Revista Redemoinho - A8N12

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EDIÇÃO ESPECIAL

BRASÍLIA 30 ANOS DE TOMBAMENTO REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DO IESB

Brasília Junho 2017 www.iesb.br

REDEMOINHO IESB – Instituto de Educação Superior de Brasília

redemoinho . ano 08 . número 12

PRAÇA DO JOGO DE PODERES 1

VILAS TOMBADAS, MAS ESQUECIDAS

ANO 08 . NÚMERO 12

MANÉ GARRINCHA, GIGANTE VAZIO

AS MUITAS FACES DO PPCUB



Índice

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A PRAÇA DOS PODERES Palco do cotidiano que mescla cultura, manifestações e jogos nada iluministas

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Lugares esquecidos

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Entre a glória e a solidão

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Preservação sem consenso

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Como acampamentos pioneiros se desenvolveram e tornaram-se cidades históricas e tombadas

Superdimensionado, Mané Garrincha dá prejuízo

Prestes a ser enviado à Câmara Distrital, PPCUB ainda enfrenta muitos entraves

trabalho do GT Brasília Um olhar O antigo e atual sobre a preservação do patrimônio cultural da Capital Federal O legado de Lucio Costa O "pai" do Plano Piloto é referência na arquitetura Limites não congelados R egras para tombamento provocam polêmica entre estudiosos e setor imobiliário Desafio B rasília cresce e a população aumenta: as polêmicas na preservação Por trás da beleza Reconhecimento mundial da arquitetura modernista custa caro aos moradores Brasília do coração Cidade é repleta de memórias afetivas: céu, zebrinha, ipês, sinalizações e Minhocão...

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ida de Dragão Os homens por trás do V uniforme que guardam prédios públicos Árvores tombadas Doze espécies do Cerrado estão protegidas por decreto e fazem parte do patrimônio ecológico Cidade-jardim Parques, árvores e canteiros ornamentados complementam a vida urbana com a natureza. A água levou Vila Amaury, a cidade submersa no Paranoá Museu do Catetinho Primeira residência oficial e primeira obra tombada em Brasília mantém charme Artistas sem palco Falta de preservação dos teatros patrimoniais de Brasília coloca cultura em risco.


REDEMOINHO REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DO IESB

EDITORIAL

redemoinho . ano 08 . número 12

Expediente Coordenação editorial e edição: Cândida Mariz, José Marcelo dos Santos, Leila Herédia e Márcio Peixoto. Projeto gráfico: Iara Rabelo e Suzana Guerra. Direção de arte: Mariana Pagotto. Monitoria em diagramação: Débora Gentil. Conselho editorial: Cândida Mariz, Carlos Siqueira, Daniella Goulart, José Marcelo dos Santos, Leila Herédia e Márcio Peixoto. Coordenação do curso de jornalismo: Daniella Goulart. Direção geral do Iesb: Eda Coutinho Machado. Tiragem: 1.000 exemplares. Redação: (61) 3445-4577. Repórteres e fotógrafos do 5º semestre de Jornalismo: André Delmiro, Bruna Nardelli, Douglas Rodrigues, Flávia Campos, Júlia Autuori, Laísa Lopes, Liz Vieira, Luana Moura, Mauro Jácome, Ohanna Patiele, Pâmela Brasil, Omar Khodr, Otávio Martins, Raphael Argollo, Raphael Borges, Thayná da Cruz.

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“A única coisa do planejamento é que as coisas nunca ocor rem como foram planejadas”. A frase de Lúcio Costa ilustra bem como foi vivenciar este quinto semestre do curso de Jor nalismo. Entramos nesta etapa imaginando como ser iam as coisas, mas nada do que possa ter passado em nossas mentes chegou per to da realidade. Aprendemos a lidar com nossos medos, angústias, timidez e nos tor namos mais incisivos, cur iosos, prontos para mostrar do que somos capazes. M ais jor nalistas. Sim, somos capazes. Assim como esta edição da R edemoinho que trata dos 30 anos do tombamento de Brasília, nós também crescemos e estamos cheios de histór ias para contar. Caminhamos por nossa Brasília, por essa Cidade Parque, repleta de patr imônio verde, em busca das ár vores protegidas que fazem par te do cotidiano. M uitas estão entre os “puxadinhos” e “esticadinhos” das comerciais, que le vanta questionamentos sobre a mobilidade da cidade. Buscamos a or igem do tombamento, o GT Brasília, grupo onde tudo começou, mas também abordamos o Plano de Preser vação do Conjunto Ur banístico de Brasília, o plano da polêmica.

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Apesar do moder nismo que se isola, do congelamento do plano, das áreas longe do Plano, mas também tombadas, temos, sem dúvidas, um patr imônio de afetos, com direito a M inhocão, zebr inha, faixa de pedestres, placas de sinalização, ipês e um céu imenso. Com o orgulho do que temos e de fazer par te dos 30 anos do tombamento da Capital, entregamos a décima segunda edição da R edemoinho a você, leitor, com a vontade de também ter feito histór ia. B oa leitura!

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Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

TRAÇOS QUE formam a base do Plano Piloto de Brasília

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A ORIGEM DE TUDO Criado em 1981, GT Brasília trabalhou intensamente por sete anos; entre as atividades, pensar a Nova Capital, estudar meios de preservação e elaborar dossiê técnico enviado à Unesco para inscrição na lista do Patrimônio Mundial RAPHAEL ARGOLLO 5


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Foto: Nelson Kon (Iphan)

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ete anos, esse foi o tempo necessário para que uma equipe formada por profissionais das mais distintas áreas, como arquitetos, historiadores, urbanistas e antropólogos, criasse um trabalho de preservação patrimonial que até hoje é atual. Os estudos do chamado GT Brasília começaram em 1981 e foram decisiPANORÂMICA DO Conjunto vos para o reconhecimento da capital Urbanístico de Brasília federal como patrimônio cultural brasileiro e mundial, mas ainda hoje são pouco conhecidos. “As reflexões do GT Brasília sobre a preservação da cidade e todo o seu conjunto urbanísti- Bauhaus, na Alemanha, e das obras diagnósticos iniciais apontavam para co continuam atuais. Até hoje usamos antigas de Le Corbusier, ainda que uma falta de política de preservação como referência esse trabalho, que ambas tenham sido referências da para Brasília, que teria resultado em é a matriz de todo o ideário preser- própria Brasília. intervenções pontuais e alterações vacionista da cidade. Não há como Tudo começa no final da década na concepção original. “O próprio Lútratar a preservação de Brasília sem de 1970, quando o designer Aloísio cio Costa tinha esse entendimento considerar os estudos do GT”, resume Magalhães mudou o panorama das de que a cidade não iria se perpetuar o superintendente do Instituto do Pa- questões patrimoniais no Brasil. Ele da forma que ele tinha imaginado”, trimônio Histórico e Artístico Nacional via na cidade um produto cultural revela Madson. do Distrito Federal (Iphan-DF) Carlos com enorme importância nacional e Nos primeiros seis meses de Madson Reis, que também participou mundial. Para Magalhães, preservar o trabalho, foram feitas discussões sedo grupo. patrimônio não era uma tarefa de cui- toriais sobre o que seria Brasília e o Iniciativa que atravessou quase dar do passado, mas essencialmente ideal de preservação. Se, por um lado, toda a década de 1980, o Grupo de refletir sobre o futuro. “Brasília seria a capital ainda era uma cidade muito Trabalho para a Preservação do Pa- então esse ponto neutro em que se recente, por outro, já representava um trimônio Histórico e Cultural, ou sim- poderia identificar toda a pluralidade laço histórico: o modernismo do início plesmente GT Brasília, foi uma ação da cultura brasileira”, conta o histo- do século XX. “Era essa representativide múltiplos atores acadêmicos, polí- riador Thiago Perpétuo, mestre em dade que se passava pela cabeça do ticos e comunitários particularmente Preservação Patrimonial. Aloísio: ‘Isso é um exemplo único de importante para despertar a consciFoi nesse período que, com um se colocar as ideias de um movimento ência na sociedade de que o acervo grupo de arquitetos e professores da de arquitetura moderna em espaço patrimonial em Brasília ia além do Universidade de Brasília (UnB), Aloísio urbano, isso precisa ser cuidado para Conjunto Urbanístico do Plano Piloto, Magalhães articulou junto ao Gover- as gerações futuras verem como foi”, ou seja, da parte projetada. Ao longo no e a UnB a formação de um grupo lembra a professora de Arquitetura de toda a existência e Urbanismo Maria do grupo, cerca de 40 Elaine Kohlsdorf, uma “Brasília seria então esse ponto neutro profissionais atuaram das coordenadoras como colaboradores, do GT à época. em que se poderia identificar toda a segundo foi identifiDurante as ativicado nos diversos dades, foi demonspluralidade da cultura brasileira” documentos do artrado que outras Thiago Perpétuo, mestre em Preservação Patrimonial quivo do Iphan-DF e morfologias existenem bibliografia espetes no território eram cializada. interinstitucional que visaria preser- importantes e necessárias para o enMuitos esquecem que a equipe var a cidade enquanto patrimônio tendimento da história de ocupação formadora do GT também foi respon- cultural. Assim, em 1981, o chamado do Distrito Federal, bem como para a sável por elaborar o dossiê técnico de GT Brasília viria a ser oficializado por composição do patrimônio cultural. candidatura da cidade para integrar a meio do Decreto nº 5.819, que cria- “O GT Brasília tinha uma perspectiva lista de Patrimônio Cultural da Huma- va o “grupo de trabalho para estudar, muito ampla. A Maria Elaine Kohlsnidade. Mais tarde, a jovem capital do propor e adotar medidas que visem a dorf traz um arcabouço de referências Brasil viria a se tornar o primeiro bem preservação do patrimônio histórico acadêmicas e intelectuais para a vicultural do século XX a ser inscrito e cultural de Brasília”. são do que é um ambiente urbano no pela Unesco na lista do Patrimônio Formado o GT, começaram as sentido de construir um instrumento Mundial — antes mesmo da famosa atividades e reuniões periódicas. Os de trabalho para um elemento que

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Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

é necessariamente dinâmico”, revela Perpétuo. Preservação dinâmica As preocupações iniciais apontavam para a falta de uma política de preservação, o que teria resultado em intervenções pontuais e “alterações na concepção original”. Seria necessário atingir um equilíbrio entre a manutenção da configuração espacial de Brasília, sem que com isso estancasse o desenvolvimento ou o crescimento ordenado. Nessa perspectiva, qual era a grande preocupação do GT Brasília? Que instrumento e abordagem a cidade exigia? A equipe entendia que era necessário fazer uma leitura do espaço identificando quais os elementos essenciais a serem preservados em um ambiente em contínua mutação. “O GT Brasília teve essa leitura muito feliz de abordar a questão do patrimônio a partir do dinamismo desse objeto cultural que é a cidade, eles compreendiam que existia uma produção cultural extremamente forte e significativa que precisava ser estudada e preservada de uma maneira que a própria instituição ainda não reconhecia, dinâmica como uma cidade de fato é”, avalia o historiador. Entre as conclusões apresenta-

PLANO MOSTRA como funcionaria o então Eixo Rodoviário, que corta as asas Norte e Sul de Brasília

das pelo grupo estava a ideia de que a Capital não deveria ser preservada com o tradicional tombamento. Por ser nova e dinâmica, Brasília poderia ser modelo e objeto de planejamento urbano “Não se falava em tombamento nesses primeiros anos. A gente entendia que Brasília era ainda

muito incompleta, mas pelas características morfológicas poderíamos fazer a preservação com uma legislação urbana própria, sem precisar de uma proteção específica”, relata o arquiteto e urbanista Márcio Vianna, que integrou a secretaria-executiva do GT Brasília.

DESCARACTERIZAÇÃO DE BRASÍLIA explica a professora de Arquitetura e Urbanismo Maria Elaine Kohlsdorf, uma das coordenadoras do GT Brasília. Maria Elaine comenta que, quando se fala na descaracterização de Brasília, é importante observar que ela ocorre no segundo dia após o concurso. O Plano Piloto era muito mais afastado do Lago, cerca de 500 a 800 metros, portanto, estava num plano superior do Planalto. “O centro, cruzamento dos eixos, se colocava estrategicamente numa posição de calota onde se via o nascer e o pôr do sol. Lúcio (Costa) era poeta”, afirma. redemoinho . ano 08 . número 12

O que caracteriza os lugares e não pode ser modificado? Essa era a pergunta feita pelo GT. “Lugares são coisas dinâmicas, edifícios e cidades são dinâmicos e mudam por serem históricos e neles viverem gerações. Como as pessoas, as coisas mudam sem mudar a identidade”,

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Lúcio Costa menciona muito as escalas monumental e bucólica no documento que acompanha o plano do concurso, em 1957. Somente às vezes cita o gregarismo e setores residenciais. “O relatório do Plano Piloto é uma preciosidade, está acabado um projeto de imagem e identidade da cidade. O que não houve foi um desenvolvimento para chegar no projeto executivo, muito em função da ideologia de fazer 50 anos em três”, diz Maria Elaine.


Agenda Política Num dado momento, ao longo da trajetória de quase uma década de atividades, o GT Brasília se viu imerso na agenda política de José Apareci-

Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

A PRAÇA DA SOBERANIA E A REAÇÃO PÚBLICA Em 2009, Oscar Niemeyer propôs um projeto que foi batizado de Praça da Soberania. Ele previa um estacionamento subterrâneo com capacidade para três mil automóveis e um edifício curvo que abrigaria o Memorial dos Presidentes, oposto a um obelisco de mais de cem metros de altura. O que sucedeu a proposta foi uma série de manifestações de arquitetos, políticos, professores, pesquisadores e moradores da cidade. Um dos principais argumentos contra a proposta se baseava na interferência sobre o projeto original de Brasília e a obstrução visual causada à Esplanada dos Ministérios e ao Congresso Nacional. “A defesa naquele momento não ficou apenas na ideia da proteção do projeto original, mas na defesa daquilo que importava aos brasilienses ser preservado. É muito significativo que a própria comunidade tenha se levantado contra uma proposta do Oscar Niemeyer”, conclui Thiago Perpétuo.

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Brasília. “Eu acho que é uma contribuição imensa e é a leitura crítica disso. Se uma cidade histórica já sedimentada não pode ser congelada, imagine uma que está sendo construída a partir de sua concepção inicial”, analisa. Na época, todo o vocabulário técnico, os conceitos e instrumentos de preservação de cidades mostravam-se inadequados para o trato de uma cidade moderna. Assim, o GT Brasília criou uma complexa operação de análise para estabelecer quais seriam os alvos específicos das ações de preservação, construindo não apenas objetos, mas toda uma metodologia de trabalho e instrumentos condizentes com a perspectiva patrimonial referenciada no dinamismo cultural. “A identidade dos lugares não é eles ficarem cristalizados e sofrerem museificações. Isso é uma noção de patrimônio extremamente ultrapassada, digo por toda a teoria patrimonial desde o século XIX até a contemporaneidade.

Nós (arquitetos e urbanistas) sabemos que estamos projetando coisas que irão mudar”, revela Maria Elaine. Para garantir que a Capital continuasse pulsante, o grupo percorreu um caminho diferente. Fez um trabalho amplo e de consulta que refletia sobre a cidade assim como a população. Foram aplicados quatro mil questionários em pessoas com vínculo ao Plano Piloto. “A pesquisa se deu com questionários estruturados com perguntas referentes à apreensão da cidade pelos seus habitantes, que poderiam indicar, por exemplo, o grau de importância que davam a certos marcos urbanos, quais os elementos visuais que melhor representavam a cidade e a indicação dos elementos positivos e negativos”, comenta Maria Elaine. A arquiteta conta que o GT trabalhava em duas linhas temporais: o TH, que seria o “tempo hoje”, e o T0, que seria o de 1957, época da construção de Brasília. “Uma pergunta que foi colocada nessa discussão mais ampla e nós batemos o martelo era: ‘Qual Brasília preservar?’ Neste trabalho em dois tempos se buscaram as características fundamentais que permaneciam”, explica. Maria Elaine ainda ressalta que a ideia era ter a forma como fio condutor sem nenhum receio ou inibição. “Quando falamos de forma, estamos falando de categorias profundas da configuração espacial, você percebe uma cidade linear diferente do que percebe uma cidade radial, porque anda por ela. São categorias de forma que são subjacentes que não aparecem à vista, mas que vão condicionar sua percepção”, destaca.

Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

A partir dessa ideia, foi desenvolvido o conceito de preservação dinâmica, que propunha abordar a conservação do patrimônio com medidas que visavam manter as características essenciais, permitindo as transformações colocadas pelas demandas contemporâneas. “O GT Brasília entendia que era necessário fazer uma leitura do espaço identificando quais os elementos essenciais que devem ser preservados em um ambiente que está em contínua mutação. É de fato uma leitura de um organismo vivo”, afirma Perpétuo. Para Carlos Madson, o maior avanço e contribuição do Grupo ocorreu em relação a isso: defender que não se pode trabalhar com os mesmos mecanismos que se utiliza num centro histórico, estratificado e sedimentado, em uma cidade como

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PESQUISA DE IMAGEM DO PLANO PILOTO Preocupados com o desenvolvimento urbano de Brasília e a preservação da cidade, a equipe do GT realizou uma pesquisa sobre a imagem do Plano Piloto e como as pessoas o vivenciavam, extraindo indicações das características da cidade que são consideradas fundamentais e mereciam ser preservadas. “Eram entrevistadas pessoas que de alguma forma frequentavam o Plano Piloto, pois as perguntas eram sobre a cidade projeto de Lúcio Costa, o foco era a cidade projeto de Lúcio Costa, e as pessoas deviam de alguma forma frequentar, trabalhar aqui e morar fora, ou morar aqui”, relata Márcio Vianna, no livro GT Brasília: Memórias da Preservação do Patrimônio Cultural do Distrito Federal. O resultado obtido na pesquisa constatou que o posicionamento da população enfatizava a necessidade de uma participação mais direta e efetiva dos habitantes no desenvolvimento da cidade, seja através de entidades civis, por consulta à opinião pública ou pelo aparelhamento do Governo local para diálogo com a população. Ainda, a percepção da imagem da cidade como um todo concebido como “dois eixos que se cruzam em ângulo reto” por Lúcio Costa, não estava presente na consciência dos cidadãos, conforme demonstraram dois itens da pesquisa: o mapa da cidade e o cruzamento dos eixos. Na pesquisa de imagem, na parte que diz respeito à orientação espacial, o mapa de Brasília foi o 20o colocado e o cruzamento dos eixos o 26o. Um fato interessante que foi constatado: a Rodoviária, local onde ocorre tal cruzamento, fora o primeiro entre todos os itens listados,ou seja, as pessoas não reconheciam efetivamente os “eixos que se cruzam” como parte urbanística da cidade, nem tampouco o fato deste cruzamento ocorrer no ponto exato da Rodoviária. A pesquisa de imagem foi financiada com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU) mediante convênio com a Subsecretaria de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e a aplicação foi feita por equipe especialmente treinada para atuação em diversos pontos do Plano Piloto e Cidades Satélites. Ao final de 1983, os resultados começaram a ser tabulados pelo Centro de Processamento de Dados (CPD) da Universidade de Brasília. Fonte: Livro GT Brasília: memórias da preservação do patrimônio cultural do Distrito Federal (julho/2016)

MÁRCIO VIANNA foi um dos responsáveis por catalogar o patrimônio cultural na década de 80

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do de Oliveira, político mineiro que governou a Capital entre 1985 e 1988 e conduziu o período inicial de redemocratização e emancipação política. Logo ao assumir o posto, em entrevista ao jornal Correio Braziliense, ele afirmara que entre seus planos estava o “tombamento do Plano Piloto para evitar a descaracterização de suas linhas arquitetônicas”. Mais tarde, já na condição de ministro da Cultura (1988-1990), Aparecido foi informado dos estudos feitos pelo GT relacionados à preservação do patrimônio na capital. Naquela época, o Grupo já estava há cinco anos elaborando perspectivas e havia chegado a questões mais consolidadas, como o conceito de preservação dinâmica e como isso poderia ser garantido via legislação. A ideia era ter um marco legal para tornar o conceito operacional. “O GT Brasília até trouxe uma vantagem para o José Aparecido, porque ao longo desses primeiros cinco anos eles conseguiram atingir um nível de robustez nos estudos em que fizeram um dossiê extremamente qualificado”, avalia o mestre em Preservação Patrimonial. Dossiê técnico Ao final dos sete anos de intenso estudo, a equipe do GT Brasília foi surpreendida por uma atitude política por parte de José Aparecido: incluir Brasília na lista de Patrimônio Cultural da Humanidade. “Uma atitude muito contraditória em termos de avaliação. Por um lado negativa, porque os trabalhos ainda estavam em andamento, mas se não tivesse feito isso naquele momento, não sei se teria feito depois”, analisa Maria Elaine. No livro GT Brasília: Memórias da Preservação do Patrimônio Cultural do Distrito Federal, Yêda Barbosa conta que o dossiê foi o resultado de cinco anos de trabalho e que o objetivo inicial não era o dossiê, mas estabelecer parâmetros, diretrizes e abordagens que pudessem de algum modo contribuir para a preservação de Brasília. “Na verdade, isso (a elaboração do dossiê) caiu no nosso colo como missão para dentro de um a três meses, estar pronto, dentro da Unesco, e a gente tinha o material pronto, porque vinha trabalhando nesse material havia cinco anos. Foi


CARLOS MADSON (à esq.) e Thiago Perpétuo (à dir.), estudos que resgatam a memória sobre a preservação

trouxe resultados. “O reconhecimento internacional veio antes do tombamento pelo governo, embora para que a Unesco incluísse Brasília, exigiu que tivesse uma legislação específica de proteção (o tombamento pelo governo). Por isso a criação do decreto nº 10.829 de 1987, que dá as linhas de preservação de Brasília”, revela Madson.

Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

RASCUNHO DO projeto da Torre de TV, em Brasília

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a única possibilidade que teve de se ter um documento mais consistente”, explicou, durante um debate sobre o tema realizado em julho de 2016 pelo Iphan. Escrito na varanda de um prédio na SQS 103 por Maria Elaine Kohlsdorf e Briane Bicca — ambas coordenadoras do GT — o dossiê que seria enviado à Unesco tinha como base os estudos feitos pelo Grupo. Na época, para que a Unesco aceitasse a inscrição de Brasília, a discussão foi gigante. Não se tinha conhecimento de um bem com menos de cem anos reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade. “Realmente era muito difícil convencer sobre a validade de se preservar para a memória uma cidade tão jovem e inacabada. Na própria listagem de patrimônios da Unesco era um fato único. Brasília, nesse sentido, abriu a porta para que se apreciasse melhor a questão do patrimônio”, revela Maria Elaine. O dossiê técnico foi então enviado à Unesco pela primeira vez em 1985 e, como resposta, a instituição exigiu uma legislação específica para preservar o patrimônio. “Como não tinha nada do estilo na lista, a candidatura foi recusada. Quando a Unesco disse que não tinha parâmetros, a gente refez o estudo mostrando que os parâmetros eram os mesmos. Lúcio Costa e (Oscar) Niemeyer eram gênios como (Antoni) Gaudí (arquiteto catalão)”, lembra Márcio Vianna. À época, não havia estrutura no Governo do Distrito Federal para cuidar de questões referentes ao patrimônio, apenas um Departamento de Cultura vinculado à Secretaria de Educação e Cultura. A persistência

Relembrando o passado, Maria Elaine Kohlsdorf conta que sente enorme frustração na questão de não ter conquistado as metas metodológicas firmadas pelo GT. “O tombamento é apenas um instrumento. O dossiê técnico chegou a uma Minuta de Preservação Urbanística para a preservação de Brasília, que ramificaria para instrumentos como Lei de Uso e Ocupação do Solo e Código de Obras”, conclui. Carlos Madson, do Iphan-DF, observa que a cidade que existe hoje é muito menos sacralizada em relação à visão das primeiras gerações. “Brasília, por ter um projeto autoral, conceitual, definido em seus limites e com série de setores que não foram implementados, realmente está incompleta na sua concepção inicial”. Ele destaca que o GT compreendia isso e trabalhava com uma cidade de apenas 20 anos, quando boa parte das superquadras da Asa Norte sequer existiam, a orla do lago estava vazia e muitos setores na Asa Central não tinham sido construídos.

