Edição #04
Dezembro 2016
Capa
Carlos H. Andreassa do Amaral
Conselho Editorial Carlos H. Andreassa do Amaral Guilherme G. D. Providello Manoela Maria Valerio Ricardo Abussafy
Projeto Gráfico Carlos H. Andreassa do Amaral
Assessoria Contábil e Fiscal Rosana Ambrosim
Colaboradores desta Edição DANIEL PEREIRA ENIA CELAN FERNANDO ZANETTI ITAMARA JEFFERSON MOURA KAROLINE FUIN LIVIA PELLEGRINI LORENA DUFF LORENA SGANZERLA LUIZ BOSCO MAICO F. COSTA MANOELA M. VALERIO RICARDO ABUSSAFY THOMAS LEE
Site da Revista
http://www.circus.org.br/#!circuito-02/c16tr
Contato revista.circuito@circus.org.br www.circus.org.br
EDITORIAL Seguindo seu multifacetado estilo, a Circuito nº 4, aporta! Neste momento em que as políticas e vivências cotidianas pedem tanta atenção e luta, fazer passar 'as poesias' e multiplicar as sensibilidades são também modos de oxigenar a brutalidade que o cotidiano nos explicita. E então, agora, no intuito de não deixar a chama apagar, pois os patrocínios para a versão impressa foram escassos, a equipe editorial aposta todas as fichas nesta edição digital (E desta aposta faz surgir a novidade de podermos abarcar em novas experimentações, além das escritas... sonoras... visuais). Entendemos também que este formato ganha amplitude contando com as redes quentes para fazer circular e divulgar os trabalhos aqui presentes. Ou seja, que cada leitor possa ser um possível aliado nesta tarefa tão silenciosa quanto potente de fazer acontecer novos circuitos! As conexões que pudemos perceber nesta edição estão nos temas e estilos, mas a diversidade de autores/criadores das obras certamente encontrará em cada leitor, a originalidade de uma experimentação singular. Ou seja, a cada novo leitor, a cada nova leitura, um novo mar sensitivo. E assim, seguimos juntos, compondo: multiplicando não só os circuitos por onde transitam nossos autores/parceiros, mas também os encontros com suas obras, os sentidos e sensações que elas possam provocar. Importante assinalar que a Circus, financiadora exclusiva desta edição, agraciou-nos com total liberdade de ação, sendo parceira e grande incentivadora de Circuitos - inclusive da CIRCUITO. Agradecemos!
MANOELA M. VALERIO Profusões ENIA CELAN Entre linhas JEFFERSON MOURA De frente pra trás RICARDO ABUSSAFY Retratos I LUIZ BOSCO Pequena Farsa LORENA SGANZERLA Pudor RICARDO ABUSSAFY Retratos II ITAMARA Mulher adubo LIVIA PELLEGRINI Ela e o Rio
04 06 08 10 12 18 22 24 26
32 34 40 42 44 46 52 54
GRUPO PROSA DE 5 Conversa de Botequim FERNANDO ZANETTI Lucifer (ou Demônio) KAROLINE FUIN Sobre a nobre noite ENIA CELAN Catedral de sonhos RICARDO ABUSSAFY Retratos III DANIEL PEREIRA Cante pra ela Bob MAICO COSTA Buracos THOMAS LEE Vontade
PROFUSÕ
ÕES
Dores rasgadas deste vento incansável que sangra em vibra- sã. Espiralado ativo. Em si todas direções do incerto, as durações arrítmicas e belezas devoradas, os climas e vertigens sísmicas, sacolas plásticas e poeiras...o visível da pele. Sem excesso. Sem falta. Só pelos pêlos ouriçados que calam frios e alimentam nus. No (seu) ponto exato de limites e esquinas...o infindável, as saias - de repente avesso- menininhas safadas ... esses tais beijos paradoxais em gelo ardente nas bocas generosas da cidade. E ali, ainda... imanência púrpura... como num gemido sussurrado. Leve, forte, presente. Pronto-escape, encurva esquecido. Quem sabe(?) ainda vivo... esse vento, ainda e tanto incansável, existe... insiste... assim...meio assim...num corpo dado quando diz o que não basta. por Manoela Maria Valério
ENTR
RE LINHAS
no horizonte um sinal de fumaça, porcos estão sendo castrados o urubu se desenrola da linha de pipa, um outdoor em branco, um helicóptero pousa sobre os meus pulsos; não há mensagens para mim, na rodovia os caminhões vem e vão e nenhum deles me trazem rosas, não há decodificações para minha tristeza. por Enia Celan
