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Joaquim Alves da Silva
Keynote
não clínica: “Era como um urso que sonhava ser um pássaro”. Sente que pode retribuir à Medicina ao ensinar estudantes de uma forma cientificamente mais informada.
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Ser investigador clínico em Portugal significa fazer o que os médicos fazem, mais trabalho extra para a investigação. É difícil para o cientista e para a sua família. Um grande problema é que o raciocínio científico não é o foco principal da educação médica, como se um muro separasse a medicina das leis do universo. No entanto, a sensação de descoberta e de fazer parte de algo maior fazem com que tudo valha a pena.
Entrevista: Joaquim Alves da Silva
Inês Teixeira, 4º ano
Qual a importância de fazer parte desta X edição do In4Med num momento em que o mundo gira em torno de uma pandemia? Nem sei bem como responder! Para mim, mais do que por ser a situação atual, eu participaria sempre neste congresso. Se é um congresso de estudantes de Medicina, acho que é importante, acho que temos um certo dever com as gerações que vêm depois de nós, de tentarmos, pelo menos, passar a nossa experiência, nem que seja contar a nossa história, aquilo que nós vivemos, para que os outros saibam o que é que aconteceu.
Como o tipo de percursos que existem? Sim, neste caso em particular foi o que vim fazer hoje, muitas vezes falo de outras coisas, às vezes falo mais da ciência que nós fazemos, mas eu acho que a minha principal motivação não teve nada a ver com a pandemia. É, de facto, refrescante poder vir a uma conferência nesta altura, mas, mais importante para mim, é poder contribuir e poder trabalhar com estudantes de Medicina que fazem coisas extraordinárias, como este congresso.
Onde e quando nasceu a paixão pelas Neurociências e pela Neuropsiquiatria? Foram dois momentos diferentes. Pela Psiquiatria foi claramente na Faculdade e aí o Professor Miguel Xavier teve uma grande influência na maneira como ensinava; nas primeiras aulas em que ele nos deu Introdução à Psiquiatria eu fiquei logo…
Encantado? Sim! (risos) De todas as doenças que ouvíamos falar, aquelas eram sem dúvida as que mais me intrigavam. Sempre gostei de desafios e achei que havia muito por fazer, muito por perceber e, de certa maneira, havia já aí uma ligação ao querer fazer investigação e essa seria uma boa área para poder fazer investigação. A parte da Neurociência Fundamental teve muito a ver com o meu programa doutoral, em que nos puseram em contacto com cientistas fundamentais, tiraram-nos do meio hospitalar e da clínica e puseram-nos num meio completamente científico. Nós muitas vezes temos esta sensação de que Medicina é ciência ou que é governada pelos princípios da ciência, mas não é bem assim. Muitas vezes, no dia a dia do médico, não se pode ser semelhante em termos de pensamento e de raciocínio ao de um cientista, porque o médico tem de resolver as coisas rapidamente, tem de ter soluções basicamente para tudo; mesmo quando não há uma solução, tem de tomar uma decisão. São realidades bastante diferentes, diria eu.
Ao colocarem-nos nestas aulas durante o programa doutoral com cientistas básicos, abriu-se um mundo novo para mim. Claro que nós tivemos contacto com ciência ao longo do curso, mas aquela maneira de ver o mundo, de aprender coisas novas sobre o mundo, de fazer descobertas… era uma novidade! Depois, aí sim, quando conheci o Professor Rui Costa, que me deu aulas no módulo de Neurociência, fiquei fascinado com aquilo que se fazia e senti que era a melhor hipótese que teria de poder perceber alguma coisa relevante sobre o funcionamento do cérebro, mesmo que fosse em modelos animais. Às vezes é difícil explicar isto: como é que alguém que pode trabalhar com seres humanos vai trabalhar com modelos animais? A resposta é que há muitas mais limitações naquilo que nós podemos fazer com os seres humanos e naquilo que nós podemos concluir com o tipo de investigação que fazemos em seres humanos do que aquilo que podemos concluir e perceber com a investigação feita em modelos animais. Eu achei que, de facto, era aquilo que estava à procura, estava à procura de uma maneira de poder perceber melhor como é que o cérebro dá origem a comportamentos

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e, mais lá à frente, como é que o cérebro avaria. Se eu conseguisse ter um melhor modelo de como é que o cérebro funciona para produzir o comportamento normal, isso seria uma maneira de contribuir melhor para termos um modelo neurobiológico útil para perceber como é que o comportamento se altera nas doenças psiquiátricas. Essa era a minha principal motivação.
Entre a prática clínica, a investigação e o ensino, o que lhe proporciona mais felicidade? Acho que já sei a resposta a esta questão! A investigação, sem dúvida, de tal maneira que eu tomei a decisão drástica de deixar de fazer clínica. Aquilo que eu vos disse foi real! Eu não era mau clínico, atenção, às vezes as pessoas podem achar, do género, “ah, ele não era bom clínico” ou “não se conseguia conectar com os doentes”, não, pelo contrário, acho que era um bom clínico e estabelecia boa relação com os doentes, mas, a certa altura, tornou-se difícil estar com os doentes e pensar no laboratório e, sobretudo, sentia que não era justo para os doentes, aquela sensação de “não é justo eu estar com esta pessoa quando, na verdade, gostaria de estar a fazer outra coisa, não é justo para esta pessoa que merece ter alguém aqui que esteja a 100%”. Estava muito mais motivado para evoluir na parte da investigação e eu próprio sentia que nos dias em que tinha de fazer investigação acordava muito mais motivado e alegre do que nos dias em que ia fazer clínica. Por isso, foi uma decisão muito pessoal. Não é muito inteligente fazer uma especialidade e depois não exercê-la, mas foi este o resultado. Há coisas que nós não controlamos e acabou por ser assim…
Se calhar teve de ser assim para depois chegar a essa conclusão! Talvez, sim! A Psiquiatria é útil naquilo que faço, há muitas vantagens em vários níveis e dá-me uma visão da Neurociência diferente, uma visão que os meus colegas da Neurociência Fundamental não têm, mas não posso dizer, em consciência, que tenha uma grande vantagem, pelo contrário. Enquanto estive a fazer a especialidade, eles estiveram a trabalhar na carreira científica deles. Tenho 42 anos, mas, em termos científicos, tenho o equivalente a 30 (risos)! Tive 10 anos dedicado a fazer o internato geral mais a especialidade, não acho que tenha sido uma decisão inteligente, mas foi o que aconteceu. Ao mesmo tempo, também acho que deve ser muito difícil nós acharmos que aos 18 anos vamos decidir exatamente aquilo que queremos e depois, no final do curso de Medicina, vamos acertar exatamente na especialidade que queremos exercer. Acho que são tudo momentos da nossa vida em que nós tomamos decisões que até podemos tentar que sejam o mais racionais