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LUCIO COSTA, O DONO DO PLANO

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Arquiteto planejou uma cidade moderna e funcional, no meio do Cerrado, para se tornar a capital do Brasil e Patrimônio Cultural da Humanidade ANDRÉ DELMIRO

verde, Pernambuco, pai de 6 filhos, mudou-se para São Paulo em busca de trabalho e acabou aceitando o convite para trabalhar na construção de Brasília, em 1957. Foi a primeira vez que o pernambucano viajou de avião. A rotina não era fácil. Trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Não foi possível trazer a família durante as obras. Era uma determinação de JK, porque não havia o que fazer na cidade a não ser trabalhar. José participou da construção do zoológico, lugar onde morou por 12 anos até receber um convite para financiar, em longas prestações, uma casa no Guará, lugar em que vive até hoje e cuida com carinho. Mesmo carinho que nutre pela cidade que ajudou a construir e se derrete ao afirmar: "Sou pernambucano de nascença, paulista de coração e brasiliense para a eternidade". A mudança da capital federal do Rio de Janeiro para o interior do Brasil é uma ideia muito antiga e após muita discussão foi definido na segunda Constituição brasileira, de 1891, que a capital deveria ser transferida para o Planalto Central. O texto prescreve: “Fica pertencendo à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura capital federal”. O principal objetivo era povoar o interior do País, região que até então tinha sido pouco explorada. Missão assumida 66 anos depois pelo presidente Juscelino Kubitschek. Oscar e Lucio A figura de Lucio Costa, apesar de muito respeitada, sempre se caracterizou por uma pessoa reservada. Segundo Costa, no documentário “A Visão do Futuro”, produzido no fim dos anos 90 poucos anos antes de seu falecimento, se dependesse apenas dele, Brasília não teria sido entregue na gestão de JK. “Eu estava meio apreensivo com o projeto. Quando apresentei o Plano, recomendei a Oscar que fizesse só uma parte e deixasse o resto para o governo seguinte”, disse o arquiteto. O temor de Lucio Costa se dava pela complexidade da obra e todas as dificuldades envolvidas na execução, como a falta de estradas para o transporte de materiais, o que obrigou des-

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Foto: Acervo/Arquivo Público do Distrito Federal

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ascido na França em 1902, na cidade de Toulon, filho do almirante brasileiro Joaquim Ribeiro da Costa, Lucio Marçal Ferreira Ribeiro de Lima Costa, conhecido como Lucio Costa, Iniciou seus estudos em arquitetura no Brasil, mais precisamente na Escola Nacional de Belas Artes, se formando em 1924. Pai de duas filhas, Maria Elisa Costa e Helena Costa, Lucio perdeu a esposa Julieta Guimarães em um acidente de carro que sofreram juntos em 1954. Três anos após o acidente, em 57, Costa ganhou notoriedade quando venceu o concurso nacional para elaboração do Plano Piloto. Esteve ao lado de Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer na criação e formação de Brasília, implementando na nova capital um conceito moderno de arquitetura e urbanismo. O arquiteto, porém, nunca concordou com a ideia de que o projeto do Plano Piloto se baseava em um avião. “Ele não criou pensando em um avião. É um ‘xis’. O avião é resultado e o ‘xis’ é a origem”, garante Maria Elisa Costa, filha do arquiteto. Maria Elisa, que atualmente tem 80 anos e mora no Rio de Janeiro, era estudante de arquitetura quando o pai fazia os primeiros esboços do projeto da capital. Lucio Costa fez o Plano Piloto sozinho, em casa. Foi Elisa, a primeira pessoa a ver o material pronto. A filha do arquiteto compara o projeto com a música. “O meu pai escreveu a partitura da música, sabendo que contaria com um extraordinário intérprete em certos trechos”, diz a arquiteta. O intérprete que ela cita é o consagrado arquiteto Oscar Niemeyer, que se tornou uma espécie de discípulo de Lucio Costa e responsável pela arquitetura monumental de Brasília. Junto com JK, o paisagista Roberto Burle Marx e o próprio Lucio Costa, planejou e preparou Brasília em um pouco mais de 3 anos. Para que isso tudo se tornasse realidade, era necessário não só pessoas que trabalhassem na construção, mas famílias vindas de todos as partes do Brasil, sendo boa parte do Nordeste. Foi o que aconteceu com José Ferreira da Silva. Nascido em Arco-


Foto: Casa Cairiri Mostra

pachar aviões abarrotados de carga de todo o Brasil para o meio do cerrado. A personalidade de Costa, como ele próprio dizia, é o exato oposto da de Oscar Niemeyer, que de pronto rejeitou o adiamento sugerido: “O projeto que você adotou de dois eixos se cruzando, criando aquela plataforma, se não for feito de uma vez pode fracassar, se o governo seguinte não levar a sério. Quero deixar isso tudo pronto e iluminado”. A parceria entre Lucio e Oscar foi se construindo muito antes dos primeiros riscos e traços que originaram Brasília. Niemeyer iniciou a carreira como estagiário no escritório de Costa na década de 30. Seis anos mais novo e com estilo pessoal antagônico ao do mentor, Oscar se destacou aos olhos de Lucio na obra da sede do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, onde o arquiteto creditou a Niemeyer a “orientação decisiva” para a implantação da ideia. Em 1939 em Nova Iorque, na Feira Mundial de Arquitetura, houve um concurso para a construção do Pavilhão do Brasil, onde os dois arquitetos apresentaram seus projetos. Lucio Costa ficou em primeiro lugar e Oscar, em segundo. Percebendo que a proposta de Niemeyer tinha ingredientes novos, principalmente em relação à liberdade de implantação, Costa convida Niemeyer para juntos elaborarem, ali mesmo em Nova Iorque, um terceiro projeto, que foi definitivamente colocado em prática. Por se tratar de um pavilhão de exposições temporárias, o prédio não existe mais.

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A ARQUITETA Maria Elisa Costa compara o projeto do pai com uma roupa de adulto colocada em um bebê, que vai crescer e se encaixar perfeitamente

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Em 1957, no aniversário de cinquenta anos de Oscar Niemeyer, Lucio Costa escreveu uma pequena carta, onde credita à juventude do companheiro “a sua capacidade de resolver complexos problemas arquitetônicos no cotidiano a que se entrega”. Já na abertura do texto, sintetiza: “Pelo volume da obra realizada, poderia ter setenta, mas, na verdade, continua com os mesmos trinta e tantos da época da Pampulha. E pelo jeito será sempre assim”. A Pampulha está localizada em Belo Horizonte e é famosa por seu lago artificial e seu complexo arquitetônico, projetado por Oscar na década de 40, quando Juscelino Kubitschek era prefeito da cidade. A relação quase de simbiose entre Lucio e Oscar impressiona. Maria Elisa, que esteve presente a maior parte do tempo em que seu pai e Niemeyer trabalharam juntos, destaca: “É incrível que a Praça dos Três Poderes não seja fruto de uma só cabeça, como à primeira vista se poderia imaginar, mas da soma de duas personalidades tão diferentes, unidas pela convicção com que ao longo da vida batalharam pela qualidade da arquitetura brasileira”. Um homem bom Maria Elisa possui um grande arsenal de adjetivos para definir o pai. De uma pessoa “convicta e flexível, que se dá o direito de mudar de opinião”, até mesmo “um arquiteto com olho absoluto, assim como existem músicos com ouvido absoluto”, Lucio Costa é também caracterizado por ela como alguém “perfeitamente consciente do seu próprio valor”. Livre, generoso, talentoso, discreto, apaixonado, sensível, inteligente, atuante, aberto ao imprevisto, são alguns atributos que Elisa destaca para aquele que é sua maior referência profissional e pessoal. Em uma das diversas entrevistas que concedeu ao longo da vida, Lucio Costa foi perguntado de que forma se definiria. O urbanista respondeu com a mesma simplicidade que sempre o caracterizou. “Um homem bom”, sintetizou. No início de sua carreira na arquitetura, em seu escritório, Elisa apresentou a ele um projeto que fez encomendado por uma empresa de turismo em Cabo Frio, no Rio de Janeiro. No desenho, um pequeno

AS MÃOS de José Ferreira ajudaram a construir a capital do País

conjunto residencial batizado por ela de Burgo. Quando mostrou ao pai, ouviu como resposta: “Engraçado, você pegou o jeito!” E foi sempre assim. Maria Elisa garante que Lucio foi um pai presente, atencioso, que acompanhava seus passos. Com a morte de sua mãe, Julieta Guimarães, Lucio Costa se aproximou mais de Elisa e deu a ela o que chamou de “irmã mais moça”: Brasília. O grande legado O arquiteto Paulo Henrique Paranhos se mudou do Rio de Janeiro para Brasília em 1970, quando tinha apenas 12 anos. Ele afirma que a arquitetura da cidade influenciou na decisão em escolher a profissão e que o projeto do Plano Piloto é uma grande paixão. “Brasília é um eterno patrimônio da humanidade. Tenho muito a aprender e essa cidade é uma fonte inesgotável”. O também arquiteto José Eduardo Ladeira fiscalizou em 1999 a execução das obras das passagens subterrâneas no Eixão Norte, previstas no projeto de Brasília idealizado por Lucio Costa. Ele conta que houve adaptações na concepção original. Ladeira lembra que ela se descaracterizou por ter uma espécie de esquina no fim e início do percurso. “Foi uma necessidade por conta das tesourinhas. Hoje a principal crítica da população se dá em relação à segurança, por conta desse ponto cego na entrada e saída. Não faz parte do projeto original”, admite.


O ESPAÇO Lucio Costa está localizado no subterrâneo da Praça dos Três Poderes e a visitação é gratuita

de reconhecer a importância de se ter um espaço dedicado ao arquiteto, o catarinense faz criticas ao local: “O espaço não representa a grandiosidade e importância que teve Lucio Costa para Brasília. Deveria ter mais destaque. A maquete, por exemplo, poderia ser tecnológica, com alguma interatividade, com luzes. Algo mais moderno”. Presidida por sua filha, Maria Elisa Costa, a Casa de Lucio Costa, criada em 2000, está localizado no Rio de Janeiro e possui um vasto acervo familiar. São fotos, projetos, maquetes. Um espaço onde tudo remete à história do arquiteto. Até 2005, a casa teve como sede provisória a residência de Maria Elisa,

projetada pelo pai. A partir de 2005, com apoio da Petrobras, foi possível proceder à identificação, organização e digitalização do acervo. Trabalho concluído no final de 2006. O “dono do Plano” faleceu aos 96 anos, no dia 13 de junho de 1998, em um sábado pela manhã, na sua casa no Leblon, no Rio. Mesmo 19 anos após sua morte, seu trabalho permanece influenciando novos arquitetos e fazendo com que o brasiliense tenha todos os dias o privilégio de viver em uma cidade única, que mesmo tão nova, em 1972, com 27 anos de existência, se tornou Patrimônio Cultural da Humanidade.

O CATARINENSE Roberto Cassiano (primeiro à esquerda) visita o espaço Lucio Costa pela primeira vez

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Lucio Costa foi um grande influenciador. Seus projetos e obras ganharam dois espaços fixos de exposições. Uma delas foi criada por Oscar Niemeyer e inaugurada em 1992, quando Lucio completou 90 anos. O Espaço Lucio Costa fica localizado na Praça dos Três Poderes e é uma construção subterrânea. É possível conhecer a maquete original de Brasília, dentre rascunhos e os originais do projeto desenvolvido por Costa. Para o bancário Roberto Cassiano, 36, que veio de Florianópolis para Brasília a trabalho, o espaço é uma justa homenagem a quem trouxe características marcantes para a cidade. Apesar


AINDA É PRECISO ENTENDER O TOMBAMENTO redemoinho . ano 08 . número 12

Pesquisa mostra que população reclama de congelamento da cidade, enquanto estudiosos se queixam da incompreensão e setor imobiliário pede regras mais claras JÚLIA AUTUORI

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V

iver em uma cidade tombada é ostentar um título. É saber que o local onde se vive é considerado patrimônio, que a beleza estará sempre preservada, que as características que encantam uma geração já encantaram outras e terão o mesmo encantamento para futuras gerações. Mas é também conviver com uma limitação. Uma cidade tombada não pode ser modificada. Para arquitetos, urbanistas e estudiosos, este é um benefício, PRÉDIO DA Asa Norte com área verde ao um motivo de orgulho. Mas para os lado, uma das coisas que os moradores defensores da expansão e dos invesapreciam no projeto da cidade timentos imobiliários esse é um problema. É um congelamento de uma cidade. Tais sentimentos dividem cida pela Organização das Nações a Companhia de Planejamento do moradores de Brasília há três décadas. Unidas para a Educação, a Ciência e Distrito Federal (Codeplan) em uma Brasília foi inaugurada apenas a Cultura (Unesco) como Patrimônio pesquisa feita sobre o tombamento três anos depois de ter começado a Mundial Cultural, o que fez de Brasília em 2012, 58% da população do Plaser construída. O projeto do urbanista a primeira cidade do século XX a ser no Piloto considera o tombamento e arquiteto Lúcio Costa lembra um reconhecida por ela. um empecilho para a expansão de avião. Nas asas dele ficam as superMas para que Brasília continue Brasília. quadras que abrigam os prédios resi- sendo um Patrimônio, é preciso que O arquiteto formado pela Univerdenciais e comércios, pensados para o projeto urbanístico dela seja pre- sidade de Brasília (UnB) e um dos reoferecerem tudo o que os moradores servado. O tombamento existe para presentantes do grupo Urbanistas por precisassem. “O Lúcio Costa projetou ajudar a preservar as características Brasília, Cristiano Souza Nascimento, 15 blocos em cada quadra, cada um de Brasília e foi criado por meio da explica que o termo congelamento com 48 apartamentos ”, explica o portaria SPHAN 4, no dia 13 de mar- foi criado como um marketing pelas arquiteto e professor aposenimobiliárias para que prédios tado da Universidade de Brafora do padrão de seis andares sília, Antônio Carlos Carpitero. “É tipo uma propaganda negativa fossem construídos no Plano O problema é que as quadras Piloto. “É tipo uma propaganda para quem tem interesse que a sofreram adaptações. negativa para quem tem intePara o arquiteto, um exemresse que a cidade não seja procidade não seja protegida” plo de quadra que deu certo, tegida”, explica Cristiano. Cristiano Souza Nascimento mas que apenas se aproximou O vice-presidente do Sindo que Lúcio Costa queria é a dicato da Indústria da Conssuperquadra 312 Norte. Ela tem 11 ço de 1990, substituída pela Porta- trução Civil do Distrito Federal (Sinblocos com 72 apartamentos, número ria IPHAN 314 no dia 08 de outubro duscon- DF), João Gilberto Accioly, é que chegou bem próximo do que foi de 1992. Nessa portaria estão todos um dos que reclamam. Ele conta que idealizado. “Isso permite a quadra ter os requisitos para preservar a escala as construções não sofreram com o um comércio local ativo. E é uma das bucólica, monumental, residencial e tombamento, mas com as regras que poucas quadras em Brasília que tem gregária. o tombamento impõe. Na avaliação isso bem feito”, conta Antônio Carlos, Junto com o tombamento, o Pla- dele, essas regras não são muito claum estudioso da área. nejamento de Preservação do Con- ras. “Já convivemos com o tombamenUma parte importante do pro- junto Urbanístico de Brasília (PPCUB) to há 30 anos e já aprendemos a lidar jeto urbanístico, como o que cita o e as Normas de Edificação e Gabarito com ele de forma tranquila e positiva”, professor Antônio Carlos, foi um dos (NGB), que são várias e diferentes para conta João Accioly. fatores para que contribuiu para esse cada lugar, ajudam a preservar o proPara compreender o tombamenprojeto ganhar o título de Patrimônio jeto da cidade. to, é importante entender a diferença Urbanístico e Arquitetônico. Esse é entre ele e o título de Patrimônio que Congelamento um dos diversos patrimônios que o Brasília tem. Apesar dos dois se comDistrito Federal tem, de acordo com O termo congelamento é muito pletarem, são duas coisas diferentes. o Instituto do Patrimônio Histórico, utilizado pelas pessoas que acham De acordo com Cristiano, o tombaArtístico e Natural (Iphan). Essa cate- que o tombamento impede o cres- mento é um ato administrativo que goria é especial porque foi reconhe- cimento da cidade. De acordo com protege um bem, por isso existem re-


VISTA DA Asa Norte, onde é possível observar a linha de prédios residenciais mesclados com áreas verdes

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gras para preservar o projeto de BrasíAlém disso, Israel Pinheiro criou Brasília. O congelamento do Plano lia. Depois que o bem é reconhecido as cidades satélites antes da hora ne- Piloto foi populacional, mas por uma pelo país como algo a ser protegido, cessária, na avaliação do arquiteto. consequência de 1956. a Unesco avalia as singularidades que De acordo com Carpitero, as cidades Regras levaram à proteção do bem e decide satélites deveriam ser uma extensão se ele deve ou não merecer o título de Brasília e não uma cidade separaA cidade é ordenada por normas de Patrimônio. da. As pessoas deveriam morar nelas que dizem o que pode ser construíUm dado que embasa o pensa- quando o limite de 500 mil habitantes do, onde e como. A maioria delas se mento de que a cidade foi paralisada fosse ultrapassado no Plano Piloto. encontra nas Normas de Edificação e pelo tombamento, é o da Pesquisa Como consequência algumas das Gabarito (NGB), que agrupa várias reDistrital por Amostra de Domicílios cidades satélites ficaram muito tempo gras para construção de acordo com (PDad), da Codeplan. Ela mostra que e ainda estão sem saneamento básico, cada lote. “Afastamento, laterais, alo Plano Piloto tinha 216 mil hatura do prédio, área construída bitantes em 2013 e subiu para máxima, o que pode funcionar 220 mil em 2016. A diferença “Afastamentos, laterais, altura dentro do prédio, isso tudo é é gritante quando comparada a norma que define”, explica do prédio, área construída com Ceilândia, a maior cidade Cristiano. do DF, que ganhou 38 mil haCom os anos, Brasília se máxima, o que pode funcionar modificou e novas regras fobitantes entre 2013 e 2016. Mas de acordo com Antônio Carlos, ram surgindo e se adaptando às dentro das edificações: isso isso é uma consequência de mudanças da cidade e hoje as tudo é a norma que define” modificações no projeto de Branormas são várias e separadas sília na época da construção da por setores. De acordo com a Cristiano Souza, arquiteto cidade e não do tombamento. Administração Regional do PlaEm 1956, o então presino Piloto, existem normas para dente da Companhia Urbanizadora segurança e outras coisas básicas para construir no Setor de Autarquias Sul da Nova Capital (Novacap), Israel Pi- garantir uma boa qualidade de vida. e Norte, Setor Bancário Sul e Norte, nheiro da Silva, ajudava a coordenar Um exemplo é a Vila Estrutural, que só Setor de Embaixadas e inclui também a construção da capital e fez algumas solucionou o problema de saneamen- as Asas Norte e Sul. modificações no projeto da cidade. to básico em 2009. Carpitero também As normas ajudam na preservaDe acordo com o professor Antônio destaca que esse deslocamento con- ção do projeto de Brasília, mas tamCarpitero, as casas que existem na W3 tribuiu para que os apartamentos nas bém atrapalham pelo número de Norte foram ideia do presidente da Asas Norte e Sul ficassem mais caros regras que existem. Foi então que o Novacap. “Ele criou essas casas da W3, e abrigassem somente as classes mais Planejamento de Preservação do Conque não tinha no projeto. Criou um altas, empurrando as pessoas de clas- junto Urbanístico de Brasília (PPCUB) desequilíbrio no Plano Piloto”, conta se baixa para as cidades satélites, si- foi criado em 2011. O objetivo do PPAntônio. tuação que estava fora do projeto de CUB é organizar essas normas de uma

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forma que elas não fiquem vagas para quem for do setor de construção. O PPCub seria uma ajuda grande para a preservação de Brasília, mas desde que foi criado, ele não sai do papel. De acordo com Cristiano Souza, o PPCub era uma boa proposta mas passou a ser problemático quando interesses imobiliários se misturaram aos objetivos do projeto. “O PPCub surgiu no governo do Agnelo e como tem pressões em volta, mercado imobiliário principalmente, aí começou a se usar para fazer alterações”, explica Cristiano. Qualidade de vida

ÁREA VERDE entre prédios da Asa Norte. O tombamento ajuda a preservar essas áreas, que são usadas para lazer

veira. Ela mora na quadra 310 Sul e conta que o que mais gosta nas quadras residenciais é a tranquilidade e a segurança. Além disso, Natália conta também que tem tudo o que precisa perto dela, como trabalho, faculdade, diversão e o que mais aprecia na cidade é como mantém a história. “Vejo como Brasília é uma cidade bem diferente das demais, aprecio sua forma e como mantém sua história”, diz Natália. As pessoas que moram nas outras cidades percebem as diferenças,

como por exemplo a estudante de Direito, Natália Oliveira Santos. Ela mora há um ano em Águas Claras e as vantagens que vê na cidade são os prédios com área de lazer e locais como padaria e academia perto de casa. Porém, Natália diz que sente falta de luz solar, pois existem quatro prédios bloqueando o sol do prédio onde ela mora e sente falta também das áreas verdes. “Área verde aqui é pouca devido a tantos prédios. Só tem o Parque de Águas Claras”, reclama Natália.

VISTA ÁEREA de Brasília mostrando parte do Eixo Monumental e da Esplanada

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Quando se fala em tombamento, a primeira ideia que se tem é de que ele garante apenas a preservação do patrimônio histórico, mas a ideia de tombamento vai além. Um dos objetivos é garantir a qualidade de vida dos moradores. Basta lembrar que no Plano Piloto as pessoas podem observar o céu, o pôr do sol da janela do apartamento e sofrem muito pouco com a poluição sonora é mínima. Os cantos dos pássaros são ouvidos pela manhã. Se no Plano Piloto fosse permitido construir prédios onde hoje existem as áreas arborizadas e onde as construtoras quisessem, a qualidade de vida certamente seria muito baixa, segundo acredita o arquiteto Cristiano Souza. Para os arquitetos, é a falta dessa compreensão que faz com que muitas pessoas torçam o nariz para o tombamento. “Então o título ele deveria ser entendido pela população como grande honra. Não é qualquer lugar que tem os requisitos”, conclui Cristiano. Moradora da quadra 316 Norte há 20 anos e estudante de Economia da Universidade de Brasília, Mayume Ninomiya Heldt, conta que conheceu o termo tombamento por meio de uma aula na universidade sobre Economia Urbana. Para ela, a vista homogênea e a setorização dos lugares são uma vantagem do tombamento. “Temos uma variedade boa de lojas e a cidade tem uma lógica de organização que facilita encontrar certo tipo de coisa”, conta Mayume. A opinião de Mayume sobre o tombamento é compartilhada pela estudante de Cinema do Centro Universitário Iesb, Natália Castro de Oli-

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JÁ SOMOS UMA METRÓPOLE

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Brasília completa 30 anos como Patrimônio Cultural da Humanidade e tem um grande desafio à frente: a preservação do Conjunto Urbanístico

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DOUGLAS RODRIGUES

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I

magine prédios comerciais ao longo do Eixo Monumental, arranha-céus nas quadras residenciais e um hospital no setor de diversões sul. Quem conhece a capital sabe que muitas dessas coisas são impensáveis para ela. Brasília é uma cidade diferente. Construída em apenas três anos e meio, o projeto de Lucio Costa e Oscar Niemeyer foi um marco no urbanismo mundial. A cidade é dividida em setores, as superquadras têm apenas uma única entrada, os prédios são baixos e com pilotis livres para circulação de pessoas. Por estes motivos ela foi a primeira cidade moderna reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, em 1987 com apenas 27 anos de existência, e tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em 1990. Hoje a capital completa 57 anos de vida e 60 anos da escolha do projeto urbanístico. De lá pra cá o crescimento populacional trouxe novas demandas para a cidade. Lucio Costa não fazia ideia do trabalho que deixaria para as gerações futuras. Construção de puxadinhos irregulares, aumento nos gabaritos dos prédios e um trânsito à beira do colapso são alguns desafios que o governo e moradores têm a enfrentar. Brasília foi projetada para abrigar 500 mil moradores. Em 2016 o Distrito

VISTA DO pôr do sol no centro da capital: Brasília foi planejada para ser o centro político-administrativo do país

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Federal chegou a 2,9 milhões de habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Economia e Estatísticas (IBGE). Novas cidades e bairros, como o Noroeste, surgiram, reflexos deste crescimento. Um grande desafio Cada área da cidade tem uma norma de uso. Essas normas deveriam ser atualizadas regularmente pelo governo. Mas as últimas gestões não conseguiram suprir a demanda da cidade, o que levou a um acúmulo. Há plantas de alguns lugares da cidade

feitas à mão na década de 60 e nunca foram atualizadas, por exemplo. Josiana Aguiar é Diretora de Gestão do Conjunto Urbanístico da Secretaria de Estado de Gestão do Território e Habitação (Segeth). Ela conta que um dos grandes desafios do governo é organizar todas as normas técnicas existentes num único documento. “Para saber o uso de um lote, o parâmetro urbanístico que vale, como altura, número de pavimentos, tudo o que a legislação urbanística trabalha, a gente consulta um cem números de documentos”. “A cidade tem muitas


“Uma sugestão: antes de ‘interpretarem’ o Plano Piloto, procurem compreendê-lo, por extenso” Maria Elisa Costa, arquiteta e filha de Lucio Costa

MISSÃO UNESCO 2012 Em 2012, a Unesco fez uma missão junto com o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), para verificar como anda a conservação da cidade. Foi avaliado o cumprimento de recomendações feitas na primeira missão ocorrida em 2001 e o conselho pontuou diversos problemas na cidade. No final foram feitas 38 recomendações para que Brasília seja efetivamente preservada. Entre elas estava a criação de um órgão do GDF para tratar exclusivamente da proteção do Patrimônio.

PESSOAS CIRCULANDO no Setor Comercial Sul. A capital foi planejada para abrigar 500 mil moradores, hoje ela abriga quase 3 milhões

UMA CIDADE PLANEJADA “Uma sugestão: antes de ‘interpretarem’ o Plano Piloto, procurem compreendê-lo, por extenso”, é o conselho de Maria Elisa Costa, arquiteta e filha de Lucio Costa sobre a importância da preservação da cidade. Ela alerta que preservar o plano original é uma obrigação de todos. “Preservar a concepção original do Plano Piloto não é favor nenhum, é um mínimo de respeito ao testemunho vivo da incrível realização da nação brasileira que Brasília significa”, conclui. A capital é o maior projeto da nação idealizado e construído por brasileiros. Lucio Costa retrata no documento “Brasília revisitada”, em 1987, como deveria ser a expansão e o cuidado com a cidade. “A capital deverá manter-se ‘diferente’ de todas as demais cidades do país”, escreveu o urbanista no relatório. O plano original de Brasília é bem diferente da cidade de hoje. Já

foram feitas diversas alterações em seu projeto ao longo das décadas. As quadras 400 e 900 não estavam no plano inicial de Lucio Costa, por exemplo. A W3 Sul não tinha cruzamentos. Não havia tantos carros na cidade e com o tempo foram feitas várias adaptações. O tombamento de Brasília é um tombamento de caráter urbanístico e permite algumas alterações. O urbanista Antônio Carpinteiro, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UNB, relata que a principal característica da cidade é o conceito da “cidade parque”, com predominância de espaços livres e verdes. Ele alerta que a população das outras regiões do DF deve valorizar estas características da capital e policiar as ações do governo no seu cuidado. “Mais da metade da população de Brasília mora nas ‘satélites’, e não é outra cidade. É a mesma cidade”.

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demandas, então tudo isto tem que ser feito com muito crité- rio e sensibilidade”, diz. Essas decisões precisam de um amplo estudo, para saber se a área comporta a demanda de água, esgoto e estacionamentos, por exemplo. “Especialmente das áreas não edificadas”, informa. Muitos setores hoje sofrem com a falta de atualização de regras. Segundo Paulo Muniz, empresário e presidente da Ademi (Associação de Empresas do Mercado Imobiliário do Distrito Federal), um dos problemas enfrentados é a “setorização” excessiva da cidade. “Nós temos um setor de indústrias gráficas que não tem nenhuma vocação para gráficas mais. Tem muitas coisas funcionando, como escritórios, sem poder tirar alvará de funcionamento”. E completa que há uma falta de ofertas de lotes para construção imobiliária. “Temos uma cidade muito espalhada e custa muito caro a sua manutenção.” O vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do DF (CAU-DF), Tony Malheiros, alerta para que haja uma conclusão do documento. “Já tem anos que estamos discutindo isto e é preciso tomar uma decisão logo. Porque se a gente continuar discutindo vamos ficar 20 anos e não vamos chegar a uma conclusão”. E justifica o motivo de sua indagação. “Vão acontecendo algumas coisas na cidade que não deveriam estar acontecendo”. Malheiros conta que prédios e puxadinhos são construídos com deformações e interpretações erradas de regras. “O que acaba com a cidade são as diversas interpretações sobre o mesmo tema.” Malheiros lembra que diversos lugares da cidade acabam sendo abandonados pela falta da preservação dos governos. Ele cita como exemplos o Setor Comercial Sul e a W3 Sul.