POR JEFFERSON MOURA
Pra quê tanto dente numa boca Pertencente ao século vinte e um? Ganância vigente e caráter roto. Cada um pensa no seu cada um Escalando a escápula do outro, Outro degrau, apenas mais um. Pra quê tanto dente numa boca Debilmente sorridente? O cérebro inativo... O coração que dormita... Lobo arquejante correndo em círculo, Salivando a presa abatida: Ração pouca que a fome por ser muita não sacia. Pra quê tanto dente numa boca Em que praticamente revolta já não há? Havendo é muito pouca: No vermelho e ultrajado olho do rei Olhando do raso orifício, Caolho olho gordo d’umbigo. Pra quê tanto dente numa boca Que sorri diariamente com motivo pra chorar? Sorri meio de lado, E sente a esperança escapar, Pelos vãos dos dedos Da mão da miséria que só faz apertar.
por RICARDO
O ABUSSAFY
PEQUENA FARSA
por Luiz Bosco
[...] Bonachão volta-se para a platéia: - É muito bom receber vocês em nossa casa. Daqui a pouco, o show começa. Vocês já conhecem... Katiuscia entra, de calcinha e salto alto, interrompendo: Acha!? Que choque! Não vou usar essas coisas feias! Bonachão: - O que aconteceu? Calma, coração! Entra Pequena Farsa. Pequena Farsa: - Ela não gostou de nenhuma. Bonachão: - Anda ficando cada vez mais exigente! Pequena Farsa:- O que se pode fazer? Bonachão: - Alguém da plateia poderia dispor de sua calcinha? Pequena Farsa: - Depois a gente resolve isso. Aí vem o cliente. Entra o Cliente. Bonachão: - Meu caro! Há quanto tempo! Por que esse sumiço? O Cliente: - Da úrtima vez ela num feiz do jeito certo. Pequena Farsa o olha com desdém. Bonachão: - Mas hoje ela vai se comportar como deve, não é, Pequena Farsa? O Cliente: - Sem farsidade? Bonachão: - A não ser a falsa idade... bom, a casa é sua, você sabe. (sai) O Cliente: - Vamu começa? Pequena Farsa (grita): - Calaboca! O Cliente se senta na cadeira. Pequena Farsa amarra as mãos do Cliente às costas e venda a boca dele; busca uma cozinha de brinquedo e se põe a brincar no chão, defronte ao cliente. Conforme vai brincando, O Cliente geme e se estrebucha. Em certo ponto, ela abaixa a venda do Cliente e começa a lhe dar papinha de mentira, falando como se fosse criança. - Olha o aviãozinho pro vovô gordo e feio. Come tudinho. Parece um porco. Cadê o pipi do feioso?
Começa a abrir a calça do Cliente. Ele geme alto. Ela recoloca a venda nele, irritada. Abre a calça e olha: - Credo, que pipi pequenininho. Vira-se de costas para ele. Começa a mexer na calcinha, como se fosse tira-la. Ao invés disso, tira a camiseta e volta a brincar. Entra Katiuscia soltando palavrões. Quando percebe o que está acontecendo, desculpa-se. Pequena Farsa, irritada: - Já que entrou aqui, me traz o ursinho. Katiuscia sai e volta com um ursinho de pelúcia. Pequena Farsa simula sexo com o ursinho. O Cliente se estrebucha cada vez mais. Perto do clímax, O Cliente fica em silêncio. Pequena Farsa percebe apenas depois do orgasmo. - O bestinha resolveu ficar quieto? Ela o olha por uns instantes. - Ei. Ô, vovô! Vai até ele, e se dá conta de que ele está morto.. - Porra... Bonachão! Vem cá agora, merda! Entra Bonachão, afobado. Bonachão: - Fala, minha princesa. Pequena Farsa: - Esse filho da puta ta morto! Bonachão: - Ai, Virgem Santa! Pequena Farsa: - O coração não aguentou o tranco... Bonachão:- O que a gente faz, meu Deus? Entra Katiuscia, que não se dá conta do que está acontecendo. Pequena Farsa (cochichando para Bonachão): - Que hora pra essa babaca estar aqui! Katiuscia: - Escuta aqui, Bonachão, eu quero uma calcinha decente! Pequena Farsa (tirando a calcinha): - Pega a minha. Katiuscia (deslumbrada): - Mas você sempre recusou... ai! Finalmente! Pequena Farsa: - Mas você vai ter que topar um jogo. Katiuscia (colocando a calcinha): - Topo tudo!
