquedo novo, que é a internet. Eu acho que só o tempo para dizer para a gente, eu acho que dificilmente vai voltar como era. No tempo da Dinafilme, meus filmes eram muito procurados, muito gente locando esses filmes, e levavam para lugares clandestinos para discutir as temáticas que levantavam: educação, alimentação e transporte. Então, a minha tese é que ninguém mais vai até a distribuidora para pegar uma cópia, baixa-se um DVD ou do Youtube e exibe-se numa tela, e, se quiser um negócio com mais qualidade, foca-se num projetor. Vai ter que se adequar a isso e trabalhar. Por exemplo, quando um grupo cria o Canal Arte e o Canal Curta! está fazendo um cineclube. Bastaria que ele fosse mais aberto a uma participação mais ativa. O próprio espectador participando da programação com sugestão, que tivesse um momento de debate, seria um belo cineclube, sem ter que se deslocar.

“O LULA MESMO NUM DISCURSO OUTRO DIA FALANDO PARA OS OPERÁRIOS, UMA COISA QUE EU NÃO GOSTO DELE, PORQUE ELE DIZIA “EU, POR EXEMPLO, NÃO ESTUDEI, OLHA MEU EXEMPLO VOCÊS TAMBÉM PODEM CHEGAR LÁ”. PERGUNTO: CHEGAR LÁ O QUÊ? ONDE? O QUE É CHEGAR LÁ? CHEGAR LÁ É UMA ILUSÃO BURGUESA, É UMA VISÃO CONSUMISTA. A RELAÇÃO QUE EU TENHO É MUITO CRÍTICA MESMO COM A PESSOA DE QUEM ESTOU AO LADO.”

CIRCUITO: Mas o que fazer diante desse aumento da produção do cinema brasileiro que não chega ao público. Qual a solução pra isso? JOÃO: Nós vivemos um momento

de estranhamento com relação ao próprio país. Você vai à internet, quais são as brincadeiras: “devolve para os índios e pede desculpas”, “chamam os portugueses de novo, as caravelas e tudo, levam o que é de vocês”. É uma brincadeira, mas como é que uma brincadeira surge assim tão frequentemente nas redes? É um sentimento de que não tem jeito, uma desconstrução enorme do Brasil. Filmes sobre o Brasil não tem muita gente querendo ver. Então, mesmo numa fase relativamente boa do cinema brasileiro, tem essa barreira, às vezes o pessoal prefere filmes de fantasia e ação que é o que domina o mercado. Mas, você vai ver os filmes brasileiros e dá tristeza: sempre poucas pessoas, é muito raro dobrar a semana. O filme está lançando numa sala, passado uma semana, ele está em outra sala pequena em um horário. Agora, eu acho uma coisa muito difícil de analisar, você tem que analisar um complexo de dificuldades brasileiras. As livrarias, por exemplo. Eu sou escritor também, no lançamento do meu livro Confinados, na Saraiva, tinha muita gente, repercutiu pra burro, ganhei prêmio, ganhei Santa Pátria. Passei lá, para ver se tinha um livro meu, procurei na estante e nada, perguntei para o vendedor: “só sob encomenda”. A livraria enorme, aquelas mesas com livros de auto-ajuda, aí tem uma estante assim “Literatura Nacional”. Eu pergunto: literatura nacional? Quem disse que eu sou nacional? Quem falou que só porque nasci no Brasil eu sou nacional? Eu sou brasileiro por razão de estar aqui. Se quiser chamar de


literatura brasileira dá-se um sentido para literatura feita no Brasil. Já com literatura nacional espera-se um sentido de nação, é muito ligado ao nacionalismo. Quem vai escrever lá “Thomas Mann: literatura nacional alemã” ou “Stendhal: literatura nacional francesa”? A própria relação do povo brasileiro com o mercado brasileiro e das instituições brasileiras com a cultura brasileira é muito ruim. Quem tem algum interesse é o Estado, que se preocupa, cria sala, memorial, o teatro, leis de incentivo. Agora, as próprias instituições que trabalham com cultura têm essas preocupações absurdas como, no meu caso, o livro que lancei lá foi um sucesso, ganhou prêmio, todo mundo elogiou. Chega lá, não tem um livro para vender. Você tem que concordar que dá para desanimar. Você vai lá procurar Graciliano Ramos e é maior dificuldade para achar. Então, é isso. Brasil é complicado, não é à toa que existe uma crise das pessoas e das entidades com o próprio país.