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Crédito: Mapa localizado na Torre de TV

UMA POLÊMICA CHAMADA PPCUB redemoinho . ano 08 . número 12

Com décadas de atraso, elaboração de políticas para conservação do sítio tombado está sendo feito junto à Câmara Técnica, mas apesar de GDF pretender enviar proposta à Câmara Distrital até o final do ano, ainda são muitas as divergências THAYNÁ CRUZ

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É

PORTARIA DO Iphan permite que na área verde entre os Ministérios haja comércio

O grupo Urbanistas por Brasília foi um dos que participaram das ações contra o texto. O arquiteto e coordenador do movimento, Cristiano Nascimento, lembra que a resistência em aceitar o PPCUB nasceu da imposição. “Ele era muito extenso e tinha vários erros de elaboração porque foi feito às pressas e a população não estava conseguindo perceber. Eram coisas que impactavam a cidade a longo prazo e realmente irreversíveis”. Diante do perigo, houve mobilização e a proposta acabou retirada em 2015. Em maio do ano seguinte, a discussão foi retomada. Vários movimentos, tais como Instituto Histórico Geográfico, Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, Urbanistas por Brasília, entre outros, formaram a

chamada Câmara Técnica e passaram a debater periodicamente uma nova proposta em reuniões e audiências públicas com a Secretaria de Estado de Gestão do Território e Habitação (Segeth). Cristiano Nascimento acredita que a principal função do Plano será a organização do uso do solo. “O PPCUB é necessário porque nós temos centenas de normas de edificação, então elas vão se multiplicando e virando uma confusão legislativa que prejudica a cidade. O ideal é que o PPCUB organize e padronize isso”, afirma. Nas reuniões, são discutidos os princípios, objetivos e diretrizes para a execução da lei. Porém, com o passar dos meses, os integrantes da Câmara Técnica vinculados aos movi-

A PORTARIA 166 Em maio do ano passado, o Iphan publicou a Portaria nº 166 para a complementação e o detalhamento das normas sobre a regulamentação do tombamento em Brasília feita pela Portaria nº 314 de 1994. A nova Portaria instituiu definições e critérios para intervenção do Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB) e aprimorou o processo de preservação, gestão e fiscalização do bem tombado. O documento presa pela preservação dos valores históricos que estão ligados ao tombamento como Patrimônio Cultural Brasileiro e prevê mudanças e novas construções em vários setores urbanos da Capital.

Dentre as normas estão previstos a instalação de pequenos comércios de até um pavimento na Esplanada dos Ministérios e, no Setor de Divulgação Cultural, o reparcelamento de lotes para a destinação do uso cultural e área comercial. No Eixo Monumental, a portaria permite a criação de novos lotes para o uso público entre os ministérios. Já no Comércio Local Norte será admitido o uso habitacional nos andares superiores dos blocos comerciais. Além disso, a norma ainda prevê construções de prédios residenciais na orla do Lago Paranoá

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quase consenso que a cidade inscrita pela Unesco há 30 anos como Patrimônio Mundial precisa de proteção. Para garantir a preservação deste conjunto, são necessárias leis. E é esta a proposta do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, mais conhecido como PPCUB, que deve tratar do uso e da ocupação da área tombada de Brasília, assim como estabelecer regras para regiões do Plano Piloto, Candangolândia, Cruzeiro, Octogonal/ Sudoeste e Noroeste. Essa grande revisão da legislação, que está prestes a ser enviada à Câmara Legislativa pelo Governo, o que deve ocorrer no mais tardar até o final deste ano, ainda enfrenta muita polêmica. Se já estava difícil conseguir consenso para pontos como a requalificação urbana das áreas centrais, a alteração na destinação dessas áreas, a construção de uma nova quadra no setor hoteleiro, a instalação de grades nos pilotis de prédios do Cruzeiro e a revitalização da W3, agora novos questionamentos se somam. “Enquanto está se elaborando o PPCUB, o GDF está fazendo licitações para parcerias público-privadas para o Parque da Cidade, Centro de Convenções, dentre outros. Será que tudo que está sendo acordado nessas parcerias está de acordo com o plano de tombamento?”, questiona a arquiteta e vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal (IHGDF), Vera Ramos. A preocupação dela é comum entre os que estão à frente da luta pela preservação. Desde 2008 busca-se fazer uma legislação sobre o tema. Sempre sem sucesso. Nesses quase dez anos, foram e são muitas as polêmicas e problemas resolvidos de maneira pontual. A própria Vera lembra que, na gestão de Agnelo Queiroz, foram mapeadas todas as mudanças ao projeto original da capital. “A conclusão que se chegou foi que mais de 70% dos setores estavam sofrendo algum tipo de alteração”, conta a arquiteta, que mobilizou vários outros integrantes da sociedade civil para mostrar o que estava acontecendo à época em que a proposta do PPCUB anterior foi enviada à Câmara Distrital.

Fonte: www.iphan.gov.br

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mentos de preservação têm feito críti- passo que a gente dá é apresentado. as ociosas e obsoletas”, “flexibilização cas de que o PPCUB está ficando mui- É importante ouvir todo mundo, mas de usos” e “desenvolvimento urbano”. to semelhante à proposta rejeitada não pode uma ou outra entidade coO presidente do Conselho Codurante o governo passado. “Nós da locar-se como detentora da verdade e munitário da Asa Sul (CCAS), José sociedade civil não estamos sabendo querer impor a sua visão, que às vezes Daldegan, aponta que o texto do PPexatamente a intenção do governo. é contraditória. Há questões que não CUB deveria trazer um benefício: a Eles dizem que estão revisando e nós estão no projeto que se entende que preservação do Patrimônio, porém queremos um novo PPCUB”, só traz malefícios para a afirma Vera. cidade. “Ele descaracteriza “Nós da sociedade civil não Para o vice-presidente as Unidades de Vizinhança, estamos sabendo exatamente a do Instituto de Arquitetos ao permitir diversos tipos do Brasil no Distrito Federal de construção dos espaços intenção do governo. Eles dizem (IAB-DF) e membro do Comientre as quadras e descontê Brasileiro do Conselho Inque estão revisando e nós queremos figura as superquadras, ao ternacional de Monumentos permitir outros tipos de um novo PPCUB” e Sítios, Frederico Barboza, edificações no seu interior”, não há como se recriar o dodestaca Daldegan, que não Vera Ramos, vice-presidente do IHGDF cumento do zero, mas devefoi convidado para partici-se modificar o que ainda precisa ser devem preservar”, enfatiza. par das reuniões do novo Plano, apemelhorado. “Os órgãos do governo E são essas questões que mem- nas das audiências públicas. estão trabalhando articuladamente, bros dos movimentos apresentaram E foi na única audiência pública mas a sociedade civil ainda acredita em um documento ao secretário da realizada pelo atual governo, em feveque há muitos resquícios do PPCUB Segeth, Thiago Teixeira. Nele, é ques- reiro deste ano, que foram discutidos anterior. É necessária essa continui- tionada, por exemplo, a ausência alguns pontos. O secretário da Segeth dade. O problema é que alguns dos de debate de pontos fundamentais, reafirmou a importância da particitermos deixam as pessoas em dúvida como a sistematização das tabelas de pação da sociedade civil no Plano de e abrem margem para interpretações atividades para a Lei de Uso e Ocupa- Preservação e Desenvolvimento Local que ponham em risco a preservação.” ção do Solo e o PPCUB e a necessida- da Área Urbana. Citou ainda prograMesmo com as reclamações sobre de de elaboração de um quadro com- mas e projetos especiais que serão a condução do Plano de Preservação, parativo com essa finalidade. Tópicos desenvolvidos, como a revitalização Josiana Aguiar afirma que o governo conflitantes do novo Plano também da W3 e outros setores. Ressaltou que está fazendo um esforço imenso na são ressaltados, assim como sugeri- não abrirá mão de reestruturar e utilielaboração do documento. “A nossa das alterações. Dentre as discordân- zar as áreas que estão em ociosidade. intenção é não deixar brechas. Cada cias, estão o uso de termos como “árePara Daldegan, a audiência só

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W3 SUL já foi um dos locais mais movimentados da Capital. Hoje é uma área de poucos comércios e que necessita de revitalização, prevista pelo Governo 25


reforçou que o GDF não evoluiu no PPCUB desde a gestão anterior. “A grande crítica que fizemos nessa audiência, além de apontar as grandes falhas existentes, foi de que o PPCUB precisava começar de novo, pois nasceu com uma premissa totalmente errada de atualização, adaptando à realidade existente, acomodando às pressões do mercado”. Já o governo afirma que não irá descartar o que foi feito, mas adaptar. “Até em respeito às pessoas que trabalharam no grupo, a gente não jogou no chão. A gente está trabalhando a partir de um produto que não é uma camisa de força. Tem muitas coisas que a gente está revendo”, afirma Josiana. Os interesses financeiros do setor imobiliário são outro percalço para a preservação do conjunto urbanístico. Novos lotes em áreas que o Governo chama de “ociosas”, como as áreas verdes das quadras 700 Sul, preocupam a população pela construção desregrada nesses locais. O professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, Frederico Flósculo, especialista na Arquitetura de Brasília há 30 anos, observa que a especulação imobiliária é uma das maiores forças contra o Plano. “Eles querem a cidade sem o PPCUB porque ela fica sem proteção”, opina. O GDF reconhece que esse setor interfere na execução do PPCUB. “O nosso interesse é trabalhar no sentido de preservar. Porém, se a gente não adapta a cidade às novas necessidades que se apresentam, vai deixando-a no ostracismo. Precisa-se intervir para garantir que aqueles espaços tenham vida e qualidade”, ressalta Josiana Aguiar. Contatado pela Redemoinho, o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Distrito Federal (Sinduscon-DF) alegou estar em processo de eleição da diretoria e preferiu não se manifestar sobre o assunto. Iphan Em meio a toda essa discussão, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artistíco Nacional (Iphan) publicou uma portaria que flexibiliza o uso e a ocupação da área tombada de Brasília. A Portaria nº166, de maio de 2016, atualiza normas que estavam em vigor desde

UM DOS espaços ainda não consolidados como área de lazer da Unidade de Vizinhança, a Entrequadra 202/203 Sul pode ter o uso flexibilizado para outra finalidade

1994 e prevê, por exemplo, construção ao PPCUB, e não do Iphan. E como ela de condomínios residenciais na orla saiu muito rápido, abriu várias brechas. do Paranoá e pequenos comércios na Chegou ao ponto de nós estarmos Esplanada dos Ministérios. O ponto torcendo para que o PPCUB segure mais polêmico foi o que trata das uni- coisas que a portaria está deixando. dades de vizinhança, que prevê o uso Inverteu a história toda”, afirma Cristiadesses lotes nas quadras residenciais no Nascimento. “A portaria veio para para destinações específicas, tais como atrapalhar porque ela não foi discuescolas, templos religiosos, áreas de tida com a população. Ela foi feita da esporte, bibliotecas, correios, postos pior maneira possível que é em um de gasolina, estacionamentos, entre gabinete fechado por pessoas que se outros, de acordo com a superquadra. julgam especialistas de Brasília e que A portaria fala apenas em “uso diversi- não enxergam a realidade no sentido ficado”. “Essa portaria abre um leque de de preservar", completa o professor atividades enorme. O Iphan não tem Frederico Flósculo. competência para legislar sobre o uso Já o Governo acredita que a 166 do solo. Esta competência é exclusiva veio para complementar a execução do Governo”, afirma Vera Ramos. do PPCUB. “É nossa obrigação consideSegundo o Iphan-DF, as normas rá-la. A nossa legislação sempre camivisam aprimorar o processo de pre- nhou junto com a do Iphan e a portaria servação, gestão e fiscalização do vem complementar a antiga, que era bem tombado. O superintendente da mais genérica. Ela nem é tão restritiva entidade, Carlos Madson Reis, diz que nos direcionamentos. A portaria é um a ideia é que a portaria pudesse ser esforço de organizar e sistematizar o usada como “referência para o PPCUB”. que a gente quer preservar e como”, Mas pegou todas as entidades ligadas destaca Josiana Aguiar. à preservação de surpresa, “Não pode uma ou outra entidade o que gerou muitas críticolocar-se como detentora da verdade e cas. “A portaria trouxe lequerer impor a sua visão, que às vezes vantamentos é contraditória” que são de Josiana Aguiar, diretora do Conjunto Urbanístico de Brasília da Segeth desrespeito

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Especulação


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O OUTRO LADO DO MODERNISMO TOMBADO 27


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A mesma beleza que encanta, sob a garantia de preservação, também tem efeitos negativos sobre a saúde e o comportamento das pessoas BRUNA NARDELLI

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rasília é uma cidade de encher os olhos. Os monumentos esteticamente perfeitos, desenhados por Oscar Niemeyer, circundados por espelhos d’água, e emoldurados pelos jardins de Burle Marx, ressaltam a beleza de uma cidade que ainda ostenta um céu de azul constante, quase ao alcance das mãos. As amplas áreas verdes que permeiam a capital projetada por Lúcio Costa não só atraem milhares O DISTRITO Federal encabeça de turistas todos os anos, como tamo ranking de regiões com mais bém concederam a ela o título de carros por habitantes do Brasil Patrimônio Cultural da Humanidade, decretado em 1987 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Mas No capítulo “A síndrome de Bra- vida. Aqui a enfermeira encontrou por trás de toda essa beleza tomba- sília”, o dinamarquês afirma que a emprego e salário mais alto, casou e da e imutável, que enche de orgu- cidade foi construída para ser obser- teve dois filhos. Apesar das conquislho quem mora aqui, há um estilo vada de cima, de um avião, e não ao tas em Brasília, ela sente os efeitos arquitetônico que também oprime, nível dos olhos. “Vista do alto, Brasília negativos do isolamento que a cidade isola e, em alguns casos, até adoece. é uma bela composição: projetada impõe, o que faz aumentar a saudade É que, segundo especialistas, o estilo como uma águia, com os órgão go- da cidade natal. “Minha vida era mais modernista, que inspirou a constru- vernamentais na cabeça e as áreas fácil, porque eu conseguia resolver ção de Brasília, prioriza a estética em residenciais nas asas”, descreve. No minhas pêndencias na rua da esquidetrimento da funcionalidade. entanto, para o arquiteto, a cidade na, além de poder pegar um metrô Tal inversão de valores ocasiona não é tão bonita, quando vista de para ir trabalhar”, conta. “Aqui, como o uma série de problemas urbanísti- baixo. “Os espaços urbanos são mui- transporte público é muito précario e cos, como a existência de espaços to grandes e amorfos. As ruas muito tudo é distante, tive que comprar um públicos vazios, inapropriados para largas, as calçadas e passagens muito carro, que revezo com o meu marido”, a circulação de pedestres e sem atra- longas e retas”, acrescenta. “Se você revela. “Sinto falta de andar a pé, de tivos para a apropriação da comuni- não estiver em um avião, helicóptero ver gente diferente na rua e de ter dade. O resultado é uma cidade com ou carro – e a maioria dos moradores autonomia para ir e vir”, desabafa uma alta necessidade de transporte de Brasília não está – não há muito Efeitos da setorização privado e baixa interação entre os que comemorar”, finaliza. moradores. O autor utiliza o termo “SíndroPara o pós-doutor e especialista No livro “Cidades para Pessoas”, o me de Brasília” diversas vezes, para em circulação urbana Ronald Belo, arquiteto e escritor dinamarquês Jan ilustrar o planejamento arquitetônico a setorização da cidade em escala Gehl, considerado uma reresidencial, monumental, ferência mundial quando gregária e bucólica é um dos “Brasília não foi planejada para o assunto é planejamento fatores que mais dificulda a urbano, ressalta a imporvida dos moradores e resulta pedestres, e sim para carros” tância do desenho arquinas sensações descritas pela Ronald Belo, especialista em circulação urbana tetônico para a qualidade enfermeira. “A setorização de vida. Na obra, ele afirma de atividades determinou a que os urbanistas modernos, como que prioriza a estética em detrimento grande problemática dos deslocaLúcio Costa, pensavam primeiro nos da funcionalidade. A síndrome, se- mentos para os habitantes do Plano grandes contornos que rodeiam as gundo Gehl, também está presente Piloto e do Distrito Federal”, diz. cidades, depois nos edifícios e, por úl- em novos empreendimentos habiSegundo ele, as longas distâncias timo, nos espaços entre eles. A escala tacionais de várias partes do mundo, entre os pontos de interesse obrigam humana não era levada em conside- como na China e na Europa. as pessoas a se deslocarem por meio ração, o que gerou uma série de conO que o urbanista dinamarquês de transporte motorizado, seja ele dições precárias para a vida urbana descreve, a enfermeira Roberta An- público ou privado. Essa separação desses conglomerados. O exemplo drade, de 37 anos, sente todos os entre áreas reflete diretamente nos citado por Gehl como o mais notável dias. Nascida no Rio de Janeiro, ela dados da Secretaria de Mobilidade do plano urbano modernista é justa- veio em 2006 para a capital federal nacional, que mostram que Brasília é a mente a capital do Brasil. em busca de melhores condições de sexta capital com mais carros por pes-

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presário lamenta a condição précaria do transporte público da cidade. “Se não forem criadas políticas públicas que visem melhorar essa condição, a poluição e o trânsito de nossa cidade só tendem a aumentar”, diz. A setorização que gerou distâncias também segregou a população. E o lado mais obscuro do tombamento fez dos mais pobres as maiores vítimas de uma cidade projetada para carros. A diarista Adriana Peres, de 27 anos, mora em Santa Maria, a 39 quilômetros do centro da capital, onde trabalha. Sem ter a mesma condição financeira de Freitas, a única opção que ela tem para se locomover é o transporte público. E assim parte do tempo que ela poderia usar para cuidar da própria casa ou descansar da jornada de sete horas por dia, limpando três casas por semana, ela gasta dentro do ônibus, que pega depois de andar vinte minutos até a parada. A dificuldade de acesso ao transporte é apenas uma das reclamações da diarista. “As passagens caras, os veículos em más condições e as poucas linhas são coisas que me incomodam

no meu dia-a-dia de passageira”, reclama. É que o transporte ruim consome mais do que o tempo da diarista. Para ir e voltar do trabalho ela gasta ao menos 20 reais por dia. Quando questionada sobre o porquê não usa outro meio de transporte, como bicicleta, por exemplo, Adriana responde o que todos os moradores de Brasília repetem. “Aqui, tudo é longe. Você quase não vê gente andando na rua”. E não “andar na rua” tem efeitos na saúde física e mental das pessoas. Uma pesquisa do Centro de Estudos de Políticas Públicas da Universidade do Arizona comprovou que quem mora em empreendimentos habitacionais “caminháveis” tende a ser mais feliz e saudável. O estudo procurou entender de que maneira o desenho urbano interfere na saúde dos indivíduos e, para isso, entrevistou moradores de diferentes tipos de bairros, como os centrais, os de regiões mais afastadas e os condomínios. A pesquisa levou em consideração fatores favoráveis à caminhabilidade, além de bem-estar, sensação de segurança e interação social. O resul-

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soas do país. São 55 automóveis para cada 100 habitantes. “Brasília não foi planejada para pedestres, e sim para carros”, afirma Belo. “Em um futuro não muito distânte, as cidades terão que se modificar e apresentar novas alternativas de locomoção, porque andar de transporte privado se tornará insustentável, devido ao aumento da população mundial”, declara. “A nossa capital, no entanto, será uma das últimas regiões a abandonar o automóvel, já que foi projetada para o uso dele”, conclui. Morador da Asa Norte, o empresário João Tadeu Freitas, de 54 anos, tem quatro carros em casa, um para cada membro da família. A compra dos veículos, segundo ele, não foi uma opção. “Andar de ônibus e metrô é muito mais prático e barato, mas aqui em Brasília é difícil depender de transporte público. As linhas são poucas e a necessidade de percorrer grandes distâncias é alta”, diz. “Eu, minha mulher e nossas duas filhas temos rotinas atribuladas, então conciliar os horários para usar um só carro também seria complicado”, afirma. O em-

AS CALÇADAS da capital são tão vazias que parecem “fantasmas”

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tado da análise comprovou que pessoas que moram em bairros centrais, com acesso a áreas residenciais e comerciais, caminham mais. Tais regiões têm abundância de calçadas, mobiliário urbano, boa iluminação e espaços agradavéis. Se os indivíduos andam mais, a tendência é de que haja mais interação interpessoal e sensação de segurança pelos muitos “olhos” na rua, já que as pessoas costumam, de forma intuitiva, se afastar de lugares vazios. Aréas caminhavéis, portanto, têm, ainda, maior valor comercial no mercado imobiliário. Brasília foge a essa lógica. Ainda que em Brasília existam áreas de caminhadas perto dos blocos de apartamentos, por ser setorizada e ampla, a capital acaba desestimulando os moradores a andar, uma vez que tais espaços apenas circundam os blocos, sem interliga-los ao restante da cidade. Por isso, o deslocamento a pé é quase inexistente. O menor índice é no Lago Sul. Lá, apenas 0,55% andam a pé. Já no Paranoá, uma das regiões mais pobres do DF, 55,17% se locomovem sem carro. A média no distrito é de 27,83%, segundo dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). Além das longas distâncias de um ponto ao outro, as calçadas de Brasília parecerem “fantasmas” devido à precariedade das áreas destinadas aos pedestres, que costumam ter pouca iluminação e apresentar burracos e desníveis, que dificultam muito a caminhada de todos, principalmente dos idosos. Além do “erro” de planejamento, há o descaso com a manutenção. Para a doutora em arquitetura Gabriela Tenorino, um planejamento arquitetônico que propicia uma maior qualidade de vida aos moradores é, de fato, aquele que mistura os pontos de desejo. “Um desenho urbano funcional tem os usos misturados”, afirma. “É aquele que dá para você descer do seu prédio, tomar um cafezinho na loja de baixo, resolver suas pendências na rua da esquina e não precisar, necessariamente, de um transporte privado, como é o caso de Nova Iorque”, exemplifica. Gabriela ressalta as qualidades da capital tombada do Brasil, mas afirma que o modelo urbanístico da cidade não deve ser repetido. “A beleza da capital é inegável. Não é à toa que

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WALK SCORE De acordo com a pesquisa Walk Score, pontuação de caminhada, em tradução livre, Nova Iorque é considerada a cidade mais caminhável dos Estados Unidos, alcançando 88,9 pontos. O estudo, que analisa a caminhabilidade das regiões norte-americanas, leva em consideração a estrutura das calçadas, as áreas destinadas para ciclistas e a qualidade do transporte público.

recebemos turistas de todo o mundo, que ficam admirados com as curvas daqui”, comenta. “Apesar de merecer contemplação, o modelo da cidade não deve ser reproduzido, porque apresenta atributos pouco favoráveis à vida pública”. A arquiteta finaliza ao dizer que é preciso pensar mais nas pessoas na hora de construir cidades. “Temos que planejar mais e melhor a atratividade dos espaços públicos e a efetividade da mobilidade urbana, com o foco, sempre, nas pessoas”, finaliza. Capital da segregação Olhar para o Plano Piloto de Brasília é contemplar uma cidade organizada e sem pobreza. A sensação dos moradores e turistas é a de que em Brasília não existe desigualdade social. Mas é o oposto. O Plano Piloto é o retrato da estratificação social. Segundo a doutora em sociologia Camila Potyara, acreditar que não existem pobres pelas asas Sul e Norte é uma ilusão. “Brasília é a capital da segregação”, afirma “A cidade está rodeada de pobreza. Abrigamos, a poucos quilômetros do centro da capital, a maior favela e o maior lixão da América Latina”, salienta, ao referir-se ao Sol Nascente e à Estrutural, respectivamente. Ao contrário de outras cidades do Brasil, que têm favelas dentro do cen-

A REALIDADE dos pedestres da cidade é difícil devido a precariedade das calçadas

tro, Brasília “expulsa” os menos favorecidos economicamente para áreas mais distântes. A forma de combate à pobreza na capital tem sido isolar os pobres. “A parcela mais humilde da população, que é a maior, tem tido morar cada vez mais longe do centro da cidade, que é onde se concentram as oportunidades de emprego, o comércio, os serviços e as opções culturais e de lazer”, comenta Camila. “As regiões administrativas, portanto, estão se tornado cidades dormitórios, onde os moradores só voltam para dormir depois de um dia exaustivo a quilômetros de distância de casa”, complementa. Até em áreas consideradas de elite há segregação. A parte residencial mais popular da Asa Sul, por exemplo, recebe o apelido de “pobrecentos”. Já a do Sudoeste, de “Sudoeste econômico”. Baixa interação Nos projetos modernistas, é comum constatar a existência de espaços públicos vazios, sem atrativos e, por isso mesmo, sem apropriação da comunidade. Essa falta de ambientes urbanos desejavéis faz com que a interação entre os habitantes seja reduzida. As relações interpessoais acabam ficando restritas aos ambientes de trabalho, estudo e/ou moradia.


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“Aqui em Brasília, nossas relações sociais tendem a ser empobrecidas, já que só nos relacionamos com pessoas iguais a nós”, revela Camila. “A falta de andar na rua, frequentar espaços públicos e conhecer pessoas diferentes é extremamente empobrecedora e alienante”, acrescenta, ao afirmar que os habitantes da cidade estão cada vez mais inseridos em bolhas sociais. O que acaba agravando essa segregação são os condomínios fechados, que não param de ganhar espaço na capital. “Essas áreas residenciais muradas agrupam, ainda mais, nichos de população homogênea, o que acaba resultando em uma vivência social pobre, onde não há a necessidade de ANDAR A pé por Brasília é caminhar lado a lado com a solidão se misturar com o não semelhante”, revela. Para tornar a vida pública de Brasília mais ativa, com espaços mais pro- inserido em uma bolha, com o ciclo de Hoje, mais habituada, a promopícios a interação dos habitantes, a so- amizades fechado”, diz. Mariana afirma tora revela já ter feito amizades, mas lução é ocupar a cidade. “Brasília vem que demorou para fazer amigos e que todas dentro do ambiente de trabaganhando vida com jovens ativos que até hoje não conhece bem os vizinhos lho. “Acredito que o esforço que eu visam rechear a capital com eventos de porta. “Já teve momentos em que tive que fazer aqui para me relacionar culturais abertos ao público”, comen- eu desejei bom dia para pessoas do tenha sido consideravelmente maior ta a socióloga. “Ainda que tais ações meu prédio e elas nem sequer respon- do que o que eu teria que fazer em sejam incipientes, esse é o caminho deram. É por situações como essa que outras cidades Brasil afora”, finaliza. certo para trazer mais movimentação acredito que a comunidade daqui não A psicóloga Cláudia Pereira para as ruas da cidade”, acrescenta. Ca- é muito acolhedora”, revela. afirma que a falta de vida pública minhar mais, passar mais tempo nos Sem família, amigos e em uma propicia, de fato, o isolamento das espaços públicos e sair dos refúgios cidade que não proporciona o entro- pessoas, podendo até evoluir para privados permite que a cidade seja samento das pessoas, a promotora diz um quadro de doença mental, como mais emocionante, interessana depressão. “Há vários estute e segura, além de promover dos que buscam entendem a "Apesar de merecer a interação social. “O tombarelação entre o urbanismo e contemplação, o modelo mento traz diversos benefícios, as emoções humanas”, revela. mas não podemos deixar que “Hoje, o que podemos concluir da cidade não deve ser ele engesse a nossa cidade, é que há, sim, uma ligação enpreservando seus ambientes tre arquitetura, sociologia e reproduzido, porque apresenta amorfos e desertícos”, revala psicologia, afirma. “Quando atributos pouco favoráveis à a profissional. “A capital tem uma pessoa está triste, por potencial para abrigar maiores exemplo, e ela pode descer vida pública” e melhores encontros sociais, do prédio, sentar em uma praGabriela Tenorino, arquiteta sim, e quem pode mudar esta cinha charmosa, ver crianças realidade somos nós”, conclui. correndo e músicos tocando, o ter se sentido melancólica várias vezes. humor dela tende a melhorar. Agora, Beleza que adoece “Acredito que o desenho arquitetôni- quando ela sai de casa e se depara A mineira Mariana Nunes, de co tenha interferência no modo com com um cenário de solidão total, é 32 anos, nasceu em Montes Claros que os habitantes daqui se relacionam, mais provavél que a tristeza dela se e passou boa parte da vida em Belo sim”, declara. “Não há bate-papo na agrave, podendo até chegar a um Horizonte. Em 2012, quando foi apro- rua, porque a cidade é setorizada. Não quadro depressivo”, analisa. “O ser vada em um concurso de promotora, temos ambientes propícios para con- humano é um ser sociável. Precisaela se mudou para Brasília, sozinha. versação, pois eles são muito amplos mos nos relacionar para estarmos Adaptar-se na capital, uma cidade tão e vazios. A falta de circulação urbana bem com nós mesmos”, finaliza a diferente de todas as outras, foi difícil. é outro fator que dificulta a comunica- psicóloga, ressaltando a importância “Em Brasília, não há muitos espaços de ção humana, já que todos passam boa da criação de ambientes de enconconversação e, por isso, acho que as parte do tempo sentados sozinhos em tro social atraentes e duradouros na pessoas são mais frias. Cada um está seus veículos privados”, descreve. capital.