Pequena Farsa: - Você vai se exibir pro vovô aqui. Ele está proibido de se mexer, falar, fazer qualquer coisa! Certo, vovô? Ah, e você não pode tocar nem falar com ele. Katiuscia: - Além de me dar a sua calcinha, vai me pôr pra voyeur? Escuta aqui, quanto vai sair essa brincadeira? Pequena Farsa: - Nada, o vovô ali ta bancando tudo. Katiuscia: - Meu dia de sorte! Bonachão (aparte): - E de azar pro velhinho... Pequena Farsa: - Calaboca, Bonachão! Enquanto isso a gente pensa em alguma coisa... Entra O Vendedor. Bonachão: - Jesus Cristo! O Vendedor: - Não, eu sou o... Pequena Farsa: - O que você quer? O Vendedor: - Vim pelo nosso cliente (aponta O Cliente). Mas... (olha para Katiuscia, que se exibe, e para Pequena Farsa, que está nua). Pequena Farsa: - Que foi, nunca viu? (sai) Bonachão (transpirando): - Em que podemos servi-lo? Ataulfo: - Tenho mercadorias para O Cliente. Bonachão: - Não vê que agora ele está ocupado? Ataulfo: - Não sabia que O Cliente gostava destas coisas. Bonachão: - Surpreendente, não? (pega um uísque e toma de uma golada; oferece) Pequena Farsa retorna vestida com short e camiseta. Aproxima-se de Bonachão e cochicha: - Manda esse mala embora, porra! Bonachão: - Ai, tá. (para O Vendedor) Meu caro, venha cá. Tenho certeza de que seu cliente está satisfeito... Katiuscia (para O Cliente): - Olha, me cansei... tá bom por hoje? Desculpa, não to acostumada. O Vendedor: - Vou aproveitar o ensejo... Bonachão e Pequena Farsa: - Não!
O Vendedor: - Mas o número já terminou... Bonachão: - Não, falta... Pequena Farsa: - É que ainda... Katiuscia: - Número? Você tá me achando com cara de quê, macaca de circo, é? Isso aqui é uma arte, meu bem, das mais refinadas! (senta no colo do Cliente) Não é, meu amor? Pequena Farsa: - Sai daí! (puxa Katiuscia, que resiste) Katiuscia: - Ai, grosseria! Não saio! Para, tá doida? Ficam no estica-e-puxa até que Katiuscia se levanta e O Cliente cai duro ao chão. Todos correm até ele, mas O Vendedor chega primeiro. O Vendedor: - Eu ajudo o senhor... senhor? Pequena Farsa (tentando erguer o falecido): - Ele está cansado, deixe ele em paz. (o defunto cai duro ao chão novamente). O Vendedor: - Ele está morto! Katiuscia grita. Para quando Pequena Farsa lhe dá um tapa no rosto. Bonachão: - É. Não. Bom, morto de cansado, digamos... [...]
Meu amor, quando você me encontrar, não se afobe.
Olha bem pra mim. Repara em tudo, no meu corpo, na minha falta de jeito. Antes de me dizer qualquer palavra, pega uma régua. Um esquadro e um compasso. Põe na balança. Porque, meu amor, a palavra é concreta. Ela tem a consistência de tudo o que você já viveu. E pode ser pesada demais para que a gente desperdice nosso silêncio em sons que se esparramam, sem significado.
