Revista Redemoinho ano 08 nr 13

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REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DO IESB

IESB – Instituto de Educação Superior de Brasília

ANO 08 . NÚMERO 13

SAÚDE

É DESAFIO PARA HOMENS TRANS

DOR TRANSFORMADA EM SAUDADE

redemoinho . ano 08 . número 13

Brasília Dezembro 2017 www.iesb.br

REDEMOINHO

MATERNIDADE NADA ROMÂNTICA 86


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Índice

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A VIDA E O LUTO Falar sobre as perdas é essencial para se aprender a viver uma nova etapa

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Segundo desafio

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Maternidade real

10 14 18 22 28 34

Homens trans enfrentam dificuldades e violências contra a dignidade até na hora de acessar o serviço de saúde

Movimento visa acabar com romantismo da realidade vivida por mulheres-mães

corpo perfeito é o seu Mulheres O acima do peso aprendem a se aceitar Transtorno bipolar Cerca de 60 milhões de pessoas no mundo são afetadas pela doença dultos com autismo Familiares A e pessoas com o espectro contam desafio diário da superação Educação inclusiva O desafio de vencer resistências e preconceitos e garantir a igualdade na escola ncontros e Despedidas Todos os E dias cerca de mil pessoas passam pela rodoviária interestadual enofobia continental Aceitação X do estrangeiro no Brasil ainda depende do país de origem

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ssédio no transporte Casos de A molestamento e violência assustam mulheres do Distrito Federal O trabalho com o lixo Com jornadas de 7 horas diárias, de segunda a sábado, os garis muitas vezes ainda são desrespeitados Animais abandonados Brasília tem pelo menos 30 mil cães e gatos que vivem nas ruas Saúde da mulher negra Elas se sentem ainda mais agredidas ao recorrer ao SUS Tesouros ignorados Pela primeira vez, DF vai saber quantos terreiros tem Discriminação religiosa O preconceito contra os seguidores das doutrinas de matriz afro Ginecologia Natural Mulheres optam por conhecer melhor o corpo e adotar estilos mais sustentáveis


REDEMOINHO REVISTA DO CURSO DE JORNALISMO DO IESB

EDITORIAL

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Expediente Coordenação editorial e edição: José Marcelo dos Santos e Leila Herédia. Projeto gráfico: Iara Rabelo e Suzana Guerra. Direção de arte: Mariana Pagotto. Monitoria em diagramação: Even Batista Barbosa. Conselho editorial: Carlos Siqueira, Daniella Goulart, Gabriela Guerreiro, José Marcelo dos Santos, Leila Herédia, Luísa Guimarães e Márcio Peixoto. Coordenação do curso de jornalismo: Daniella Goulart. Direção geral do Iesb: Eda Coutinho Machado. Tiragem: 1.000 exemplares. Redação: (61) 3445-4577. Repórteres e fotógrafos do 5º semestre de Jornalismo: Alessandro Costa. Ana Gabrielle Ramos. Andréia Bastos. Bianca Andrade. Bruna Andrade. Fernanda Matos. Gabriel Cornélio. Joyce Jardim. Júlia Lanz. Ketilen Carvalho. Lidiane Makena. Maíra Alves. Melissa Alves. Nathália Sirnes. Victor Luz. Walder Galvão.

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Olhar e entender o outro. R econhecer as histór ias e os fenômenos sociais com o estranhamento ne cessár io para repor tá-las, sem julgamento. As lições aprendidas no quinto semestre do curso de Jor nalismo do Iesb fazem mais do que ajudar a transfor mar alunos em repór teres. S ão lições que emancipam e nos tor nam por ta-vozes de vivências e dramas em busca de legitimação social e soluções. Ao longo desse processo, convivemos com o fr io na bar r iga, o sentimento de pressão por prazo e re sultado, as incer tezas e desafios. M as acima de tudo, aprendemos a enxergar o outro e entender o contexto social e, a par tir daí, o engrandecimento pessoal tor nou-se inevitável. Da mesma maneira, foi engrandecedor perceber que as histór ias mais fascinantes podem estar nos lugares mais inusitados. É quando passamos a entender o que é jor nalismo de verdade, quando ficamos envoltos por cada tema que tivemos a honra de repor tar.

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A edição da R edemoinho que colocamos em suas mãos é resultado de todo este processo de descobertas e metamor fose. Nas páginas a seguir você vai descobr ir, conhecer, se encantar, ficar tocado por histó r ias como as das mulheres que amam ser mães, mas descobr iram que a mater nidade nem sempre vem acompanhada do romantismo mostrado no cinema, que ser autista é um desafio e tanto, mas que é possível superar ; que os homens transexuais enfrentam dramas na hora de ir ao médico; que a dor do luto transfor ma quem a sente. Vai conhecer histór ias de pessoas que mudaram de estado e de país em busca de um futuro melhor e enfrentam preconceito, o mesmo preconceito contra seguidores de religiões de matr iz afr icana; vai ler relatos de pessoas discr iminadas por estarem acima do peso; aprender sobre a ginecologia natural e se encantar com as histór ias das pessoas que estão por trás do lixo que produzimos. S ão inúmeros os temas transfor mados em re por tagens e um único desejo: que você desfrute da R edemoinho. Esperamos que goste. B oa leitura!

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AMOR QUE FICA redemoinho . ano 08 . número 13

Uma das certezas da vida, a perda de algo ou alguém é marcada por sentimentos intensos que diferem de ser para ser; até a aceitação, são várias as fases, que incluem negação, raiva e barganha BIANCA ANDRADE

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e a morte é uma das cer- dela nasceu já desenganado pelos cimento de um filho, as separações, tezas que se tem na vida, médicos. Viveu por 21 anos. Quando a velhice e o fim da infância são conpassar pelo luto também ele se foi, a negação veio com força. sideradas mortes. Na verdade, tudo é inevitável. Quando se Junto com ela, a revolta. “Você quer aquilo que se chega ao fim, que se perde alguém ou algo, saber por quê isso aconteceu com perde, é considerado morte de algo. seja simbolicamente ou você, aí nega toda fé que tem, tudo Cada pequena ou grande perda prode forma concreta, tam- que já viveu. É uma dor tão intensa... duz um luto que nos coloca diante da bém se perde um pouco de si mes- Pode vir Deus falar com você e você finitude. “O luto não é doença e não mo. Viver pode não ter mais sentido não quer saber”, lembra. “Ficava pen- é a morte. É um processo psicológico e acordar fica mais difícil. Esse é o pro- sado: para tudo tem remédio... E aí que vem após uma perda importancesso de luto, geralmente marcado você toma um susto, olha e pensa que te ou significativa que pode ser uma por muitas idas e vindas, caos, fuga e não tem jeito, não tem jeito mesmo”. morte concreta ou não”, conclui o esdor. “Nós temos uma sequência a ser A estudante Amanda Reis Matto- pecialista em tanatologia. cumprida na existência. A gente nasce so, 19, também sentiu isso na pele. Ela A estudante Paloma Albuquere um dia a gente morre. A morte é escolheu não enfrentar o luto de pri- que, 19, vivenciou a morte simbóliuniversal. Você não tem como não meira quando o pai morreu. “Foram ca quando passou pelo fim de um querer isso. É um fato. Então por que três anos da minha vida que eu apa- relacionamento. “É mais traumático não busco trabalhar para aprender a guei. Não lembro o nome dos meus com o nosso primeiro amor, né? Que lidar com esse fato inapelável que é a professores, nem o que eu fazia”. O a gente se envolve mais, se entrega ideia de que um dia vamos morrer?”, retorno foi lento e difícil. “Tudo o que mais, que a gente ainda não sabe questiona o psicólogo que as coisas podem clínico Carlos Henrique errado”, opina. O “O luto não é doença e não é a morte. É um dar de Aragão Neto, espereconhecimento do cialista em tanatologia. processo psicológico que vem após uma perda ponto final foi um proA tanatologia é cesso difícil. “Quando importante ou significativa” responsável pelo esacaba, a gente perceCarlos Aragão Neto, especialista em tanatologia tudo da morte e do be que não é assim, as morrer. É um campo pessoas erram. A gente do conhecimento que se dedica à acontecia, usava a morte do meu pai erra também e não é porque a gente pesquisa dos aspectos psicológicos e como desculpa”. Um ano mais velha, ama uma pessoa que as coisas vão dar sociais e mostra como o fenômeno da a irmã de Amanda, a também estu- certo”, comenta. morte desencadeia reações e dificul- dante Isabela Mattoso, sentiu o luto Na segunda fase descrita pelos dades em vários campos de atuação, de outra maneira. “Eu me desesperei, estudiosos, nomeada como “anseio e como o luto, os cuidados paliativos, e procurei um substituto para o meu busca da figura perdida”, são comuns o suicídio, a eutanásia, dentre outros. pai logo de cara, que era meu irmão, as alucinações e delírios. "Eu tentaAragão Neto observa que o processo e aí procurei escapes para não pensar va procurá-lo em todos os lugares, difere de ser para ser. “Cada um vai naquilo. Foquei em preparar minha queria que ele estivesse aqui. Tinha entrar do seu jeito, da sua forma, no festa de 15 anos e me entregar total- vezes que o enxergava de verdade e, seu tempo e às vezes não entra na mente à escola”, conta Isabela. quando chegava mais perto, percebia mesma velocidade. Você pode estar A morte está mais presente no dia que não era ele", lembra Amanda. Ela ali na barganha com Deus e depois a dia do que se pensa. Ela é vivida de tinha 3 anos quando o pai descobriu voltar a negar e ter raiva”. diversas maneiras. A gravidez e o nas- um tumor no cérebro. Ele conviveu A primeira das fases neste longo processo é o entorpecimento. “A pessoa fica completamente desnorteada. Perde a noção de tempo e de espaço. Isso pode acontecer por horas, dias ou até mesmo anos", explica o especialista em tanatologia. Ele cita o psicanalista britânico John Bowlby, responsável pela Teoria do Apego, segundo a qual existe um profundo vínculo afetivo entre um indivíduo e outro ou mesmo com um fato (ver box). O estudo busca compreender a forte reação emocional que ocorre quando esses laços são ameaçados ou rompidos, como no luto pós morte. A jornalista Adriana Soares, 52 anos, sabe bem o que é isso. O filho

ISABELA E Amanda ainda guardam o 5 casaco do pai e o usam com muita saudade


ADRIANA USOU o artesanato como uma das formas de escape para a dor do luto

com a doença por nove anos. A menina estava no colégio quando recebeu a notícia. “Minhas primas foram me buscar mais cedo e falaram: seu pai deu uma piorada. Naquela hora eu sabia que ele tinha ido”. Nessa fase, o enlutado começa a assimilar devagarinho os fatos e, ao mesmo tempo, faz de tudo para sentir novamente a presença da pessoa que se foi. “Você faz um esforço gigantesco ao ponto de alucinar para trazer essa pessoa de volta, mesmo que sim-

bolicamente”, explica Aragão Neto. Duas sensações se alternam com frequência nessa etapa: o racional tenta entender que a morte aconteceu e sofrer com a situação, enquanto o emocional tem dificuldades em aceitar. “Eu sempre pensava: vou chegar em casa e vou contar essa novidade para ela. Mas quando eu chegava, ela não estava lá. Aí bate a falta da pessoa...”, conta a publicitária, Mariana Brasil, de 25 anos, que perdeu a mãe para um câncer de pâncreas.

Depois de um tempo, se entende que, com todo esforço e alucinação, não é possível fazer ninguém voltar. E a realidade começa, aos poucos, a ser percebida. É a fase nomeada por Bowlby de desorganização, marcada por sentir o luto da forma mais aguda até reconhecë-lo integralmente. A dor da ausência aperta. É quando se busca "ficar amigo da escuridão antes de ver a luz". A assistente social Jamilla Trevizan, especialista em cuidados paliativos, observa que esta

TEORIAS SOBRE O LUTO EDWARD JOHN MOSTYN BOWLBY: nascido em Londres, atuou como psicólogo, psiquiatra e psicanalista. Desenvolveu a Teoria do Apego a partir do estudo do vínculo desenvolvido por recém-nascidos com as mães e outros cuidadores. Pela teoria, apego significa um vínculo afetivo ou ligação entre um indivíduo e uma figura e o luto é composto por quatro fases: Entorpecimento: Fase inicial marcada pelo estado de choque e explosões de aflição; Anseio e busca da figura perdida: Misto de raiva e culpa. Racionalmente, tenta entender que a morte aconteceu, mas tem dificuldades; Desorganização e desespero: Predomínio de forte sentimento de culpa e falta da pessoa ; Reorganização: O enlutado começa a entender melhor a situação. redemoinho . ano 08 . número 13

ELIZABETH KÜBLER–ROSS: No livro Sobre a Morte e o Morrer, lista os 5 estágios do luto, fruto da observação com pacientes terminais: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Negação: "Isso não pode estar acontecendo comigo". Pacientes ou familiares se recusam a aceitar a notícia; Raiva: "Por que isso está acontecendo comigo?". Entra o sentimento de revolta, e o indivíduo se sente injustiçado; Barganha: "Se o senhor me curar, vou ser uma pessoa melhor". A pessoa já negou e se revoltou, então começa a negociar (geralmente com Deus) e a fazer promessas; Depressão: "Não posso suportar a ideia de morrer". A depressão não é a forma clínica conhecida hoje. É uma fase de tristeza profunda, melancolia e isolamento; Aceitação: "Estou pronto". Existe certo grau de “tranquila expectativa”, que não se deve confundir com felicidade. O indivíduo entende a situação que passa e se prepara.