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UM PATRIMÔNIO DE AFETOS

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Da valorização da faixa de pedestres, ao céu ou à clássica zebrinha; as sinalizações que marcam as quadras, os ipês e o Minhocão…. são muitas as paixões do brasiliense LAÍSA LOPES

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rasília é a cidade dos sonhos que se tornou realidade. Mas, além do concreto, existem particularidades que só quem vive na Capital Federal consegue enxergar. Brasília possui cara. São muitas as coisas e lugares que nenhum outro lugar do mundo tem igual: o céu, a faixa de pedestres, os ipês e suas tantas cores, o Minhocão da Universidade de Brasília, as clássicas zebrinhas ou a sinalização urbana, que ganhou espaço e homenagem no Museu de Arte Moderna de Nova York…. Tudo isso faz parte de um patrimônio que não está catalogado em parte alguma e muito menos foi tombado: o afetivo. Esta memória afetiva faz parte do chamado patrimônio imaterial, que diz respeito às tradições, práticas, conhecimentos e formas de fazer que são próprias de um grupo, e que passam de geração em geração por transmissão oral, visual e gestual. “Todo patrimônio cultural material e imaterial, em pequena ou em larga escala, é objeto de uma relação de valor, que afirma a importância para cada indivíduo se identificar e se afirmar”, explica o historiador Estevão de Rezende Martins. São bens que estão diretamente ligados às emoções. Quem nunca sentiu orgulho em ver o respeito pioneiro ao pedestre na faixa? La se vão duas décadas, completadas este ano, desde que a Capital tornou-se referência nacional em paz no trânsito e na valorização da vida graças a um simples aceno. A técnica em enfermagem Adriana Maria dos Santos e o auxiliar de cozinha Júlio Bezerra sentem orgulho em morar na cidade em que a faixa é respeitada. "Em praticamente todos os estados do Brasil, a faixa de pedestre é desrespeitada. Isso foi algo que estranhei bastante”, diz Adriana. Para o marido dela, a faixa faz parte do universo reduzido que forma a identidade brasiliense. "Têm coisas que só quem mora em Brasília entende: andar de camelo, ir de baú, fazer a tesourinha e respeitar a faixa de pedestre”, complementa Júlio. O arquiteto e urbanista Cláudio Villar de Queiroz acredita que é importante para a cidade ser referência no uso correto das faixas e destaca as mudanças positivas. “Não é a mesma porque se estabeleceu aqui como em


PARA ENTENDER AS DIFERENÇAS O TOMBAMENTO é um dos métodos legais que o Poder Público federal, estadual e municipal dispõe para preservar a memória nacional. Também pode ser definido como o ato administrativo que tem por finalidade proteger bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que sejam destruídos ou descaracterizados. Entre as diversas formas de proteção, o tombamento é a mais conhecida e utilizada. Tombar um bem cultural significa dar proteção integral, sendo uma das ações mais importantes relacionadas à preservação de um patrimônio de natureza material. O Iphan atua de acordo com o Decreto Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, na preservação e difusão dos bens culturais materiais. PATRIMÔNIO é o conjunto de bens materiais e imateriais considerado importante para a identidade e memória do País constituídos por práticas, representações, expressões, conhecimentos, criações científicas, artísticas e tecnológicas. Também as obras, objetos,

nenhuma cidade brasileira fez, apesar de desrespeitos perigosos. Mas o exemplo ainda pode influir positivamente em outras cidades do país”, destaca. Segundo dados do Detran-DF, em 1996, ano anterior à implantação da faixa, 266 pedestres morreram atropelados. No ano seguinte, esse número caiu para 64, graças às campanhas de conscientização. A relação entre pedestre e motorista vai além do uso adequado das faixas de pedestre. Em 1980 surgiu

redemoinho . ano 08 . número 12 RÉPLICA DA placa de sinalização da Superquadra faz parte do acervo do MoMA 35

documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais, além de conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico e ecológico. Os bens imateriais estão relacionados aos saberes, às habilidades, às crenças, às práticas, ao modo de ser das pessoas. Desta forma, podem ser considerados bens imateriais: conhecimentos enraizados no cotidiano das comunidades; manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; rituais e festas que marcam a vivência coletiva da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social. Além de mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais. O patrimônio material é formado por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza: arqueológico, paisagístico e etnográfico, histórico, belas artes, e das artes aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis – núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais – e móveis – coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos. Fontes: Iphan e Unesco

o Zebrinha, ônibus listrado de vermelho e branco que circulava entre as avenidas comerciais das quadras. A ideia era garantir transporte para pequenos percursos no Plano Piloto como, por exemplo, da Esplanada dos Ministérios ao Shopping Pátio Brasil. Todos os passageiros deveriam viajar sentados. Na época, era mais comum os moradores utilizarem o Zebrinha do que o ônibus convencional. Atualmente, existem alguns circulares com modelo parecido, mas o percurso já não é o mesmo. Alguns saem da plataforma superior da Rodoviária do Plano Piloto, até o fim da Asa Sul, ou da Avenida L2 Sul, passando pelo Setor Bancário Sul com destino final na Asa Norte. As mudanças também podem ser vistas na sinalização de Brasília. As placas tão típicas foram projetadas pelo arquiteto e urbanista Danilo Barbosa, de modo a facilitar a locomoção das pessoas. Funcionam em ordem alfanumérica e cada sigla representa o nome de um local. São cerca de 60 significados, tais como, por exemplo, SCS para Setor Comercial Sul; EMI para Esplanada dos Ministérios; QI para Quadra Interna; SHI para Setor Hoteleiro Norte; SQS para Super Quadra Sul, entre tantos outras.

Na década de 70, quando as placas foram implantadas, além das siglas e da numeração, todas possuíam um mapa explicativo que mostrava a localização exata em que a pessoa estava. Mas, na década de 90, esses mapas foram retirados de quase todas, ficando apenas as siglas e a numeração das quadras. Hoje, poucas possuem um mapa e são ainda mais raras as do plano original existentes na capital. Em 2015, uma réplica do totem instalado na Entrequadra Comercial da 107/108 Sul passou a fazer parte do acervo permanente do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), por ser original. Para o arquiteto e urbanista Frederico Flósculo, uma das principais características da sinalização de Brasília é a fácil compreensão. “É um projeto de comunicação visual muito bom, baseado em ícones, em placas verticais, e funciona muito bem. O Plano Piloto, em especial, é alfanumérico. Parece um gráfico cartesiano, então é algo simples e fácil de ler. Brasília possui muitas ideias originais”, opina. Apesar das mudanças nas placas, a ideia do projeto original não foi afetada. Uma das críticas é que, atualmente, a quantidade de placas des-


Foto: Pequeno Zoológico de Objetos Domésticos - Facebook

AUTOR DE uma fanpage sobre Brasília, George Cardim destaca a beleza dos ipês na seca

des e do imenso céu azul de qualquer ponto. Na própria definição da escala Monumental, o urbanista definia: “Do cruzamento dos dois eixos, seis quilômetros para cada lado, duas sequências contínuas de Superquadras, geometricamente definidas no espaço pelas cercaduras arborizadas, (…) tendo como fundo o vasto horizonte, o céu e as nuvens do planalto – o monumental e o doméstico entrosam-se num todo harmônico e integrado”. O professor Frederico Flósculo classifica como extraordinário o senso de proporção idealizado por Lúcio Costa. “Você pode estar em qualquer lugar que vai ver o horizonte. O horizonte é começo do céu e é muito raro outra cidade ter essa mesma visão”, explica. Para esse patrimônio de tantos afetos já houve a tentativa de transformá-lo em patrimônio natural, com direito a protocolo no Iphan. O autor da solicitação feita em 2007 é o arquiteto Carlos Fernando de Moura Delphim, ex-funcionário do órgão. “O céu nos remete a um universo imaterial, de pura beleza. Não é pesado como a terra nem nos ameaça como o mar e o fogo. O ar é leve, sua cor é livre, não

TIPOS DE PATRIMÔNIO Patrimônio é o conjunto de bens materiais ou imateriais que contam a história de um povo. Subdivide-se em: Histórico, Cultural Imaterial e Ambiental. - Histórico: importante para manter vivo os usos e costumes de uma determinada sociedade, por meio da arquitetura, documentos, obras de arte, meios de transporte etc. - Cultural Imaterial: é todo aquele que compreende a história local de um povo, como as práticas, representações, expressões e religiões.

se prende a nada de material. O céu é a mais pura imagem de liberdade que podemos ter, é o puro desprendimento”, filosofa Delphim. Na proposta do Plano Piloto, o céu se incorporou à cidade como parte integrante e onipresente da própria concepção urbana. Os vazios são preenchidos por ele, e a cidade é deliberadamente aberta aos 360 graus do horizonte que a envolve. “Quando vou para qualquer lugar do mundo, eu sinto falta. O único momento em que temos certeza de que o mundo é redondo, é aqui em Brasília. Você consegue ver o infinito, e não existe isso em lugar nenhum. Aqui tem o pôr do sol mais lindo, a lua nascendo também é paradisíaca”, ressalta o presidente da Associação dos Pioneiros Candangos de Brasília Luiz Lustosa. “É um descanso para os olhos e para a alma”, completa a arquiteta e urbanista Joara Cronemberger. A escala bucólica permite que se aprecie a beleza natural que repercute pelos quatro cantos do quadradinho. As árvores também chamam atenção. E, entre tantas espécies, destacam-se os ipês, plantados pela Novacap pelas ruas da capital desde 1970. A árvore

- Ambiental ou Natural: inclui monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas, formações geológicas e fisiográficas, além de sítios naturais. Nele, a proteção ao ambiente, ao patrimônio arqueológico, o respeito à diversidade cultural e às populações tradicionais possuem atenção especial.

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necessárias ao longo das vias da capital junto às propagandas comerciais e anúncios acabam dificultando a orientação urbana e provocando poluição visual. “Em São Paulo, fizeram uma limpeza geral interditando essa cultura desregrada, que ao fim e ao cabo não torna possível a alma do negócio ser a propaganda. Aqui já fizeram leis tolerantes, mas nem essas fixaram limites convenientes. São de grande vulgaridade urbana, poluentes, diante da paisagem natural da Cidade Parque”, ressalta o arquiteto e urbanista Cláudio Villar de Queiroz. Se, no solo, as vias podem estar marcadas pela poluição, o mesmo não se pode dizer quando se fixa o firmamento. Quem mora em Brasília sabe que basta olhar para o céu, de qualquer lugar da cidade, para enxergar uma imensidão azul. Lúcio Costa dizia que mesmo Brasília não tendo mar ou montanha, possuía o céu e o horizonte. Mas isso só é possível graças ao plano arquitetônico das quatro escalas: Monumental, Residencial, Gregária e Bucólica, esta última define a proporção dos espaços públicos característicos da Cidade Parque, que inclui a contemplação das áreas ver-

- E o Patrimônio Afetivo? Não está contemplado diretamente em nenhuma categoria, apesar de estar relacionado ao patrimônio imaterial. É um elemento subjetivo e particular, apesar de algumas pessoas compartilharem do mesmo valor afetivo. Um exemplo simples é a diversidade de pessoas que torcem por um determinado time de futebol. Fontes: Iphan e Unesco

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de copas abertas e irregulares, reconhecida desde 1978 como detentora da flor nacional do Brasil, é Patrimônio Ecológico do Distrito Federal e colore o cerrado quando a seca insiste em deixar toda a paisagem monocromática. O primeiro a chegar é o roxo, logo no final de junho, início de julho. Começa aí uma sequência de tons, marcados por amarelo, rosa e branco. O verde, mais incomum, em geral aparece apenas entre dezembro e março. De fácil adaptação ao clima seco, o ipê atrai abelhas e beija-flores, que são importantes agentes polinizadores. Mas a floração se inicia apenas quatro anos depois do plantio. As espécies possuem tamanhos diferentes. O roxo, por exemplo, pode che-

“O céu nos remete a um universo imaterial, de pura beleza. Não é pesado como a terra, nem nos ameaça como o mar e o fogo” Carlos Fernando de Moura Delphim, autor do pedido no Iphan para tornar o céu de Brasília patrimônio natural

gar a 12 metros de altura, enquanto o branco vai a 16 metros. Em Brasília, existem três espécies de ipês amarelos: o de tipo veludo; o da mata, que possui a floração mais expressiva; e o Caraíba, todos com altura a partir de 5 metros, podendo chegar até 25 metros de altura. “Das espécies nativas, os ipês são os que possuem a floração mais expressiva, por isso a população ama tanto. Foi uma planta

que a população adotou, então todo mundo é apaixonado por ipê, principalmente o amarelo”, destaca a chefe da Divisão de Agronomia da Novacap Janaína Lima. Longe das cores dos ipês está o Minhocão da Universidade de Brasília. No maior campus universitário do Brasil, idealizado por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira e com Oscar Niemeyer como responsável pela identidade vi-

DESDE A inauguração até os dias atuais, o Minhocão é palco constante de diversas intervenções

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sual, o Instituto Central de Ciências nasceu com 780 metros de comprimento por 80 metros de largura, em três níveis. São 700 vigas, divididas em alas sul e norte, e numeradas para facilitar na localização das salas. No dia 9 de abril de 1964, a instituição foi invadida pela primeira vez por militares que chegaram em 14 ônibus. Perseguidos pelo regime, alunos e professores foram acusados de subversivos. Professores foram perseguidos e demitidos, e muitos alunos assassinados. O prédio em concreto, ainda em construção, transformou-se em palco de resistência. Era para lá que muitos fugiam. Esse sentimento de proteção permaneceu por várias gera-

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ções. “Até hoje quando volto lá é uma nostalgia por ser um lugar muito agradável até para deitar na grama e olhar o céu, conversar, ouvir música. Era uma energia muito boa, porque eu podia ser quem eu quisesse sem ter medo de que algo acontecesse. Lá na UnB não existe repressão”, afirma a internacionalista Amanda Panhol, que concluiu a graduação em 2013. Para o aluno de letras espanhol Bruno Henrique Menezes, só quem passa pelo local entende a carga afetiva e a memória guardada. “O minhocão traz toda uma carga sentimental para os alunos. É nele que se concentra boa parte dos centros acadêmicos, é nele que acontecem todas as pautas estudantis”, avalia.

Há mais de dois anos, uma maquete da Universidade de Brasília está em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Professor de Arquitetura e Urbanismo da UnB, Cláudio Villar de Queiroz considera o feito como algo representativo. “O Instituto Central de Ciências, nosso Minhocão, é uma obra prima, apesar de inacabado. Desde que foi “invadido”, pouco a pouco foi desvirtuando vários aspectos da proposta original. Portanto, inacabado e mal ocupado, é um artefato arquitetônico impressionante, grande espetáculo de luz e sombras, como aludia Le Corbusier”, explica.


'QUEM VIVE EM BRASÍLIA, VIVE NO CÉU' terrenas, aos iluminados. E não é de ninguém. Nunca é o mesmo, a única coisa que preserva, em si, é a beleza. Quem vive em Brasília vive no céu, mas nem todos sabem disto. Quando surgiu a ideia? Há cerca de 10 anos. Mas a ideia é sempre reiterada, sobretudo quando se aproxima o dia de aniversário da cidade. O que seria necessário para que o céu de Brasília fosse declarado Patrimônio Natural?

Como surgiu a ideia de pedir ao Iphan que o céu de Brasília se tornasse patrimônio natural? Quando estava no Iphan, o presidente pediu-me para pensar em uma nova forma de reconhecimento e defesa de sítios e paisagens que não fosse o tombamento. Respondi-lhe que isto já existia, inclusive na Unesco, que era a paisagem cultural. Me dediquei então a adaptar o conceito a nossa realidade brasileira, procurando diferir do tombamento que é um ato de proteção compulsória do patrimônio. A paisagem cultural é uma chancela, um diploma de reconhecimento conferido a partir da vontade do proprietário de um sítio, não intervém em seus direitos e reconhece muitos outros valores no bem proposto para receber esta chancela. Os céus de Brasília não têm dono, são o que há de mais democrático nesta cidade que se diz democrática. Pertence a todos, aos humildes, aos simples, aos sonhadores, às crianças, a alguns jovens e a alguns idosos, aos poetas, aos artistas, aos desprendidos das coisas

Muitas pessoas se sensibilizaram com a iniciativa da tentativa de tombamento... …Sim. Todos os que olham para cima a cada dia, os que andam a pé, os que saem de seus recintos fechados, os que olham pela janela, até todos nós que, longe daí, o vemos pela televisão. Muitos jornais publicaram repetidas matérias sobre o assunto. Mas os desprovidos de uma sensibilidade mais aguçada devem achar que é uma idiotice dar valor ao que quer que não seja material. O que o céu de Brasília significa para o sr.? Sempre que eu ía a Brasília, um tédio profundo começava a me invadir. Quando morava em Minas, minha terra, estava sempre a olhar o céu. Diziam que quando morrêssemos iríamos para o céu e eu me punha a imaginar como seria bom estar lá, pulando de nuvem em nuvem. Depois que vim para o Rio, pouco via o céu, a cidade é muito carnal e mais voltada para o mar do que para a infinitude celestial. Quando começava a ficar enfadado em Brasília, bastava elevar os olhos para o firmamento para uma nova realidade - mais uma irrealidade do que uma realidade - se revelar: que grandeza a desse céu! Que azul, que nuvens, quanta beleza! O céu, malgrado a transitoriedade das nuvens, é a única coisa que nós, mortais, podemos entrever do infinito.

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Apaixonado pela imensidão azul que pode ser contemplada em Brasília como em nenhum outro lugar, em 2007, o arquiteto e urbanista Carlos Fernando de Moura Delphim, na época funcionário do Iphan-DF, solicitou ao órgão o que muitos brasilienses já adotaram afetivamente: tornar o céu da capital Patrimônio Natural. Entre idas e vindas nesses dez anos, o feito ainda não se concretizou. Hoje, Delphim defende que, além de tornar o céu paisagem natural, também se faça uma reserva de noite estrelada. “Um local longe dos fulgores da noite citadina que ofuscam a contemplação do céu noturno, onde se possa contemplar a magnitude do firmamento noturno”. Em Portugal, segundo ele, iniciativa similar foi adotada e conta com apoio da Unesco. Confira, a seguir, a entrevista:

Quase nada. Bastaria que alguém solicitasse isto ao Iphan e, acredito, que o pedido fosse encaminhado ao Conselho Consultivo para averiguar a plausibilidade da proposta. A administração anterior do Iphan desinteressou-se completamente pelo tema e a atual está cuidando de ressuscitá-la, revendo alguns desacertos na forma como deveria tramitar. Acho ainda que Brasília, além de declarar seu céu como paisagem natural, devia ter uma reserva de noite escura ou, como se compreende mais modernamente, uma reserva de noite estrelada, um local longe dos fulgores da noite citadina que ofuscam a contemplação do céu noturno, onde se possa contemplar a magnitude do firmamento noturno. Em Portugal, a região do Alqueva foi a primeira que recebeu a classificação de Destino Turístico Starlight, uma forma de reconhecimento do valor do céu escuro, criada pelo Instituto de Astrofísica das Canárias e conferido pela Fundação Starlight. A iniciativa conta com apoio da Unesco, da União Astronômica Internacional e da Organização Mundial de Turismo, das Nações Unidas.

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ALÉM DE CURVAS E COLUNAS Os Dragões da Independência, posicionados em locais como os palácios do Planalto e da Alvorada, com trajes históricos e uma imobilidade de estátua viva, cativam os visitantes

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RAPHAEL BORGES

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CURVAS ARQUITETÔNICAS de Niemeyer ganham um toque especial com a presença dos Dragões da Independência

O

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peso de esporas e lança. Impossível não notar. do Planalto. A unidade protege os pavestir esse O 1º RCG, também conhecido lácios da Alvorada, do Planalto e do fardamen- como Dragões da Independência, foi Jaburu, além da Residência Oficial da to é enor- criado em 1808 pelo imperador do Granja do Torto. Ele integra a seguranme. Repre- Brasil, Dom João VI. Com a vinda da ça do presidente e do vice-presidente sentamos corte portuguesa para as terras tupi- da República. Ainda, executa o cerio Exército niquins, sua majestade resolveu criar monial militar de recepção de chefes brasileiro e o país. Isso é gratificante, uma tropa específica para guardar a de estado e de governo, em visitas pois vivemos emoções pessoais e par- sede do governo. Com isso, em 13 oficiais ao Brasil. O regimento se desticipamos da história do Brasil”. Este é de maio daquele ano foi instituída a taca por ter participado ativamente o sentimento do cabo Antônio Carlos primeira Organização Militar (OM) de de momentos importantes da nossa Pereira Júnior, 21, que entrou para o Cavalaria, denominada 1º Regimento história, como a Independência do Exército em 2014, aos 18 anos, servin- de Cavalaria do Exército, com sede no Brasil, a Guerra Cisplatina e a Proclado no 1° Regimento de Cavalaria de Rio de Janeiro, então capital do País. mação da República. Guardas (1° RCG), no Distrito Federal. Com o passar do tempo, a OM Como o cabo Antônio Carlos JúEle é um dos famosos Dragões da In- teve diversas denominações, até nior, outro Dragão que transformou dependência. que, em 4 de julho de 1946, recebeu o sonho de menino em realidade foi Nascido na “Capital MoreDiego da Silva Gonzaga, na do São Francisco”, Pirapora 21, soldado do RCG des“Eu sonhava com tudo isso e (MG), filho de uma tecelã, o de 2014. Ele sempre quis cabo Júnior jamais havia imaservir ao Exército e fazer estava lá, realizando aquilo que ginado ver de perto presidenparte dos Dragões da eu queria. Só sei que meu coração tes, ministros, senadores, deIndependência. “Eu via putados e outras autoridades. os Dragões na rampa do estava acelerado e muitas pessoas Isto se tornou possível, quando Planalto e achava muito vestiu o uniforme histórico dos bonito”, recorda. tiravam fotos, me sentia uma Dragões da Independência. Embora seja uma procelebridade” O fardamento, concebifissão importante para o Thobias Alves dos Santos, soldado do pelo pintor francês Jean país, a remuneração desBaptiste Debret, foi uma hoses militares deixa a desemenagem à então imperatriz Maria a nomenclatura atual, 1º Regimen- jar. Um soldado dos Dragões da IndeLeopoldina, também arquiduquesa to de Cavalaria de Guardas. O título pendência, em seu ano obrigatório, de Áustria, país cuja bandeira é bran- Dragões da Independência tem sua recebe salário de R$ 769,00 por mês. ca e vermelha. A beleza do uniforme origem nos Dragões de Minas. A ex- Após um ano de serviço, o soldo passa chama a atenção. Branco e vermelho, pressão simboliza a fidelidade à casa a ser de R$1.398,00. capacete em forma de dragão com de Bragança, família Real Portuguesa. Os soldados que prestam serviço crina de cavalo, botas de cano alto, Em Brasília desde 1968, o 1º RCG militar no 1° RCG são selecionados por cinturão de couro, faixa abdominal, é subordinado ao Comando Militar meio do alistamento militar obrigató-

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Rotina no quartel Para os que vivem no quartel, chamados de laranjeiras, a jornada começa às 6h, com o toque da alvorada. Logo que acordam, arrumam o alojamento e seguem para o rancho, nome dado ao refeitório, para o café da manhã. Depois, partem para o Treinamento Físico Militar (TFM), que inclui exercícios como corrida, polichinelos e abdominais. As atividades são puxadas e buscam assegurar que todos eles se tornem preparados, de forma física e psicológica, para enfrentar os desafios da profissão. As atividades podem durar até duas horas. Após o TFM, eles retornam ao alojamento, onde se preparam para as atividades seguintes. Por volta das 11h30 seguem novamente ao

rancho para o almoço. O cardápio é preparado por uma nutricionista, com composição balanceada para suprir as necessidades dos militares, que possuem rotina com alto gasto energético. À tarde, novas instruções. Os soldados aprendem a manusear armamentos, a fazer ordem unida, momento em que eles são treinados a marchar de forma sincronizada, e são submetidos a treinamentos de imobilidade. “São atividades intensas e repetitivas. Isso tudo para que fiquemos preparados para assumir a responsabilidade de vestir o uniforme dos Dragões”, explica o cabo Júnior. Depois, é lido o Boletim Interno da Organização Militar e as ordens de serviço. Com a proximidade das 17h, para os que não vivem no quartel e não estão de serviço, é chegada a hora de voltar para casa. Parece pesado? E é mesmo. Para atuar como integrante dos Dragões da Independência é necessário um elevado preparo. Mas quem é ou já foi soldado garante que vale a pena. “Teve dias que pensei em largar tudo. Às vezes me batia uma solidão e dava uma vontade de chorar. Também tive dias felizes, que vivi experiências maravilhosas, que nem percebia o tempo passar. Hoje sinto saudades e faria tudo de novo”, desabafa o ex-Dragão

Foto: Subtenente Edmilson

MULHERES INTEGRAM O GRUPO

Os Dragões da Independência não têm sua rotina de trabalho limitada à guarda dos palácios presidenciais. Eles apresentam-se em cerimônias de cavalaria hípica, entre elas, o carrossel militar. Neste ano, pela primeira vez, duas mulheres vão compor a formação da cavalaria como amazonas. Criado em 1938, o carrossel militar

Leandro Souza, 25, que prestou o serviço militar obrigatório em 2011. Hoje, fora do Exército, Leandro Souza luta para conseguir uma vaga no mercado de trabalho. Serviço O soldado fica sabendo que foi escalado como Dragão no dia anterior ao trabalho. Ao final do expediente, é lida a escala. O militar que tiver sido anunciado como de “serviço”, pega emprestada a farda no Pavilhão Imperial, onde é feita manutenção e preparo do fardamento. “No dia do serviço, com o uniforme limpo e passado, o militar se farda e desce para a parada diária. Neste momento o oficial de dia fiscaliza o uniforme de todos que serão empregados, principalmente o do Dragão, que irá para a guarda de um monumento da República”, detalha o cabo Júnior. Na inspeção, precisam estar impecáveis o cabelo aparado, a farda limpa e passada, a bota engraxada e as esporas brilhando. Thobias Alves dos Santos, 23, entrou para o Exército em 2013. Ele conta que os militares possuem alguns truques para cuidar do uniforme. “Quando terminamos de engraxar, esfregamos aquela parte branca da vela por toda a bota. Feito isso, aproximamos o calor do fogo onde foi passada

consiste em uma atividade de apresentação a cavalo que testa o adestramento do animal e a capacidade de quem o monta. O capitão Rego Barros, comandante do 2° Esquadrãode Dragões, comemora a entrada feminina no grupo. “Vai ser um marco aqui no regimento. Nunca antes militares do segmento feminino fizeram o carrossel. Aproveitamos a experiência delas com a equitação para abrilhantar ainda mais a nossa festa.” “Eu já montava antes, mas tive que fazer uma pausa para estuar. Agora que estou no Exército, é uma ótima oportunidade para voltar a ter contato com o animal, porque sempre gostei e sou apaixonada pela equitação”, afirma a aspirante a oficial Rafaella Brito, médica do 1° RCG. A outra amazona é a aspirante a oficial Camila Bello, veterinária, que comemora a chance de entrar para a história. “Fiquei surpresa quando soube que seriamos as primeiras. Nos deu uma motivação a mais de participar. Poder contar para os nossos filhos que fomos as primeiras mulheres a participar do carrossel militar será gratificante”, conclui.