Por isso, meu amor, quando me encontrar, mergulha no meu olho. Respira. Lembra do meu toque, do cheiro, do meu cabelo se derramando no seu rosto. Não pensa no meu perfume, mas sente o cheiro que ficava na sua pele, no seu travesseiro, na sua roupa. Que só você conhece. Que é meu e é seu. A memória, você sabe, ela habita o mundo dos sentidos. Às vezes despertam momentos que ficaram adormecidos na fantasia, aqueles que a gente só quis, mas não viveu. E, assim como as palavras, a memória também é concreta. Concreta demais para que a gente desperdice nosso silêncio em sensações que se esparramam, sem significado. Por isso, meu amor, quando me encontrar, espera. Observa e me aprende. Aprenda o meu idioma, o meu léxico. Calma. Não desperdice o seu, enquanto eu decoro de novo o que gostaria de dizer, mas já esqueci. Não sei a língua que você fala. Por isso, vou esperar que a gente descubra um dialeto nosso. A gramática, ela é rígida demais para que a gente desperdice nosso silêncio em sons que se esparramam, sem significado. Por isso, meu amor, quando me encontrar escuta a minha respiração. Aprende meu ritmo. Ouve a minha música pra que a gente invente uma melodia com intervalos que só a gente entende. Um vocabulário secreto, que só a gente canta baixinho, na duração do
tempo certo, para preservar as letras do vazio que nos habita na hora de traduzir sons que se esparramam, sem significado. Por isso, meu amor, quando me encontrar se preserve no meu desejo para que a gente não se perca um no outro na ânsia do gozo. Aprende meu corpo. Estuda meus movimentos. Conheça o ritmo do meu prazer. O prazer também é um idioma, com uma métrica própria, que a gente vai ter que inventar, e não quero desperdiçar meus gemidos em sons que se esparramam em você, sem significado. Por isso, meu amor, quando me encontrar, me encara de frente. Vem com a lógica profunda dos lagos. Para eu poder descobrir a vida que você esconde, impassível, quase impenetrável, a uma respiração de distância. Quando me encontrar, não tenha medo. Eu não vou ter a imprudência de rastrear todos os seus relevos. Eu prezo pela discrição. Não quero fisgar os seus peixes mais medonhos. Nem trazê-los pra superfície. Não tenho fôlego para desperdiçar em profundidades que podem se esparramar em mim, sem significado. Por isso, meu amor, quando me encontrar, não me assuste. Vem com calma. Mostra que você também tem medo. Porque eu sou como aquelas cavernas profundas, que exigem paciência. Mas lá no fim há um lago e um raio de sol, que ninguém espera. É pra você. Mas eu preciso da sua demora para você acostumar o olho e reconhecer a beleza das minhas estalactites. Então, meu amor, quando me encontrar, não nos assuste. Seja generoso. Porque não quero desperdiçar os meus morcegos em aventureiros, ruidosos, que querem se esparramar em mim, sem significado algum. por Lorena Sganzerla
por RICARDO
O ABUSSAFY
por ITAMARA RIBEIRO
por Livia Pellegrini
“Sempre que me acontece alguma coisa importante está ventando” (Ana Terra por Érico Veríssimo)
Meio-dia. O vento sopra manso, sol a pino, enquanto inala-se o aroma de terra umedecida. Margem. Cílios. Mato crescendo, nostalgia!, a travessia das originárias sementes. Ela à beira do rio. Pensando. Espreita a água quase transparente mover-se. Lenta. Árvores em contemplação. Espasmo das folhas que em queda livre tocam o espelho d’água. Ondas: tracejadas em círculos ao redor da folha. Espaços que se abrem. Ela flutua. Inspira o ar pelas narinas, enquanto o suor escorre, lembrando a tez morena que o fluir do desejo que não se represa se expressa e quer. Desvenda saídas. Escoa. Naquele instante, acaricia lembranças, enquanto venta o presente em constante criação do tempo futuro. Quem do lado de lá do rio há de sentir o que por ela passa?