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fase costuma ser acompanhada por do o aparecimento de uma bolsa nas hoje em dia. O tempo todo é para proarrependimento e culpa. “Vem o peso costas que contém a medula, nervos duzir. Você vai ter tempo para sentar na consciência. Eu sabia que ele esta- e líquido. Além disso, Fernando não com alguém para conversar sobre va ruim, por que não o visitei? Por que tinha os rins. “Os médicos falavam que morte?”, questiona Aragão Neto. não estive mais do lado dele?”. ele não ia sobreviver. Chegaram a diA morte já foi considerada como O luto é um processo que foge zer que ele seria um vegetal”. natural e tranquila pelo ser humano. do controle de qualquer um e não Depois de praticamente dois anos Antigamente, era marcada por rituais tem data certa para acabar, se é que no hospital e uma série de cirurgias, e cerimônias públicas nas quais todos acaba um dia. É preciso coragem Adriana e o marido levaram Fernando participavam e eram autorizados a expara abraçá-lo e senti-lo. O que não para casa. O menino foi crescendo, pressar os sentimentos pela perda. Na se deve fazer é jogá-lo em uma gaveta aprendeu a falar, era internado de Idade Média, por exemplo, já existiam e fingir que nunca existiu. Mais cedo vez em quando e vivia um dia após o rituais para despedidas, onde a morte ou mais tarde, sem perceber, ele vol- outro. “Ele viveu 21 anos bem, e feliz. era encarada como tranquila e dividita. Três anos da entre os depois da “Esse buraco que você sente é o vazio que ele deixou. Você familiares. morte do pai, Com o Amanda se precisa amar esse buraco. Aprender a conviver com ele. passar do permitiu sentempo, emOlhá-lo com amor e saber que agora existe" tir novamenbora vista Adriana, que perdeu o filho te e abraçou como algo a dor. “Como certeiro, a eu fiquei muito tempo desligada, Claro que dentro das limitações dele. morte começou a ser percebida como quando eu voltei, percebi que perdi Ele foi um presente para nós. Mas a fracasso, colocando em evidência a um tempo importante da minha vida, gente sempre sabia que, uma hora, impotência diante dela, em um moque era para eu ter me descoberto. ele ia embora”. delo social em que todos trabalham Passei a ter muitas crises de ansiedade Adriana perdeu o filho para uma para adiá-la. A sociedade começou e a chorar muito”. doença chamada peritonite, que é a ter dificuldade em lidar com a ideia A artesã Cynara Brito, 39, passou uma inflamação da membrana que de finitude e passou a ter uma buspor essa fase depois de ter sofrido reveste a parte interna do abdômen ca incessante pela imortalidade. “As uma perda gestacional. “Foi como se e recobre a maioria dos órgãos da re- pessoas querem viver 150 anos a qualeu tivesse dado um pulo no escuro gião abdominal. “Os médicos nunca quer custo, nem que seja vegetando. sem saber onde ia cair, porque foi re- acreditaram, porque o normal desses Alimenta-se insanamente a juventualmente isso. Quando descobri que pacientes é que tenham pelo menos de”, analisa Aragão Neto. ela não tinha chance de nascer viva, duas ou três infecções por ano. Mas o Os “fast funerals”, ou funerais foi como se tivessem tirado o chão Fê nunca tinha tido nenhuma. Porém, rápidos, que encurtam etapas como dos meus pés, eu no escuro sem ter a primeira que ele pegou, o levou”. velório e cerimônias, são exemplos uma parede para encostar, para poA cultura de hoje muitas vezes da tentativa de contornar a dor. "No der me apoiar”. A sensação de se per- não permite que a pessoa viva essa passado, você iria em um velório de der no tempo e no espaço é comum, fase de luto e, especialmente, a fase dois dias. Hoje em dia, dura duas, três, como relata Adriana. “Eu sentia que da desorganização. Existe uma certa quatro horas e muitas vezes o parente tinha um buraco tão grande na mi- cobrança pela negação da dor. "As está aqui do lado e não tem nem temnha frente e imenso, com um abismo pessoas não têm tempo para nada po para vir se despedir", acrescenta o enorme e eu estava na ponta”. Até que conseguisse sentir o luto, foi necessário algum tempo. "Aí eu vivi esse luto tanto. Vivi intensamente. E eu pensava que eu tinha direito. Gente, qual é? Perdi um filho. Tenho direito, sim. É um sentimento meu". Recém-casada, Adriana engravidou e teve uma gestação complicada. No sexto mês de gravidez, precisou fazer o parto para salvar a si e ao filho, Fernando. O menino nasceu prematuro, muito pequeno e com uma doença rara. Ele tinha mielomenigocele, o tipo mais grave de espinha bífida, quando os ossos da coluna vertebral JAMILLA MOSTRA o quadro no qual todos do bebê não se desenvolvem adequaos pacientes deixam uma lembrança damente durante a gestação, causan-


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psicólogo. É a cobrança social para Dia dos Pais. Essas quatro datas, para triste, sempre quero que lembrem se evitar a vivência do luto. "É preciso mim, são as que a saudade aperta um dos momentos bons que a gente seguir em frente", "foi melhor assim" pouco mais. Eu me lembro no dia a passou”, complementa Jamilla. Cysão frases que buscam consolar, mas dia, posso lembrar da presença dele nara aconselha a sentir ao máximo evitam que as pessoas extravasem o e tudo mais, porém dói menos do que cada momento. "Mesmo com tudo o que sentem de fato e as obriga a se- nessas datas”, conta Isabela. que fiz, poderia ter me dedicado mais, guir com a vida como se nada tivesse Mariana lembra como foi a forma- feito coisas que não fiz. Cada minuto acontecido. "Todo mundo dizia ‘não tura em publicidade. “Foi o pior dia é precioso”. chora que para ele é pior’. Gente é da minha vida. Todo mundo falava A artesã foi surpreendida por muito doloroso e torturador, porque comigo: ‘Ah, sua mãe ía estar muito uma gravidez não planejada aos 36 a pessoa tem que chorar, tem que so- feliz, ía gostar muito de estar aqui’”. anos. Era um namoro recém-iniciado. frer, tem que viver aquilo. Como é que Esses sentimentos em datas come- Quando deu a notícia ao namorado, eu não ia chorar?", questiona Adriana. morativas são comuns. Aquele que se ele começou uma série de questionaSe o luto é um processo, a escuri- ama segue para sempre na memória. mentos e acabaram terminando. Com dão do luto é uma experiência neces- É preciso reaprender a conviver com cinco meses de gestação, descobriu sária. É um tempo natural de depres- esses dias e vivenciá-los de um jeito que o bebê poderia não sobreviver são, de quietude, “Sentaram comigo e dissede instabilidade e para eu me preparar, “Falar é a melhor solução. Então, quando ram de dor. Mas, mesque, a qualquer momento, mo nesta etapa de ela podia morrer dentro você fala, se acalma, se alivia, isso te dá escuridão, se deve da minha barriga". O temcondições de elaborar uma melhora” alcançar pequepo foi passando e Cynara Gilson, voluntário do CVV nas clareiras. Para chegou aos nove meses de Adriana, foi o mogestação. A filha dela tinha mento de se aprender a cuidar da dor, diferente. “Aquela pessoa passou pela cinco deficiências graves no coração, a compreender que era algo dela que sua vida e vai deixar marcas, de pre- duas no cérebro, aparelho digestivo não poderia dividir e que teria que ferência cicatrizadas, porque, se ficar com má formação e lábio leporino. aprender a lidar. Foi quando buscou aberta, infecciona. Vão ficar as memó- Prestes a completar 40 semanas de ajuda. "A médica virou para mim e rias, as recordações, as lembranças.... gestação, sentiu que algo estava erdisse: Esse buraco que você está sen- Eventualmente, em uma data signifi- rado e foi ao hospital. Melissa tinha tindo é o vazio que ele deixou. Você cativa, vai ficar um pouco mais triste, morrido. “Fiquei com ela meia hora vai ter que amar esse buraco. Vai ter ao escutar uma música, passar por um e é um momento que eu nunca vou que aprender a conviver com ele. lugar”, explica o psicólogo. esquecer. Foi uma coisa muito forte, Olhar para ele com amor e saber que Todo esforço enquanto a pes- a lembrança do corpo dela nos meus agora existe". soa ainda está viva é válido. “É pre- braços, marcou demais”, conta, emoAs datas importantes parecem ciso lembrar que nos momentos que cionada. ampliar a perda. Passar por um dia podia estar perto, você estava. As Ombro amigo que seria considerado feliz em outras broncas que tinha que levar, levou. circunstâncias, sem ter, pelo menos, E sempre lembrar da pessoa nos moO luto como processo individuuma pontinha de saudade é normal. mentos felizes. Eu nunca gostaria que al está diretamente ligado ao social. “O aniversário dele, Natal, Ano Novo e lembrassem de mim em uma hora O indivíduo está inserido num contexto que exerce influências sobre os sentimentos. Depois dos primeiros dias após a morte, as outras pessoas voltam para as suas vidas e é comum se evitar falar sobre o assunto. Depois do enterro, do fim simbólico, vem o silêncio. “Eu notava que algumas pessoas fugiam. Outras perguntam: Como você está? E na hora que você vai falar, mudam de assunto. Então ela estava esperando você dizer: ‘estou bem’. Mesmo sabendo que você não está. E quando você vai dizer que não está bem, ela corta imediatamente”, lembra Adriana. Quando se evita falar sobre, quando se tenta mudar de assunto ou TATUAGEM FEITA em homenagem à se diz: “Você precisa seguir em frenfilha de Cynara, que passou pela perda te”, contribui-se para a interrupção de

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ONDE PROCURAR AJUDA? CVV Apoio emocional e prevenção ao suicídio por telefone, chat, Skype ou presencialmente. Contato: cvv.org. br ou 141. GASS Grupo de Apoio aos Sobreviventes de Suicídio. Vinculado ao CVV, tem o objetivo de reunir e amparar pelo diálogo pessoas que foram afetadas pelo suicídio. Reuniões mensais. Informações por gassbrasilia@ gmail.com ou pelo 141.

ESPECIALISTAS OBSERVAM que não é possível dividir a dor, mas conversar e ter empatia é fundamental

Não precisa de muito, apenas estar presente. Nos momentos das primeiras risadas ou de dor intensa. Ouvir sem julgamento. “Se as pessoas tivessem noção do quanto podem ser úteis, só ouvindo, estando do lado. Só o fato de poder ligar a hora que quiser e sem cobrar. Poder contar com aquela pessoa é maravilhoso”, conta Adriana, que teve na família e nos familiares o apoio que buscava. Com a fase da organização, o caminho é investir a energia em outras relações e compreender que é possível continuar. “A pessoa fica num movimento entre a dor e a vida, entre a dor e a restauração. Com o tempo, a bolinha da dor vai diminuindo progressivamente Grupo Mães de Estrelas Uma vez por mês, mulheres que passaram por perda gestacional se reúnem para trocar experiências e apoio. Contato via Facebook (@ maesdeestrela) ou pelo telefone 9 9301-4884.

e a da vida vai aumentando, até que chega uma hora que a bolinha da dor vai virar uma saudade, uma marca”. É importante haver uma reconciliação entre a dor e a morte. Uma hora, a tristeza e a dor encontram o seu lugar e o que resta é a saudade. Isabela, que sofreu intensamente o luto pela perda do pai, procura lembrar os momentos bons, os aprendizados. Ela cita como inspiração o escritor brasileiro José Mauro de Vasconcelos, autor de Meu pé de laranja lima: “Aprendi com a vida que você não morre nem de saudade e nem de sofrimento”. A literatura também é usada por Adriana. "É como dizem: a saudade é o amor que fica", conclui. inspiração e informação para quem vive o luto também. Acesso em www.vamosfalarsobreoluto.com.

Você por você Você também pode ser um ponto de apoio para os que estão passando pela dor. Se você tem algum familiar ou amigo passando por isso, acolha-o com empatia e escute.

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parte do processo. Não é possível dividir a dor. Mas ter empatia e conversar sobre as perdas é essencial. “Eu lidei com a dor do que eu senti, principalmente me apoiando em amigos. Eles me mostravam que podia seguir em frente, ser maior do que aquilo que estava sentindo. Amigos que não julgaram minha dor e estiveram sempre lá, para entender e auxiliar”, lembra Paloma, quando teve o relacionamento desfeito. A grande diferença é estar presente em todo o processo de luto e não só no da despedida. “Quando eu converso, eu me escuto, eu me entendo e aí procuro resistência e força para dar continuidade à minha vida. Falar é a melhor solução. Então quando você fala, se acalma, se alivia, isso te dá condições de elaborar uma melhora”, explica Gilson Aguiar, voluntário do CVV-Brasília. A entidade atua no apoio emocional e na prevenção ao suicídio e, entre os atendimentos, está o Grupo de Apoio aos Sobreviventes de Suicídio, destinado a familiares e amigos das pessoas que se mataram. O apoio em grupo também foi o caminho de Cynara. Ela participa do Mãe de Estrelas, que tem o objetivo de propiciar a troca de experiências das que passaram pela perda gestacional. “É um grupo de mães que querem aliviar um pouco a dor, compartilhar as experiências. As coisas que são compartilhadas acabam fortalecendo a todas”.

Vamos Falar sobre o luto? Cinco amigas que passaram pelo processo do luto se reuniram e criaram uma plataforma digital de

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GORDAS, SIM

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Movimento Plus Size ganha força em Brasília e resgata a autoestima de mulheres acima do peso JOYCE JARDIM

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A

autoestima é a capacidade de o ser humano se gostar, se aceitar e admirar as próprias qualidades. Após cinco anos em depressão, a empresária e modelo Janaína Graciele de Brito, 40 anos, viu em si todas essas qualidades após sofrer preconceito por estar acima do peso. “Tornei-me miss depois de ter engordado 30 quilos, viver um casamento falido e ficar em segundo lugar em um concurso com 27 candidatas. Vi que podia dar a volta por cima e renasci”, lembra. Após o concurso, começou a publicar fotos nas redes sociais. Foi assim que surgiu o grupo BSB Plus Size, com dicas e sugestões para mulheres que vivenciavam problemas semelhantes. Hoje, a fanpage @calendarioPlusSizeDF conta com 35 mil curtidas. O grupo trata da autoestima para resgatar aquelas que não se sentem bem com o corpo. Promove ensaios fotográficos, reuniões, palestras, campanhas, desfiles e jantares. Janaína lembra que, até poder ajudar outras mulheres, perdeu o emprego e se sentia alvo constante de olhares preconceituosos. A também modelo Vanusa Domingas Guimarães, 39, reclama do preconceito da sociedade por estar longe dos padrões estabelecidos pela indústria da beleza. Não sabia como reagir às críticas, tanto da família quanto da sociedade. Sobrava angústia e, para piorar, assim como Janaína, perdeu o emprego. “Foi uma fase muito difícil, por não conseguir trabalho só por causa do peso e olhares tortos”, lembra. Há três anos conheceu o projeto que mudou a vida dela. Atualmente, é modelo e Miss Brasília Plus Size 2017. O grupo a ajudou a se sentir bem, aceitar o corpo e ter mais confiança em si. “Não é o corpo que delimita o que você pode ou não fazer”, avalia. Esbanja sensualidade, autoestima e um sorriso que nunca sai de seu rosto. "Passei a me amar e ver que sou bonita e atraente, mesmo sendo gordinha". De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde em abril deste ano, uma em cada cinco pessoas no país está acima do peso. Nos últimos anos, as empresas de moda passaram a


VANUSA, VERÔNICA e Janaína fazem parte do grupo BSB Plus Size

investir no setor para suprir a necessida- de Lima Silva, 31, tem IMC de 28,34. de do público. Em geral, para calcular se Desde os 9 anos lembra ter passaa pessoa está acima do peso, é usada do por preconceito por estar acima uma calculadora para medir o Índice do peso. Os apelidos começaram na de Massa Corporal (IMC), tabela da escola, mas o que mais a magoava Organização Mundial da Saúde cal- era saber que em casa eles continuculada a partir do peso dividido pela avam. A adolescência foi conturbada altura, com esta e o início da “É muito triste viver multiplicada duas vida adulta vezes. O resultado Faem uma sociedade na qual também. considerado norzia academia, mal deve estar encaminhada, o diferente é tre 18,5 e 24,9. mas sempre tratado como lixo” A consultora ouvia comende beleza Verônica Janaína Graciele, empresária e modelo Plus Size tários sobre o

peso por onde passava. Emagrecer virou obsessão. Começou a pegar pesado nos exercícios e o resultado foram sintomas de bulimia. “Tudo que comia eu corria para o banheiro e vomitava. Cheguei a tomar laxantes e remédios para perder peso”, lembra. Com ajuda de um amigo, após desabafar todas as suas angústias e problemas, encontrou um ponto de apoio. Começou a mudar, a se amar e a gostar do que via no espelho. A partir daí, começou a postar fotos e se aceitar cada dia mais. Foi nesse período que ela conheceu o grupo da Janaína e vários relatos similares aos dela. Entre idas e vindas no grupo, encontrou coragem para atuar como modelo. “Todas as meninas me receberam muito bem. Voltei com tudo, com mais coragem, com vontade de me jogar. Fui convidada para fazer grandes ensaios fotográficos por vários profissionais”, revela. Foi assim que ganhou o concurso de Miss Ceilândia. A endocrinologista Michele Borba explica que é possível ser saudável mesmo estando com sobrepeso ou obesa. Mas alerta que, a longo prazo, os quilos a mais podem trazer doenças. “O biotipo e o peso tornam-se um problema sociocultural quando limitam a produtividade do indivíduo, o seu convívio em família”, observa a médica. Para ela, os padrões impostos pela indústria fitness não

OBESIDADE CRESCE 60% EM DEZ ANOS NO BRASIL

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O índice de obesidade aumenta com o avanço da idade, mas, mesmo entre os brasileiros de 25 a 44 anos, o indicador é alto: 17%. O excesso de peso também cresceu entre a população das capitais. Passou de 42,6% para 53,8% em 10 anos. Os números fazem parte da Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizada em todas as capitais brasileiras.