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rio. Foi assim que começou o serviço militar para o cabo Júnior. “Quando cheguei ao quartel eu era um jovem sem nenhuma experiência. Apenas um garoto que morava com a mãe em uma cidade do interior de Minas Gerais, vivendo uma vida simples. De repente, me vi em um quartel, tendo que seguir regras e horários, recebendo ordens de pessoas que eu nunca tinha visto ou conhecido na vida. Uma rotina que me fez aprender bastante”, relata.

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a vela e ilustramos com uma escova. Pode testar, o calçado fica com um brilho que chama a atenção”, ensina. Para cada ponto fixo ocupado por um Dragão há três militares. O trabalho é duro: 24 horas consecutivas. O Dragão alterna duas horas de pé e imóvel no posto com quatro horas de descanso. “Quando termina, tudo que o militar quer fazer é ir para casa ver a família ou simplesmente dormir, porque no outro dia têm mais”, conta Júnior. Rampa do Planalto Projetado por Oscar Niemayer, o Palácio do Planalto é o edifício oficial de trabalho do presidente do Brasil. O prédio também abriga a Casa Civil, a Secretária-geral e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. O Planalto faz parte do projeto do Plano Piloto e foi um dos primeiros edifícios construídos na capital. A obra foi concluída a tempo de tornar o espaço o centro das festividades da inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960. O palácio é um dos monumentos da capital tombado como Patrimônio Cultural da Humanidade. Marco da arquitetura e urbanismo modernos, Brasília é detentora da maior área tombada do mundo, 112,25 km², e foi inscrita pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na lista de bens do Patrimônio Mundial em 7 de dezembro de 1987, sendo o único bem contemporâneo a merecer a distinção. É

na rampa desse prédio que atua parte dos Dragões da Independência. Além da arquitetura, outra figura chama a atenção de quem visita o Planalto. Na rampa dois soldados ficam de serviço. Com o uniforme histórico, eles têm a missão de ficar imóveis, mexendo, no máximo, os olhos. O intuito é manter viva a tradição dos Dragões da Independência, que agora une a beleza do uniforme às curvas arquitetônicas da capital. O militar só se ausenta da posição estática, na rampa do Palácio do Planalto, em momentos de manutenção e limpeza daquela área, ou quando

o Exército são feitas simulações, no próprio regimento, como se estivéssemos na rampa do Planalto”, recorda. O cabo Júnior admite que o militar não se acostuma com a rotina de ficar duas horas parado, ele sempre sentirá dor, mas com o tempo e a sequência dos serviços, o corpo se adapta. “Cansa bastante e exige muita concentração e boa forma para permanecer na posição pelo tempo determinado. O que nos distrai é a visita dos turistas que vêm a Brasília. Eles ficam deslumbrados com a beleza do uniforme e o fato de não nos mexermos”, diz.

Os Dragões se destacam por ter participado ativamente de momentos importantes da história, como a Independência, a Guerra Cisplatina e a Proclamação da República sua integridade física está exposta a situações de perigo, como uma provável tentativa de invasão a rampa do Planalto. Esses soldados, apesar de preparados, quando uniformizados com o fardamento Dragão não realizam a proteção daquele espaço. Existem outros militares responsáveis em realizar esse trabalho. Quando entrou para o 1° RCG, o soldado Gonzaga teve que passar por uma intensa preparação para ocupar um posto fixo. “Participávamos de muitas formaturas militares para treinar a imobilidade. Para aqueles soldados que estão entrando para

Alguns militares chegam a passar mal no posto. “Num serviço no mês de março, me senti muito mal e tive que ser conduzido para a enfermaria. Eu tinha acabado de almoçar e apertei muito a faixa vermelha que envolve o abdômen, após uma tontura, acabei desmaiando”, lembra o soldado Gonzaga. Nestas situações, o militar é imediatamente substituído e encaminhado para atendimento médico. Para o nutricionista Alessandro Vanzelar, o trabalho é muito desgastante. “Eles ficam bastante tempo parados, imagino que seja um esforço grande. Mas é muito bonito o cerimo-

Foto: Soldado Rafael

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JOVENS QUE entraram para os Dragões da Independência marcham orgulhosos por fazer parte do seleto grupo de militares


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OS BASTIDORES 2

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EM 2017, o 1° Regimento de Cavalaria de Guardas completa 209 anos de existência (1) O TREINAMENTO é intenso até a chegada à rampa do Palácio do Planalto (2) APÓS O descanso, é hora de se preparar para mais um serviço (3)

sorriso quando estamos no posto. Contam piadas, fazem graça, mas estamos sempre em uma posição de respeito, afinal, vestimos um uniforme histórico e estamos ali com a responsabilidade de mostrá-lo. Quando eu tirava aquele serviço, tentava pensar em outras coisas e não prestava atenção no que estava acontecendo”, declara. Junior não concorre mais à escala de Dragão por ter sido promovido ao posto de cabo. Dos militares do 1º RCG, aquele posto só é ocupado por soldados do Esquadrão de Cerimonial. Em visita a Brasília, a estudante colombiana Paola Vargas admite que tentou desviar a atenção dos soldados. “Meu único pensamento ao vê-los foi de fazê-los rir. Creio que não é muito bom, porque estão parados o dia inteiro. É como você ter que ir ao banheiro e não poder. Não gostaria de estar no lugar deles”, constata.

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PAVILHÃO IMPERIAL: espaço onde é feito o cuidado com o uniforme dos Dragões da Independência (4) SÃO DUAS horas na rampa e quatro horas no descanso, numa rotina que exige preparo e boa forma física (5) DEVIDO À grande demanda de atividades, os Dragões contam com espaço para realizar a manutenção dos equipamentos que compõem o uniforme (6)

O subcomandante do 1° Regimento de Cavalaria de Guardas, tenente-oronel Moura de Almeida, enfatiza a honra para quem se veste de Dragão. “Manter os soldados uniformizados com o fardamento histórico está relacionado com o culto às tradições por parte do Exército brasileiro, que teve origem no Brasil Império”, declara. Depois do convívio próximo com a rotina do 1° RCG é possível notar em todos os militares o sentimento de devoção ao Brasil. Na guarda dos palácios ou nas cerimônias cívicas, os Dragões têm o compromisso de fazer o melhor trabalho possível. Com isso, a capital federal ganha ao saber que por trás de suas curvas e de suas colunas há brasileiros de grande valor. Pessoas de origem humilde que comemoram a chance de fazer parte da história.

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nial que eles fazem, lembra os soldados da Rainha da Inglaterra”, compara. Para muitos, os primeiros serviços na função de Dragão são os mais difíceis. O cabo Júnior admite: “Era bastante complicado. Até aprender a controlar a mente e o corpo, o militar vai até o seu limite. As pernas começam a tremer, uma vontade grande de se movimentar, sente os pés formigando, o capacete começa a incomodar, o sol que reflete na rampa [de mármore branco] causa desconforto nos olhos. São duas horas que parecem quatro”. Para Clarice de Oliveira, fisioterapeuta da Coordenação de Atenção à Saúde do Servidor, do Ministério da Saúde, o desconforto gerado pela imobilidade é grande. “Seja qual for a postura, sentada ou de pé, haverá compressão de vasos sanguíneos, em que o sangue deixa de fluir e o músculo não recebe oxigênio e nem nutrientes. Com isso, os resíduos metabólicos acumulam-se, provocando dor e fadiga muscular”, explica a profissional. Segundo Oliveira, na posição ereta o coração está sujeito a dificuldades de bombear o sangue às diferentes extremidades do organismo. “O nosso corpo é uma máquina construída para o movimento, ele nunca adota posturas perfeitamente estáticas. Portanto, a posição de pé é bastante cansativa”, completa. O soldado Thobias lembra muito bem como foi seu primeiro serviço na rampa do Planalto. “Eu estava muito nervoso. Quando o meu nome foi lido na escala de serviço fiquei assustado e preocupado. Não tinha experiência, mas sabia que estava preparado. Lembro que fui dormir muito cedo porque não queria estar cansado no outro dia”, relata. Já no serviço, o militar chegou a pensar que não iria conseguir superar as famosas duas horas: “Eu sonhava com tudo isso e estava lá, realizando aquilo que eu queria. Só sei que meu coração estava acelerado e muitas pessoas tiravam fotos, me senti uma celebridade. Olhava de canto de olho, abismado com a realização do meu sonho”. Para o cabo Júnior, existe um segredo para manter uma expressão de seriedade, comportamento típico dos Dragões. “Os visitantes nos testam para ver se somos capazes de esboçar um


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PATRIMÔNIO ECOLÓGICO

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Decreto torna 12 árvores imunes ao corte em áreas urbanas, proíbe extração, caiação e fixação de placas, mas desafios para fiscalização ainda são muitos LUANA MOURA

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beleza urbana de árvores morreram em Brasília deviBrasília é notada em do à má adaptação. A partir dali, eles qualquer ponto da passaram a concentrar os esforços de Capital. A Cidade plantio nas árvores típicas do cerrado. Parque reconhecida Proteção como Patrimônio da Humanidade pela Entre as 12 espécies preservadas, Unesco há 30 anos tem na escala bu- a opção foi não apenas pelas que têm cólica de Lúcio Costa um de seus prin- madeira e óleo que são utilizados para cipais atrativos. São 150 milhões de outras finalidades, mas também pelas metros quadrados de gramado, cerca que fazem parte do cardápio braside 5 milhões de árvores e mais de 250 liense, como o Pequi e a Cagaita. Já o espécies catalogadas, segundo a No- Buriti, por sua vez, foi preservado em vacap. A meta estipulada como ideal função de sempre nascer perto das pela Organização Mundial de Saúde, nascentes. “Ele está em quase todas de 12m² de área verde por habitante, as legislações. Onde tem essa espéencontra aqui superávit: são 100m² cie, tem corpo d´água e nascentes. A por brasiliense. proteção vai para o ecossistema que Entre tantas árvores, 12 espécies ele abriga”, explica a bióloga. típicas do Cerrado foram tombadas O decreto ainda garante imunipelo Governo do Distrito Federal no dade às árvores arbóreo-arbustivas Decreto 14.783/93. Na prática, isso que representam as espécies nativas significa que Copaíba, Sucupira-bran- ou exóticas raras, espécies lenhosas ca, Pequi, Cagaita, Buriti, Gomeira, de expressão histórica pela beleza e Pau-doce, Aroeira, Embiriçu, Peroba, raridade, e todas as localizadas em Jacarandá e Ipês são consideradas pa- áreas de preservação permanente, trimônio ecológico e estão imunes ao tanto de reserva ecológica como de corte em áreas urbanas, além da caia- instabilidade geomorfológica. ção e da fixação de placas nos troncos. O corte dessas árvores, o trans“Essas espécies sofrem algum tipo de plantio e a poda só podem ser feitos pressão, seja pela madeira que é mui- pela Novacap ou pelas administrato boa e são ções regionais usadas para mediante autorifazer móveis, zação. “Só quem “No final, todo mundo ou pelo extrapode cortar áracaba reconhecendo que é vore em Brasília tivismo dos seus produé a Novacap, a uma dádiva ter tanto tos, óleos que Ceb e a Caesb, são essenciais as duas últimas verde nessa cidade” e medicinais”, apenas com nosRaymond de Sá, artista plástico explica a biósa autorização”, loga Priscila afirmou AlfredOliveira, doutora em botânica. Castro. Quem desrespeita as regras, A ideia de Lúcio Costa era manter dependendo da gravidade do crime o cenário do cerrado vivo em Brasília. praticado, leva como pena plantar de Porém, na época da construção, os dez a 30 mudas de espécies nativas tratores e outras máquinas acaba- do cerrado ou exóticas. Em caso de ram esmagando muitas árvores. Foi crime ambiental, a pena pode ser até então que a Novacap resolveu trazer mesmo de prisão, sem direito a fiança. plantas exóticas. “Trouxemos árvores Aplicação diferentes e as árvores começaram a ser atacadas por cupins, começaram Preocupados com a segurança a cair, e não se adaptaram ao clima das árvores em geral, o Departamenseco da cidade. Foram tiradas algu- to de Parques e Jardins (DPJ) instituiu mas espécies que estavam dando que toda e qualquer árvore que não muito trabalho”, destaca o Chefe de oferece risco à sociedade não pode Departamento de Parques e Jardins ser retirada do local onde nasceu. (DPJ) da Novacap Alfred Luciano Fá- “Nós não podemos aplicar o decrebio Gomes de Castro. No ano de 1973, to só a essas árvores, nós aplicamos houve uma surpresa: mais de 50 mil a todas, se tem um pé de manga e


AS 12 ESPÉCIES TOMBADAS Aroeira (Astromiunurundeuva (Fr.All) Buriti (Mauritia Flexuosa L.F) [1] Cagaita (Eugenia dysenterica DC) Copaíba (CopaiferalangsdorffiiDesf) [2] Gomeira (VochysiathyrshoideaPolh) Imbiruçu (Pseudobombaxlongiflorum (Mart., et Zucc.) a. Rob) Ipês (Tabebuia spp.) Jacarandá (Dálbergia spp.) Pau-doce (Vochysiatucanorum Marte), Engl.) Pequi (Caryocar brasiliense Camb) [3] Peroba (Aspidosperma spp.) Sucupira-branca (PterodonpubescensBenth) [4]

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está saudável, nós não autorizamos cortar”, afirma o chefedo DPJ. Ao respeitar o bioma, a Novacap trouxe mais árvores típicas do cerrado para manter o habitat natural dos animais.“ A nossa escolha quanto às espécies respeitou o que já tínhamos aqui e com isso trouxemos a fauna. Já foi vista onça próxima ao tribunal, mico, muitos pássaros, porque o animal é protegido. Se você planta o que já está no bioma, a fauna agradece”, acrescentou Alfred. Crimes ambientais Qualquer pessoa que corte uma árvore que faça parte do patrimônio ecológico deve fazer compensação florestal ou contribuir para os custos de replantio. A Delegacia Especializada em Crimes Ambientais (Dema) cuida para que nenhum crime passe impune. No caso de ser verificado pela polícia que houve um corte ou uma poda de alguma dessas árvores sem a permissão da Novacap, a pessoa pode responder pelo artigo 45 da Lei 9.605, de 1998. “No caso de cortar para qualquer fim árvores consideradas como patrimônio ecológico, a pena é de um a dois anos de prisão”, afirmou a delegada chefe Mariliza Gomes da Silva. A delegacia distribui uma cartilha com orientações para proteção do ecossistema local. “Falamos da importância de estar preservando um bem finito e que é vital para todos. Um bem totalmente importante para nossa sobrevivência”, explicou Mariliza Gomes. E para quem deseja denunciar qualquer crime ambiental, basta ligar no número 197. Árvores exóticas

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A bióloga Priscila Oliveira destaca a importância de se manter as árvores típicas do cerrado em Brasília e ressalta que introduzir espécies exóticas, que não fazem parte do bioma, pode levar à substituição do espaço daquelas que são nativas. “A gente tem muita espécie da arborização urbana que foi trazida de ambiente diferente. Ela pode se adaptar ou não, para a gente é melhor que ela não se adapte, porque vai produzir muitas semente e ocupar o espaço das espécies nativas”, explica. Devido a essas árvores serem trazidas de climas e solos distintos,

alguns problemas podem aparecer com o tempo. Por isso, é importante conhecer a espécie antes de plantá-la em qualquer lugar. Priscila lista alguns problemas que podem ser causados. “Existem espécies que procuram água, então ela invade a rede de esgoto, quebra a tubulação, a calçada, por que a raiz é muito forte. Não é culpa da árvore, estão plantando a árvore no lugar errado”, desabafa. O cuidado com as espécies plantadas tem a ver também com a saúde da população. A Cidade Parque recebeu várias espécies exóticas da Amazônia, tais como Sibipiruna e Canafístula. “Temos a Leucena vinda da África, que é uma praga. Ela foi trazida para servir de comida para o gado. Não deu certo, mas ela se alastrou”, destacou a bióloga. Uma das recomendações é se observar, por exemplo, se há plantas tóxicas ou que possam fazer mal à população. A bióloga observa que o risco ocorre pois, no geral, as árvores são conhecidas por seus nomes comuns, e as pessoas procuram muito as espécies para usá-las medicinalmente. O ideal seria que na hora de procurar algum tipo de receita medicinal, se buscasse o nome científico. “Tem uma que se chama espirradeira e é uma das perigosas, as crianças vão brincar e ver um látex branquinho e querem experimentar, e isso é tóxico. A culpa não é da árvore, a criança não pode colocar qualquer coisa na boca”. A espirradeira é uma planta considerada exótica originária do Sul da Ásia, e pode ser encontrada nos canteiros centrais da L2 Norte e Sul, e nos parques da cidade. Além da toxidade, outro ponto a ser observado é a questão alérgica. Apesar de ser incomum, algumas pessoas podem ter reação a alguma espécie. “Existe uma espécie amazônica, a Pachira Aquática, que produz uma paina. Quando o vento bate, ela produz alguma alergia nas pessoas, inclusive muitas já foram retiradas”, afirma o engenheiro florestal Fernando Lima, da Ong Pró-Natureza. Os especialistas lembram que, mesmo com alguns problemas que podem ser causados pela má utilização das espécies, o bom uso delas é benéfico para todos: purificam o ar, proporcionam sombra, abrigam a


Orgulho urbano TÉCNICO AGRÍCOLA no berçário das árvores nativas do cerrado

fauna e trazem conforto visual para qualquer um que passe pela cidade. Para garantir o constante replantio das árvores, a Novacap criouem 1971 o Viveiro II, com capacidade de produção de 300 mil mudas de árvores nativas. “Aqui nós produzimos árvores típicas do cerrado, e a maior parte da produção são as nativas, e algumas exóticas que já se adaptaram ao bioma”, afirma o técnico agrícola José Donizete Dias,que trabalha no local. Atualmente, são produzidas 200 mil, devido à redução do número de funcionários na unidade. Crise hídrica

OLHO NAS ÁRVORES - Jaqueira (Artocarpusheterophyllus): Produz um fruto enorme, corre o risco de cair na cabeça de alguém e causar ferimentos. - Pinheiro (Araucaria angustifólia): Frutos que são levados com o vento e causam muita sujeira. - Espirradeira (Neriumoleander): Produz um látex que se colocado na boca pode causar intoxicação. - Salgueiro-Chorão (Salix x pendulina: Copa): À procura de água, as raízes dessa espécie invadem tubulações e quebram calçadas. Fonte: Bióloga Priscila Oliveira.

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Mesmo com tantos cuidados e plantios de árvores, o Distrito Federal sofreu um grande desmatamento e isso trouxe vários problemas, como a crise hídrica. O coordenador de Unidades de Conservação do Ibram, Paulo César Magalhães, observa que

a questão ambiental é séria e deve ser pensada a longo prazo. “As pessoas de modo geral têm um pensamento imediatista. Para elas, cortar uma árvore ou duas não vai fazer diferença nenhuma. Que o pássaro procure outra para pousar, mas não é o agora... é lá na frente que os problemas virão”, alertou. Os especialistas apontam o desmatamento de algumas áreas na década de 80, em função da produção agrícola, como um dos motivos para a situação atual de racionamento de água. Com uso intenso e diminuição de chuvas, o Distrito Federal está no limite. Nas cidades do entorno, há apenas pequenas nascentes, insuficientes para suprir a necessidade das pessoas. “Se não tivéssemos as áreas protegidas, a água já havia acabado, pois o Distrito Federal não recebe água, apenas libera para outros estados, muitas nascentes estão secas”, explica Paulo.

O artista plástico Raymond de Sá, 51 anos, nascido em Brasília, orgulha-se da beleza da Cidade Parque. “Aqui temos a variedade do cerrado, árvores frutíferas, jaqueira, manga... Além da beleza, tem essa questão do conforto visual. Eu percorro várias cidades e digo que Brasília é uma das mais arborizadas do Brasil”. Na avaliação dele, este sentimento de pertencimento e admiração é comum entre os brasilienses. “Algumas pessoas reclamam, mas todo mundo no final das contas acaba reconhecendo que é uma dádiva ter tanto verde nessa cidade”, finalizou.

UM DOS viveiros da Novacap tem capacidade para produzir 300 mil mudas

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UMA ESCALA VERDE Ponto central do projeto de Lúcio Costa, as áreas bucólicas fazem de Brasília uma cidade única, com qualidade de vida e lazer como um verdadeiro e permanente parque OMAR KHODR

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G

ramados por todos os lados, praças, quadras arborizadas, muitos jardins, pontos de lazer e a orla do Lago Paranoá. Brasília é uma cidade única, uma Cidade Parque. A concepção do urbanista Lúcio Costa pode ser vista ainda hoje, em cada metro quadrado, pelo o que ele desenhou em uma das quatro escalas previstas para a Capital, a bucólica. “A escala complementa os espaços livres que integram as áreas verdes com as edificações, dando movimento de circulação e climatização aos

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edifícios como prédios do lado”, destaca o arquiteto e escultor Assis de Aragão. Ele observa que a proposta idealizada por Lúcio Costa permite a aproximação das pessoas, ao garantir um espaço comunitário. Para o paisagista e escritor Nicolas Behr, os espaços verdes da Capital conferem um ambiente que descansa os olhos e relaxa o cidadão. Ele ressalta que os moradores se beneficiam com o microclima proporcionado, que alivia o calor que se intensifica ao longo do ano, principalmente durante a época da seca. Porém, o paisagista chama atenção para a especulação imobiliária que pode ameaçar certas

áreas. “As regiões bucólicas estão ameaçadas pelas indústrias imobiliária e da construção civil. Elas consideram a escala como área vazia", critica. Em 1985, a questão de como Brasília seria protegida efetivamente passou a ser debatida também pelo governo. O então governador José Aparecido de Oliveira convidou Lúcio Costa, Oscar Nieyemer e Roberto Burle Marx para retificar e completar o projeto urbanístico conforme o projeto inicial. O governador foi à capital francesa para apresentar à Organização das Nações Unidas a tese que os monumentos contemporâneos de Brasília deveriam ser considerados.


de 36m², que equivale cerca de três árvores por morador. O paisagista explica que a Novacap fez muitas experiências ao longo dos anos nos espaços verdes. No começo, foram importadas muitas plantas estrangeiras. Mas, Laudares ressalta que as espécies não tiveram muita longevidade por não se adaptarem ao clima e solo do cerrado. Com isso, a Novacap passou a utilizar apenas plantas nativas que podem se adaptar com mais facilidade. “São plantas para cada estação do ano, tem um tipo de ipê diferente em cada mês." De acordo com o Instituto de Pesquisa e Estudos Florestais, os ipês rosa marcam o inverno, e os brancos e amarelos surgem pouco depois nos meses de agosto e setembro. O aspecto único da escala bucólica e do ideal de Cidade Parque é complementado por arvores frutíferas, como os abacateiros e mangueiras presentes em tantas quadras da Capital e pelas vias dos Lagos Sul e Norte. "Hoje em dia existem grupos de moradores que estão fazendo o plantio

CONCEITO DE CIDADE PARQUE

O conceito de bucólico significa campestre, rural e gracioso. O termo vem da palavra grega "bouolikos", da junção entre pastoril e rústico. Com o desenvolvimento de centros urbanos no século 18, a paisagem bucólica representava um refúgio para os cidadãos de Londres, Paris e Roma. No século seguinte, o conceito de Cidade Jardim ou Cidade Parque foi formulado pelo urbanista britânico Ebnezer Howard. Na obra "Gardens Cities of tomorrow", publicada em 1902, ele propõe a estruturação de cidades industrializadas com áreas exclusivas para o complemento de um vasto cinturão verde destinado a atividades agrícolas, de lazer e contemplação. Na década de 1930, o conceito de Cidade Parque chegou a então Capital Federal, no Rio de Janeiro, seguindo as tendências de cidades europeias, principalmente as francesas Paris, Bordeaux e Lyon. Com a mudança da capital para o centro-oestre, Brasília passou a adotar todos os princípios de uma cidade parque.

Fontes: Dicionário Aurélio e Iphan

de hortas orgânicas," complementa o arquiteto e escultor Assis Aragão. Visão dos moradores O agrônomo americano Eric Stoner vive em Brasília há 34 anos e aponta a escala bucólica como diferencial a ser valorizado. Morador da 416 Sul e apaixonado pela natureza, usa os espaços livres da quadra para plantar tomates e mudas de açaí trazidas do Pará. "As pessoas aos poucos estão criando consciência que as plantações são para comunidade", comenta.Também na Asa Sul, na 104, a administradora Nena Letini reclama que os espaços bucólicos da quadra são pouco convidativos. Ela destaca que existe depredação de calçadas, lixo, poucos bancos para sentar e espaços para as crianças brincarem. Há 40 anos na Asa Sul, Nena afirma que as áreas verdes já não seguem o padrão idealizado por Lúcio Costa. “Sentimos nostalgia, podíamos descer e caminhar sem preocupação, hoje em dia o espaço não é nada agradável."

O PAISAGISMO DE BURLEMARX

O paisagista Roberto Burle Marx iniciou sua carreira em 1934 em Recife (PE), onde atuou como chefe do Setor de Parque e Jardins da diretoria de Arquitetura e Urbanismo. Para ele, a composição de uma paisagem reunia outros tipos de arte, como a pintura, a escultura, a música e a botânica. Burlemarx era um artista plástico antes de se tornar paisagista. Com passar do tempo, passou a aplicar mais a flora do Brasil, descobrindo novas espécies e buscando montar os jardins como pinturas.