Nunca saberia, a não ser que... A não ser, como o que tem acontecido, acreditasse em destino. O destino trama o curso da vida como também os caminhos de um rio. Momento em que toca, dentro dela, a canção Vento de maio e as palavras soltam-se de seu corpo, as imagens esvoaçam-se, memórias circundam-na, e a brisa a lembra de esquecer e ficar aqui. Duas horas. Sente o imã. Ela, pé ante pé: adentra aquelas águas, enquanto a temperatura de seu corpo muda e mudam seus pensamentos. Estar em meio à largueza do ri(s)o. As pedras, pedrinhas, pequenos galhos, a areia encontram seus pés, pernas, coxas. E pequeninos peixes envolvem o ventre e os seios dela. Mergulhar os cabelos n’água, enquanto feixes de luz atravessam a retina. Inexatidão. Desmemória. O instante-agora. Apenas pra não parar nem voltar atrás. Ela caminha um pouco, agacha-se, abre os braços. Boia. A flutuação requer entrega e a água regozija-se com tal abraço levando-a
ao voo dos pássaros. Ameríndios. Doura-se o céu. E a pele torna-se líquida – a morada dos reinos. Todos. E quase que eu me esqueci que o tempo não pára nem vai esperar... Quatro-horas. O leito do rio é largo e mais alargado fica com a presença dela. A correnteza-mãe embala a filha. Ela, moça, agora é (a)tingida. O vermelho vem vindo. É a hora, no ciclo de sua lua. O canal em flor escoa o líquido quente, de aroma oceânico e gosto sanguíneo. Há mar dentro dela. Rainha dos raios de sol. Enquanto ouve as vozes das crianças, lá longe, ela brinca na correnteza agora avermelhada, recebendo os carinhos sutis da tarde gestada em perfume & calor. Seis horas. Ocaso no horizonte. Vento solar... Ela chega à outra margem. Apanha a flor de jasmim-manga e adorna os cabelos. Está quase nua. E ao intuir a presença de alguém avista, ancorado, um barco. Chama. Voz que alcança
a primeira estrela. Chama outra vez. É quando do interior da canoa vão surgindo dois olhos – lumes – e um largo sorriso. Pausa. Olham-se. Ela reconhece. É. O antigo olhar. A mão se estende com o gesto: - vem! – em convite. Embarcar. Agora já não dá mais pra voltar atrás. Seriam aqueles olhos nos dela: o olho d’água? Foi assim, que ela soube que sim. Que o olho dela no dele, o dele no dela fecundados faziam brotar olhos d’água – nascidos, nascente, nativos do instante. Rio estendido. Lua nascendo. É noite. Ela, ele. Ele, ela. Ela e o rio.
Grupo Prosa de 5, fazendo uma versão para Conversa de Botequim, canção de Noel Rosa e Vadico Acesse utilizando QrCode ou o link abaixo
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https://goo.gl/nWvg1Z
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por FERNANDO ZANETTI
Rudeza estanque e mofados ensejos Tentar seguir e indícios buscar Quando podia Entreatos de formas encatida Veemente de fermes que me águo Entre elas Entre ela um lacaio de brutas favas Inferno ladado sob o sol Poderia seguir sem essas verdades Teríamos eles Os caídos em nosso lúmen Insurgidos de couro vistoso Asado reluzente de latrina antiga Ainda que ousassem seriam caçados Um a um Morte sob lápide Então era Quando podia E como ter entre grandes o silêncio dos dias? Teríamos um fim insistido E um não Ela do sim Mas às vezes
Ele O cansado Ele o não As forjas de dores e a verdade do mundo Então era Então era essa Litania que inebriadas formas teríamos que aturar E por onde “senhor” Um pequeno lampejo E um pouco de baba cairia de tuas ventas Ele o de três cabeças E seus pequemos mastigados Ó ou aquele que ainda a fissura latina da luz encanta Ele o caído do norte Ele tão amado e que deveríamos envidar Ou ainda o pequeno Urizen e sua nova morada Exu de singelos pêlos Indício do que entre nós já estaria dado Servir de deuses e aquilo que temos Homúnculo Por seguir E entre eternos cantar Mas onde chegaríamos
Como ter entre estranhos o Amor E inditos frêmitos Gozo indito E algo que jamais se saberá E Ele será Um instante “Máquina de qualidade fatais” E estaria aqui Entre malditos cometida Entre as canalhas da carne E gosto insinuado Cortar de inditos Canto de semente E dias febris E ainda poder jurar Como prometer a quem não conheces Filho do cão e da morte indigna Esse era nosso dado E lançar de acaso novas brumas Ainda em ensejo E dizer o Sim Mesmo que “rudemente violada Tuí tuí tuí” Quando podia Quando podia o sol era sol E tua carne estaria aqui Entre nós Por em olhos e vestígio
E seria assim Quando podia Mataria tua fonte Tartarugas que voam em indĂcios de pedras Entre nĂłs cometidas Bruto de ensejo Gosto inĂquo Veludadas vozes sangradas Estufos de flores em flora de mortes E poderia E onde chegar E cantar de vida novas vozes.