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ENDOCRINOLOGISTA MICHELE Borba explica que é possível ser saudável mesmo acima do peso

Foto: Arquivo Pessoal

Dados divulgado pelo Ministério da Saúde revelam o aumento da obesidade no Brasil. Segundo o levantamento, uma em cada cinco pessoas no país está acima do peso. A obesidade passou de 11,8%, em 2006, para 18,9%, em 2016.


Ajuda online

Com base em dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o sobrepeso em adultos no Brasil passou de 51,1% em 2010, para 54,1% em 2014. A tendência de aumento também foi registrada na avaliação nacional da obesidade. Em 2010, 17,8% da população era obesa; em 2014, o índice chegou aos 20%, sendo a maior prevalência entre as mulheres, 22,7%. Outro dado do relatório é o aumento do sobrepeso infantil. Estima-se que 7,3% das crianças menores de cinco anos estão acima do peso, sendo as meninas as mais afetadas, com 7,7%.

se encaixam em toda a população. rostinho bonito”. A modelo ainda “As pessoas perdem o parâmetro de conta que conheceu o projeto após hábitos saudáveis para seguir regras vencer o concurso miss Paranoá Plus e desejos ditados pela mídia”, afirma Size em 2016. Michele. Naquele "Eu me sinto bonita e o Os paano, também drões de beo concurso veio para elevar a conquistou leza impostos título de Prinpela mídia e cesa do Disminha autoestima" publicidade trito Federal Rafaella Ferreira, jornalista e miss Paranoá hoje já passam na categoria. por transformação. A variação esté- Apesar das vitórias, o preconceito aintica visa garantir espaço para novas da está presente em pequenas situafatias de mercado. Para o publicitário ções do dia a dia. "As pessoas torcem Carlos Leonardo Gomes, o cenário da para você não passar na catraca do indústria tenta impor um corpo que ônibus, olham torto quando entra em considera perfeito, com mulheres ex- uma loja e pergunta se tem determicessivamente magras. “Acredito que nado modelo do seu tamanho", diz. não existe um corpo perfeito, corpo perfeito é o seu”, afirma. Segundo dados da Associação Brasileira do vestuário (Abravest), o mercado plus size cresce 6% anualmente e movimenta cerca de R$ 5 bilhões. Esse percentual corresponde a cerca de 300 lojas físicas e aproximadamente 60 virtuais. A expectativa, segundo a associação, é de um crescimento de pelo menos 10% ao ano. Cerca de 30,4% das 19.434 empresas que fabricam moda feminina já incluem o plus size nas linhas de produção. A jornalista e modelo plus size Rafaella Ferreira, 30, descobriu este universo ao buscar roupas para si. "Antigamente era muito difícil achar roupa, aí a gente começa a pesquisar e procurar e saber que o mundo Plus está muito na moda", comenta. O projeto BSB Plus Size foi um incentivo para que ela encontrasse voz na sociedade e, dessa maneira, pudesse demonstrar que vai além do rosto bonito. "A gente tem um corpo, uma beleza, educação. A gente sabe andar, falar, conversar e não é só um ALINE MARQUES resgatou a autoestima com o grupo BSB Plus Size

Denise Comel, 37, é designer de acessórios. Nunca deixou que a autoestima fosse abalada por estar acima do peso, apesar de se sentir mal até mesmo entre os familiares. Para tentar ajudar as mulheres que passavam pelo processo de não aceitação do corpo, Denise criou um perfil no instagram chamado @cadeseujeito. Ela posta frases motivacionais que incentivam as mulheres a se aceitarem do jeito que são. Já ajudou muitas mulheres a superar o preconceito e a levantar a autoestima com dicas de beleza, acessórios e roupas. Mas não é só as mulheres que a procuram, ela já aconselhou vários homens casados que tentam auxiliar as esposas. Para Denise, a mídia tem uma grande responsabilidade por algumas pessoas se sentirem assim e não conseguirem se aceitar. “A própria mídia é muito taxativa, sempre coloca o gordo associado a problemas de saúde”, destaca. O perfil dela no instagram, no qual dá dicas de look do dia a dia e empoderamento, tem 239 seguidores.

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SOBREPESO

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ALBA LÊ diariamente obras relacionadas ao transtorno bipolar

UMA NAÇÃO DE BIPOLARES redemoinho . ano 08 . número 13

Seis milhões de brasileiros convivem com a doença que se caracteriza por períodos de episódios maníacos, depressivos e de humor normal

ALESSANDRO COSTA

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“A família e os amigos são de suma importância em qualquer tratamento psiquiátrico, pois com a participação no tratamento, ajudará na estabilização clínica do paciente” Régis Barros, psiquiatra

O transtorno bipolar é uma doença que se caracteriza pela alternância de humor, com episódios de euforia, depressão e de normalidade. Nem sempre é fácil identificar os sintomas no paciente. Existem evidências de que fatores genéticos possam influenciar o aparecimento da doença. Pode ser chamado de transtorno afetivo bipolar ou doença maníaco-depressiva. O médico explica que os principais sintomas da depressão bipolar são perda de energia, de apetite, de peso e de interesse por coisas das quais se gostava. A pessoa não sente vontade de dormir, tem pensamentos negativos recorrentes e dificuldades em concentrar-se nas atividades diárias. Já na fase de mania, ou hipomania, são frequentes a euforia, o aumento no número de atividades, a facilidade em se distrair, autoestima elevada, rapidez de pensamentos, tagarelice, dimi-

lho social há 26 anos, auxilia em cursos de corte e costura, alfabetização de adultos e implantação da terapia comunitária. Ainda encontra espaço para doar o tempo no Núcleo de Mútua Ajuda às Pessoas com Transtornos Afetivos (Apta/DF). Além do uso dos medicamentos, faz terapia individual. “Faço a psicoterapia e uso dois medicamentos por dia. Acredito que o trabalho voluntário me ajuda a manter a estabilidade do humor, pois são peças-chaves para o bem-estar e qualidade de vida”, comenta. O Apta é um grupo de acolhimento que funciona na Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) uma vez por semana e é baseado no princípio da solidariedade. Fundado em 2009, tem o modelo de sociedade civil sem fins lucrativos. A sugestão partiu do economista Antônio Carlos Firmino, 64 anos, que trouxe para Brasília um modelo existente em São Paulo, a Associação Brasileira

TIPOS DE TRANSTORNO BIPOLAR Tipo 1: Definido por episódios maníacos que duram pelo menos sete dias ou por sintomas maníacos que são tão graves que a pessoa precisa de cuidados hospitalares imediatos. Geralmente, episódios depressivos ocorrem também, tipicamente durando pelo menos duas semanas. Episódios de depressão com características mistas (com depressão e sintomas maníacos ao mesmo tempo) também são possíveis. Tipo II: Marcado por um padrão de episódios depressivos e episódios hipomaníacos, mas não os episódios maníacos verificados no Tipo I. Desordem ciclotímica (também chamada ciclotimia): Caracterizada por numerosos períodos de sintomas hipomaníacos, bem como inúmeros períodos de sintomas depressivos de pelo menos dois anos (1 ano em crianças e adolescentes). No entanto, os sintomas não atendem aos requisitos diagnósticos para um episódio hipomaníaco e um episódio depressivo.

A PSICÓLOGA Juliana realiza atividades de autoconhecimento

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nuição do sono e mais engajamento em atividades que envolvam riscos. O transtorno bipolar (TAB) é dividido em dois tipos: no tipo 1, pacientes apresentam pelo menos um episódio maníaco e períodos de depressão profunda, e no tipo 2, considerado menos grave, é apresentada a hipomania: a pessoa fica acelerada, dorme mal e tem exaltação de humor, comenta Régis Barros. Quem é diagnosticado com o primeiro também pode apresentar episódios de hipomania, mas, para isso, precisa ter ao menos um registro de mania ao longo da vida. As duas formas trazem algumas dificuldades para o diagnóstico. A aposentada Alba Fani, de 54 anos, trabalhou 33 anos na Força Aérea Brasileira e foi diagnosticada com o transtorno bipolar em 1998. Ela garante que não alterou a rotina e nem deixou de fazer as atividades que gostava. Voluntária em um traba-

Foto: Bárbara Bastos

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transtorno afetivo bipolar é considerado uma das doenças mais complexas que existem atualmente. De acordo com relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), 60 milhões de pessoas sofrem com esse mal. No Brasil, conforme dados da Associação Brasileira de Transtorno Bipolar, cerca de seis milhões convivem com a doença. O psiquiatra Régis Barros ressalta que os familiares e amigos são fundamentais no diagnóstico e no tratamento. “A família e amigos são de suma importância em qualquer tratamento psiquiátrico, pois, com a participação no tratamento, ajudará na estabilização clínica do paciente. E auxilia também na percepção de sintomas que o paciente não percebe no dia a dia”, afirma.


de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata). As reuniões acontecem todos os sábados das 15h às 16h30. A ideia é reunir pessoas que vivenciam as mesmas dificuldades decorrentes dos transtornos afetivos, tais como depressão e transtorno bipolar, e assim proporcionar um espaço de compartilhamento, compreensão e apoio. O estudante John Barbosa, de 27 anos, teve sua primeira crise em 2010, quando tinha 20 anos. Procurou um psiquiatra ao se perceber irritado e intolerante com as pessoas em casa e no trabalho. A mania de gastos excessivos com calçados, as gigantescas dívidas com o cartão de crédito, a dificuldade em dormir direito e a falta de concentração nas atividades mais corriqueiras atrapalhavam o cotidiano. Sem conseguir suportar as crises, decidiu procurar ajuda. “Hoje participo do grupo de acolhimento em uma unidade do Caps, e, todos os dias, tomo os medicamentos lítio e o quetiapina, que são estabilizadores de humor. E não deixo de usar os remédios prescritos pelo psiquiatra”, afirma. O DF tem 17 Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Eles são divididos por demanda atendida: transtorno mental (Caps), álcool e drogas (Caps ad) e infância e adolescência (Caps i). Também são divididos por tipo. O daqui é o III, destinado a localidades com populações de 200 mil habitantes, com funcionamento 24h e leitos para internações breves. Lá, é proposto um plano terapêutico para que o paciente frequente o tratamento, possa recuperar a autonomia e os vínculos sócio-familiares, além de estabilizar o quadro psíquico.

O ESTUDANTE John se dedica à preparação para concursos

O paciente poderá dispor de grupos terapêuticos, avaliações em psicologia, psiquiatria, enfermagem, terapia ocupacional e serviço social. O gestor da unidade do Caps II do Paranoá, Ricardo Alves, destaca que o acolhimento é para todos que têm algum tipo de transtorno mental. “O paciente será avaliado em psiquiatria e psicologia, mas pensando em um plano terapêutico singular, onde estas avaliações têm motivação e significado específico neste plano”, ressalta. A autônoma Elba Pinheiro, de 24 anos, descobriu que tinha o transtorno bipolar no ano passado, mas já sentia os sintomas há mais de cinco anos. Era um grande vazio, oscilação de humor e várias

tentativas de tirar a própria vida. Hoje, faz acompanhamento com psiquiatra e participa dos grupos de acolhimento do Caps de Sobradinho e do Hospital Universitário de Brasília (HUB). Elba ressalta que não consegue fazer nada na vida por muito tempo. “Ao mesmo tempo em que quero fazer as coisas e começo a fazer algo, tomo raiva do local e das pessoas e não apareço mais”, comenta. A aposentada Maria Zaneide, de 53 anos, também tentou o suicídio. Por três vezes. Ficou internada em outras quatro. Ela trabalhava como gerente comercial em uma imobiliária quando, em 2009, descobriu o transtorno afetivo bipolar após uma consulta com um psiquiatra. Sentia-se triste e, quan-

ONDE PROCURAR AJUDA? redemoinho . ano 08 . número 13

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APTA DF - Núcleo de Mútua Ajuda às Pessoas com Transtornos Afetivos do Distrito Federal. Telefone: 3107-1978. Email: apta.apta@gmail.com. Blog: http://apta-df.blogspot.com.br. Unidades dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) em Brasília. Link para verificar os endereços: http://www.saude.df.gov.br.

Hospital São Vicente de Paulo. Endereço: Área Especial nº 01 Taguatinga Sul Telefone: 3451-9700

Atendimento psicológico comunitário. IESB: 39624748 (Campus Oeste) e 3445-4502 (Campus Sul)

Centro de Formação de Psicologia Aplicada da Universidade Católica de Brasília (CEFPA): 33569328 UNIP: 2192-7092


Controle O transtorno afetivo bipolar não tem cura, mas pode ser controlado. O tratamento inclui o uso de medicamentos, psicoterapia e mudanças no estilo de vida, tais como o fim do consumo de substâncias psicoativas (cafeína, anfetaminas, álcool e cocaína, por exemplo), além do desenvolvimento de hábitos saudáveis de alimentação e de sono e dedução dos níveis de estresse. A psicoterapia é outro recurso importante no tratamento da bipolaridade, uma vez que oferece suporte para o paciente superar as dificuldades impostas pelas características da doença, ajuda a prevenir a recorrência das crises e, especialmente, promove a adesão ao tratamento medicamentoso que, como ocorre na maioria das doenças crônicas, deve ser mantido por toda a vida. A psicóloga Juliana Benevides indica para os pacientes a prática de atividades físicas e a execução de atividades de reflexão. “A atividade física proporciona bem-estar, liberação de serotonina e adrenalina. São passadas também atividades de autoconhecimento e reflexão sobre os sentimentos vivenciados no dia a dia”, ressalta. Cada tratamento é individualizado e conduzido em conjunto pelo paciente e psicólogo. As pessoas são atendidas de forma a cuidarem de suas questões emocionais e, assim, é identificado algo de incômodo no comportamento, comenta Juliana Benevides. Ela

explica que não há uma linha específica de terapia. O tratamento indicado é sempre o que a pessoa mais se sente confortável. “O vínculo terapêutico é extremamente necessário para a obtenção de sucesso e resultados no tratamento”, observa. Nas sessões, o psicoterapeuta ajuda o paciente na identificação das emoções e no reconhecimento de fatores desencadeadores de

possíveis mudanças de comportamento repentinas. Na rede pública, o trabalho é feito por uma equipe multidisciplinar. “O paciente pode ser medicado e suas manias e depressões diminuírem a intensidade, quiçá cessarem. É através do tratamento que conseguimos que o paciente tenha consciência da sua doença e se estimule a realizar essas atividades de reflexões e auto-avaliações”, conclui.

DESTINAÇÕES E TIPOS DOS CAPS Os CAPS possuem caráter aberto e comunitário, dotados de equipes multiprofissionais, realizando atendimento a usuários com transtornos mentais graves e persistentes, a pessoas com sofrimento e/ou transtornos mentais, em geral sem excluir aqueles decorrentes do uso de crack, álcool ou outras drogas. São organizados nas seguintes modalidades: CAPS I - atende pessoas de todas as faixas etárias que apresentam prioritariamente intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 20 mil habitantes. Existem 788 unidades no país. CAPS II - Com atendimento similar ao do Caps I, é indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 70 mil habitantes. Existem 424 unidades no país. CAPS III - atende prioritariamente pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Proporciona serviços de atenção contínua, com funcionamento vinte e quatro horas, incluindo feriados e finais de semana, ofertando retaguarda clínica e acolhimento noturno a outros serviços de saúde mental, inclusive CAPS AD. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 200 mil habitantes. Existem 56 unidades no país. CAPS AD - atende pessoas de todas as faixas etárias que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 70 mil habitantes. Existem 268 unidades no país. CAPS i - atende crianças, adolescentes e jovens (até 25 anos) que apresentam prioritariamente intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes, incluindo aqueles relacionados ao uso de substâncias psicoativas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Indicado para municípios ou regiões com população acima de 200 mil habitantes. Existem 134 unidades no país.