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Em 1987 foram reiteradas as recomendações de Lúcio Costa de necessidade de preservação. O Decreto 10.892 buscava convencer a Unesco a conferir à Capital o título de Bem Cultural da Humanidade. Nele estava, por exemplo, que as quatro escalas monumental, residencial, gregária e bucólica - não poderiam sofrer alterações em relação ao projeto inicial, para evitar descaracterizações. O ideal de cidade, com características ecológicas, verdes e bucólicas, deveria ser complementado pelo céu, como um mar pleno. "As áreas verdes proporcionam vidas mais saudáveis, felizes e maior contato com a natureza, que disponibiliza qualidade de vida para os moradores," afirma o engenheiro ambiental Shayan Fatheazam. Brasília tem um grande diferencial por ser a cidade brasileira com mais área verde por metro quadrado, conforme destaca o paisagista Fábio Laudares. A Organização Mundial da Saúde preconiza quantidade mínima de 12m² por habitante, sendo o ideal

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ONDE A MEMÓRIA SE ESCONDE LIZ VIEIRA Fonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

Acampamentos que resistiram ao tempo são registros vivos da história das pessoas e da cidade. O que pouca gente sabe é que eles estão dentro da área tombada de Brasília e sofrem com o descaso, a falta de preservação e a especulação imobiliária

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MAPA DA Poligonal de Tombamento do Conjunto Urbanístico de Brasília

ara a maioria dos moradores do Distrito Federal o tombamento de Brasília se restringe às asas Sul e Norte, lagos Sul e Norte e os monumentos. O que poucas pessoas sabem é que fora do Plano Piloto existem outros locais demarcados no mapa do tombamento e contemplados como sendo de valor

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histórico. São os acampamentos de pioneiros, homens e mulheres que vieram construir a nova capital e que deram origem a outras cidades como Candangolândia, Vila Planalto e Vila Telebrasília. Operários, técnicos e até funcionários de alto escalão abrigavam-se nestes acampamentos que preenchiam os imensos espaços vazios que era Brasília, há 57 anos. Por causa desse desconhecimento, eles

estão à mercê do poder público. Neles, a memória candanga corre perigo. Desde que foram montados, até os dias atuais, os acampamentos evoluíram em um processo de ocupação intensiva e se tornaram cidades, ao desafiar a capacidade do governo de fiscalizar e adotar medidas de contenção desse avanço desenfreado. O problema é que esta expansão descontrolada varreu qualquer possibilidade


do DF, Beatriz Couto, o planejamento urbano é um dos melhores instrumentos de preservação levando-se em consideração o tamanho do Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB). Foi o que faltou na Vila Planalto e nos outros acampamentos pioneiros. Em “Brasília Revisitada”, obra de 1986 de Lúcio Costa, novos pólos de construção eram propostos. Um desses polos era justamente a Vila Planalto. O assentamento de famílias no local tido como “nobre” e de população com maior poder aquisitivo, é até hoje motivo de luta. História de personagens como Leiliane Rebouças, se confunde com a história local. “Leiliane furou a segurança em uma das descidas do presidente pela rampa do Palácio do Planalto e entregou ao [então presidente José] Sarney uma carta pedindo a fixação da Vila Planalto”, conta Briane Bicca. O caso ocorreu em 1988, quando Leiliane foi até o presidente da República pedir a preservação da Vila. Segundo Leiliane, tudo começou quando aos 10 anos ela passou a assistir reuniões do “Grupo das Dez”. “Minha mãe era integrante do grupo, então mesmo pequena eu participava da ‘sessão fraldinha’ e opinava em tudo”, conta Leiliane. A carta escrita por Leiliane com auxílio da mãe pedia não só a fixação da Vila mas também melhores condições de saneamento e um pedido para que o governo local escutasse os moradores. Ela recorda que por volta de 15h30 a carta já estava pronta e ela já estava pedindo à mãe para sair de casa. “Ela me disse que não ia me levar porque tinha que

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de conscientização sobre a importân- o resultado da atuação do GT Brasília cia desses espaços para a preservação e do Grupo das Dez. Era um grupo da memória e do patrimônio histórico constituído apenas por mulheres, que e cultural. “Da consciência de Brasília se reunia e debatia sobre como aborainda ser um acampamento resultou dar o governo local para que olhos a proposta de preservação dinâmica, se voltassem para a Vila. Na época, a diante da impossibilidade de defi- região não tinha saneamento básico, nir como seria a ocupação de todos faltavam escolas para as crianças e aqueles espaços”, explica a arquiteta obras de infraestrutura. “Tínhamos ese urbanista e também participante do goto a céu aberto. Não tinham criangrupo “Urbanistas por Brasília”, Brianne Bica. A preservação O Lar da Ampare permaneceu dinâmica, segundo Brianne, com a arquitetura orginal com mantém as características de uma região, como um orgaajuda do fundador nismo vivo, que se renova, sem perder a originalidade. Poucos moradores das cidades ças de rua porque cada pessoa da Vila que estão dentro do mapa reconhe- cuidava do menino da casa ao lado, cido pela Unesco sabem que essas mas em comparação, não tínhamos áreas são tombadas. E o desconheci- infraestrutura alguma”, conta a hismento desses núcleos urbanos como toriadora e filha de pioneiro, Leiliane sendo de valor histórico abriu espa- Rebouças. “Não podíamos aumentar ço para a especulação imobiliária, a as casas de madeira. Então, às vezes ocupação irregular dos terrenos, as no casebre moravam dez pessoas, da invasões de terras e o descaso, que mesma família”, completa. tirou desses locais os principais traços O tombamento específico para a originais. Vila, no entanto, não impediu a descaracterização do local, que está em Vila Planalto uma área nobre, entre o Lago Paranoá A Vila Planalto é o exemplo mais e a Esplanada dos Ministérios. Como notório da descaracterização. Por os olhos da fiscalização estão mais estar localizada em uma faixa nobre concentrados no Plano Piloto, a Vila atrás da Praça dos Três Poderes e por Planalto chamou a atenção da classe ter servido de acampamento e área média alta, que migrou para lá e levou para alimentação de autoridades, a consigo ameaças ao tombamento. As Vila Planalto ganhou proteção antes casas de três andares passaram a fazer mesmo do tombamento de Brasília. parte da paisagem, além do avanço Mas ainda não a blindou. Foi em 1988 do comércio. que um decreto do então governador Segundo a analista de planejado Distrito Federal, José Aparecido mento e gestão urbana e regional da Oliveira, tombou os acampamentos Subsecretaria de Patrimônio Cultural que constituíam a Vila. O decreto foi e Regional da Secretaria de Cultura

LAR DA Associação de Mães, Pais e Amigos de Reabilitadores de Excepcionais (Ampare)

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Foto: Arquivo Público do Distrito Federal (ARPDF)

Vila Telebrasília

ACAMPAMENTOS DA década de 60

limpar a casa. Pedi pra uma vizinha que também não podia, pedi para um vizinho e então ele convenceu minha mãe”. O que Leiliane e Dona Maria Albaniza não sabiam é que no dia 17 de julho, Sarney desceria pela última vez a rampa do Planalto por questões de segurança. “Nós sentamos em um lugar próximo da rampa que naquela época não tinha grade”, conta e acrescenta “o cordão humano de polícias ia se formando e quando minha mãe me desse um chutinho, eu correria e foi o que fiz”. Em um ato de coragem, Leiliane correu, furou o cerco policial mas primeiramente não chegou a Sarney. Interceptada pela polícia, a carta foi parar nas mãos do chefe de gabinete

da época. “Naquele momento, eu já tinha perdido as esperanças de entregar a carta até a hora que o Sarney saiu do carro e eu fui até ele entregar a carta”. No mesmo dia, um radialista foi até a casa de Leiliane entrevistá-la e então a meta estabelecida havia sido alcançada previamente. “Eu consegui fazer com que todos vissem a Vila Planalto, consegui fazer barulho”. Duas semanas se passaram e então Leiliane recebeu uma carta de Sarney, anexada a uma carta do governador José Aparecido de Oliveira, marcando um encontro com ela que seria então, a representante dos moradores da Vila Planalto. Foi nesse momento, que a história da Vila chegava aos ouvidos dos políticos locais e deu origem ao tombamento. A Vila Planalto originalmente ocupava uma área de 74 hectares. Na época em que o Lago Paranoá foi enchido, parte dos acampamentos foi coberta pelas águas. O conjunto que compreendia a Vila ocupava a área onde hoje estão os anexos dos ministérios, o Senado, o Palácio do Planalto e o Setor de

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Foto: Arquivo Público do Distrito Federal (ARPDF)

O Decreto nº 11.080 de 21 de 1988 também dispõe sobre o tombamento e o assentamento de famílias na Vila Planalto

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Embaixadas e Clubes Norte. As casas de madeira eram construídas em blocos e cada acampamento era separado por grades. O decreto de tombamento da Vila foi assinado em 21 de abril de 1988. Promulgado pelo governador Aparecido, o decreto nº 11.079 assegura as características da Vila Planalto, assim como, a preservação do traçado urbano original e o assentamento de famílias. O tombamento permite intervenções que visem a restauração ou reforma quando necessário a fim de proibir a descaracterização.

OPERÁRIOS CHEGANDO em Brasília

Na extremidade da Asa Sul está outro exemplo deste descaso das autoridades e desconhecimento por parte da população. Quem olha as casas de alvenaria da Vila Telebrasíla nem consegue imaginar que entre 1955 e 1985 as casas de madeira é que tomavam conta da paisagem. O acampamento levantado em meados de 1956, para abrigar funcionários da Construtora Camargo Correia, sofreu em 1985 erradicação quase total. Na época, o governador Joaquim Roriz doou terrenos e determinou que todos deveriam se mudar para o Riacho Fundo. Segundo o morador Francisco das Chagas Chianca, era comum os fiscais baterem à porta dos moradores informando que eles teriam de se mudar em no máximo 24 horas. Era uma situação que misturava desespero e insegurança. A maioria, no entanto, não se adaptou e acabou voltando. A Telebrasília resistiu. O crescimento desordenado da área foi alarmante e, em 1991, pelo menos 1.040 famílias já estavam ali, às margens do Lago Paranoá. Em 2009, segundo a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), a cidade tinha 2.920 habitantes. Foi o último levantamento específico feito lá. Desde então, a Vila Telebrasília passou a fazer parte da administração do Plano Piloto, o que pode contribuir para uma perda ainda mais acelerada da identidade local. Ainda de acordo com Francisco das Chagas, a população vem crescendo visivelmente e recompondo, em quantidade, o que já foi um dia. “A Telebrasília já foi maior. Muitos moradores foram para o Recanto das Emas, Santa Maria e Riacho Fundo”.


ÚNICA CASA original na Vila Saturnino de Brito

Ainda segundo o padre, os moradores locais não possuem interesse em melhorias de infraestrutura como obras de pavimento e instalação de placas. Candangolândia Uma das cidades mais tradicionais do Distrito Federal também evoluiu de um acampamento e está dentro da área tombada de Brasília. É Candangolândia, cujo passado é desconhecido até para grande parte dos 16.848 habitantes registrados pela a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) de 2015. Desmembrada oficialmente do Núcleo Bandeirante, em 1944 pela Lei nº 658,

ANTIGA SUBADMINISTRAÇÃO da Vila Planalto

que a construtora que deu nome ao acampamento era responsável pela companhia de esgoto de Brasília. O acampamento Saturnino de Brito não consta em mapas de Brasília, apesar de possuir Código de Endereço Postal (CEP). Sem registros oficiais, a história do lugar é mantida verbalmente. Uma única casa mantém as características originais de quando o acampamento foi erguido. A família dona do espaço não foi localizada, mas mantém fechada como uma espécie de museu vivo.

de 27 janeiro de 1994, a Canganda como é chamada popularmente comporta uma única igreja como parte do passado. Um dos moradores mais apaixonados pela Candangolândia é um aposentado que insiste em ser chamado pelo nome pelo qual é conhecido por todos: Seu Castelo. Ele tem o mesmo endereço há mais de 40 anos e diz que as melhorias para o local começaram em 1956. “Antes as ruas eram de terra batida e cercas de

arame farpado separavam as casas”, conta Castelo. Há 20 anos, dono de uma mercearia na quadra 1A, o comerciante viu a “Candanga” crescer e afirma que nunca foi intenção dos governantes retirar os moradores do local. “Teve um político específico, um cabra da peste, Bruno Silveira. Ele ajudou muito naquela época e nunca nos tiraram daqui”. Ainda segundo Castelo, algumas figuras importantes para história da Candanga ainda moram pelo bairro como Zé Mineiro, que inclusive participou da construção da Igreja de São José Operário. A Igreja São José Operário veio da demanda dos moradores que tornaram a Candanga uma vila. Era lá que boa parte dos candangos, nome dado aos que vieram construir a nova capital se abrigavam. Erguida pelos próprios moradores, a igreja de madeira ficou pronta em 30 dias. Foi lá que ocorreu a primeira missa de Brasília realizada em 1957. Localizada na quadra 4 na Candangolândia, a igreja foi fechada em 1993 pela Defesa Civil por apresentar desgastes na estrutura. Após 18 anos fechada, ele teve as portas reabertas em 2014, depois de completamente restaurada. O governador da época, Agnelo Queiroz, declarou que a entrega do patrimônio reconstruído, representava um resgate na cultura e história de Brasília. Outras regiões administrativas também estão dentro do mapa de tombamento do Distrito Federal, mas não tiveram acampamentos como origem é o caso do Cruzeiro, cidade fundada em 1959, que não conservam vestígios da época da construção da capital. O mesmo se dá com a cidade Octogonal, fundada em 1989.

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A localização da Vila Telebrasília é o principal atrativo para novos moradores. Conceição Souza é uma dessas pessoas. Ela se mudou para lá há cerca de dois anos, por conta da filha. “Não gosto de andar de ônibus e comecei a trabalhar no Plano. Aqui, minha filha pode brincar na rua com outras crianças e ter uma infância saudável”. Hoje, a especulação imobiliária já alcançou o local e nenhuma edificação de madeira original foi mantida. A Lei n° 161, de 4 de setembro de 1991, regularizou efetivamente as famílias e permitiu a fixação dos moradores. Como havia a preocupação com os padrões existentes em relação à ocupação original, ficou acordado que haveria a manutenção das edificações baixas, sem especificação de andares, presença de vegetação e preservação da rua como espaço de lazer. Uma ocupação conhecida por Acampamento Saturnino de Brito está localizada a poucos metros da Vila Telebrasília. Treze casas constituem o bairro que desde 1956 está de pé, segundo o padre e morador local, Francisco de Assis. “Eu sou o morador mais novo daqui. Moro há 14 anos, mas tem gente aqui que está desde o início”, diz, ao contar


VILA AMAURY, A ATLÂNTIDA BRASILIENSE Há 57 anos, as águas do Lago Paranoá encobrem um bairro inteiro, que chegou a ter 15 mil habitantes

Foto: Cidade encantada – Memórias da Vila Amaury em Brasília, Neiva Ivany

PÂMELA BRASIL

MORAVAM CERCA de 15 mil habitantes na Vila Amaury quando a barragem do lago foi aberta e a água começou a invadir o vilarejo

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m 1957 começava um dos maiores desafios urbanísticos do século: a construção de Brasília. O quadradinho no meio do cerrado goiano foi um compromisso assumido pelo então presidente da República, Juscelino Kubitschek, recebendo operários de todo o país para participar dessa história. A narrativa do Lago Paranoá é, dentre a história da capital, uma das mais distintas. Muitos brasilienses que

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o recebem de braços abertos não sabem que além do esporte, do lazer e da geração de energia hidroelétrica, até os dias de hoje o lago esconde em suas águas segredos e lembranças daqueles que construíram Brasília: a Vila Amaury. Em um breve passeio navegando nas águas do Paranoá o brasiliense não imagina que localizada entre a orla do Iate Clube e o clube Bay Park, próximo ao Palácio da Alvorada, existem destroços submersos de um acampamento que existiu há 58 anos.

Surgida em 1959, a Vila Amaury fazia parte dos diversos acampamentos das empresas construtoras da cidade. O nome do local era em homenagem ao funcionário Amaury Almeida, que trabalhava na Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, a Novacap. Amaury era figura de participação política e liderou o início e a remoção do vilarejo. O professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), Frederico Flósculo, conta que o espaço surgiu como uma extensão


da Vila Planalto, que existe até hoje. “A vila Amaury surge como um backup. Como um acampamento também ligado tanto ao Paranoá e ao hotel Brasília, os trabalhadores estavam divididos em várias obras e havia também uma boa fração dedicada ao Congresso Nacional e a Esplanada”, ressalta. Em reportagem do Correio da Manhã de 3 de setembro de 1960, a vila é tratada pelo governo como favela ou área marginalizada. Segundo relatos de moradores, o local contava

com cerca de 15 mil habitantes, que eram operários e familiares vindos, a maioria, do Nordeste e de Minas Gerais. Na época, diz o professor, a polícia da Novacap agia com bastante violência no local. “Não havia controle. Era uma vila vale tudo. Por se saber que nela havia um prazo de validade, eles toleraram muita bagunça e tolerar bagunça é um problema sério em qualquer sociedade porque isso deixa marcas”, completa Flósculo.

Diferentemente de outros acampamentos, a Vila Amaury era marcada para morrer. Localizada abaixo da cota 1000 – a altitude em relação ao nível do mar – o vilarejo era apenas provisório e seria inundado meses depois com o represamento das águas do Rio Paranoá, justamente para formação do lago de mesmo nome. O cearense Antônio Raimundo de Oliveira veio para Brasília em busca de emprego como carpinteiro na construção da capital federal. Hoje, com

82 anos, recorda impecavelmente: “Eu cheguei em Brasília no dia 17 de setembro de 1957”. Na época, as empresas responsáveis pelas construções na capital disponibilizavam para os homens casados um local para morar. Antônio, que veio para Brasília com o irmão, conta que enviou uma carta à esposa pedindo que viesse com os três filhos. “Minha mulher leu a carta e respondeu: ‘você tá ganhando até bem, mas eu não vou não’, então, eu respondi mais mal criado: ‘se você não vier, aqui

tá cheio de mulher’. E ela escreveu dizendo que vinha para cá”. Morador da Vila Amaury, Antônio lembra que residia em Planaltina quando ouviu murmúrios de que iriam construir uma nova cidade. “Era tempo de eleição, aí eu falei: ‘então nós vamos! ’”, relata. “Era um negocinho de nada, um terreno meio declinado, aí nós fomos para lá sem pagar nada, só construía a casa toda de tábua”. Segundo o carpinteiro, os momentos no vilarejo foram bons financeiramente: “No começo, convidei

meus irmãos, colocamos um bar na Vila Amaury e eu fiz uma casa. Então colocamos [o bar] pra dentro e o movimento foi aumentando”. No início da vila, sequer havia energia elétrica e o número de casas era pequeno. Antônio conta que para gelar as bebidas do bar, ele se deslocava até outra cidade para comprar sacos de gelo. “Não tinha luz. Para funcionar o bar, eu saia da vila e ia para o Bandeirante, nessa época tinha ônibus e eu saia para comprar gelo”, lembra.

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PLANEJADO, O Lago Paranoá nasceu, entre outras funções, para aumentar a umidade de Brasília


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Foto: Arquivo Pessoal / Antônio Raimundo

nhum, só falou na barragem Paranoá, que ficava perto do Hotel Brasília e do Palácio da Alvorada”, desabafa. Já Edivando conta que sabia da existência do lago, pois fazia parte do projeto de Brasília. “A água foi tomando devagarinho, foi tudo planejado. As pessoas foram mudando para Sobradinho, para Planaltina e essas cidades foram se formando por moCOM AS atuais construções na orla do Lago Paranoá, hoje, os radores dessas vilas, como a Amaury”, escombros do vilarejo ficam próximos ao Iate Club de Brasília garante. O lago demorou alguns meses Já o aposentado Edivando Albur- não era como acampamentos priva- para encher completamente, mas a querque, 69, mudou-se do Piauí para dos, qualquer pessoa podia morar lá. água atingiu a Vila Amaury em cerca Brasília com a família, já que o pai veio “A vila existiu, é realidade. Era uma de algumas semanas pela proximitrabalhar na construção da capital. cidade com tudo, com cinema, com dade com a barragem do Paranoá. “Quando eu cheguei em Brasília em comércio. Era uma cidade boa mes- “Quando foi perto de 1960 veio a con1959 a vila já tinha começado. A vila mo”, completa Edivando. versa do lago, que tinha que mudar foi feita para abrigar os trabalhadores. de lá e foi do dia para a noite, a água E a água levou Lá perto tinha a Vila Planalto, que já tomava uma rua, aí quando era no era uma cidade organizada e ela foi O lago fazia parte do planejamen- outro dia a água tomava outra rua”, crescendo desorganizadamente e foi to de Brasília, porém, mesmo com a recorda Antônio Raimundo. nascendo essa vila, a Vila Amaury”, construção da barragem do Rio PaQuando as águas foram subindo, ressalta. ranoá, nem todos os moradores da os funcionários da prefeitura ofereceNa época, com 12 ram moradia em outros loanos, o piauiense pascais da capital para os operá"A Vila Amaury foi a vila do sumiço. sou parte da adolesrios e familiares morarem. As Sumiu muita coisa ruim de Brasília cência na vila e com cidades da época que mais entusiasmo destaca receberam os operários fono Lago Paranoá” as boas lembranças: ram Sobradinho, Taguatinga Frederico Flósculo, 52 anos “Todo domingo a gene Planaltina. te ia para o cinema. Eu "Os empregados da prenão me esqueço de jeito nenhum. A Vila Amaury tinham conhecimento da feitura perguntavam se queríamos ir gente tinha muita revista em quadri- inundação. Há relatos dramáticos da para Taguatinga ou Sobradinho, aí eu nhos e ia para a porta do cinema para época, de pessoas que não queriam falei que queria ir para Sobradinho", trocar. Era uma maravilha, para mim a sair do lugar. Foi então que, após as recorda Antônio. Edivando também recordação era ótima”. chuvas de 1961, o Lago Paranoá nas- mudou-se para lá: "Nós moramos lá e O acampamento era extenso e ceu, submergindo parte da história. depois fomos para Sobradinho com a possuía comércios movimentados A população foi evacuada antes do consequencia do alagamento. A água com bares, padarias, cinema e igrejas. alagamento. ficou bem pertinho da minha casa". Em função das grandes obras, à mediAntônio Raimundo diz que os Cidade submersa da que novos canteiros eram abertos, moradores não sabiam que o local mais pessoas chegavam aos espaços onde moravam seria o Lago Paranoá. Jullior Moura, 44, é instrutor de próximos de moradia. De acordo com “Ele [Amaury] não falou que iam fa- mergulho há 10 anos em Brasília. Já os moradores da época, a Vila Amaury zer o lago não. Não falou em lago ne- fez diversos mergulhos onde a Vila

ANTÔNIO RAIMUNDO, hoje e em foto de 1959 (1° adulto da dir. para a esq.) junto com amigos na Vila Amaury

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EDIVANDO VEIO do Piauí


Antônio Raimundo, 82 anos

Amaury era localizada e faz um trabalho de proteção da memória no local, guardando objetos e protegendo o espaço no fundo do lago. No local, detalha o mergulhador, não existe mais a cidade formada, restam apenas alguns objetos e parte de construção, como paredes e tijolos. “O pessoal acha que há cidade ainda lá. Não tem a cidade, se você pegar as fotos você vai ver que eram casebres. Muita coisa caiu”, completa. Jullior explica que no fundo do Paranoá surge naturalmente uma camada de sedimento gerada pela decomposição de materiais orgânicos. Ele acredita que ainda há muitas lembranças escondidas que ninguém teve acesso. “Tem locais que a gente enfia o braço inteiro de sedimento, então, o que está ali debaixo de todo esse sedimento com um ou três dias já cobriu tudo. Tem muita coisa que está perdida lá”, especula. Pouca coisa restou nos mais de

50 anos de história. “A água vai fragilizando, você vê que é alvenaria, muita coisa era de madeira. Muitas coberturas dos barracos ou mesmo as laterais eram feitas de saco de cimento”, acrescenta Jullior. Entre o que está escondido no fundo do lago, o professor Frederico Flósculo aposta na possibilidade de corpos humanos. “Eu tenho a especulação de que a Vila Amaury também recebeu cadáveres. Há um campo de morte na Vila Amaury e esse campo de morte é muito conveniente, porque ele ficaria submerso”, justifica. Depois de tantas décadas, os ex-moradores da Vila Amaury estão dispersos e sem contato. Antônio mora com a família em Planaltina, enquanto Edivando vive em Valparaíso, entorno do Distrito Federal. Em suas bagagens sobraram fotos e a recordação de uma cidade que hoje está sob as águas – como a lendária Atlântida dos contos gregos. Flósculo diz que o espaço funcionou como uma espécie de cemitério: “A Vila Amaury foi a vila do sumiço. Sumiram muitas coisas ruins de Brasília no Paranoá”. O lago esconde em sua imensidão sonhos e histórias de um povo que não só viu, mas que participou desta narração. Na trajetória da capital planejada, nasceu e morreu a Vila Amaury. A vila se foi, mas a memória permanece no fundo das águas de Brasília.

Fotos: Jullior Moura

“(...) E foi do dia para a noite, a água tomava uma rua, aí quando era no outro dia, a água tomava outra rua”

EMBAIXO D'ÁGUA ainda podem ser encontrados destroços da Vila Amaury

PARA APROFUNDAR A HISTÓRIA

A publicação detalha as lembranças dos moradores, que classificam a vila como “cidade encantada”. O livro digital, apresentado pelo Fundo de Apoio à Cultura – FAC-DF está disponível para download gratuito no site issuu.com.

Já o livro em quadrinhos “Thalija: Aventuras Brasilienses. Em busca da cidade oculta” do professor Frederico Flósculo, descreve a aventura imaginária da adolescente Thalija, que decide desvendar os mistérios mais dissimulados da história da construção de Brasília. redemoinho . ano 08 . número 12

Em abril de 2017, a escritora Ivany Câmara Neiva lançou o livro digital “Uma cidade encantada. Memórias da Vila Amaury em Brasília”. A obra, divulgada como parte das comemorações do 57° aniversário da capital federal, narra a vivência e memória de sete ex-moradores da vila Amaury. A vila foi parte de estudos realizados pela autora levantando o debate sobre o impacto social da construção da barragem Paranoá e o sumiço do vilarejo.

O autor, de forma crítica e criativa, faz referências a questões urbanas e políticas de Brasília e a descoberta de uma cidade no fundo do lago: a vila Amaury. Todo escrito e desenhado à mão, a HQ brasiliense pode ser encontrada nas livrarias Cultura e Dom Quixote ou diretamente com a editora Kiron, no valor de R$40,00.