``Sobre a nobre noite que têm sido palco da fome, da morte, do gozo, da viagem na fumaça de simples cordeiros que desfiguram com complacência sua condição inópia aos olhos de qualquer cobertura concretada sob o suor daquele desgraçado corpo que ocupa seu espaço nas ruas, configurando a realidade de um retrato desconfigurado pela alienação do que a constituição há decretado como passos em linha reta, restando a aqueles que caminham em zigue e zague as frías paredes descascadas pela loucura, amarrados pela extinção de sua criatividade, anestesiados pela nudez de seu cérebro, afogados em delírios medicamentosos eles fogem, para onde sua mente possa desnudar em sanidade.`` Karoline Fuin
(ao demônio de Compostela)
Escavando manuscritos raros De nossa catedral de sonhos Deixe-me mostrar, o erro do copista, Encurralar-te neste canto. Existem os homens pelos quais Os joelhos se dobram, As bocas se emudecem, Os sinos d’alma ensurdecem... E Eu! Que faço deste relicário? Sem senhas e chaves, Penetrável apenas para o Mais ousado verme... Que faço? Se putrefato em mim O insondável sonho, Não faço, Confesso! Lapido poemas de pecados... por Enia Celan
por RICARDO
O ABUSSAFY
POR DANIEL PEREIRA
“Aprendi que um homem só tem o direito de olhar o outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se” Caí na cama com o aforismo de Gabriel García Márquez latejando na cabeça, já alagada de chuva e cerveja no bate-bola com os amigos escritores Joaquim Maria Botelho e Luis Avelima em um boteco próximo ao falecido parque antártica. Nosso destino era o Bar do Alemão, onde, quem sabe, poderíamos encontrar jornalistas que em horas de folga se disfarçam de músicos, como o considerado Luis Nassif ou o próprio dono do lugar, o cantor Eduardo Gudin. O bar famoso está em reforma. Não sabíamos e, como a chuva crescia de intensidade, nos aboletamos no boteco ao lado, onde seríamos testemunhas de uma cena – nada inusitada nessa pauliceia desvairosa -, que variou do hilário ao trágico, dependendo da sensibilidade ou do ângulo de quem estava na plateia. Como qualquer boteco, aquele também era ressoante como uma concha marítima, diria o inquieto Nelson Rodrigues, certamente
salivando crônica saborosa se ali estivesse como testemunha ocular de mais um episódio da vida como ela é. Ou não, pois está ficando rotineira a banalização de determinados comportamentos suscitados pelo efeito de drogas, seja lá a que espécie ou reino pertençam. Estávamos proseando em torno de uma dessas – que chamam de política – quando ela surgiu, esvoaçante como uma borboleta órfã, frágil e vacilante, talvez ainda recuperando-se da difícil jornada do casulo para a luz. Vestia azul, moldando a silhueta morena e espigada com generoso decote. Cerca de 1,70m. Modelo quase pluz size. O que podia ser sua aura parecia terrivelmente opaca. Por trás dos traços do seu rosto, macerado de inconfundível desprezo pela vida, os julgadores da cena logo deduziram que naquele corpo cambaleante já houvera habitado um ser de melhor cepa – agora transformado, aos nossos olhos, em farrapo humano. A caminho da porta do bar, quase desabou sobre a mesa em que estávamos. Ensaiou um discurso engrolado, desses, típicos de quem