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do conseguia dormir, ouvia vozes. Hoje, faz uso diário de dois medicamentos e teve que entregar os cartões de crédito dela para a irmã, pois tem a mania de comprar roupas. Já chegou a comprar 15 blusas e nenhuma era do tamanho dela. “Tem crises que são horríveis. A pior é quando tento tirar a minha vida. Não faço terapias: a em grupo, por não aguentar ficar em locais aonde muitas pessoas falam ao mesmo tempo, e a individual, por ter passado por vários psicólogos e ter ficado sem paciência, cada dia, estou de um jeito”.

Fonte: Ministério da Saúde

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CAIO NUNES Renaul, 24 anos, foi diagnosticado com Síndrome de Asperger aos 5 anos

AUTISMO ALÉM DA PERCEPÇÃO redemoinho . ano 08 . número 13

A falta de conhecimento sobre a síndrome é realidade no Brasil. Famílias e diagnosticados lutam em busca de educação e saúde

WALDER GALVÃO

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PRIMEIRO DIAGNÓSTICO

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Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

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ara cerca de dois milhões do espectro do autismo. Caio tinha de brasileiros, é um de- dificuldade de comunicação e intesafio e tanto viver em ração com outras pessoas. Os pais um ambiente onde os decidiram levar o filho ao terapeuta sons são mais altos, as que, após um tempo, conseguiu dar cores são mais vibrantes o diagnóstico. Junto ao tratamento, A denominação autista surgiu e o incômodo está sem- o jovem precisou estudar em uma apenas em 1943. O psiquiatra pre presente. O mundo para os autis- escola particular especial para pesaustríaco Leo Kanner descreveu tas é um lugar desconfortável e lidar soas com a síndrome. Aos 13 anos, o caso de 11 crianças que com a realidade e com as pessoas é Caio foi para uma escola pública do tinham em comum aspectos uma luta cotidiana, que pode ser mais Distrito Federal, para cursar o ensino da síndrome. Ele usou o termo leve e bem sucedida se contar com a fundamental. Para ele, a experiência autismo infantil precoce, porque ajuda da família, compreensão dos foi gratificante. os sintomas podiam ser notados amigos, diagnóstico precoce e trata“Estudar em uma escola inclusina fase da primeira infância. mento correto. Os autistas têm uma va acabou me freando um pouco. As percepção diferente do ambiente e pessoas conseguiram progredir e eu dependendo do grau da síndrome, não. Quando fui para a escola pública, eles não conseguem interagir com a passei a interagir mais e acabei tendo os dias para o curso, que fica na 610 realidade. Em muitos Norte. A nova rotina e a possibilidade casos podem ter uma de uma formação também contribuí“Me tratar de forma diferente rotina produtiva. E há ram para o desenvolvimento de Caio. não ajuda. Quando passei a quem consiga fazer Em 2016, Caio concluiu o curso do autismo um aliadesenvolvido no IFB e agora passou a conviver com outras pessoas do para ter foco em procurar uma oportunidade no meruma atividade e atincado de trabalho. “Quero trabalhar melhorei minha socialização” gir resultados excepcom todo tipo de festas, principalCaio Nunes Renault cionais. O exemplo mente as infantis”, afirma. No tempo mais notório é o do jogador Messi, um melhor desenvolvimento”, conta livre, ele gosta de jogar vídeo games da seleção argentina de futebol. Caio. Em 2014, ele começou a estudar e mexer no computador. Por decisão A ignorância sobre o assunto faz no Instituo Federal de Brasília (IFB) da própria junto aos pais, Caio intercom que o diagnóstico, muitas vezes, Asa Norte. O jovem sempre gostou de rompeu o tratamento psicológico, seja tardio. Para as famílias, conviver organização e optou por fazer o curso afirma não ver mais necessidade. As com uma pessoa que têm a síndrome de técnico em eventos. Em seguida, a expectativas para o futuro são muirequer um novo aprendizado. E cada rotina dele mudou. Caio mora na qua- tas. “Quero continuar na minha área caso é um caso. Um desafio também dra 411 da Asa Norte e andava todos e abrir uma empresa de festas”, diz. para os especialistas. É que o autismo se manifesta de forma única em cada paciente, o que requer um procedimento sempre individualizado. Os dados sobre a quantidade de autistas no Brasil são do Centro de Controle de Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos. Não há dados nacionais, porque o país não faz um levantamento próprio de diagnosticados. A estimativa do CDC é baseada em estatísticas mundiais, que apontam um caso de autismo para cerca 68 crianças nos EUA, que tem cerca de 320 milhões de habitantes. A falta de conhecimento da realidade nacional também é pauta de instituições que lutam pela temática. A depender do nível do autismo, uma pessoa pode conseguir desenvolver diversas atividades profissionais na fase adulta. Caio Nunes Renault, 24 anos, foi diagnostico com NO DIA Mundial de Conscientização do Autismo, a Síndrome de Asperger aos 5 anos. monumentos ficam iluminados de azul. A síndrome está enquadrada dentro


PESSOAS COM autismo podem apresentar dificuldade de socialização

Desafio

Antes de saber que o filho tem mentos que o Henrique faz são partiautismo, Clessia confessa que não ti- culares. Mas existem muitos pais que A dificuldade de encontrar uma nha conhecimento sobre o assunto. não tem condições de arcar com isso. escola que atenda crianças autistas "Nem eu e nem minha família sequer Eu o inscrevi na rede pública há dois é uma grande preocupação por par- sabíamos o que era. A gente acaba anos e até hoje não obtive resposta", tes dos pais. Moradora do Gama, a sofrendo preconceito da sociedade reclama. professo porque muitos Cada pessoa desenvolve o autisra Clessia “Para os autistas, o incômodo não sabem do mo de uma forma diferente. A sínAmorim, que se trata e drome pode ser classificada em três está sempre presente. Eles 35, precisa acabam não níveis: leve, moderado e severo. A levar uma entendendo. psicóloga especialista em autismo e filtram as informações psicóloga e A descrimina- coordenadora da Organização Não uma psico- recebidas de forma diferente” ção dói muito Governamental, Movimento Orgulho Joane Brito, psicóloga pedagoga, mais do que Autista Brasil (Moab), Joane Brito, exeventual a criança ser plica que não há um exame específico mente, para a escola particular do autista", lamenta. A professora tam- que identifique o transtorno. "É nefilho Henrique Dias Amorim, 5 anos, bém ressalta que falta iniciativa do cessário realizar diversos exames para diagnosticado com a síndrome. As governo em divulgar o assunto e em descartar outros problemas. Com isso, profissionais vão até a unidade de criar iniciativas na saúde. "Os procedi- outros profissionais, como psicólogos, ensino instruir os responsáveis pela educação da criança. "Já tentei colocar ele na rede pública, mas a experiência não foi boa. Agora, estamos fazendo um teste com este novo modelo para saber se vai dar certo", relaPara os autistas, cada caso tem um grau de intensidade. Entre os sintomas ta. A professora conta que desde que estãoa falta de contato visual, interação social inadequada, irritabilidade, o filho tinha um ano já suspeitava movimentos repetitivos, repetição de palavras sem sentido. Além disso, de alguma coisa, comparando com no desenvolvimento da fase infantil, elas podem apresentar dificuldade outras crianças da mesma idade. "Só de aprendizagem, falta de atenção ou intenso interesse em assuntos conseguimos o diagnóstico quando determinados. Em alguns casos, os autistas também desenvolvem falta ele estava com três anos. Antes disso, de empatia, ansiedade e sensibilidade ao som ou tiques. Os pais devem ele passou por fonoaudiólogos, psificar atentos aos sintomas das crianças, quanto mais cedo o diagnóstico, a copedagogas e outras profissionais", chance de desenvolvimento é maior. conta.

SINTOMAS

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O termo autismo foi usado pela primeira vez em 1908 pelo psiquiatra suíço EugenBleuler. Ele se referia a sintomas relacionados à esquizofrenia. A palavra deriva do grego “autos” (eu).

psiquiatras, neurologistas e fonoaudiólogos realizam uma avaliação clínica para identificar o autismo", afirma. O tratamento deve ser procurado de imediato. Joane esclarece que o tratamento deve começar desde cedo, porque cada tempo perdido pode impactar no desenvolvimento da criança. "Se os pais perceberem algum comportamento fora do comum, como a criança não olhar nos olhos ou falta de interação, deve levar a um psicólogo", afirma. A psicóloga ressalta que o tratamento é realizado pela vida toda. Mesmo que cada caso seja diferente, algumas pessoas conseguem sair do espectro, mas podem manter alguma característica. O policial federal Fernando Cotta, 49 anos, é pai de um jovem de 19 anos diagnosticado com autismo. A falta de conhecimento sobre o tema fez com que Fernando se tornasse um dos fundadores do Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB). A Organização Não Governamental (ONG) reúne pais, mães, autistas e interessados no tema para promover o debate sobre o assunto. O objetivo da instituição é melhorar a qualidade de vida das pessoas autistas por meio de cursos, palestras, atos públicos e cobranças ao governo. "Lutamos por políticas públicas. Queremos acesso a educação, a um hospital onde as pessoas conheçam como lidar com os autistas", afirma Cotta. Para Cotta, o acesso a saúde para pessoas autistas no Distrito Federal é precário. "Muitas pessoas ficam em uma lista de espera sem fim. Conheço gente que está aguardando há três anos", lamenta. O policial federal explica que para um autista, o tempo perdido não tem volta. "Essas pessoas poderiam estar adquirindo uma série de habilidades, mas por falta de atendimento acabam começando o atendimento em atraso", diz. A MOAB luta até mesmo para que o Brasil passe a registrar o número de autistas no país.

Apoio do Governo No âmbito da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, a rede pública de saúde oferece à população, em especial às crianças e adolescentes, atendimento com equipe multidisciplinar em quatro Centros de Atendimento Psicopedagógicos (Caps), em Taguatinga, Recanto das Emas, Asa Norte e Sobradinho. Esses locais oferecem atendimento para todos os tipos de transtorno mental infanto-juvenil, incluindo o autismo. Além desses locais, há tratamento para autistas também nos dois Centros Especializados de Reabilitação (CER), localizados na Unidade Mista de Taguatinga e no Centro Educacional de Audição e Linguagem Ludovico Pavoni; o Centro de Orientação Médico Psicopedagógico (Compp), na Asa Norte; o Hospital da Criança de Brasília (HCB), que atende com protocolo específico para autis-

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ORIGEM DO TERMO

mo vinculado à neuropediatria; além do Hospital de Apoio, que participa com a Unidade de Genética fazendo testes que têm a função de aferir se a pessoa tem autismo. A Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) informa que todas as escolas públicas do Distrito Federal são consideradas escolas inclusivas. Os estudantes com Transtorno Global do Desenvolvimento e com Transtorno do Espectro Autista (TGD/TEA) podem ser encaminhados para classe comum, inclusiva até a Educação de Jovens e Adultos (EJA), IntegraçãoInversa até o 9º ano do Ensino Fundamento - Anos Finais, Classes Especiais até Ensino Médio e Centros de Ensino Especial. Os professores que atendem os estudantes com TGD e TEA são profissionais especializados, com aptidão para atuar na área. A SEEDF diz que oferece, periodicamente, formação inicial e continuada na área da educação especial.. A Diretoria de Educação Especial promove encontros e palestras por meio de profissionais capacitados, como forma de suporte especializado para melhor encaminhamento e atendimento a esses estudantes.

HÁ TRÊS níveis de autismo: leve, moderado e severo

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UMA ESCOLA PARA TODOS redemoinho . ano 08 . número 13

Deficiências auditiva, motora, visual e cognitiva são desafios para educação inclusiva, com valorização da diversidade em detrimento da homogeneidade na sala de aula FERNANDA MATOS

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COM AJUDA da professora, Ana Lúcia explica a importância da escola igualitária

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escola busca cami- Lei Distrital 3.218. Hoje, mais de sete nhar para a cons- mil estudantes, com os mais variados trução de uma reali- tipos de deficiência, ocupam as salas dade cada vez mais de aula das 674 unidades de educainclusiva. Jovens e ção pública e assistem a atividades crianças, com ou de apoio individualizadas no contrasem deficiência, turno escolar. No entanto, a adaptahoje têm o direito de estudar jun- ção das escolas para o atendimento tos para crescerem como cidadãos desses alunos tem sido um desafio felizes e capazes de contribuir para para a SEDF. a melhoria da qualidade de vida da As razões invocadas com maior sociedade. Embora as experiências frequência por pais, professores e pioneiras tenham surgido na segunda gestores educacionais de escolas cometade dos anos 80, foi na década muns e especiais para justificar a dede 90 que o ambiente escolar tomou mora no processo de inclusão no DF conhecimento da educação inclusiva. são diversas: capacitação de professoO caminho para uma escola igualitária res, falta de profissionais e de recursos CARLOS HOJE vive nova e verdadeiramente aberta para todos para atendimento dentro da sala de fase por estar integrado ainda é longo, mas os avanços na le- aula, acessibilidade, resistência de gislação são animadores. alguns professores, preconceito das Para a psicóloga e professora da famílias, reformas que possibilitem à Secretaria de Educação do Distrito Fe- acessibilidade, entre outras. não querem aprender libras e não deral (SEDF), Cecília Gomes Alecrim, Justamente a falta de professores tem professor exclusivo para as disum dos grandes problemas da inclu- é uma das reclamações da aluna Ana ciplinas. Isso me deixa triste. Preciso são no Brasil é a falta de preparação Lúcia Alves, do Centro de Educação ter muita força e coragem para lutar na elaboração de políticas públicas. de Jovens e Adultos da Asa Sul (Cesas). para ter igualdade com o ouvinte”, "Desde 1994, quando se lamenta. começou a falar em inclu- Especialistas destacam a necessidade A estudante acredisão em outros países, verita que muitos deficientes de as escolas adotarem métodos ficamos que o processo foi têm resistência à inclusão feito de maneira gradual, porque acreditam que as individualizados de ensino para preparando os professores. escolas exclusivas estão Aqui no Brasil foi diferente e atender singularidades de cada aluno mais preparadas para atennão houve preparação das derem as necessidades. escolas e famílias", explica. Matriculada há três anos, ainda tem "Eu acho que escola bilíngue própria A Constituição Federal de 1988 muita dificuldade para se comunicar para surdos é interessante porque lá assegurou a todas as crianças a igual- oralmente dentro da instituição, já os professores sabem libras, a escola dade de condições de acesso e perma- que é surda. Com a ajuda da profes- é preparada com todo o conteúdo, nência na escola. Além disso, instituiu sora Bárbara de Alencar, a estudante com todas as matérias”, opina. como um dos objetivos fundamentais reclama a ausência de apoio para o Além da falta de professores, o a promoção do bem de todos, sem surdo. "Falta professor especializado preconceito também é apontado preconceitos de origem, raça, sexo, e faltam intérpretes. Os professores como outro obstáculo para o procescor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Esse foi o início da discussão do processo de inclusão no Brasil, que ganhou força, sobretudo, com a Declaração de Salamanca, em 1994. Segundo o documento, as escolas deveriam acomodar todas as crianças, independentemente de condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas e outras. Ela estabelece ainda que as escolas têm que encontrar a maneira de educar com êxito todas as crianças, inclusive as que têm deficiências graves. No Distrito Federal, a inclusão de alunos com necessidades especiais em escolas públicas de ensino regular é obrigatória desde 2003, graças a