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A PRAÇA DO JOGO DE PODERES

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omo a palma da mão que se abrisse além do braço estendido da esplanada onde se alinham os ministérios, porque assim sobrelevados e tratados com dignidade e apuro arquitetônicos em contraste com a natureza agreste circunvizinha, eles se oferecem simbolicamente ao povo; votai que o poder é vosso”. Assim, Lúcio Costa imaginou a Praça dos Três Poderes, sede dos poderes da República Federativa do

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Brasil – Executivo, Legislativo e Judiciário. Cheia de simbolismos, a praça é impossível de ser ignorada. Quem visita Brasília se impressiona com a beleza e a imponência das obras de Oscar Niemeyer. O céu de Brasília é riscado pelo Congresso Nacional, que emerge no centro da Esplanada dos Ministérios com seus 28 andares e as duas cúpulas invertidas. A sede do Poder Legislativo é um dos três vértices do triângulo equilátero desenhado por Lúcio Costa para representar o ideal de uma república igualitária e democrática.

No século 18, momento de declínio do absolutismo europeu, surge a Teoria da Separação dos Poderes, imortalizada na obra “O espírito das leis”, escrita em 1748 pelo filósofo francês Charles Montesquieu. Consagrada nas ciências políticas como mecanismo de freios e contrapesos, a teoria foi pensada para que os três poderes da República fossem harmônicos e independentes, sem que um deles pudesse impor a sua vontade sobre os demais e, assim, evitar que os regimes autoritários ou ditatoriais germinassem na República.


Projetado por Lúcio Costa em triângulo – de acordo com o ideal iluminista em que a República possui poderes harmônicos, independentes e equilibrados – local é cenário de um jogo, onde a beleza das obras-primas de Niemeyer contrasta com interesses escusos e práticas nada republicanas

Lúcio Costa, quando imaginou a nova capital do país, inspirado pelo pensamento iluminista, desenhou o triângulo na base da grande esplanada destinada às atividades políticas, cerimoniais e culturais, representando fisicamente que Legislativo, Executivo e Judiciário são a sustentação da República brasileira. “De todos os projetos apresentados, o de Lúcio Costa era o projeto a ser escolhido por causa da força simbólica que Brasília passou a assumir como representante da nacionalidade brasileira”, afirma o professor Frederico de Holanda, da Faculdade

de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Nos outros dois vértices, obras-primas de Niemeyer flutuam. De um lado, a sede do Poder Executivo, o Palácio do Planalto, e a sede do poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF). “A contribuição de Niemeyer é muito interessante porque ele minimiza dos atributos de formalidade. Historicamente, os palácios estão em um nível superior, acessíveis por uma escadaria. Oscar projeta o Supremo e o Palácio do Planalto ligeiramente elevados do chão, para fazer a separação entre dentro e

fora. Isso é um toque de formalidade, mas é sutil e o acesso é por rampa”, explica Holanda. O professor Frederico Flósculo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), complementa. “Lúcio Costa dá simplicidade aos palácios e os desenha pequenos e em formato de paralelepípedos. Oscar Niemeyer, no entanto, os faz à sua maneira. Fez os palácios como caixinhas, soltas no ar. Com uma varanda brasileira, não são caixinhas fechadas, são caixinhas que respiram. Lá dentro tem outra caixinha de vidro, que é a caixinha da transparência”.

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OHANNA PATIELE


PALÁCIO DO Planalto, sede do Poder Executivo, foi projetado ligeiramente elevado do chão, com acesso por rampas

Flósculo destaca a sinergia entre Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, que trabalharam juntos quando o primeiro era recém-formado. A amizade quase foi impeditivo para que Lúcio Costa participasse do concurso. Por Niemeyer ser presidente do júri, Costa recusou os convites que recebeu. Mudou de ideia e foi o último a protocolar a proposta, enviada através da filha, Maria Elisa Costa, na noite do dia 11 de março de 1957. A despeito das reclamações e boatos de favorecimentos, é unânime o brilhantismo do projeto apresentado por Lúcio Costa. “Ele apresenta um verdadeiro documento de civilização, de uma beleza literária e clareza de ideias impressionantes”, afirma Frederico Flósculo. Niemeyer interpreta os traços muito preliminares desenhados por Lúcio Costa e faz modificações importantes. No desenho original, Costa prevê apenas uma torre e uma cúpula para o Congresso Nacional. Como o Brasil tem um Poder Legislativo em sistema bicameral – composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal – Oscar Niemeyer duplica as torres e as cúpulas, invertendo uma delas. Frederico Holanda conta ainda que Niemeyer teve que alargar a Esplanada dos Ministérios significativamen-

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PRAÇA DOS Três Poderes tem o formato de um triângulo equilátero, como mostra foto aérea da época da construção

Foto: Mauro Fontenelle

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te para caber a sua interpretação do prédio do Congresso Nacional. “Lúcio tinha definido o prédio na dimensão maior Leste-Oeste. Oscar girou o Congresso Nacional em 90º, com a fachada maior Norte-Sul, que define o espaço da praça melhor que a proposta inicial”. Outras alterações realizadas por Niemeyer são explicadas pelo arquiteto Francisco Lauande, que estudou a Praça dos Três Poderes na sua dissertação de mestrado na UnB. No projeto inicial, o trânsito de veículos seria mais integrado à praça, como em algumas praças europeias, apenas com um desnível demarcando o espaço dedicado aos carros. Oscar Niemeyer preferiu o desenho do Eixo Monumental passando entre o Congresso e o grande espaço branco da praça. A posição do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal foi invertida por questões de segurança. “Ali (Eixo Monumental) é uma artéria da cidade, facilita o deslocamento em caso de um sinistro, de uma emergência, de uma necessidade de retirar o presidente”, justifica. Entre o ideal e a realidade O ideal de equilíbrio e harmonia, entretanto, não pôde ser alcançado apenas pela força do simbolismo impresso na praça. O sistema de freios e contrapesos prevê funções específicas para cada um dos poderes da República e formas de fiscalização entre eles, como explica o vice-diretor do Instituto de Ciências Políticas da UnB, Aninho Irachande. O Poder Executivo é o poder administrativo, executor da vontade geral da população, que deve ser expressa por um outro poder, o Legislativo. Para as duas casas do Congresso

Nacional são eleitos representantes do povo – deputados – e das unidades da federação – senadores – que transformam a vontade popular em normas, que devem ser obedecidas por todos, incluindo eles mesmos. As normas aprovadas pelo Congresso Nacional devem ser validadas pelo chefe do Poder Executivo e as ações deste são fiscalizadas pelo Legislativo. Como não é adequado que o controle dessas normas fosse feito por aquele que as propôs, o Poder Judiciário é responsável pelo cumprimento da Constituição, pela aplicação das normas e pela garantia que a proposta do legislador não impõe abusos sobre outros segmentos da nação. “É um sistema para evitar que um dos três poderes possa exacerbar a sua função a ponto de suplantar os outros dois. Por isso, a melhor representação disso é uma distância razoavelmente equilibrada entre os poderes ao mesmo tempo uma vigilância razoavelmente equilibrada”, afirma Irachande. A política brasileira tem algumas particularidades que abalam o equilíbrio entre os poderes. Uma delas são as coligações, que podem ser formadas durante o processo eleitoral ou em votações importantes no Congresso Nacional. Aninho explica que nenhum partido político conseguiu chegar ao poder sem se aliar a outros, o que acaba gerando uma interferência mútua entre os poderes Legislativo e Executivo. O fruto dessas coligações são indicações para que membros do Legislativo chefiem ministérios, autarquias e fundações do Poder Executivo. O cientista político David Fleischer, professor emérito da UnB, compara o


Brasil com os Estados Unidos, nação período de ditadura militar. Pensadas por ministros indicados pela Presidênque também adota o sistema de freios como medidas extraordinárias, para cia da República, aprovados pelo Senae contrapesos. Explica que no modelo casos que exigissem certa urgência, do Federal, o que impõe ao Judiciário norte-americano o presidente precisa são utilizadas com frequência pelo grande influência política. de aval do Senado para a nomeação Poder Executivo porque a vontade “Não há nada que impeça que os de ministros de Estado integrantes do STF sejam e para alguns cargos escolhidos pelo mérito do “É um sistema para evitar que um dos do segundo escalão. concurso público. Imagino três poderes possa exacerbar a sua função que não ter uma ligação diOutra diferença é que para assumir um cargo reta com os demais podea ponto de suplantar os outros dois” no Executivo, um parres pode dar uma indepenAninho Irachande, cientista político lamentar americano dência maior para julgar deve renunciar ao carde acordo com as normas”, go para o qual foi eleito no Legislativo. do presidente passa a ter força de lei afirma o professor Aninho. "O presidente brasileiro tem po- a partir do momento em que são asDavid Fleischer discorda. "Isso iria der para nomear 25 mil cargos, sem sinadas. ferir o equilíbrio entre os três poderes, qualquer confirmação do Senado. Nos “A medida provisória é um qui- tirando do Executivo a prerrogativa Estados Unidos, devem ser 2 ou 3 mil nhão adicional ao Executivo de um de indicar e do Senado de confirmar cargos. São fichas que o presidente poder de legislar. Essa medida pode- a indicação". pode jogar para tentar angariar apoio ria não ter esse efeito se o Congresso A demora para a aprovação de leis dos partidos", destaca. Nacional tivesse uma pauta própria e pelo Legislativo também abre brechas Outras fichas que o presidente bra- independência suficiente, e pudesse para que o Judiciário se pronuncie em sileiro tem para jogar são as emendas apreciar a proposta em tempo hábil questões que deveriam ser normatizaparlamentares. Nos Estados Unidos, o para rejeitá-la ou transformá-la em das pelos representantes da vontade orçamento aprovado pelo Congresso lei”, diz Irachande. Como costumam popular. não pode ser alterado pelo presidente. ser apreciadas muito tardiamente, o "Temos no país a judicialização da "No Brasil, o presidente mexe a vonta- Congresso se pronuncia sobre uma política, quando o STF chega a conde e pode liberar a emenda para gastar medida que já está em vigor. clusão que o Congresso Nacional não se o deputado for bonzinho. Se não quer ou não tem condições de aprovar Teia de barganha for bonzinho, não libera. É um poder algo importante. Então, o Supremo desobre o Congresso", diz David. O menor prédio da Praça dos Três cide algumas questões que afetam o Outra interferência entre os po- Poderes não escapa da interferência país", explica Fleischer. deres Legislativo e Executivo são as imposta pelos outros dois poderes. O Em 2015, por exemplo, o Supremedidas provisórias, um resquício do Supremo Tribunal Federal é composto mo decidiu que doações de pessoas

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NIEMEYER INTERPRETOU os traços preliminares desenhados por Lúcio Costa. Nos estudos originais, Costa previu apenas uma torre e uma cúpula para o Congresso Nacional

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PODER JUDICIÁRIO sofre grande influência política, já que seus membros são indicados pelo Executivo, com aval do Legislativo

morosidade de um processo. Uma das formas que o Legislativo e o Executivo interferem no Judiciário é com a indicação dos integrantes. Então, veja que é uma teia de barganha”, assevera. Francisco Lauande arremata. “Costumo dizer que a arquitetura do Niemeyer e o pensamento do Lúcio Costa estão muito a frente do tempo, de um país que ainda não aconteceu. Havia naquela geração muito mais ética e mais respeito, era uma geração mais comprometida com o futuro do país, idealista, que achava que Brasília seria um marco, um divisor de águas entre o país atrasado e o país desenvolvido”. Espaço do povo

jurídicas para campanhas eleitorais administração federal, e os dois, por são inconstitucionais, algo que afe- sua vez, decidem quem compõe o ta diretamente o processo eleitoral. Poder Judiciário. O STF também decidiu pela consAninho Irachande afirma que se titucionalidade das pesquisas com trata de uma verdadeira queda de células-tronco e atualmente debate braço, mas com interesses espúrios, sobre a legalização do aborto até a onde a discussão não é sobre o que é 12ª semana de gestação, temas con- benéfico para o país e sim sobre cartroversos para o Congresso Nacional. gos, salários e privilégios. "A nos“Uma sa Suprema das formas “É preciso ter espaços para Corte é bem que o Execupolitizada que a República se realize. Ali tivo se utiliza e, de certa para pressio(praça) é a representação e a nar o Parlamaneira, moderna. mento é a realização da República” Um exemdistribuição Frederico Flósculo, arquiteto e professor da UnB plo são as de cargos, transmisindependensões ao vivo te da quadas sessões através da TV Justiça. O lificação dos governantes. Uma das Supremo americano é muito fecha- formas que o Legislativo utiliza para do, as decisões são à portas fecha- pressionar o Judiciário é o controle de das", afirma David Fleischer. orçamento, de aumento de salários. Em resumo, o Poder Executivo le- O Judiciário pressiona o Legislativo gisla através das medidas provisórias, e o Executivo com o julgamento de o Poder Legislativo chefia órgãos da conveniência, apressando ou com a

A praça é o terceiro ponto turístico mais visitado da cidade, ficando atrás apenas da Catedral e da Torre de TV. Em 2016, mais de 153 mil pessoas assinaram os livros de visitantes dos monumentos da praça. O prédio mais visitado é o Congresso Nacional, que recebeu mais de 118 mil visitantes em 2016, segundo dados do Observatório do Turismo do Governo do Distrito Federal. “Eu queria que a Praça dos Três Poderes fosse um (palácio de) Versalhes, não um Versalhes do rei, mas um Versalhes do povo, tratado com muito apuro”, afirmou Lúcio Costa ao projetar a Praça dos Três Poderes. Entretanto, Frederico Holanda afirma que é necessário tomar cuidado com os discursos. O isolamento da área dedicada às atividades político-administrativa é próprio das sociedades mais desiguais. A Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes não integram a cidade, são um “penduricalho”, uma península morfológica. Opinião reiterada por

PRAÇA DOS Três Poderes é o terceiro ponto turístico mais visitado da cidade. Perde apenas para a Catedral e para a Torre de TV redemoinho . ano 08 . número 12 63


A PRAÇA DA CULTURA

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NA PRAÇA branca, sem árvores, a história de Brasília também é guardada. No centro, de frente para o Congresso Nacional, o Museu da Cidade (1), o mais antigo de Brasília, guarda a história da transferência da capital, desde os tempos do império. NO SUBSOLO, o Espaço Lúcio Costa (2) abriga uma maquete gigante e reproduções dos desenhos originais do projeto urbanístico tombado como patrimônio da humanidade. A CASA de Chá (3) já foi um ponto de encontro da cidade e atualmente abriga um Centro de Atendimento ao Turista. O POMBAL (4) foi feito por Oscar Niemeyer a pedido da esposa do presidente Jânio Quadros, Eloá, que acreditava que uma praça deveria ter pombos. O MASTRO da Bandeira (5), construído durante a ditadura militar, com cem metros de altura, sustenta um exemplar de 286 m². O PANTEÃO da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves (6) homenageia os heróis da pátria em seu livro de aço. Atualmente, 31 heróis estão inscritos no

livro. A construção do monumento é criticada por fechar a praça, que deveria ter visão aberta para o cerrado no projeto inicial de Lúcio Costa. A PIRA da Pátria compõe o conjunto do Panteão, e a sua chama deveria arder incessantemente, mas, devido a um vazamento de gás, está apagada desde fevereiro de 2017. De acordo com a diretora do Centro Cultural Três poderes, Jussara Menezes, a previsão é que a chama seja reacendida no segundo semestre. AINDA SE somam ao conjunto obras de arte como a escultura A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, em frente ao STF (7); a escultura Os Guerreiros ou Os Candangos, de Bruno Giorgi, que homenageia os construtores da cidade (8); os bustos de Juscelino Kubitscheck (9), Israel Pinheiros (10) e de Tiradentes (11); e o Marco Brasília (12), obra de Oscar Niemeyer em comemoração ao tombamento do plano piloto como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

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Frederico Flósculo, que considera o plano piloto um “broche” na cidade, que se estende para os bairros e para as cidades-satélites. “Nas passeatas de 2013, o grito era ‘Vem Pra Rua’. Quando você tem a mesma passeata na Esplanada dos Ministérios, qual é o sentido do grito? Você está gritando para quem? Começa que as empenas são cegas. Segundo, você só tem funcionários, então você não tem um público. Você pode exercer democracia, mas você tem restrições. Você tem reverberações que são diferentes qualitativamente de uma passeata que se dá na Avenida Rio Branco ou na Avenida Paulista em São Paulo”, explica Holanda. O mobiliário minimalista, a falta de iluminação durante a noite e as cercas instaladas na praça também são criticadas pelos arquitetos. Holanda relembra que o prédio do Congresso Nacional foi projetado para ser acessado de inúmeras formas, pela entrada inferior, conhecida como chapelaria, pela rampa, pelo teto que se conecta ao Eixo Monumental pelas pontas, mas grande parte delas é restrita ao público. Flósculo defende estudos para a instalação de equipamentos na área central de Brasília, como auditórios para reuniões públicas e colegiadas, centros culturais. “É preciso ter espaços para que a República se realize. Ali é a representação e a realização da República”. O Centro Cultural Três Poderes, vinculado a Subsecretaria do Patrimônio Cultural, da Secretaria de Cultura do Governo de Brasília, trabalha em iniciativas para trazer as pessoas para a praça. O projeto Visitando a Praça, Conhecendo Brasília e o projeto Turismo Cívico são voltados para a rede pública de ensino. A professora Keyla Guerreiro conta que, em 2016, cerca de 17 mil estudantes visitaram a praça. O projeto Poderes com Arte promove eventos culturais na praça. Entre maio e setembro, em parceria com o Sesc Cineclub, o Centro Cultural realiza sessões de cinema ao ar livre, todas as sextas-feiras a partir das 19h30. A entrada é gratuita.


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MANÉ GARRINCHA TEIMA EM EXISTIR A história do estádio foi construída com esporádicos momentos de glória e muita solidão

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MAURO JÁCOME

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Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

O PROJETO inicial do Mané Garrincha era para 120 mil pessoas

Foto: Arquivo Público do Distrito Federal

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m estádio para cento e vinte mil pessoas nos anos 70, quando Brasília nem campeonato de futebol profissional tinha? Uma arena com capacidade de mais de setenta mil pessoas para somente sete jogos na Copa do Mundo? Desde a ideia inicial, há mais de quarenta anos, até a concretização do sonho de sediar jogos do maior torneio de futebol do mundo, o Mané Garrincha foi cercado de questionamentos. Embalado pelo ufanismo do “milagre econômico” disseminado pelo regime militar, pelo tricampeonato no México, pela inclusão de um time do Distrito Federal no campeonato nacional, o projeto de um estádio para cento e vinte mil pessoas começou a ganhar corpo no início da década de 70. Se hoje os números seriam absurdos, imagina naqueles tempos! O censo demográfico do IBGE de 1970 apontava 537.492 habitantes no Distrito Federal. Para lotá-lo, aproximadamente 20% de todos os brasilienses estariam no estádio. Comparativamente, é como se hoje São Paulo, a cidade mais populosa do Brasil, tivesse um estádio com capacidade para 2,4 milhões de torcedores. Antes do início da obra, o Correio Braziliense fez questionamentos sobre o projeto: “Pergunte-se apenas se é válido o alto investimento exigido pela obra, dadas as peculiaridades de Brasília. Pergunte-se se vale a pena construir um grande estádio se não temos grandes clubes. Pergunte-se se os pequenos campos existentes não são suficientes para abrigar meia dúzia de espectadores”. Útil ou não, o governador Hélio Prates da Silveira iniciou a obra em

JOGO ENTRE Corinthians e Ceub em 19marcou inauguração do estádio

Nos primeiros anos de vida, o gramado do então Silveirão foi pisado por craques do nível de Pelé, Rivelino, Paulo César Caju e Falcão 1973. A primeira etapa, para comportar “apenas” 60 mil pessoas, seria a construção da arquibancada inferior e de três dos quatorze módulos da arquibancada superior. Seiscentos operários teriam cento e cinquenta dias para entregar essa etapa. Baixou a bola Ainda inacabado, o Estádio de Futebol Presidente Médici, primeiro nome oficial, foi inaugurado em 10 de março de 1974: o Corinthians venceu o Ceub por 2x1. O governador Elmo Serejo engavetou as outras etapas da obra. Para ele, a capacidade para 60 mil estava de bom tamanho. Investiu, então, na construção de praças esportivas mais modestas nas cidades-satélites. O narrador esportivo Kleyber Beltrão entende que, ainda assim, “era um estádio grande demais para o futebol daqui” e lembra que o Pelezão (demolido em 2004) tinha sido reformado em 1973 para receber jogos do campeonato brasileiro. Com novo nome, Hélio Prates da Silveira, o estádio era utilizado pelo Ceub para os campeonatos brasileiros e para amistosos. Nos seus primeiros anos de vida, o gramado do Silveirão foi pisado por craques do nível de Pelé, Rivelino, Paulo César Caju, Falcão.

Durante a realização do primeiro campeonato brasiliense de futebol profissional, em agosto de 1976, uma tragédia marcou Brasília: morreu Juscelino Kubistchek num acidente automobilístico. O Correio Braziliense, com a manchete “Juscelino, o eleito do povo”, noticiava que a cidade, comovida, parara para dar adeus ao seu fundador. Em campo A cidade ganhou importantes obras na transição de uma década para outra: o Parque da Cidade, o Teatro Nacional e o Memorial JK. O Silveirão, abandonado há sete anos, foi recuperado e voltou a ser utilizado em 84. Com o fim da ditadura, o estádio trocou de nome. Entrou em campo quem nele era artista: o “anjo das pernas tortas”, Mané Garrincha. Tentava-se dar um ar meio de circo, meio de magia, inteiro de alegria, aos novos tempos da capital federal. Depois de 86, por doze anos, o Distrito Federal não teve representante na primeira divisão. O Mané Garrincha foi utilizado no campeonato local e com públicos pequenos. Para quem passava por ali, a visão era de estacionamento cheio, não de carros de torcedores, mas de ônibus de transporte coletivo alinhados lado a lado como


se assistissem a um imaginário jogo. Em meio ao funcionamento da Assembleia Nacional Constituinte, para a elaboração de uma Carta Magna que adequasse o país à normalidade democrática, Brasília foi inscrita na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. A partir do dia 7 de dezembro de 1987, tornou-se Patrimônio Cultural da Humanidade e recebeu a responsabilidade pela preservação dos bens que justificaram o título. Vários shows eram realizados no Mané Garrincha e o mais marcante foi o do Legião Urbana, em 1988. Criou-se muita expectativa porque a banda, com origem na cidade, ganhara imensa fama e o momento

político era propício para se ouvir, na corte de José Sarney, músicas do estilo de “Que país é este?”. No entanto, Renato Russo se desentendeu com o público e aconteceram cenas de vandalismo dentro e fora do estádio. Aquilo não era aderente ao título que a cidade recebera seis meses antes. Com a escassez de futebol no Mané Garrincha na década de 90, não é fácil encontrar um brasiliense que se lembre do estádio naquela época. O professor de português Filemon Félix, 58, tem poucas recordações, exceto de um Fla x Flu, em 97. Segundo o professor, o Rio de Janeiro estava em baixa no futebol

e os times vieram jogar em Brasília. O Gama resgatou um pouco do orgulho do torcedor ao fazer uma brilhante campanha na segunda divisão do Brasileiro de 1998 e conseguiu o feito de colocar na final, contra o Londrina, mais de 51 mil pessoas no estádio num jogo que não envolvia time do primeiro escalão do futebol nacional. Até 2002, o Gama realizou mais de trinta partidas no Mané Garrincha e muitas delas arrastaram bons públicos. Em 2005, o Brasiliense foi o último representante do Distrito Federal na primeira divisão nacional, no entanto, jogou somente três vezes no Plano Piloto.

Tudo novo

Foto: Gabrielly Pimentel

Para a Copa do Mundo de 2014, Brasília foi escolhida como uma das doze cidades-sede e teria sete partidas. A ideia inicial para o novo estádio era de aproveitamento das estruturas existentes. No entanto, a Fifa exigiu que o público ficasse mais próximo

EDNALDO TRABALHOU na construção da arena para a Copa 2014

ao gramado, logo, a pista de atletismo não poderia fazer parte do projeto. As arquibancadas teriam que ser demolidas e reconstruídas. O campo de jogo seria rebaixado em cinco metros para manter a visibilidade do torcedor. As obras do novo Mané Garrincha foram iniciadas em outubro de 2010. O geólogo Luiz Gustavo Freitas é funcionário da Novacap e fiscalizou a obra. Ele destaca a dificuldade para pôr abaixo o antigo estádio: “Tentou-se implodir três vezes por dinamite. Aquelas estruturas feitas na época do regime militar eram tão fortes que não foi possível, teve que ser por máquina”. O pintor industrial Ednaldo de França Bezerra trabalhou na reconstrução do Mané Garrincha. “Eu sentia orgulho, muita alegria, pois as pes-

soas olhavam para nós com outros olhos”. Hoje, não tem o mesmo orgulho, “pois sei que ali teve muita corrupção”. Indagado se acha o estádio muito grande, Ednaldo mata no peito e bate de primeira: “Para uma cidade que não tem time foi ruim”. A cerimônia de inauguração foi realizada em 18 de maio de 2013. No mesmo dia, ocorreu o primeiro jogo de futebol no estádio: Brasília e Brasiliense, pela final do campeonato local. Quem vem de fora para trabalhar no Mané Garrincha gosta do que vê, apesar de algumas críticas. A repórter do Esporte Interativo, Monique Danello, reclama da tribuna de imprensa escrita e de rádio que fica localizada num ponto muito alto do estádio. Por outro lado, faz elogios: “Tudo funciona muito bem, nunca tivemos proble-

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QUEM PASSA pelo estádio fica encantado com a beleza


Vai ter Copa Um ano antes da Copa do Mundo de 2014, o país vivia momentos de pressão vinda das ruas. Desde o fora Collor de 1992, Brasília não era chacoalhada por manifestações de cunho político com tamanha força. O momento fez crescer dois grupos: “Não vai ter Copa” versus “Vai ter Copa”. Nas escolas, nas ruas, campos, construções, estendendo-se aos bares, ofícios e outros mais, debatiam-se os prós e contras. Venceu a Copa. A construção do Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha e a expectativa pela Copa mexeram com o brasiliense. A empolgação era tanta que houve quebra de recorde de público

Foto: Filemon Félix

mas, é um estádio em que eu gosto de trabalhar”. Paulo Vinícius Coelho, comentarista da Fox Sports, já esteve no Mané Garrincha algumas vezes. Ele se diverte com o tamanho do local: “Brinquei na Copa que a gente anda tanto que fica até com a perna torta. Por isso que se chama Mané Garrincha”. No entanto, PVC faz ressalvas: “O problema é que você vê o superfaturamento. Você vê a qualidade inferior ao que tem no Maracanã e é o estádio que custou mais caro. O Mineirão foi mais barato e é mais funcional”. O relatório da auditoria permanente do Tribunal de Contas do Distrito Federal, com as contratações efetivadas até fevereiro de 2014, aponta o custo da obra para R$ 1.607.792.216,99. A capacidade do estádio é de 72.788 pessoas, sendo assim, cada assento tem um valor simbólico de mais de R$ 22 mil.