CIRCUITO: Continua acontecendo o mesmo que com seus filmes. Saem do Brasil, vão para os festivais, fazem sucesso e ganham prêmios... JOÃO: No caso d´O homem que virou suco não foi bem no circuito quando lançado. Saiu do circuito e, acho que um mês depois, ganhou o Festival de Moscou. Voltou para cá e eu não aguentava mais falar do filme, de tanta repercussão. Porque era medalha de ouro num festival muito grande – tinha uma quantidade enorme de filmes do mundo inteiro, filmes americanos, franceses, japoneses, soviéticos, italianos, uma competição grande. Quando o filme voltou para o mesmo circuito, a repercussão foi enorme. Daí os cineclubes começaram a distribuir e ninguém aguentava tirar mais cópia do filme. O filme

não parava de se ser exibido, o negativo virou um bagaço, foi preciso fazer restauro. E eu tenho o sistema de captura pela internet, e é raro o dia em que o filme não está lá no alerta do Google. Inclusive, há alguns meses atrás foi lançado um livro sobre a questão do capitalismo nas grandes metrópoles, uma análise do capitalismo através dos filmes nas grandes cidades. O livro deve ter 200 e poucas páginas. Tem 70 páginas sobre O homem que virou suco.

CIRCUITO: Você passa a imagem de um homem de ação que sempre reinventou sua carreira mesmo com toda adversidade, enfim, toda uma imagem de otimismo e ação Apesar disso, diz que seu cinema é marcado pela perda, pelo abismo social e seus personagens raramente não viram “suco”. Você é um sonhador ou um crítico da sociedade? Como você lida com essas duas esferas?

JOÃO: Acho que tenho um pouco

das duas coisas. Eu gostaria muito de me entender também. Nos últimos anos, eu comecei a perceber uma coisa: eu tenho uma racionalidade muito grande, numa conversa destas, por exemplo, eu sou muito articulado. Então, não sou uma pessoa muito fácil, porque eu tenho conhecimento e vivência de leitura, de estudo, discussões e tal. Então, para discutir a realidade comigo tem que ter muita bala na agulha. Mas descobri que sou uma pessoa essencialmente emotiva e acho que essa racionalidade veio para me aguentar – estou falando com você e já estou emocionado. É impressionante, sou essa emoção, então a estrutura que eu montei pra mim, o aprendizado de uma relação mais racional com a realidade, foi uma necessidade diante tudo. Olha, quando eu vim para São Paulo eu era um perigo! Eu via injustiça na rua! Quantas vezes