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so de inclusão no ambiente escolar. LUCAS BAROZZI, de 21 anos, mostra a Carlos Henrique Cazassus, de 22 anos, atividade da disciplina de informática possui síndrome de Down e enfrentou muitas dificuldades nas escolas regulares por onde passou. Hoje, ele estuda no Cesas na turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A mãe dele, Luciene Cazassus, conta que o processo de inclusão não foi fácil. “As escolas particulares não aceitavam ele porque era muito hiperativo. Ele ficava alguns dias e depois diziam que estava atrapalhando o processo de aprendizagem dos outros”, recorda-se, com revolta. De acordo com Luciene, Carlos já foi convidado a sair de 12 escolas do DF. Ela afirma que os professores não sabiam lidar com a hiperatividade do menino, deixando-o isolado. "Só aqui no Cesas que ele mudou de verdade. na universidade você percebe essa caConsidero que a vinda dele para cá foi rência. Aqui nas escolas, os educadoum divisor de águas. Aqui ele se sente res trabalham por blocos de disciplipertencente do grupo”, comemora. na. O professor de exatas não trabalha A aposentada Marília de Aguiar só com matemática, mas também fíBarozzi passou por uma experiência sica e química", afirma, destacando a muito parecida com o filho Lucas Ba- sobrecarga na instituição pública que rozzi, de 21 anos. Desde que parou possui cerca de 300 estudantes com de trabalhar, deficiências acompanha Hoje, o DF tem mais de sete visual, auditia rotina do va, intelectimil estudantes, com os mais va e física. menino dentro da escola. A asLucas estuda diferentes tipos de deficiência sessora da há três anos Diretoria de no Cesas e, assim como Carlos, está Educação Especial da SEDF, Adriana matriculado no EJA. O aluno estudou a Lúcia Gomes, admite a falta de intérmaior parte da vida em escolas particu- pretes e de profissionais, mas ressalta lares, mas eram vários os problemas de a formação continuada para os prosocialização. Segundo Marília, os colegas fessores. “Nós ainda temos problemas de classe eram violentos com ele e os pontuais em algumas escolas. A genprofessores não tinham paciência. “Ele te não tem como fazer substituição rasgava os cadernos dos amigos e ficava automática porque dependemos da muito nervoso. Não conseguia se adap- disponibilidade de ter professores tar e sempre repetia de ano”, lembra. qualificados para isso”, esclarece. Outra dificuldade relatada por Marília é o número insuficiente de profissionais no ambiente escolar. "A escola é muito boa, mas o sistema não é legal. Não funciona. Se o professor está de férias ou de atestado, o aluno fica sem aula. Isso acontece em todas as escolas do DF", diz. Luciene concorda. “Acredito que nosso sistema educacional não favorece a inclusão. Enquanto houver o sistema tradicional, não vai conseguir atender a heterogeneidade dos alunos”. A falta de professores nas escolas também foi destacada pelo diretor do Cesas, Reus Antunes de Oliveira. "Até

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LUCIENE ENFRENTOU dificuldades na inclusão do filho

No DF, a Escola de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação (Eape) oferta cursos de capacitação semestralmente aos professores efetivos, contratos temporários e técnicos em gestão educacional. Mas não parece ser o suficiente. O professor Clério de Andrade, que leciona matemática, física, biologia, química e educação física no Centro de Ensino Fundamental 4 (CEF) do Guará, acredita que nem a escola, nem os professores, nem a sociedade estão preparados para esse novo cotidiano de inclusão. “Se a gente quer realmente uma escola inclusa, tem que procurar capacitação. Hoje a sala de ensino especial é usada pelos professores como uma sala de aprendizado”, desabafa o professor. “Muitos não querem trabalhar com surdos, mas também não querem o intérprete nas salas de aula observando o que eles estão fazendo. Então, ele envia o aluno para sala


de recurso”, completa a professora PROFISSIONAIS DO CEEDV realizam Bárbara de Alencar, do Cesas. adaptação de livros para escolas Referência no atendimento de estudantes com deficiência visual, o CEF 4 do Guará tornou-se uma escola inclusiva em 2006. Dos 300 alunos matriculados, 35 possuem algum tipo de deficiência visual. Muitos são encaminhados pelo Centro de Ensino Especial de Deficientes Visuais (CEEDV), que, além inserir o aluno cego ou de baixa visão, realiza a adaptação de materiais demandados pelas salas de recurso. “Ele trabalha toda a questão de orientação e mobilidade, de aquisição do braile. É um local com trabalhos de excelência realizados em todo o DF”, reforça a assessora da SEDF Adriana Gomes. A exigência por uma escola inclusiva, não está limitada às institui- ções diferentes e, segundo a profesAtualmente, a escola possui aluções públicas. A lei determina que sora, em todas passou por falta de nos da educação infantil até o ensiqualquer escola do DF, incluindo as capacitação dos profissionais. Foi na no fundamental com autismo, defiparticulares, aceitem a matrícula dos CNEC que encontrou a melhor opção ciência motora, síndrome de Down alunos com necese deficiência intelectual leve sidades especiais. A e severa. A coordenadora peEscola Cenecista de dagógica da instituição, CaLei determina que qualquer escola, Brasília começou a mila Simões Abarno, explica inclusive as particulares, aceitem a atender estudantes que, para recebê-los, foram especiais, a exemplo necessárias adaptações tanmatrícula de alunos com deficiência de autistas, há aproto na estrutura, com a coloximadamente sete cação de rampas e reforma anos. Professora e mãe de Arthur Fer- pedagógica. "Ainda assim, acredito nos banheiros, quanto no material reira, 10 anos, Renata Resende Silva que é preciso investir na capacitação pedagógico. "Nosso material não Ferreira opinou que a inclusão existe dos educadores para aprimoramento vem adaptado, mas isso nos permite em poucas escolas. O filho dela, que da adaptação curricular e mediação fazer uma adaptação individual para é autista, passou por quatro institui- social", reforça. a necessidade de cada aluno", des-

MARCOS LEGAIS DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA - Constituição Federal/ 1988: estabelece a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; define a educação como um direito de todos, garantindo o pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho; estabelece a igualdade de condições de acesso e permanência na escola como um dos princípios para o ensino e garante, como dever do Estado, a oferta do atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino.

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- Declaração de Salamanca/1994: estabelece princípios, políticas e práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais. - Lei 9.394/1996: atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). - Convenção da Guatemala (1999), promulgada no Brasil pelo Decreto nº 3.956/2001: proíbe qualquer tipo de diferenciação, exclusão ou restrição baseadas na deficiência das pessoas. - Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva: publicada pelo MEC/2008 - Lei nº 13.005/2014: aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) - Lei Distrital 3.218/ 2003: determinou que até 2007 todas as escolas do DF deveriam receber alunos especiais

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SALAS DE recursos promovem condições de aprendizagem

AS INSTITUIÇÕES DE REFERÊNCIA NO DF Surdez Escola Bilíngue Libras/Português Escrito de Taguatinga Endereço: St. H Norte – Taguatinga, Brasília – DF, 72130570 Escola Classe 206 de Santa Maria Endereço: CL 206 C Lote C – Santa Maria Sul, Brasília – DF, 72506220 CEM 02 – Centro de Ensino Médio de Ceilândia

taca. O valor da mensalidade varia entre R$ 1.285 e R$ 1.308. Para a coordenadora pedagógica, o principal aspecto da escola inclusiva é o aprendizado com o diferente e a formação de cidadãos solidários. “A inclusão é feita de maneira tão natural que eles ajudam, respeitam. Recentemente, tivemos uma atividade com as crianças do quarto ano, onde a professora pediu para que os alunos descrevessem a imagem de um dos alunos com down. Das 18 crianças em sala, nenhuma falou sobre a deficiência.” Um ambiente transformador

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A Sala de Recursos é um ambiente de natureza pedagógica que complementa e apoia o atendimento educacional dos alunos deficientes visuais em classes comuns do Ensino Regular ou de Jovens e Adultos. No local, os estudantes são atendidos individualmente ou em grupo, normalmente no turno contrário à aula ou no próprio turno. No CEF 4, a pedagoga Raquel de Oliveira explica que todo o material utilizado neste espaço pelos estudantes com deficiência visual é produzido no CEEDV. "Quando eu preciso de material, solicito. Eles fazem a ampliação e digitam tudo. Às vezes, a depender do tamanho da letra, escanear não fica muito bom", comenta. A instituição é responsável por fazer toda a adaptação de

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materiais para deficientes visuais. O CEF 4 é uma das instituições que usa o material para alunos cegos e com baixa visão. "Os professores fazem visitas periódicas às escolas do ensino regular ou de Jovens e Adultos, quando a gente descobre um aluno com a deficiência, entramos em contato com a família e trazemos ele para o contraturno para prestarmos o suporte necessário", informa. Um dos alunos encaminhados para o CEF 4 pelo CEEDV é C., de 13 anos, aluno especial que pediu para não ser identificado. Ele possui deficiência visual e está na turma do sétimo ano. O rapaz estuda em outra escola pública do DF, mas frequenta o CEF 4 no período da tarde para reforçar os estudos. "Eu gosto muito dessa escola. Aqui aprendo demais. Tudo fica mais fácil quando venho para cá, graças ao atendimento dos professores na sala de recursos”, diz. Também com 13 anos e encaminhada pelo CEEDV, D., que não quer o nome revelado, está no sétimo ano. "Aqui a gente almoça, faz os deveres e outras atividades com os professores, que já colocam na nossa fonte, aí a gente faz tudo. Ainda assim, as dificuldades são muitas”, conta a menina. Assim como C., ela fica no CEF 4 apenas no contraturno para buscar a acessibilidade dos conteúdos. A dificuldade maior é enxergar as letras das provas e dos deveres de casa.

Endereço: Ceilândia Norte QNM 14 – Ceilândia, Brasília – DF, 72210-140 Deficiência visual Centro de Ensino Especial em Deficientes Visuais – CEEVD Endereço: SGAS II Quadra 612 Sul – Asa Sul, Brasília – DF, 70200-000 Centro de Ensino Fundamental 04 do Guará Endereço: D, Guará I QE 12 AE – Guará, Brasília – DF Deficiência Intelectual Centro de Ensino Fundamental 01 do Gama Endereço: EQ. 01/02 AE S. NORTE – GAMA, Brasília – DF, 72430-150 Centro de Ensino Fundamental 15 do Gama Endereço: St. Sul Q 5 – Gama, Brasília – DF, 72418-300 A assessoria da Secretaria de Educação do DF destaca que a sala de recurso não é um ambiente para o reforço escolar, mas um ambiente pedagógico onde são ofertadas atividades voltadas para as habilidades necessárias para que o professor regente, dentro do horário de aula, possa desenvolver os componentes curriculares. Ainda ressalta que o ambiente deve ser usado para o aluno aperfeiçoar possíveis deficiências de aprendizagem.


Em todo o DF há 13 Centros de para escolas que possuem Salas de pecial, mas na verdade ela favorece a Ensino Especial, que são unidades Recursos Multifuncionais. O recurso todos os estudantes da escola. Como escolares especializadas, onde todos é utilizado em adequações arquite- muitos que estão aqui têm dificuldaos estudantes matriculados são de- tônicas e aquisições de recursos de des sociais e familiares, ao conviverem ficientes. Neste espaço é utilizado o tecnologia assistiva para melhorar a com os alunos especiais, passam por currículo funcional e os estudantes acessibilidade no ambiente escolar. um impacto muito grande e se ajupossuem atendimentos complemen- Em dezembro de 2016, cerca de 4.265 dam”, observa. tares na área de educação física, ar- novas escolas foram beneficiadas Já o professor Clério de Andrade, tes e informática. Existe apenas uma pela ação. do CEF 4, opina que a realização de Escola Bilíngue de Libras no DF. Ela um diagnóstico para identificação Realidade necessária fica em Taguatinga e lá são atendidos das deficiências dos alunos a fim de estudantes surdos e ouvintes, tendo A educação inclusiva é transfor- diversificar as atividades é o segredo Libras como língua de instrução. madora e já está respaldada pelas leis para um processo eficiente de incluJá o Serviço de Avaliação e Apoio brasileiras. Agora é preciso respeitar são em salas de aula. “Não importa se Multiprofissional da Associação de as diferenças e começar a implemen- o aluno é especial ou não. Quando o Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) tar as mudanças necessárias para professor começar a trabalhar com os não funciona como escola, apenas construção de uma escola justa e para estudantes de acordo com as necescomo suporte. “Nós transformamos todos os estudantes. O diretor do Ce- sidades que eles têm, a inclusão vai nossos espaços em acontecer", reforça. O oficinas: cozinha, futuro promissor, indeO Brasil avançou no campo regulatório, recepção, vendas, pendente da deficiência, lojinha, limpeza, didestacado por Camila mas estacionou na efetivação da educação éAbarno. gitalização. Todos os “Temos crianespaços possuem um ças que desejam ser inclusiva dentro das escolas professor e os alunos médicos, psicólogos, e aprendem fazendo", a gente acredita nisso. A explica Cecília, coordenadora da uni- sas, Reus Oliveira, acredita no poder gente quer que eles sejam acolhidos dade da Asa Norte. transformador da educação inclusiva. lá fora, e que encontrem pessoas que Segundo informações da asses- Ele observa que não são atendidas valorizem o aprendizado deles porsoria de comunicação do Ministério apenas as crianças com deficiência, que, por mais que às vezes seja um da Educação (MEC), o Governo Fe- mas também as excluídas ou discri- pouco aquém das outras crianças, deral desenvolve o Programa Escola minadas. "As pessoas acreditam que a existe. A sementinha está plantada”, Acessível que repassa investimentos inclusão beneficia apenas o aluno es- conclui.

EXPERIÊNCIA POSITIVA Fabrício da Silva Marques tem 22 anos e é cadeirante. Estudou em escolas públicas e acredita na inclusão. Ele tem mais elogios do que reclamações para fazer ao sistema. Ainda assim, acredita que é preciso melhorar a acessibilidade. "Já tive que usar o banheiro feminino por não ter adaptação no banheiro masculino, por exemplo". Hoje, estuda numa instituição particular. Conta que faz supletivo para conciliar melhor os horários com outras atividades, a exemplo da prática de esportes. Ele é atleta de Vela Adaptada, uma modalidade esportiva para pessoas com necessidades especiais. redemoinho . ano 08 . número 13

Quando completou16 anos, Fabrício foi atingido por um tiro em um assalto na pizzaria onde trabalhava. O cadeirante conta que foi por meio do esporte que encontrou uma nova direção para sua vida. "Mudou minha vida em todos os sentidos. Eu saí do comodismo, tirei todos pensamentos negativos da minha cabeça e voltei a ter autoestima. Hoje, quando eu entro na água com o barco, esqueço de tudo: dos problemas e até que sou cadeirante", finaliza.