possível, mas há coisas que nós nunca sabemos a não ser quando as experienciamos. Também costumo dizer - e digo isso aos meus filhos - que há poucas decisões que não se podem alterar, nada é definitivo. Um estudante de Medicina que termina o curso e considera fazer investigação e não tirar especialidade? É perfeitamente razoável! Precisamos de muitos médicos a fazer investigação, precisamos muito da ciência, sobretudo muito mais ciência no ensino da medicina. Isso é a minha convicção também. Porquê? Oh Inês, imagine a quantidade de informação que existe hoje em dia, mas também pense na velocidade a que nós acedemos a essa informação: antigamente era muito importante ensinar muita informação e que os alunos fossem capazes de ter muita informação e tomar decisões muito rápidas, porque era difícil aceder a informação, porque não havia propriamente um dispositivo à mão em que nós pudéssemos pesquisar rapidamente; hoje em dia isso já não é verdade, hoje em dia podemos pesquisar guidelines muito rapidamente. Talvez devamos começar a usar o nosso tempo melhor no ensino em vez de estarmos a passar factos e factos e factos aos nossos alunos, se calhar focarmos também, nem que seja parcialmente, em transmitir qual a melhor atitude quando os factos não são conhecidos, qual a melhor atitude quando a decisão não é clara, porque não existem dados, porque não nos dizem como é que as coisas funcionam e como é que podemos descobrir como é que as coisas funcionam, como é que podemos descobrir um novo tratamento, como é que as coisas resultam na fronteira da descoberta.
Quais os objetivos e as expectativas para o futuro? A minha luta neste momento é ter uma posição independente. O que é que isto quer dizer? Que eu possa ser um chefe de laboratório, que eu decida que projetos é que vamos fazer, o que é que vamos investigar, que isso depen-

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da de mim, e, de certa maneira, poder também ajudar outras pessoas a adquirirem expertises na Neurociência Fundamental. O problema é que eu próprio tenho algumas limitações que tornam complicado este percurso, não quero sair de Portugal, tenho três filhos, não quero estar a arrastá-los para outro mundo, porque tive a oportunidade de ir para outros sítios e gostava muito de ficar cá. No entanto, o tecido académico em Portugal não é muito rico e não se renova muito; para além disso, também não há muitas instituições de investigação, portanto não há muitas posições. Mesmo tendo um doutoramento bem sucedido, mesmo tendo uma especialidade médica, não é fácil encontrar soluções de carreira, embora haja várias saídas e, mesmo que uma pessoa decida fazer mais investigação, pode sempre depois seguir outras áreas. Numa resposta simples, o meu objetivo agora é obter uma posição independente, quer seja num instituto, quer seja numa faculdade, e poder desenvolver a minha investigação, poder continuar o meu trabalho.
Por fim, o que gostaria de transmitir neste momento aos estudantes de Medicina? Isso é uma grande responsabilidade (risos)! O que é que eu gostava de transmitir aos estudantes de Medicina? (suspirando) O que eu gostava de dizer é que ser médico é de facto uma profissão especial, mas que eles [os estudantes] não deixem que esse facto se transforme num certo hermetismo em relação às outras áreas do conhecimento, que procurem ter uma visão mais geral da ciência e que desenvolvam competências para além da capacidade de memorização e obtenção de factos, que se concentrem na capacidade de terem pensamento crítico, capacidade de avaliar a qualidade da informação e capacidade de até, eventualmente, desenvolverem a sua própria pesquisa e ajudarem a descobrir coisas novas, que possam empurrar a Medicina, ajudar a Medicina a crescer como campo científico. Sim, eu diria que é isso. Basicamente eu acho mesmo que - não sei se vocês têm essa noção - os médicos são vistos muitas vezes como… - como é que eu vou dizer isto sem ser desagradável? – pedantes? As pessoas não têm muito boa opinião de nós, acham que somos vaidosos e que pensamos que a Medicina está sempre acima dos outros campos, em termos de conhecimento. Isso de facto não é verdade, não deve ser verdade, não sei se a nova geração é assim. Sei que conheci uma geração que era assim.
Acho que, no fundo, nenhuma geração vai deixar de ser um bocadinho assim! Talvez tenha melhorado qualquer coisa, mas a própria sociedade tem isso muito enraizado. Sim, mas a própria sociedade já não nos vê assim, pelo contrário, até há um movimento contra cultural