eu ia para cima, era de uma fúria, um incomodo terrível. Então, não podia ficar assim, tinha que passar a entender melhor, com a prática teórica também, fui criando essa estrutura racional. Que é terrível! Tem muita gente que me acha terrível, que vem discutir comigo e, no final, a pessoa fica calada me ouvindo porque sou muito pesado. Mas eu sou essencialmente essa emoção que está muito ligada a uma insatisfação imensa com o mundo, com a desigualdade, com a injustiça. Mas eu não sou paternalista. Por exemplo, o meu filme Wilsinho Galiléia foi proibido, e eu queria fazer a seguinte pergunta: por que que um menino preso com nove anos por roubar uma fruta se transformou em um facínora com 18 anos? Por que a polícia o matou? O filme começa com o delegado falando o quanto ele era violento e bárbaro por matar amigos e até enfiar caneta no ouvido de outro garoto. O ator que faz o Wilsinho olha para a câmera rindo enquanto o delegado estava falando essas barbaridades dele. Não estou falando que ele não é facínora, estou dizendo o seguinte: esse menino tinha nove anos quando foi preso pela primeira vez, por uma razão fútil. O que fez esse menino virar esse facínora? Trata-se da origem social da violência, a falta de saída na infância. Conversando sobre isso com o Vlado, um dia ele disse: é compaixão. Então, eu sou muito crítico, uso uma frase minha que mede um pouco do que eu faço, a minha relação com a população, com os próprios movimentos sociais. Eu digo: “eu estou do seu lado, mas nem sempre eu concordo com você. Mesmo para estar do seu lado, às vezes me sinto obrigado a estar contra a sua opinião”. Não tem paternalismo. Quer ver uma coisa engraçada, uma vez filmei um programa na


TV em que um cara que tentava resolver a vida dele inventando formas e métodos para criar coisas, como lâmpadas que não apagavam. Ele mostrava que parecia que dava certo. Mas eu tinha uma coisa em mente: bom, mas como é que você pensa que vai mudar a vida, o que vai acontecer com você? Ele disse “trabalhando uma hora eu chego lá!” Antes dele falar isso eu já pensei em perguntar:

que ser honesto com ela, não posso passar a mão na cabeça e dizer “você é um coitado”, aí é uma traição, você precisa ter capacidade de dar uma visão para a pessoa partir para uma análise. Fiz muito isso, principalmente com as lutas sociais e os conflitos sociais que filmei, os filmes eram profundamente críticos à forma. Acontecia que, muitas vezes, o pessoal ia à TV pra pedir uma cópia do filme.

assistir, eu estava preocupada com elas, não ligava para o resto. Ligava porque os outros iam ver aquilo como arena, mas o importante era o diálogo com aquelas pessoas, diálogo crítico. Então, sonhador no sentido de que o que estava por trás era a utopia de uma sociedade que não tivesse essas coisas.

CIRCUITO: O que significou o seu autoexílio para sua cinematografia, e mesmo a nível pessoal? E ainda: como é produzir no interior?

JOÃO: Isso foi uma coisa impres-

José Dumont no filme *O homem que virou suco Foto de 1980 [Acervo Cinemateca Brasileira/SAv/MinC]

“chegar lá onde?” Porque “chegar lá”, na expressão, era um valor. E que valor era esse? É ficar rico, chegar lá. O que é chegar lá? O Lula mesmo num discurso outro dia falando para os operários, uma coisa que eu não gosto dele, porque ele dizia “eu, por exemplo, não estudei, olha meu exemplo vocês também podem chegar lá”. Pergunto: chegar lá o quê? Onde? O que é chegar lá? Chegar lá é uma ilusão burguesa, é uma visão consumista. A relação que eu tenho é muito crítica mesmo com a pessoa de quem estou ao lado. Agora, é a concepção que eu tenho também do meu papel como intelectual: se quiser mudar a sociedade, tenho

E nesse diálogo com o movimento eu fazia algo quase revolucionário que era dizer que a TV atira quase para todos os lados, não sabe para quem está atirando, mas quando eu ia num bairro filmar: problema de briga de classe média com favela, problema de migrantes vivendo embaixo de viaduto, grilagem. Então eu pensava: a TV atira para todos os lados, mas eu estou fazendo o filme para estas pessoas, só pensava nelas. Então, eu transformava a TV, ideologicamente, para aquelas pessoas verem, porque todo mundo assistia. Então eu chegava ao bairro pra filmar e as pessoas perguntavam: que horas vai passar na TV? Eu sabia que a população ia