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AS MUITAS HISTÓRIAS NA RODOVIÁRIA 28


Foto: Reprodução/Borowskki

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Mais de 50 anos após a criação, Brasília ainda recebe diariamente migrantes em busca de sonhos; entre as muitas vindas, sobram idas de quem deixou de ver a Capital como sinônimo de esperança

GABRIEL CORNÉLIO

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T

odos os dias é Conhecida como “Capital da Esum vai-e-vem, perança”, Brasília sempre contou com a vida se repe- um grande número de migrantes, inite na estação, cialmente vindos para a construção tem gente que da cidade e, posteriormente, para inchega pra fi- tegrarem os demais setores de uma car, tem gente localidade em pleno desenvolvimenque vai pra nunca mais”. A canção to. Segundo a Pesquisa Distrital por Encontros e Despedidas, de Milton Amostra de Domicílios do Distrito FeNascimento, retrata uma realidade deral (PDAD-DF) de 2015, mais de 51% que é vivenciada na Rodoviária Inte- dos habitantes do Distrito Federal são restadual de Brasília, onde mais de migrantes, e apenas 0,5% vieram de mil pessoas enfrentam, diariamente, outro país. Ou seja, mais de metade as idas e vindas da vida. De mais de da população do DF vem de outras cem localidades diferentes, jacys, unidades da federação. Nos discurjosés, marias e rosanas, entre tan- sos de quem chega na principal estatos outros, trazem e levam histórias ção de Brasília, é comum ouvir que a distintas, repletas e vazias de ex- beleza da capital provoca em quem pectativa e vem de fora esperança. sensação É comum ouvir de quem chega ade esperança O técnico em enfer- que a beleza da Capital provoca por uma realimagem dade melhor. a sensação de esperança por desemprePara o gado Jacy professor de uma realidade melhor Siqueira, geografia da 45 anos, Universidade ruma para Pernambuco, após ter de Brasília (UnB) Fernando Luiz Araújo perdido o emprego. O aposentado Sobrinho, as migrações internas no José Araújo da Silva, 65, vai visitar a Brasil estão muito ligadas à procura família na Paraíba, enquanto Maria por melhores condições de empreCreusa Vieira dos Santos, 45, do Ce- gabilidade. “No Brasil é bem evidente ará, retorna à cidade que a acolheu a diferença de desenvolvimento das por 16 anos para visitar a irmã. Já a regiões Sul, Sudeste e, mais recenprofessora Rosana Farias de Queiroz, temente, Centro-Oeste. Há um forte 23, desembarca na Capital Federal movimento migratório das regiões em busca de um emprego melhor Norte e Nordeste para estas regiões e da possibilidade de continuar os na busca por melhores oportunidaestudos. des de trabalho”, afirma o professor.

redemoinho . ano 08 . número 13 VIAJANTES AGUARDAM a partida do ônibus que segue para SP; trajeto leva cerca de 16 horas de viagem

O TERMINAL INTERESTADUAL Inaugurada em 2010, a Rodoviária Interestadual de Brasília recebe linhas de ônibus procedentes e com destino a cidades de todas as regiões do Brasil. Com custo de mais de R$ 55 milhões, possui mais de 20 mil metros de área e conta com 32 boxes para os veículos de transporte coletivo, além de dez estabelecimentos comerciais e quatro quiosques. Atualmente, 39 empresas operam no local e oferecem mais de cem destinos em todas as regiões do país. Em concessão pública, o consórcio “Novo Terminal” ganhou o direito de administração por 30 anos. A estimativa é de que, diariamente, cerca de mil pessoas circulem na Rodoviária. Segundo a assessoria de comunicação da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), em todo o Brasil 188 empresas oferecem este tipo de transporte interestadual em 9.610 veículos. Não há registros da quantidade de terminais rodoviários que operam legalmente no país.


TRINTA E nove empresas operam na rodoviária e oferecem mais de cem destinos

interior pernambucano. No terminal desde às 8h, precisaria esperar por dez horas, até a partida, para evitar gastar alguns trocados a mais. Belo Horizonte foi onde Jacy conseguiu se manter por mais tempo. Vindo do interior do estado, do município de Três Corações, terra natal do “Rei Pelé”, mudou-se para encontrar melhores condições de trabalho. A realidade não foi a esperada. Morava em uma casa alugada, não ganhava o suficiente para se manter e tampouco ajudar a família, que morava no interior, com as despesas. Nos três anos seguintes, migrou por quatro estados em busca de melhores empregos e qualidade de vida. Mas não conseguiu. “Nunca consegui me fixar muito bem em nenhum desses lugares porque acabava não “Depois de me aventurar pelo Sul, ficando por tempo Sudeste e agora no Centro-Oeste, vi no muito no emprego. Nordeste uma chance de recomeço” Em Brasília, o custo de vida Jacy Siqueira, 45 anos, técnico em enfermagem desempregado é muito alto”, lamenta. EnquanVindo de Belo Horizonte para Bra- to uns migram em busca de melhosília em uma viagem de ônibus que res condições de vida, outros vão durou 12 horas, Jacy carregava consi- visitar familiares deixados ou mesgo uma mala e uma mochila com os mo para conhecer novos parentes. pertences e o necessário para buscar O aposentado José Araújo da Silva, um emprego no mais novo destino. 65, que hoje vive da agricultura no Depois de ficar três anos em Brasília, pequeno município de Goianésia, no ele se preparava para 36 horas dentro interior de Goiás, se preparava para de um ônibus até chegar à cidade do a segunda opção. “A gente tenta ir

todo ano, passar uma semaninha com a família, matar a saudade. Esta é a minha primeira vez, sempre minha esposa vai sozinha. Para a gente que é mais velho, é importante”, afirma ele, enquanto aguarda o transporte para Campina Grande, na Paraíba. Ainda que haja empolgação em rever parentes, é perceptível o desânimo frente ao desgaste das muitas horas de viagem. O casal carrega diversas malas, com roupas, documentos, utensílios domésticos levados na intenção de doar para a família, que vive em situação mais precária, além

LIMITE DE bagagem não é problema para quem viaja longos percursos

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Com o aumento das migrações, há, simultaneamente, uma diminuição das oportunidades de emprego para quem chega à Capital. Apesar das dificuldades enfrentadas durante a migração, muitos ainda optam por tentar uma vida melhor em outra cidade. Este é o caso de Jacy, que, pela quinta vez, busca uma nova oportunidade de melhoria de vida. Depois de passar por Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Brasília, o mineiro ruma para Caruaru, em Pernambuco, para tentar uma nova vida. “Depois de me aventurar pelo Sul, Sudeste e agora no Centro-Oeste, vi no Nordeste uma chance de recomeço”, comenta.

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JUIZADO DE MENORES

Segundo a representante da Vara da Infância do TJDFT que fica na Rodoviária, Carla Viviane Ribeiro Marques, as ocorrências mais comuns estão relacionadas à fuga de crianças dos respectivos lares delas. Por não contarem com um ambiente familiar acolhedor, muitas optam pela fuga e acabam em terminais rodoviários. Existem casos de crianças de Brasília que buscam refúgio em outros estados e também de meninas e meninos que chegam a Brasília desacompanhadas. Em um caso específico, um garoto de 15 anos, que reclamou sofrer abusos dos pais, fugiu de casa e veio parar no terminal de Brasília. Desamparado, o garoto procurou

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da marmita com a comida para passar a longa viagem, de 48 horas. O casal ainda precisa fazer uma “baldeação” em João Pessoa, antes de chegar a Campina Grande, após um percurso de mais de dois mil quilômetros de distância. Perspectiva Para o psicólogo Alberto Rodrigues Câmara de Carvalho, os deslocamentos são consequência das perspectivas do migrantes em suas atuais

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ajuda no juizado de menores e foi acionada a Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA) que conseguiu entrar em contato com os pais. O caso foi levado à Justiça. A família teve a guarda suspensa por encontrarem evidências de maus tratos. O adolescente voltou para o estado dele, mas foi encaminhada para uma casa de abrigo. “Crianças só são permitidas viajarem desacompanhadas mediante apresentação de autorização expedida pela DCA e documento com foto, mas como existem terminais que operam de forma ilegal, ainda existem muitas ocorrências desse tipo de caso”, afirma Carla.

condições e naquelas que podem ser encontradas e conquistadas em seu local de destino. A mudança, segundo o pesquisador aponta na dissertação de psicologia na UnB, é algo que representa uma possível melhoria nas condições de vida do migrante. Durante 16 anos, esse foi o sonho de Maria Creusa Vieira dos Santos, 45, doméstica e cuidadora de idosos, que em 2001 veio do Piauí para o DF, em uma viagem que “durou três longos dias em um ônibus desconfortável”,

como relata. Ao deixar três filhos sob os cuidados da mãe, resolveu tentar a “sorte grande,” encorajada por uma irmã que já havia vindo para cá. Achou mais fácil encontrar empregos e melhores salários. Vinda do município de Beneditinos (PI), com menos de 10 mil habitantes, ficou encantada com a cidade grande, as grandes construções e a beleza de monumentos como a Catedral e o Congresso Nacional. No início foi difícil, ficou 35 dias desempregada, dormindo em um colchão no chão na casa da irmã e do cunhado. Quando conseguiu as primeiras oportunidades como faxineira, as coisas começaram a melhorar. Todo dinheiro que entrava, separava uma parcela para enviar para a mãe e os filhos, que ficaram no Piauí. Durante oito meses, essa foi a rotina de Creusa, como gosta de ser chamada. A partir daí, conseguiu pagar um aluguel, em Ceilândia, e pode ter as próprias coisas. Para ela, ter o próprio espaço foi muito bom, mas a saudade de casa e, principalmente, dos filhos apertava cada vez mais. Nos dias de folga, passou a frequentar uma casa de forró onde conheceu um parceiro e acabou engravidando novamente. Como não trabalhava com carteira assinada, a gravidez se tornou um problema para se manter no emprego de faxineira e acabou demitida. Abandonada pelo pai da criança, viu as dificuldades dobradas. Quando a menina completou 6 meses, Creusa voltou a procurar emprego. Sem ter com quem deixar a filha e ainda sobrevivendo com a ajuda da irmã, conseguiu uma casa para trabalhar e morar. A patroa tinha sofrido um AVC e não poderia ficar sozinha, uma vez que o marido dela trabalhava durante todo o dia. Com um quarto só para ela e a filha, comemorou: “Não encontrei um trabalho, encontrei uma família”. Passou a ter direito a carteira assinada, férias e 13º salário. “Todos os anos eu viajava de volta para o Piauí

“Não encontrei um trabalho, encontrei uma família” Maria Creusa Vieira dos Santos, 45, doméstica e cuidadora de idosos


LONGAS ESPERAS fazem parte da rotina de quem passa pelo terminal rodoviário

Resiliência A cearense Rosana Farias de Queiroz, 23, veio para Brasília logo que se formou na faculdade de Pedagogia, justamente em busca de melhores

Já está para completar o segundo oportunidades de emprego. “No Ceará, professor ganha muito pouco, e ano empregada, com carteira assinaquero aprofundar os meus estudos, fa- da e tirou as primeiras férias em juzer uma pós-graduação”, comenta Ro- lho. Aproveitou a oportunidade para sana. Chegou aqui bem jovem e com voltar ao Ceará para visitar a família. muitas esperanças, que, inicialmente, Desde então, avalia ela, a situação de acabaram frustradas, pois passou os vida melhorou bastante. “Já conseprimeiros quatro meses desempregada gui até alugar um local para morar”, e morando na casa da tia. Foi então que comenta. conseguiu um emprego numa Psicólogo explica que mudança escola de educaquase sempre é vista por migrante ção infantil, em Ceilândia, para como possibilidade de trabalhar como bibliotecária. melhoria nas condições de vida

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para ver os meus filhos e meus pais”, completa. Ficou por lá 13 anos, até que o patrão dela morreu e, anos depois, a mulher também. “Cuidei dela até o dia em que ela faleceu”, conta Creusa. Depois disso, resolveu fazer o caminho de volta ao Nordeste. Atualmente, mora no Piauí, mas ainda vem a Brasília visitar a irmã e o cunhado que seguem vivendo aqui.

É COMUM ver transporte simultâneo de vários volumes


DIGA DE ONDE VENS E DIREI SE TE RESPEITO redemoinho . ano 08 . número 13

Mesmo com legislação voltada a migrantes, o medo do desconhecido continua a ser uma barreira tanto cultural quanto social

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NATHÁLIA SIRNES


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primeira barreira eles uma conta corrente, a resposta foi: acredita que ela vá se estabilizar em venceram. Deixaram não pode para você. Só pode para terras brasileiras. “Não é justo”, propara trás os países latino-americano. “Ele não fez para testa. A língua pode ser uma barreira de origem, em busca mim, mas ele fez para o haitiano. Eu para Cèline, que não fala português. de uma vida melhor vi”, contou. Historicamente, os negros trazidos e um futuro mais Se o preconceito muda de acordo da África para o Brasil aprenderam promissor, e encon- com a nação de origem do migrante, português por meio dos berros do traram abrigo em uma nação onde, os fatores que os levam a deixar a ter- capataz. Esse foi o primeiro desafio em tese, a lei de migração assegura ra natal também são vários. A geógra- cultural do negro brasileiro. o direito ao respeito mútuo e às ma- fa Nayara Belle, 32 anos, explica que A xenofobia não poupa nem os nifestações culturais. O problema é existem várias teorias para explicar es- vizinhos do Brasil. A contadora paraque dependendo do país onde nasce- tes fluxos migratórios, mas questões guaia Blanca Azucena, 50 anos, pasram, ao chegar ao Brasil os migrantes políticas e econômicas estão entre sou por isso. A família a trouxe para o sofrem uma das mais cruéis formas as principais. “As pessoas migrariam Brasil quando ela tinha apenas 7 anos. de preconceito: a xenofobia. O mais visando melhores salários, oportuni- Até hoje ela se lembra da exclusão doloroso é que com o tempo, muitos dades, qualidade de vida. Seria uma que sentia na escola e nas relações sodos 1,8 milhão estrangeiros, que aqui conjunção de fatores de repulsão no ciais. Com o tempo, ela e o irmão senvivem, passam a aceitar a discrimina- país de origem com fatores de atração tiram que precisavam se destacar nos ção como natural, o que pode reforçar no país de destino”, esclarece. estudos para chamar a atenção. Aos os dados do serviço de registros de Essa questão se aplica à costu- poucos a família passou a ser menos reclamações do Ministério dos Direi- reira Fonkeu Cèline, 44 anos, vinda discriminada também pelo sotaque tos Humanos, o Disque 100. de Camarões em busca de melhores espanhol. Somente dez anos depois No mais recenela diste levantamento do se que a “É muito difícil pagar a casa, as contas. Não é justo. Ministério, foi revesituação lada uma queda de mudou, Minha vida é realmente difícil aqui” 26,97% no número também Fonkeu Celine de denúncias de graças ao xenofobia no serviço de denúncias e condições em relação às que tinha no domínio do novo idioma. “As pessoas proteção contra violações de direitos país natal. Inicialmente, a costureira não me viam mais como estrangeihumanos. No entanto, esses dados iria para a Alemanha, onde pretendia ra. Eu não tinha mais sotaque, sabia podem não revelar a realidade, pois juntar dinheiro para ajudar a família. escrever e falar muito bem o portuem muitos casos as vítimas se acos- Cèline está há um ano e meio no Brasil guês”, conta. tumaram a sofrer preconceito e não e ainda não encontrou trabalho. Por Xenofobia é seletiva registram queixas. aqui a vida tem sido ainda mais dura e Por ser um país miscigenado his- ela passou a depender do repasse de A xenofobia está diretamente litoricamente, o Brasil de acordo com a dinheiro dos irmãos que deixou para gada ao país ou continente de origem Lei de Migração (lei 13.445, de 24 de trás. Justamente aqueles a quem ela daquele que escolheu o Brasil para maio de 2017) facilita o processo de queria ajudar, ao sair de Camarões. viver. Enquanto africanos e latinos acolhimento dos migrantes na socie- A costureira diz que a família ainda sofrem com a discriminação, os eurodade. A lei os ajuda na batalha diária de enfrentamento à discriminação, xenofobia e segregação social. O preconceito não se refere apenas ao fato de a pessoa vir de outro continente. Há uma segregação entre os próprios migrantes, na qual o país de origem determina a posição na “escala de necessidade”. O professor de instrumentos africanos Alpha Kabinet Camara, 30 anos, que veio da Guinée Conacri, está no Brasil há um ano e nove meses, e morou em São Paulo um ano e cinco meses, antes de vir para a capital. Ele revelou que já foi demitido por ser africano e não ter a documentação, e nem ajuda necessária do patrão. Ao pedir auxíA COSTUREIRA Cèline e os filhos lio na construtora, onde trabalhava que vieram para o Brasil como pedreiro, para a abertura de