BOLA QUE o Cristiano Ronaldo chutou caiu no colo do Professor Filemon

envolvendo clube do Distrito Federal: no dia do aniversário de Brasília de 2014, pela Copa Verde, 51.701 pessoas foram presenciar o Brasília ser campeão em cima do Paysandu. Rolou a Copa do Mundo e multidões de brasileiros e estrangeiros frequentaram o Mané Garrincha, proporcionando um público médio de 68 mil. O novo estádio colocou o futebol visto da arquibancada numa evidência que nunca tivera antes na capital. O reforço veio em 2016 com as Olimpíadas: Brasil x África do Sul levou o maior público que o Mané Garrincha já teve: 69.389 torcedores. O professor Filemon se empolgou com o novo Mané Garrincha e tinha um propósito de vida: “Quando o Brasil era candidato a sediar a Copa, meu sonho era não morrer antes”. Realizou. Dilema Passado o frisson da Copa e das Olimpíadas, o Mané Garrincha voltou à dura realidade. Nas partidas reali-

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JOGOS PELO Campeonato Brasiliense de 2017 tiveram média inferior a 900 pagantes

zadas pelo campeonato brasiliense a ocupação do estádio tem sido baixíssima. No Candangão 2017, por exemplo, foram realizados 17 jogos com média inferior de 900 pagantes. Neste ano, a rotina foi quebrada duas vezes com jogos entre equipes de fora, ambos com públicos superiores a 20 mil pessoas. Essa diferença é o centro de um dilema: a vinda de partidas de outros estados. O abismo entre os números leva a crer que, para o Mané Garrincha, a presença dos times dos grandes centros é questão de sobrevivência. Há uma corrente que defende a proibição da venda do mando de campo. Paulo Vinícius Coelho apoia e exemplifica: “O Flamengo tem que jogar no Rio de Janeiro, o Vasco também”. Kleyber Beltrão vê que os jogos de outros estados são a salvação para o futebol, “além da importância para toda a cadeia - hotéis, restaurantes, taxis, manutenção do Mané Garrincha”. O desenvolvimento do futebol local diminuiria a dependência externa. O presidente da Federação Brasiliense de Futebol, Erivaldo Alves Pereira, atribui ao Mané Garrincha o papel de fomentador. “A sua utilização assídua atrai mais torcedores e, com isso, o desenvolvimento do futebol será cada vez mais viável”. O presidente afirma que é imperativo que os clubes montem bons elencos e se organizem para atrair os torcedores. O êxito de qualquer esporte depende da imprensa, dos clubes e da federação. Essa é a opinião de Kleyber Beltrão. O narrador diz que a sensação num estádio vazio é ruim: “Narrar


Iniciativa privada O Mané Garrincha é um dos três estádios da Copa do Mundo administrados pelo poder público. A Arena da Amazônia e a Arena Pantanal são os outros dois. No caso de Brasília, o estádio está sob a administração da Secretaria do Esporte, Turismo e Lazer. Segundo o órgão, as despesas mensais giram em torno de R$ 700 mil e a receita total do ano de 2016 foi de pouco mais de R$ 1,7 milhão.

PÉRICLES, UM PIONEIRO

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O prejuízo com o estádio foi considerável: aproximadamente, R$ 550 mil mensais. Com o evidente desequilíbrio nas contas, a transferência da administração do estádio para a iniciativa privada, com o consequente alívio nas contas do governo, pode ser uma opção. No entanto, não é um processo simples: há que se pensar na população do Distrito Federal, ou seja, o que o brasiliense ganharia com isso. O futebol faz parte da cultura brasileira e, por ser popular, subentende-se que o acesso deva ser democrático. No entanto, não é o que se

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num estádio com menos de cem pessoas, como se inventa emoção se não tem nem grito?”.

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Mané Garrincha Através do Tempo

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observa. Sob a justificativa da qualidade das arenas, o preço dos ingressos, geralmente, é salgado para o torcedor em geral. Em jogos realizados entre times de outros estados e organizados por empresas privadas, os preços mais baixos da entrada inteira variaram de R$ 80 a R$ 160. Valores assim elitizam o espetáculo. Kleyber Beltrão reclama dos preços praticados: “Essas pessoas que trazem os jogos para cá têm que saber que aqui não é o mapa da mina. Temos a maior renda per capita do país, mas deveriam ser mais conscientes e colocar preços acessíveis”.

guém sabia de nada de Minas Gerais até a inauguração do Mineirão. E o Serra Dourada foi a grande alavanca do futebol de Goiás. Você se lembra do jogo de inauguração? Foi numa tarde de domingo. Perdemos de 2x1. Logo no começo me machuquei e tive que sair. O estádio ainda estava inacabado. Sempre foi inacabado. Mesmo com a construção da parte superior ainda faltava completar o anel. Quando foram cobrir a parte superior da arquibancada, a estrutura metálica caiu e ficou anos interditada. Qual o jogo mais marcante para você no Mané Garrincha?

Qual a expectativa dos jogadores, nos anos 70, com relação à construção de um grande estádio em Brasília? A expectativa foi igual com o Serra Dourada e com o Mineirão. Esperávamos que aqui tivesse aquele estouro. Não só os jogadores, mas a população também. Nin-

Ceub e Santos, em 1974. Perdemos de 3x1. Foi uma polêmica porque o Pedro Pradera disse que “Pelé era rei pras negas dele”. Pelé mandou um recado que o negócio ia pegar. E pegou mesmo. Pelé marcou gol, jogou pra caramba. Teve um lance que ele ficou olhando a bola e o Dario foi por trás para tentar tirar. Pelé deu um toque por baixo das pernas dele e o Dario passou reto. Foi um estrondo na torcida. Foi um jogo marcante. Quando soube da construção do novo Mané Garrincha, achou interessante para Brasília? redemoinho . ano 08 . número 12

Péricles de Carvalho, 62, é considerado um dos maiores jogadores que o futebol brasiliense já revelou. Nascido em Uberaba, veio com a família para Brasília meses depois da inauguração. Seu pai, Didi de Carvalho, foi técnico de times amadores da capital e iniciou Péricles no futebol. Profissionalmente, começou a carreira no Ceub. Foi campeão e artilheiro pelo Brasília, Gama e Taguatinga. Fora, jogou por times como Atlético Mineiro e Guarani. Péricles esteve em campo no primeiro jogo do Mané Garrincha em 1974. Atualmente, trabalha no ramo de e-Commerce.

Achei uma maravilha que se fizesse uma maquiagem. Fizesse a cobertura para 40 mil pessoas. Conheço o futebol de Brasília e sei que suporta isso. Muita gente disse que tinha que colocar 70, 80 mil que isso, aquilo, que é a capital. Arrumei muita briga, inimizade por causa disso. Muita gente queria ganhar dinheiro e eu dava entrevista que era contra. Nunca fui depois de pronto. Fui na construção para dar entrevistas. Nem sei como é lá hoje.

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A FORÇA DO CATETINHO Primeira residência oficial da nova capital do país, museu mantém estrutura e importante acervo da história da cidade e de seu fundador JK OTÁVIO MARTINS redemoinho . ano 08 . número 12 71


C

MESAS DE madeira são originais e foram ponto de encontro entre JK e construtores do local

notada tão logo por JK, em seus primeiros anos de existência. O museu foi a primeira obra tombada do Conjunto Arquitetônico de Brasília, em 1959, pelo Instituto do Patrimônio Histórico Cultura, Iphan. O presidente notou que o peso histórico do local transcenderia o tempo e com apenas três anos de existência o palácio já era patrimônio cultural dos brasileiros. Vinte e oito anos depois, o próprio Conjunto Urbanístico levaria o título de Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, pela Unesco, órgão das Nações Unidas. Gustavo Pacheco, subsecretário de Cultura do DF, órgão que administra o Catetinho, explica que o museu tem um peso muito importante dentro da história candanga: “Nós podemos observar outras construções em madeira que constam da época da construção de Brasília, mas nenhuma tem o peso que o Catetinho tem. No Núcleo Bandeirante, por exemplo, vemos construções de madeira também, mas o palácio é diferente. Projetado por Niemayer, foi onde o arquiteto começou a colocar seus pensamentos em prática”. Dentro do museu, Gustavo também destaca que se pode sentir na pele a época mais fascinante de Brasília, a da sua construção. O acervo, o espaço, os detalhes, tudo remete a uma época desconhecida para a maioria: “O espaço é uma cápsula do

tempo. Ali a gente retorna a época mais aventureira da nossa capital, onde tudo começou. No ambiente podemos sentir o espírito que tomava conta naqueles dias”. Nova arquitetura O observador da construção pode notar que no Catetinho constam linhas que seriam utilizadas outrora em construções mais arrojadas projetadas por Oscar Niemayer, traços da arquitetura modernista que são marca registrada de Brasília. Um dos exemplos clássicos disso são os pilotis.

BRASÍLIA PALACE É o hotel mais antigo de Brasília, projetado por Oscar Niemayer na época da construção da cidade. Serviu de hospedagem para técnicos, engenheiros e arquitetos que vieram a Brasília na construção. Começou a ser construído em 1957 e levou um ano para ficar pronto. Tem em sua estrutura os famosos pilotis. Guarda ainda peças históricas datadas da época da construção da cidade, por exemplo, o carro que JK usou muitas vezes, que fica logo em sua entrada.

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onstruído em apenas 10 dias e inaugurado no dia 31 de outubro de 1956, o Museu do Catetinho foi a primeira residência presidencial da capital que começava a tomar forma. Teve seu nome escolhido em referência ao Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, que era a antiga casa presidencial. Conhecido como palácio de tábuas o Catetinho é simples, rústico e mantém o ar de casa de fazenda, localizado em um sítio, próximo à fazenda Gama e a uma nascente. Hoje abriga um acervo que conta a história, não só da capital, mas também de seu fundador, Juscelino Kubistchek, mantendo objetos pessoais e mobília da época de sua construção. Projeto do arquiteto Oscar Niemayer o museu tem como marca registrada construções arrojadas e diferenciadas, com linhas sinuosas e marcantes. O palácio mantém a humildade de linhas retas e precisas e conta parte importante da rica história da capital federal. Mas o Catetinho não foi apenas e somente a residência do presidente. Ele também hospedou outras personalidades, como o próprio Oscar Niemayer, seu projetor, e Bernardo Sayão, membro diretor da Novacap na época da construção de Brasília. Lá aconteciam as reuniões que definiram, em muitos momentos, o destino do país. Do museu também saiu a primeira geração de energia elétrica, e as primeiras ligações telefônicas de Brasília para o Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Goiás, cidades importantes para a logística da construção, como conta a obra Segredos do Catetinho, de Gláucia Franco. Foi a pedido do presidente que o Catetinho foi construído dessa maneira. Ele queria manter a proximidade com os pioneiros da cidade, que ficavam em barracos e cabanas de madeira. O refeitório do local foi, muitas vezes, ponto de encontro do presidente com os pioneiros. Era localizado em um ponto estratégico, perto do canteiro de obras central, mas não muito, o que possibilitava a tranquilidade do planejamento que era requerido aos trabalhadores e engenheiros. A importância do Catetinho foi

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Pilotis são bases que dão sustentação a construções, deixando livre o térreo, uma marca registrada da cidade. Lúcio Costa e Niemayer utilizaram amplamente esse recurso. Uma das primeiras obras da dupla que caracteriza bem esse modelo é o prédio do Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro. Em Brasília, quase todas as construções têm essa forma. A filosofia acerca dessas construções é muito mais ampla do que se pode imaginar, como já dizia Lúcio Costa: “Deixar o térreo livre significa que o espaço é público, que todos po-

sobre pilotis. Os mesmos princípios foram revisitados por Niemayer e outros arquitetos nos mais antigos blocos das superquadras de Brasília”. Mesmo fora do centro de grandes obras que caracterizam Brasília o Catetinho mantém seu charme e a sua importância, um dos poucos exemplares que são integralmente preservados, como destaca Pedro Paulo: “O valor histórico do local é de outra ordem que o conjunto monumental do Plano Piloto. O público sabe disso, tanto é que enfrenta a grande distância e dificuldades de acesso para

Jatobá, arvoré nativa do cerrado, é encontrada com frequência nas terras do Catetinho. Foi utilizada na construção de utensílios e do próprio museu dem utilizar, significa que o homem pode escolher o seu caminho”. O professor Pedro Paulo Palázio, do Departamento de Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, UnB, destaca que o museu do Catetinho foi o ponto de partida para o sonho arquitetônico de Brasília: “O Catetinho é reflexo dos princípios da arquitetura moderna carioca, volumes geométricos simples

conhecer esse marco na histórica da capital federal”. Área tombada O espaço onde se encontra o museu do Catetinho é enorme e também faz parte de sua identidade. Localizado perto de uma mata densa e rara nos dias atuais, o Cerrado de Galeria passa por uma demarcação que vai determinar o tamanho da área que

ÁGUA DE BEBER CAMARÁ Dentro do espaço do Museu do Catetinho existe uma nascente de água que rendeu muitas boas histórias e aguça ainda mais a curiosidade dos visitantes pelo local: trata-se da nascente de água batizada de Tom Jobim.

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Em suas primeiras visitas ao local, JK se encantou com todo o espaço, mas principalmente com a nascente de água que brotava ali, um dos pontos primordiais para a escolha do local, já que não existiam muitos pontos de água potável no terreno ainda árido e inexplorado da futura cidade. Depois de alguns estudos estava decidido: por conta da nascente, o Catetinho seria ali. Não é somente esse o ponto importante dentro da história da nascente. Ainda hoje flui água pura e cristalina do local, o que atrai muitos visitantes, mas um dos pontos altos é que a música Água de beber, camará, de Vinícius de Moraes e Tom Jobim foi composta às margens da nascente, como conta Aurentino: “Convidados por JK para conhecer o local e compor Hino de Exaltação a

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deve ser tombada e protegida como patrimônio histórico cultural e de preservação ambiental, pois na época de seu tombamento, em 1959, não foi feito um levantamento da área protegida. A empresa Ábaco Arquitetura & Design, liderada pelo professor Pedro Paulo, vem fazendo um levantamento detalhado dessa área: “Estamos realizando o inventário do Catetinho para, entre outros, resolver a questão e definir a extensão dessa área protegida”. Com o passar dos anos e a indefinição sobre o real tamanho do espaço tombado problemas começaram a aparecer, principalmente nos arredores do museu, nas suas entradas. Nos últimos anos, obras precisaram ser feitas na BR 040, que leva até o museu, o que causou transtornos e mudanças na entrada do local: “A visitação caiu pela metade. Pessoas que vinham sempre não sabem mais como entrar aqui e as que estão vindo pela primeira vez não acham a entrada com facilidade. Antes tínhamos de 5 a 6 mil visitantes; hoje esse número está por volta de três mil, por mês. A gente já reclamou, mas nada foi feito”, explica Aurentino Costa, chefe da equipe do museu. A assessoria da Secretaria de Mobilidade Urbana afirmou que nenhu-

Brasília, quando eles chegaram ao local perceberam que os moradores chamavam uns aos outros pelo nome de camará, cortando a palavra camarada. Quando Tom e Vinícius foram conhecer a fonte de água, em meio a brincadeira e conversas a música Água de beber, camará foi composta”. A nascente de água ainda hoje fornece água a todas as dependências do museu e é motivo de orgulho para os funcionários e visitantes de local: “É linda demais, o espaço em volta também é lindo, e saber que eles estiveram, que compuseram a música aqui, é encantador. Tudo isso é brilhante”, conta com orgulho Aurentino. NASCENTE DE água foi um dos grandes motivos para a escolha do local da construção do museu


ma obra próxima a áreas tombadas é feita sem a autorização dos órgãos responsáveis, como a obra feita para viabilizar o BRT no local. O DER, Departamento de Estradas e Rodagem, responsável pelo planejamento da obra e por tomar as medidas que amenizem os transtornos, foi acionado pela Secretaria de Cultura para que uma nova obra seja feita, e que facilite o acesso ao local: “Nós já estamos conversando com o DER para que uma nova obra seja feita. Já temos aqui alguns projetos que estão sendo avaliados e tudo poderá ser feito para amenizar os problemas. Até lá a sinalização vai ser melhorada,” esclareceu Gustavo Pacheco. Antes da construção do BRT, para acessar a entrada do Catetinho no sentido Plano Piloto (em Santa Maria), era preciso fazer um retorno que ficava a 700 metros da entrada. Com a construção do BRT, este retorno deixou de existir e os motoristas, agora, têm que retornar a, aproximadamente, quatro quilômetros de distância. Por esse motivo, o DER está em contato com a Secretaria de Cultura para fazer uma adaptação na entrada do Country Club, com a construção de uma via que possibilitará o livre acesso para qualquer sentido da via, comunicou o Departamento. Acervo museológico Desde a sua criação o Catetinho começou a criar o seu acervo. São peças importantes que compõem a histórica da época e de seus personagens.

A cozinha, os quartos, a sala de reuniões e o barracão, todos esses espaços têm peças originais da época da construção da capital, como explica Aurentino Costa, chefe da equipe do museu: “Essas mesas aqui são as mesas que foram construídas pelos próprios construtores do local, são de jatobá. Muitas vezes o próprio Juscelino se sentou aqui. Os dormitórios, tudo lá são deles, de quem construiu cada detalhe. A cozinha tem utensílios da época, copo, xícara, pratos; o próprio fogão é daquela época”. O acervo do local passa por mudanças constantes. Além das peças originais, que são realmente do museu, de habitantes da época, ele também recebe contribuições diversas, como explica Gustavo Pacheco, subsecretário de Cultura: “O acervo do museu é bastante extenso: Temos o pijama do JK, o vestido da dona Sara, os utensílios domésticos, o violão. Várias peças são da época, mas nem tudo. Temos contribuições que chegam sempre, através de leilões, de doações, por exemplo. Temos muitas coisas que vieram do Brasília Palace, uma construção da mesma época e que hospedou muita gente que veio ao Catetinho depois. É um acervo que muda sempre”. Cuidados específicos são tomados para cada peça que precisa ser restaurada. Tudo passa pelo crivo dos órgãos responsáveis e pela mão de profissionais qualificados. “O vestido de Dona Sara vai precisar passar por uma restauração em breve. Foi aberto um processo de li-

JK FAZIA reuniões e despachos dentro do próprio Catetinho. Toda estrutura estava preparada para isso

Os utensílios da cozinha são, em sua maioria, originais

citação para que isso aconteça. Peças especiais como essa, originais da época, têm um cuidado especial. Quando tudo for aprovado, ele será levado e restaurado. É assim que funciona o processo”, pontua Gustavo. “Também estamos levantando o acervo museológico, para distinguirmos as peças originais daquelas que foram agregadas mais recentemente”, destaca o professor Pedro Paulo. Diferentemete de outros museus, onde o espaço não conta muito, a construção em si, também faz parte do acervo, sendo assim, também conta com cuidados especiais para se manter preservado. Localizado em uma área de mata robusta alguns cuidados especiais devem ser tomadas para que o palácio de madeira não seja tomado pelos cupins: “Tintas especiais são utilizadas, também existe uma limpeza especial nas proximidades para que o Catetinho se mantenha”, explica Gustavo Pacheco.

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DOMITÓRIOS RECEBERAM roupas de cama do Hotel Brasília Palace, construído na época do Catetinho


TOMBADOS E MAL CONSERVADOS Espaços destinados às artes também estão na lista de bens projetados por Niemeyer que deveriam manter características originais, mas sofrem com abandono

E redemoinho . ano 08 . número 12

m 1982 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), tombou Brasília como Patrimônio Cultural da Humanidade pelo seu valor estético, histórico, e a compreensão da preservação reafirma a necessidade de se executar políticas públicas capazes de assegurar a proteção desse patrimônio. Projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer e o urbanista Lúcio Costa, a cidade possui cinco teatros tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) são eles: o Teatro Nacional Cláudio Santoro, o Teatro Dulcina de Moraes, o Teatro Pedro Calmon, o Espaço Cultural Renato Russo e o Complexo Cultural Funarte.

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Apesar de Brasília ter vários espaços voltados para cultura, a maioria deles está fechada ou em péssimo estado de conservação com exceção do Teatro Pedro Calmon, que passa por reformas pontuais como troca de carpetes e limpeza das poltronas e é o principal local de ensaio da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro após o fechamento para reformas do Teatro Nacional Cláudio Santoro. O Teatro Nacional Cláudio Santoro começou a ser construído em 1960, passou por várias reformas até ser inaugurado oficialmente em 1981. Arquitetado por Oscar Niemayer o teatro é o maior conjunto arquitetônico destinado exclusivamente as artes em Brasília. O teatro localizado no cora-

FLÁVIA CAMPOS

ção da cidade, foi palco grandes estrelas como Fernanda Montenegro, Paulo Autran e Dulcina de Moraes. Fechado há quatro anos, a Secretaria de Cultura informou que as obras de revitalização devem começar em agosto. A reforma será acompanhada da entrega gradual dos espaços internos do teatro, com a entrega do foyer da Sala Villa-Lobos. A reabertura do espaço conterá com uma exposição em homenagem aos 80 anos do Iphan. Reformas Após ser fechado para reformas em 2013, artistas de Brasília ficaram sem um local para ensaios e apresentações. A Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional passou a revezar suas


apresentações nos Teatro Pedro Calmon, na Igreja Dom Bosco e no Cine Brasília. O ensaísta da Orquestra Sinfônica Deyvison Miranda conta que é complicado pois a mudança de locais de causa atrito entre os integrantes do grupo. “É cansativo, a falta de local de ensaio dificulta nosso trabalho”, reclama. A maestrina e dona da Escola de Teatro Musical de Brasília Michele Fiuza conta que o Teatro Nacional conta com estruturas que em outros teatros não têm, como maquinarias e um fosso para a banda. “Há cerca de 10 anos atrás costumávamos nos apresentar na Vila Lobos do Teatro Nacional, como ela está fechada desde de 2013, começamos a nos apresentar no CCB e depois fomos para o teatro da UNIP, e toda a estrutura que o teatro nos fornecia agora tem que ser alugada”, explica. O cantor lírico e diretor musical Thiago Rocha relata como foi sua experiência no local. “Frequentava o Teatro Nacional desde que comecei a cantar ópera em 2005, inclusive uma das últimas peças apresentada lá foi minha no final de 2013 logo antes de ele fechar, ela se chamava O Médico e o Monstro, me orgulho disso pois ainda não sei se o teatro um dia ainda será reaberto”, lembra nostálgico. Renato Russo Fechado desde 2014, o complexo arquitetônico do Espaço Cultural Renato Russo tem previsão de ser

TEATRO PEDRO Calmon localizado no Setor Militar Urbano

reinaugurado em agosto desde ano. O local que leva o nome do líder da banda Legião Urbana, conta com duas salas de teatro, duas salas destinadas a oficinas dedicada as artes e uma biblioteca. Criado na década de 1970, o Espaço Cultural da 508 Sul, recebeu a primeira exposição de arte somente três anos depois e foi feita pelo arquiteto Kenzo Tange. O Teatro Galpão, que integra o complexo, foi inaugurado em 1975 e em 1977 abriu o Centro de Criatividade. O local foi rebatizado como Espaço Cultural Renato Russo em1993 após passar por reformas. Teatro Dulcina Outro teatro tombado de Brasília é o Dulcina de Moraes, que também mantém uma faculdade de artes cênicas. Desde que foi inaugurado em

meados dos anos 1970, o teatro nunca passou por reformas. Cadeiras quebradas, fios desencapados, camarins em mau estado de conservação e falta de iluminação são alguns dos problemas estruturais enfrentados pelos artistas que frequentam o espaço. O projeto, idealizado pela atriz Dulcina de Moraes, contou com a parceria do arquiteto Oscar Niemeyer. A intenção da artista era criar um espaço que servisse como local de conhecimento e harmonia entre as artes. Foi quando a Faculdade Dulcina foi criada para integrar formação e espaço de apresentação. Várias administrações já estiverem à frente do projeto. Algumas conseguiram êxito na liderança, outros levaram a Faculdade de Artes e o teatro a se atolar em uma dívida estimada em cerca de R$ 15 milhões. Segundo a porta voz da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, Julie Wetzel, professores e funcionários se esforçam para manter o espaço aberto, dando continuidade às aulas e espetáculos teatrais, realizados no local. O espaço sobrevive no momento com doações, já que o valor que consta no caixa não é suficiente para manter o pagamento dos professores em dia, nem arcar com a manutenção do espaço. Ela conta que muitos professores sabem que não existe previsão de pagamento dos salários, mas alegam que continuam a trabalhar por envolvimento emocional com o espaço e com a atividade. Desde que foi inaugurada, em 1970, a faculdade chegou a ter 11 cursos superiores, com mais de dois mil alunos matriculados. Hoje, somente três cursos são ministrados – artes

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TEATRO NACIONAL Cláudio Santoro


cênicas, artes plásticas e música- com a média de 200 alunos inscritos. Entre esses alunos está a Cristiane Santarém. No 7º semestre de Artes Cênicas, ela se diz “filha” de Dulcina. “Não podemos deixar a alma de quem idealizou esse projeto morrer. Lutamos para manter a faculdade funcionando. Continuaremos mostrando que o Dulcina está vivo, nosso futuro depende disso”, afirma. Devido as dificuldades, estudantes e lideranças criaram o Movimento Dulcina Vive. O projeto visa promover eventos culturais no espaço, com o objetivo de transformá-lo em um centro de atividades artísticas, incentivando a restauração do local. Atualmente cerca de 50 pessoas fazem parte do movimento. Como forma de protesto ao estado atual vivido pela comunidade artística, o grupo decidiu ocupar o espaço com a intenção de mostrar que apesar de todos os problemas enfrentados, a Faculdade nunca será abandonada. “Existem projetos que fazem a diferença na sociedade. Não podemos deixar que o sonho de quem passou a vida lutando por um espaço de qualidade simplesmente feche as portas por causa de dívidas. Estamos aqui, vamos à luta” finaliza a estudante. Fundação Nacinal das Artes

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Arquitetado por Oscar Niemayer em 1978, a Fundação Nacional das Artes (Funarte) foi inaugurada com a abertura da sala Funarte, que após passar por reformas em 2001 foi rebatizado coma Sala Cássia Eller. A Sala Plínio Marcos foi inaugurada em 1991 e originalmente foi batizada com Sala do Teatro Amador. Este ano, pela primeira vez o complexo participará da programação de aniversário de Brasília. Para o coordenador da Funarte, João Carlos Correa, o local é pouco divulgado e que nem todos os espaços culturais de Brasília estão fechados. “Ainda tem gente que não conhece o espaço”, conta. “A população já sofre por não ter espaços como o Teatro Nacional e o Espaço Cultural Renato Russo”, lamenta. A antropóloga Janaína Fernandes concorda com o coordenador. Ela explica que a ausência de espaços destinados à produção e à reprodução da cultura, assim como teatros,

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salas de espetáculo, cinemas, podem gerar na população uma restrição a outros tipos de linguagem que são diferentes daqueles vividas no coti-

diano. “Essa população poderá não ter alternativas, pelas vias artísticas, de se expressar e pensar sua própria sociedade”, conclui.


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