sionante, porque em 1990 eu perdi o maior filme da minha carreira, que era o filme sobre o Vladimir Herzog. Uma coprodução internacional inédita no cenário brasileiro, com quatro países envolvidos, distribuidor internacional e contrato assinado com a TV espanhola. Veio a política do Collor e congelou os recursos. Fui para o interior de Goiás e lá vivi de certa forma isolado. Quando chegou por volta de 1995 – meu último filme era O país dos tenentes, de 1978 – eu não aguentava mais: eu queria fazer um filme nem que fosse em xerox, qualquer coisa! Consegui, assim, ganhar um concurso, um dinheirinho vagabundo para fazer um filme em Brasília, o filme O cego que gritava luz. Foi quando o pessoal de Goiás começou a descobrir que eu estava encantoado lá na cidadezinha do interior. Eu entrei num ambiente de Goiânia, carente de cinema. Viram-me assim [risos], como uma possibilidade cinematográfica. O próprio governador depois foi me procurar por intermédio de amigos da época de militância no movimento estudantil, antes de 1964. Tudo isso se espalhando acabou criando um movimento de cinema em Goiás. Quando fui fazer o Festival de Cinema, o Marconi me convidou, levei um monte de gente, a essa altura já estava mergulhando


no cinema cheio de projetos. Foi quando resolvi fazer O Tronco, do escritor goiano Bernardo Élis, que também foi do Partido Comunista Brasileiro, mas não por isso – quando conheci sua obra nem sabia que ele era ligado ao partido – mas porque eu sempre gostei muito do livro, um escritor brasileiro sensacional. Consegui o dinheiro porque quando o Sérgio Motta era ministro da Comunicação, ele me ajudou também, começou a pegar

Miguel Jorge, melhor escritor da nova geração. Acabei adaptando o romance dele e filmando em uma visão muito política da história. Fiz também um filme chamado Vida de artista, sobre um artista extremamente complexo: fiz sozinho só eu e uma câmera e com ele ganhei um prêmio em 2004 de melhor filme na Mostra do Filme Livre no Rio de Janeiro. Muito filme pegando essa onda digital. Então, fui voltando a toda e fiz uma obra lá. Falo

estrutura de racionalidade pura, essa capacidade de explicar as coisas porque, ao contrário, não tem como se defender. Mas você não sabe o que é! É uma ligação tão forte! Estava na estrada e vi aquele andarilho: vocês não imaginam como eu sou filmando! Eu disse: “PARA! PARA! Pega a câmera e grava isso! Não corre, corre!” O Chico Botelho saiu correndo, caiu no chão e virou até piada porque quando ele caiu e eu disse: “Chico vai filmando, liga essa câmera!” E ele, filmando, desceu um barranco caindo. Eu perguntei: “é... estragou alguma coisa?” (risadas) Eu preocupado com a câmera porque eu tinha que filmar o cara! É impressionante. Mas é isso que falo, é uma coisa que a racionalidade não controla, depois tem que ter uma racionalidade para explicar. Mas não se controla, é uma entrega muito grande. Eu convivi muito com isso, uma emoção terrível. Tem coisa que eu não consigo nem falar, como a história do Vlado.

CIRCUITO: Para encerrar, gostarí-

João batista de Andrade no filme **Wilsinho Galiléia Foto de 1978 [Acervo Cinemateca Brasileira/SAv/MinC]

o dinheiro do incentivo fiscal da empresa e jogar no cinema. Meu filme foi aprovado e levei todo mundo para fazer cinema, muito gente aprendeu a fazer cinema comigo: técnico, assistente, cenógrafo. Então, criei um movimento em Goiás, fiz uma obra, contando com: O cego que gritava luz, que foi feito em Brasília; O Tronco, em Goiás; depois Rua 6, Sem Número (ficção/2003), e um documentário sobre a restauração da Igreja que tinha queimado; um filme sobre o caso Matteucci, que é o massacre de uma família nos anos 1950, contado no livro Veias e Vinhos de

que partiu de uma energia. Não digo que não a tenho mais, mas não sei como eu conseguia.