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peus, asiáticos e norte-americanos já do curioso, queria aprender a falar pisam em terras brasileiras sob olhar inglês. Fazer amizade com a gente”, de admiração e respeito. São tratados lembra. como superiores. Um exemplo é o foO estereótipo a ser rompido tógrafo português Miguel Correa, 49 anos, que chegou em agosto para se A televisão fez as noções de précasar com uma brasileira e em apenas -conceitos se tornarem ainda mais dois meses tem grupo de amigos, ro- presentes no dia a dia e ampliam a teiro de lazer e acesso ao que a capital visão negativa que os nativos têm a tem de melhor a oferecer. “Tenho me respeito das pessoas vindas de dedado super bem. Não tenho nada de ruim a dizer. Todas as pessoas me têm tratado bem”, conta. A Ásia pode ser considerada por muitos um continente modelo, pois ao ver uma pessoa de olhos puxados, logo associa-se à inteligência, mas vai além disso. O acupunturista chinês Wang Jian Bo, 48 anos, veio para o Brasil há 20 anos visitar o irmão, que já morava aqui e viu uma oportunidade para se estabelecer. A mulher de Wang, a empresária Zhao Meixia, 46 anos, veio com o marido e disse que foram muito bem recebidos pelos brasileiros. “Sou DE TODOS os continentes, a África sempre elogiada é o que mais sobre com xenofobia por ser diferente. Quando apresento a culinária chinesa sempre tenho resposta uma posi- terminados países. Do mesmo modo tiva”, conta. que a imagem do Brasil é vendida no O Brasil visto de dentro pode exterior como o país do futebol, as não parecer um lugar convidativo imagens que chegam a respeito da para investimentos, mas a família África para todo o mundo só mosdo norte-americano Clay Robert Earl tram pobreza e miséria. O estilista não pensava assim. O fazendeiro de Massala Pacomé, 39 anos, passa por 57 anos veio com a família para o Brasil em 1973 “Sobre essa coisa com os outros para trabalhar com fazenda no Oeste baiano. estrangeiros, não é fácil, Como ninguém falava português, os funcioná- principalmente por ser negro” Masalla Pacome rios da fazenda dos pais o ensinaram o idioma. Clay conta que foi muito bem rece- isso, diariamente, no Brasil. Ele veio bido pelos brasileiros e se encantou do Gabão por incentivo do pai, que com a cultura baiana. “Todo mun- mandou o filho para cá, com o sonho

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dele se tornar jogador de futebol. Não deu certo e a saída foi a moda. O rapaz tornou-se estilista. Apesar de falar três idiomas e ter ampla bagagem cultural, Massala diz que passa por situações constrangedoras, diante do pré-julgamento. “Eu acho estranho às vezes, porque as pessoas falam assim: ‘na África [vocês] sofrem muito. Vocês não comem’”, conta. “Não. A gente come, cara”, desabafa. O africano que está no Brasil há 15 anos, lembra que trabalhar no mundo da moda foi mais um desafio, que ele ainda enfrenta. ”Para entrar no mundo da moda, abrir uma loja, uma coisa assim, tem preconceito. Até do vizinho que tem loja do lado”, relatou, ao lembrar que os demais comerciantes sempre o encaram com um olhar de preconceito e desconfiança. Para a geógrafa Nayara, a mesma mídia que dissemina a imagem estereotipada de nações menos desenvolvidas tem a obrigação de transpor estes pré-conceitos. “Para combater a xenofobia a mídia tem um papel muito importante para desmistificar a migração e o refúgio e transpor essa barreira do estranhamento da diversidade cultural e religiosa”, diz. Mais pontes e menos muros Um dos principais desafios dos migrantes, ao chegarem a outro país, é manter a própria cultura, ao mesmo tempo que são obrigados a conviver e assimilar a cultura local. A iniciativa do coletivo Bambuo tem essa finalidade. O projeto Mais Pontes, Menos Muros, visa a aproximação por meio da culinária, onde no ato da compra de uma comida típica, existe uma aproximação do país daquele prato. A empresária social Marina Miranda, 27 anos, que coor-


dena os projetos do coletivo, diz que é um projeto de trocas, e não de caridade. “São trocas horizontais entre brasileiros e imigrantes. A gente não está aqui só para estender a mão. Está aqui para aprender muito com essas pessoas”, explica. Em seminário realizado na Universidade de Brasília (UnB), na primeira quinzena de outubro, o professor de psicologia Bem Kuo, Ph.D da Universidade de Windsor, Canadá, explicou que existem duas perspectivas de cultura. A etic, na qual há um universalismo cultural, onde a própria cultura será a única MASSALA E Alpha representando o válida. A emic, na qual há um relatiGabão em uma feira de imigrantes vismo cultural, onde a diversidade cultural é respeitada e apreciada. Nesta última, existe uma divisão de Uma questão histórica dimensões da diversidade, em que O antropólogo fez estudos tamexistem nove fatores a serem analibém sobre batalhas enfrentadas sados antes de um pré-julgamento. Em uma das mais importantes pelo negro, na qual mostra que até São eles: idade, necessidades espe- obras sobre o perfil da população, hoje a luta mais árdua do africano ciais, religião, etnicidade, status so- “O Povo Brasileiro”, o antropólogo e descendentes é desfazer o pensacial, orientação sexual, ascendência, Darcy Ribeiro explica as lutas en- mento de que eles são aproveitados origem e gênero. frentadas pelos negros vindos da apenas para o trabalho braçal. Por O professor contou que ao pas- África, ao tentarem se adaptar à terem terras negadas pelos brancos sar dois meses na Nova Zelândia nova cultura. Uma das alternativas no meio rural, o negro veio para a entendeu a imcidade e criou portância do não “No momento que eu cheguei aqui, graças a Deus e os “bairros nejulgamento. Existe que com bons amigos, eu consegui organizar minhas coisas gros”, uma cultura do o passar dos povo maori chaanos se transpouco a pouco” mada whakapapa, formaram nas Alpha Kabinet Camara que se baseia no favelas, como estudo dos fatores acima menciona- encontradas para isso foi a criação são conhecidos atualmente. Nesse dos, como forma de compreender o de quilombos, por negros que já ambiente, foi criada uma cultura outro e evitar choques culturais. Em sabiam viver na natureza brasilei- com tudo que o africano guardava uma batalha, a descoberta de que ra. Os quilombos deram abrigo aos no peito devido aos anos de represoponente pode ser um primo dis- negros fugidos e preservou a cul- são. O resultado é um dos traços tante muda o contexto, mostrando tura africana, pois seria impossível mais fortes da cultura brasileira, uma ligação entre eles que nem os reconstituir o modo que viviam na que são a músicas, os ritmos, os saÁfrica. próprios sabiam que existia. bores e a religiosidade.

A MUDANÇA TEM QUE ACONTECER redemoinho . ano 08 . número 13

Na maioria dos casos, os migrantes são pessoas que precisam de socorro e fazem de tudo para deixar as condições em que viviam. Ainda que corram risco de morrer, durante esse processo. De acordo com estudo realizado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), nos primeiros cinco meses de 2016 mais de três mil migrantes e refugiados morreram ou desapareceram enquanto tentavam cruzar fronteiras. Em 2015, o número de vítimas nas rotas migratórias chegou a 5,4 mil pessoas. O Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) configura essa a mais grave crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial. O estudo revelou também que na década de 1970, 80% dos imigrantes destinavam-se a países fora da própria região do globo, e que hoje essa proporção foi invertida, e 64% migram entre países latino-americanos. Como observou o escritor nigeriano Wole Soyinka, aqueles que se calam diante dessa situação dramática também são responsáveis pelas vidas perdidas em meio à crise humanitária.

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Ilustração: Helena Jungmann

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É, SIM, PADECER NO PARAÍSO Movimento de desconstrução da maternidade romântica propõe quebra de padrões e busca expor a realidade enfrentada por essas mulheres

MAÍRA ALVES

estão dormindo, podemos conversar sossegadas”, disse em tom eufórico, enquanto arrumava o cabelo e as cadeiras da sala, onde a entrevista seria dada. Foi aos 21 anos que Renata se deparou pela primeira vez com o universo desconhecido da maternidade. Foi um choque. “Nos decepcionamos muito quando a criança nasce, pois, antes de nascer existe a idealização de uma maternidade perfeita”, comenta, após checar se as filhas continuavam dormindo. “Principalmente os primeiros meses, são muito puxados. Você quer ser feliz, se sentir bem, mas você não consegue ”, desabafa. “ A criança te traz muita felicidade, mas você não dorme, não vai ao banheiro, não escova os dentes direito”, disse. Renata não é uma exceção de quem ama os filhos e a maternidade, mas descobriu uma realidade diferente da vendida pela mídia. Quase todas as mães relatam uma situação semelhante. Elas se sentem atraídas pelo sonho de serem mães, por meio da idealização da mídia, assim como, a imposição cultural pré-estabelecida desde o nascimento. A historiadora Sabrina Balthazar ressalta que o conceito de maternidade observado atualmente foi constituído lentamente

no início do século 15, ganhando corpo com o passar do tempo. “Ciência, estado e medicina consideravam relevante a atribuição da criação dos filhos às mulheres, já que aos homens era destinado o papel no mercado de trabalho e de provedor da família”, explica. Como a função de criação dos filhos era destinada a elas, a pressão pelo bom comportamento familiar acaba por recair no colo das mulheres, responsáveis por manter a boa imagem da família. “No século 20, jornais e revistas destinavam cer-

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maternidade é uma coisa muito solitária. Você se sente em um barco sozinha. Tudo depende de você”. O desabafo é da dona de casa Renata Lopes, 26 anos, casada e mãe de duas filhas de 2 e 5 anos. O relato vai contra uma imagem romântica e idealizada da maternidade. Uma reprodução perpetuada pela ficção dos filmes e telenovelas, que causa sofrimento à maioria das mulheres. Uma corrente denominada maternidade consciente tenta desconstruir tais mitos. A desconstrução da maternidade romântica busca informar a realidade enfrentada por mulheres-mães, com o intuito de garantir o acesso a informações pertinentes sobre a maternidade real, a fim de tomar uma decisão consciente sobre uma vida com ou sem filhos. O assunto é controverso até no movimento feminista. Era uma tarde comum de segunda-feira, casa limpa, louça por lavar e alguns poucos brinquedos espalhados pelo chão da sala. As meninas tiravam o cochilo da tarde, que dura em média uma hora e meia, tempo que Renata reserva para si. “As meninas

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A DESCONSTRUÇÃO da maternidade romântica é uma forma de empoderamento

Mas muitas pessoas se afastam, diz a psicóloga, então a mulher que se torna mãe tem de lidar com a própria solidão e a solidão do círculo social. A psicóloga Beatriz Bandeira questiona os padrões de maternidade atuais e aponta as angustias sofridas por essas mães, além dos problemas causados pela construção da maternidade romântica. “A idealização da maternidade não traz nada de bom. Ela só traz dor e sofrimento, para quem não vive a maternidade dessa forma”. Ela defende a criação de redes de apoio para as novas-mães, a fim de combater um ideal de maternidade que oprime as mulheres. “Esse apoio é necessário para curar as feridas do feminino relativas à maternidade, às opressões que todas que as mulheres sofrem. Um espaço compartilhado de respeito, de apoio, acolhimento e escuta”, conclui. Mães solo

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No caso da dona de casa e mãe de uma filha, Brenda Arnaud, 19 anos, a falta de apoio do pai da criança a fez buscar alternativas para fugir da culpa da maternidade solo, e coto espaço para apresentar um papel Em pesquisa realizada pela Fun- menta que a experiência da materfeminino sempre atrelado aos afaze- dação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e pu- nidade poderia ter sido mais fácil, res domésticos e ao cuidado com os blicada na revista científica Journal caso tivesse tido acesso a materiais filhos. Ressaltando a função prioritária of Affective Disorders, aponta que que expunham a real maternidade. da mulher nessas funções”, diz. uma em cada quatro mulheres brasi- “É totalmente diferente do que nos A psicóloga Larissa Portela, 30 leiras sofre de depressão pós-parto. vendem em revistas ou novelas. Nós anos, mãe de um bebê de um ano, A psicóloga Letícia Luján explica ficamos tão doidas que dá vontade afirma que a desconstrução da ma- que é muito comum nesse período de sumir, fugir, de se matar”, lembra. ternidade romântica existe e é um a mulher desencadear um processo A rede de apoio, explica a psimovimento muito empoderador, de baby blues - semelhante à de- cóloga Beatriz, é fundamental para por ser um espapropiciar um esço de fala muito paço para que as importante para a mulheres-mães “Aquela mulher que tenta seguir o modelo mulher que sofre possam se exprespor não se encaisar, para que elas perfeito da maternidade vai ser muito xar em um padrão sejam acolhidas, adoecida” de maternidade. percebam que não Larissa Portela, psicóloga e mãe de um bebê de 1 ano “Aquela mulher es t ão s ozinhas que tenta seguir e nem se sintam o modelo perfeito culpadas diante da maternidade é das reações que aquela mulher que vai ter depres- pressão mas especifico do período a maternidade real impõe. “É imsão, vai ter transtorno de ansiedade, de pós-parto – mas adverte que portante romper essa barreira do vai ter transtorno do pânico, ela vai diagnósticos precipitados podem sofrimento solitário que acontece ser muito adoecida”, afirma. “É uma atrapalhar nessa fase tão delicada. entre quatro paredes e ninguém exigência sobrenatural em cima da “Nem tudo é depressão pós-parto. vê”, salienta. Falar abertamente somulher para ser uma boa mãe, uma Às vezes a mulher só está passando bre as dificuldades da maternidade, boa esposa, uma boa profissional, por um momento em que precisa de forma que propicie um fator de uma boa dona de casa”, critica. de apoio, precisa de ajuda”, explica. cura e acolhimento.

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Brenda sempre teve o sonho de ser mãe, mas não naquele momento. E não daquele jeito. Apesar da gravidez precoce, ela encarou a notícia da gravidez da melhor forma possível, mas ainda enfrenta os desafios da criação de Laura. “Não temos tempo para comer, ir ao banheiro, tomar um banho de 20 minutos”, diz. “Eu saberia disso se tivesse tido acesso a esses textos sobre a quebra de padrões da maternidade”, ressalta. A historiadora, Sabrina Balthazar, explica que se vive a era das liberdades e que modelos ultrapassados de comportamento já não são mais aceitos. Dessa forma, ou-

O papel da mulher na sociedade está sendo cada vez mais discutido. Com a desconstrução da maternidade romântica compulsória, surge uma nova geração de mulheres: as NoMos (abreviação de Not Mothers – Não Mães), mulheres que optam por não serem mães. No Brasil, o percentual delas aumenta a cada ano. Informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta que em 2014, 18,8% de lares de casais não tinham filhos, diferentemente da porcentagem de 13,5% do ano de 2004. A psicóloga Letícia Luján, 23 anos, é um exemplo de mulher que não deseja ter filhos. “Eu ainda sinto que tem muito preconceito. Pouca gente entende isso, que a gente só não quer ter filhos, não temos esse desejo, e que isso não nos torna menos mulher.”, afirma. Movimentos feministas como o Child-free também são responsáveis por fomentar a discussão acerca da decisão de não ter filhos.

Foto: Bernardo Moreira

MULHERES QUE OPTAM POR NÃO SEREM MÃES

tras maneiras de manipulação são observadas, passando uma ideia de autonomia e individualidade ainda que certos padrões permaneçam. “Por mais que a mulher tenha hoje uma participação mais efetiva na sociedade, em muitos casos, a atribuição dos cuidados de maternagem ainda é exclusiva da esfera feminina”, aponta. O papel das mulheres na dinâmica familiar ainda se apresenta como nos moldes de antigamente em muitos lares brasileiros, onde mulheres são responsáveis por cuidar das crianças enquanto o pai sai para trabalhar, ou abandona a família.

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Quando a falta de apoio se torna abandono, o sofrimento é ainda maior. “Quando contei para o pai da minha filha que estava grávida, ele disse que não daria para assumir a responsabilidade de ser pai naquele momento. Ele me xingou, me pediu para abortar, disse um monte de coisa, mas eu deixei para lá”, lamenta Brenda. Ela explica que tudo foi mais difícil sem a ajuda do pai da criança e que foi preciso adiar planos, como o da faculdade. “Durante um período de dois meses após o parto eu estava muito triste. Percebi que não teria mais a mesma vida de antes, e que teria que adiar muitas coisas”, observa. “E até hoje é assim. Tudo ainda é muito complicado”, lamenta.