ultrapassou o limite do escracho moral. Súbito, porém previsível, vai ao chão, de costas, emporcalhando-se na enxurrada da calçada. Confirmou a regra de que bêbados e crianças têm algum tipo de proteção diferenciada, essas interferências da natureza que ninguém explica. Melhor assim. Não era moradora de rua, nem pedinte, atestavam os empregados e frequentadores do boteco. Seria casada com o traficante mór da região, disseram outros. Era filha de um rico industrial que foi desprezada pela família. Não, ninguém sabia quem era aquela moça. Provavelmente nem ela mesma. Quem também saberia mensurar o tamanho da dor que ela carregava? Ou, como cantou Renato Russo, o tamanho do desejo de não sentir dor? A chuva cresceu de intensidade. E ela continuava lá, no chão, fora de controle, emitindo monocórdico e ininteligível grunhido. Agora, um solidário bebum lhe fazia companhia e pelos gestos, tentava, acreditem, conquistar a borboleta. De qualquer forma, já estavam unidos pela mesma desdita. Assim como caiu, de repente, num passe mágico ela conseguiu sair da horizontal, sentou-se com
as pernas em V, ajeitou a calcinha branca, deu uma geral no indistinto público, recolocou os peitões dentro da casinha, ergueu a cabeça, meneou a cabeleira negra espargindo água para os lados, levantou-se e, segurando-se no vácuo, saiu bamboleante sobre os saltos de seus sapatos. Incrível! Agora ela era mariposa, uma borboleta noturna. Ninguém a olhou de cima para baixo. Por comiseração, falta de coragem ou por vergonha mesmo, sabe-se lá! Certo, mesmo, é que ninguém ali tinha esse direito. Na mesa ao lado, Bob Marley, travestido de boêmio paulistano, dedilha um desses seus poemas que parecem feitos para curar feridas, ou sorrir para o perigo e até mesmo resgatar do inferno almas penadas como uma mariposa bêbada em busca de luz. Ela não está mais sozinha: a voz rouca à la Nelson Cavaquinho do anônimo regueiro segue os seus passos, não importa em que direção esteja indo agora. Cante para ela, Bob, cante! Somos jovens, belos, bêbados e Karetas...|Sempre em bandos e às vezes em dois...|Curtindo grandes amores, chapados...|Pirados...|Pelados, olhando as estrelas à espera de | carinho e a procura| de um futuro que não chega.
por Maico Costa
Quando não quero palavras Por empanturrarem minhas sobrancelhas Por assolarem as estradas das traças destas ressacas Quando a fala não conduz quem fala de uma sala Ah, estas alas de uma sala de onde não me vejo E grito. Vivo se viver for para ser Mas tenho sido onde não quero estar por estar É que sou para ser somente para o quê O que rasga meu peito e diz: - Avante! Ao lugar de uma lua que não é qualquer Às sombras de uma estrela não tão... Fugaz E se fugaz, é para não se findar Estes “se”, sempre estes “se”. Revisitam as pontes Servem os buracos. Eles servem. Meus buracos
VONTADE
Às vezes me vem uma vontade (dessas de não se agüentar) De morder minh’ alma Mastigá-la de maneira lenta Engolindo-a, Pedaço por pedaço, Esperar pela digestão (normal nesses momentos) E sair por ai Sem medo de ficar nu por dentro Sem passado e sem futuro Sem claro ou escuro Começar a me reinventar Como se agora fosse meu começo Descobrir que o corpo é leve E que a alma pesa Pelo seu pesado passado Sem memória, sem marcas, sem rastros e pegadas Apenas um primeiro passo a construir um novo caminhar Um começar do nada pro nada Como se “nada” me empurrasse E “nada” me segurasse Às vezes, mas somente às vezes... Me da essa vontade... por THOMAS LEE