CIRCUITO: Seu cinema é marcado por constantes “ feelings”, uma espécie de inspiração que até já foi nomeado como “cinema de intervenção” numa perspectiva política. Como você trabalha com esses improvisos na hora de filmar? Interessante foi o “ feeling” do andarilho no filme Céu aberto...

JOÃO: Eu trabalho muito com isso, como já disse, sou pura emoção. Eu tenho uma ligação com a vida direta. Eu acho que eu criei essa

amos de saber sobre seus próximos projetos no cinema e na cultura. Aliás, o filme Vila dos Confins ainda está em produção? Circulou pela internet fotos suas filmando nas manifestações atuais. Podemos esperar algo desse material?

JOÃO: Acho que Vila não vai sair. Entrei em vários editais e não ganhei nenhum. Sou cineasta, tenho uma carreira consolidada, ganhei prêmios, um dos mais importantes dos anos 70. Eu entrei em uns dez editais assim. Aí eu desisti de fazer. Eu fiz várias minisséries muito interessantes: uma delas é Travessia, que era a travessia de quando se sofreu o golpe da ditadura. Vou dizer uma coisa: é um documento. Quer ver como aconteceu a ditadura, a divisão da esquerda, a luta armada, a luta democrática,


a opinião publica? Está lá. Depois, fiz uma minissérie muitíssimo interessante para a TV SESC, está acabando de passar agora, Na sombra da história, que é a história brasileira contada pelas pessoas comuns da rua: escolhia aleatoriamente e levava um textinho para ela ler e para comentar, para saber o que ela sabia daquilo. Geralmente não sabe nada. Junta gente e começam a discutir. Uma história brasileira contada por pessoas comuns: muitíssimo interessante. Como eu filmei depois da passeata de julho de 2013, conta com cenas da passeata e as pessoas sempre se referem a isso. No entanto, a TV SESC saiu do ar e ficou só na internet. Tem uma audiência boa na internet, mas fiquei desencantado por não estar na TV. O pessoal da TV SESC elogia muito, é uma minissérie muito atual e forte. Eu continuo venenoso! (risos) Agora meu projeto é o livro Poeira e Escuridão, que acabo de lançar. Mas agora estou com um romance novo para lançar no começo do ano que vem, que tem muito a ver com o Brasil. O público está gostando muito, estou contente com a repercussão do meu último livro. Eu estava aqui e acabei de receber um texto, falando do livro e de um dos contos. Um dos contos é pequeno: é um garoto pobre, que mata o pai e a mãe. E do jeito que conta a coisa, chega ao final, o pai e a mãe querem que ele atire, e ele faz isso pelo pai e a mãe. En-

tão, ele, com o revólver, olha para o pai e a mãe, parecem estranhos, o pai sorri para ele, e ele diz assim: “eu nunca tinha visto esse sorriso”. É uma crueldade, mas é de um realismo crítico muito forte. É um continho pequenininho, mas é de uma densidade muito grande. No cinema, depois dessa tentativa fracassada de contar com o apoio para a Vila dos Confins, eu tenho vontade de voltar a fazer cinema, mas eu quero fazer uma coisa bem diferente, outra coisa. Eu tenho uma vaga idéia do que quero fazer, mas tenho que me dar um tempo para pensar. Não tenho pressa nenhuma mais, se morrer amanhã já tenho uma obra pronta, uma obra literária e cinematográfica. Não tenho que ficar correndo atrás. Quero voltar ao cinema à vontade, ou não voltar. Não sei! Estou gostando muito de literatura. O pessoal diz que eu escrevo bem! (risos)

João Batista de Andrade Ano: 2015 Editora: letra Selvagem * 160 páginas

Acesse a entrevista na íntegra pelo site e tenha acesso ao vídeo deste encontro - www.circus.org.br

Suporte técnico: Baruana Calado dos Santos


39 Ad铆lio Rodrigues

Pequeno teaser do curta 3D que estamos desenvolvendo com recursos pr贸prios sob plataforma de open sources



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