IDEIA É acabar com os mitos relacionados à maternidade

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Foto: Bernardo Moreira

A REDE de apoio é fundamental para que possam se expressar

Desconstrução virtual

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meu filho ser criado pelas tias da creche. Quando ele completou dois anos eu pedi demissão do meu emprego A desconstrução da maternidade como publicitária”, relata. Luciana romântica é vista como empoderadoentão decidiu criar um projeto pesra para muitas mulheres que não se soal em seu tempo livre para ajudar encaixam no padrão de maternidade outras mulheres que se sentem muiimposto pela mídia. Movimentos que to exigidas pela maternidade. Além visam a inserção dessas mulheres de do conteúdo volta à sociedade são disponível no vistos como válvulas site, a equipe de escape para essas do Real Matermulheres-mães. Hoje “A maternidade é totalmente diferente do que nidade realiza elas ocupam cada vez nos vendem em revistas ou novelas” eventos mamais lugares nas redes Brenda Arnaud, 19 anos, dona de casa e mãe terno-infantis, sociais. Crescente buse organizam ca por grupos de facepalestras em book, com o intuito de empresas soconceder espaço para desabafos, e blogs pessoais, fomen- impostos. “A missão do projeto é levar bre a valorização das mulheres-mães tam a desconstrução da maternida- leveza e alegria às mulheres-mães, no mercado de trabalho. Luciana explica que as mulheres, de romântica no âmbito virtual. “Eu que são constantemente cobradas participo de grupos de mães no face- por elas mesmas e pela sociedade” após se tonarem mães, ficam mais embook. Desabafamos sobre o dia-a-dia completa Luciana. No site Real Ma- páticas, mais produtivas e adquirem e isso me faz sentir melhor, me sinto ternidade, o assunto é abordado sem habilidades (Soft Skills) que podem ser mitos, tabus ou idealização exagera- aproveitadas no mercado de trabalho. acolhida”, comenta Brenda. “As mães não têm a consciência de Criadora do projeto Real Mater- da da figura materna. Mãe de um filho de seis anos, Lu- como elas se tornam seres humanos nidade Luciana Cattony, buscou uma forma de amenizar a maternidade ciana teve a gravidez planejada aos melhores e mais produtivos após a para outras mães através das próprias 34 anos. “Me incomodava muito ver maternidade”, afirma. Luciana visa ex-

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vivências. “Me incomodava muito ver a maternidade glamourizada na TV. A vida real não é assim”. O projeto teve início em uma página no facebook, há cinco anos. E há três, Luciana vislumbrou um mercado a ser explorado voltado a um público que também não se conformava com os modelos


Feminismo materno Por meio do feminismo, muitas mulheres ocupam cada vez mais seus espaços de fala, questionam o patriarcado e refletem sobre o papel e o lugar atribuído a elas na sociedade. A crítica ao patriarcado tenta denunciar como o romantismo foi concebido, numa visão tradicional de papéis de homens e mulheres. Neste modelo, o homem é o provedor da felicidade das mulheres. “O que se procura fazer é garantir que as mulheres possam exercer, com liberdade, seus projetos de vida. Ser ou não ser mães, sozinhas ou com quem desejarem”, explica a assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), Milena Argenta. Apesar de vertentes feministas buscarem destacar o feminismo materno como sendo uma pauta de grande relevância e saúde da mulher, muitas mulheres-mães não se sentem amparadas pelo movimento e apontam que não oferecem estrutura para que essas mulheres-mães assumam seus locais de fala. “Sou feminista, sou mãe e decidi ser dona de casa” relata Renata, após admitir que se sente julgada dentro do movimento feminista por ser mãe em tempo integral. “Foi uma decisão que eu tomei que foi boa para mim, porque se eu trabalhasse e estudasse estaria abrindo mão das minhas filhas”, reconhece. No final das contas, completa a psicóloga Letícia Luján, as mulheres-mães acabam sendo excluídas politicamente. A arquiteta Laís Araújo, 46 anos, casada e mãe de três filhos, é feminista e explica que se sente posta de lado quando se trata de maternidade dentro do movimento. “A impressão que tenho é que às vezes a única pauta feminista abordada é a escolha da não maternidade”, afirma. A maternidade compulsória é pauta feminista justamente por conta do direito de escolha. “O estereótipo materno faz com que as mães sejam envoltas a uma caricatura divina, por conta disso

sentem profunda culpa e pressão na que são mães”, afirma. A segregação construção da maternidade”, acres- das crianças na sociedade é mais uma centa. Milena observa que o feminis- maneira de isolamento de mulheresmo acolhe as demandas das mães. -mães. “A gente vive em uma cultura “A desconstrução da maternidade que não agrega crianças. Excluímos romântica significa também trazer uma classe que faz parte de grande todas essas questões à cena e, certa- parte da população de forma muito mente, o debate feminista é um dos naturalizada”, comenta a psicóloga. grandes resMilena ponsáveis conta que “Sou feminista, sou mãe e por isso”, atualmente decidi ser pondera. grupos de O movimães femidona de casa” mento feministas estão Renata Lopes, 26 anos, mãe de duas filhas nista fomendesenvolta a discurvendo um são acerca da quebra de padrões, mas movimento chamado de maternidaa maternidade ainda gera debates de ativa, reivindicando o direito a decontroversos. A psicóloga Beatriz ex- dicarem-se quase integralmente aos plica que dentro do feminismo existe filhos na primeira infância, na educaum movimento chamado child-free, ção, e nos cuidados com a saúde. “Elas de mulheres que não desejam ter fi- passam a trabalhar como autônomas lhos. “Eu respeito muito as mulheres para terem tempo de se dedicarem que não querem ter filhos, mas algu- aos filhos. E mantém páginas virtuais mas que fazem parte do child-free são onde discutem questões polêmicas completamente hostis com mulheres [sobre a maternidade]”, explica.

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por a real maternidade presente na vida dessas mulheres. “O movimento de desconstrução da maternidade é muito importante, as próprias mães não se identificam mais com a maternidade glamourizada presente nos comerciais de margarina”, ressalta.

AS PSICÓLOGAS Beatriz e Letícia questionam os padrões de maternidade atuais

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QUANDO QUEM DEVERIA AJUDAR CONSTRANGE 44


Homens trans evitam ir ao médico por medo de preconceito

JÚLIA LANZ

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les nasceram no corpo de uma mulher. Passaram pela infância como meninas. Na puberdade viram os seios crescer e o corpo se transformar, ganhar contornos, mas a contragosto. Na maioria dos casos, é nessa época que essas pessoas se reconhecem como transexuais e optam pela mudança de gênero, ainda que sem redesignação sexual. Mas a transição para o gênero masculino ainda não supera o desafio de ser um homem trans. Eles passam a enfrentar outras dificuldades e até violências contra a dignidade, como o acesso ao serviço de saúde, por exemplo. Para os homens trans, ir ao médico chega a ser um transtorno. Por isso, muitos nem se tratam. Seja no SUS, nos planos de saúde ou na rede privada, os relatos de desconforto são constantes. Profissionais de saúde que não sabem lidar com a situação e a burocracia para acesso aos hormônios, levam muitos trans ao uso indiscriminado da substância e à automedicação, o que coloca a vida deles em risco. Uma das exceções é o Adolescentro, serviço público de saúde no DF que atende meninos e meninas, independente de gênero. E em agosto deste ano Brasília ainda ganhou o ambulatório trans para tratar da saúde de quem, até agora, estava praticamente excluído dos consultórios. Nos dois casos, o acesso ainda é restrito. O ambulatório, por exemplo, só atende adultos. E sem acesso a mais locais para se tratarem, os homens trans sentem na pele o peso do preconceito. Um dos mais fortes é na hora de ir ao ginecologista. Por terem fisiologia feminina, eles precisam do auxílio desse profissional, o que faz com que alguém, com aparência masculina, seja olhado de forma preconceituosa e seja submetido a uma avalanche de perguntas, ainda na sala de espera. E diante de muitos médicos, segundo eles, o constrangimento continua. As diversas dificuldades enfrentadas pelos homens trans levaram à criação do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat). O coordenador da área de saúde do Ibrat no Distrito Federal Leonardo Lima,


23 anos, diz que muitos meninos deixam de ir para as consultas e de fazer o exame preventivo por vergonha. “Ninguém imagina que um homem vai acessar um consultório de ginecologia”, diz. Outro desafio é o acesso aos hormônios. Para as mulheres trans o acesso é facilitado, pois as farmácias vendem anticoncepcionais sem necessidade de receita médica. Já para os homens trans terem acesso à substância é preciso passar por um processo de autorização para conseguir a receita, segundo Leonardo Lima. “A testosterona é vendida de forma controlada. Você não pode simplesmente ir a uma farmácia e comprar”, comenta. Quando finalmente têm a receita médica, o desa-

fio seguinte é conseguir encontrar o medicamento à venda. Leonardo Lima conta que quando iniciou a transição há dois anos, mesmo com receita médica, não encontrava nas farmácias os hormônios para comprar. “Simplesmente não faziam pedido. Elas mesmas [as farmácias] preferiam não fazer”, afirma. Atualmente Leonardo compra com mais facilidade, porque encontrou uma farmácia que sempre tem o medicamento em estoque. Segundo ele, é por causa da dificuldade que muitos homens trans acabam comprando medicamentos clandestinos, de procedência duvidosa e sem saber ao certo os efeitos colaterais do produto. O uso de hormônios sem garantia de

origem pode trazer riscos graves à quem usa. O psiquiatra e homem trans Gabriel Graça, 51 anos, também destaca os riscos de tomar hormônios clandestinos e não poder fazer o controle necessário com um médico. Ele lembra também que algumas mulheres trans injetam silicone em locais inapropriados e muitas vezes contraem infecção por conta disso. Leonardo Lima ainda alerta para outros riscos. Ele diz que segundo a literatura, os homens trans têm maior chance de ter e ter, a curto prazo, doenças diversas, como do coração e câncer de mama, ovário e útero. “Se a pessoa tem uma predisposição genética para ter diabetes, pode vir a ter diabetes mais cedo do que teria”, exemplifica.

AMBULATÓRIO TRANS localizado no Hospital Dia

Ambulatório Trans

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lação menos favorecida financeiramente não tinha onde se tratar. “As pessoas O psiquiatra Gabriel Graça, exacabam se submetendo a tratamentos plica que o SUS garante o direito ao muito inadequados, que não são e nem atendimento das pessoas trans, inmerecem ser chamados de tratamento”, afirma. clusive o acesso aos hormônios e a O Ambulatório Trans surrealização das cirurgias de mama e de redesignação sexual, porém “Ninguém imagina que um homem giu a partir da organização dos movimentos sociais que pasexistem poucos lugares no Brasil vai acessar um consultório de saram a demandar o governo, que oferecem esses serviços. No Distrito Federal nenhuma destas segundo o gerente de atenção ginecologia” opções está disponível pelo SUS. à saúde de populações em situLeonardo Lima, coordenador do Ibrat no DF O diferencial é o Ambulatório ação vulnerável da secretaria Trans, um serviço público de saúde e residem aqui procuram tratamento de saúde do GDF, Vittor Ibanez. Ele expara homens e mulheres transexuais em outros estados ou procuram serviços plica que paralelo a isso a secretaria tem maiores de 18 anos localizado dentro privados. Não tinha um serviço público”, um grupo de profissionais preparando do Hospital Dia. relata. Para ele isso significa que a popu- os laudos e projetos necessários para

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Inaugurado em agosto deste ano, o espaço conta com atendimento médico especializado, psicologia e psiquiatria. O psiquiatra acredita que é um serviço importante para a população de Brasília. “As pessoas que têm disforia de gênero


TRANSIÇÃO O psiquiatra Gabriel Graça explica que sexo biológico e gênero são coisas diferentes. “Na grande maioria das vezes o gênero concorda em relação ao sexo biológico, mas nem sempre”, afirma. O psiquiatra diz que segundo a literatura, de cada 60 mil crianças que nascem com o aparelho reprodutor masculino, uma tem um gênero discordante. E a cada 100 mil crianças que nascem com o aparelho reprodutor feminino, uma tem a identificação de gênero masculina. Gabriel diz que o porque isso se desenvolve ainda é uma questão em aberto e motivo de muitas pesquisas. Há estudos que apontam para processos neurobiológicos. Ele explica que no período prénatal, se ocorre o processo chamado dimorfismo sexual cerebral, é como se o cérebro adquirisse uma espécie de pré-disposição para o masculino ou pré-disposição para o feminino. Depois, com o crescimento vem os processos de identificação com figura paterna e materna. O psiquiatra explica que o processo de identificação do desenvolvimento psicológico associado ao dimorfismo sexual cerebral resulta na identificação de um gênero. “Seria uma pré-disposição para se identificar com o gênero masculino ou feminino”, diz.

Discriminações

NO AMBULATÓRIO trans, respeito está até na porta do banheiro

trans que já realizaram a cirurgia se organizam para ajudar os meninos que não têm o dinheiro suficiente para custear o procedimento. Leonardo Lima explica que o nome do processo completo é “mamoplastia masculinizadora” e dentro dessa cirurgia existem três procedimentos: a mastectomia radical, que é a retirada da glândula mamaria; a retificação das placas aureolares, que é quando enxertam a auréola da pessoa; e, por último, os retalhos cutâneos, que é a retirada do excesso de pele. “Se retira as glândulas mamárias fica o excesso de pele, tem que retirar o excesso de pele e enxertar a auréola”, detalha.

Quando aos 15 anos se identificou como homem trans e revelou isso para as pessoas, o estudante Eduardo Kimura, 17 anos, precisou enfrentar a discriminação por parte dos colegas, professores e direção da escola. Nascido como Eduarda já sofreu discriminação ao precisar de atendimentos de saúde. É por isso que o rapaz diz que muitas vezes evita ir ao médico. “A última vez que fui [foi porque] quebrei minha mão, aí pedi para o atendente colocar meu nome social na ficha e ele negou”, disse. Ofendido, diante da recusa, Eduardo foi embora sem ser atendido. Com dor, ele voltou horas depois e a outra atendente aceitou

identifica-lo pelo nome social, um direito assegurado pelos decretos nº 8727/2016 do governo federal e nº 37.982/2017 do Distrito Federal. Para Eduardo, esse é um dos exemplos de preconceito velado, pois quando essas situações ocorrem, muitas pessoas alegam que a lei exige o nome civil. “Se uma enfermeira deixa eu colocar meu nome social e outro não, não é uma questão de lei, é uma questão de preconceito”, afirma. Leonardo Lima diz que situações como as enfrentadas por Eduardo são corriqueiras. Ele conta que mesmo na rede privada não é fácil conseguir atendimento médico. “É difícil achar um atendimento médico que simpatize ou que não te demonize por ser um

LEONARDO LIMA, homem trans e coordenador de saúde do Ibrat-DF

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que o SUS autorize o governo distrital a oferecer tratamento de hormônio para essas pessoas e também realize cirurgias. Vittor diz que esse é um processo demorado. Além disso há o processo para ampliar os profissionais que atendem no ambulatório, já que não há atendimento de ginecologia e urologia, dois serviços importantes para a população. “São profissionais que não é fácil de conseguir por uma questão de quantidade de profissionais e tamanho da demanda”, diz. Sem acesso ao atendimento pelo SUS, os homens trans que optam pela cirurgia de retirada das mamas precisam pagar pelo procedimento, que custa em média R$ 6 mil reais. Para bancar o custo, não raro esses rapazes fazem vaquinhas virtuais para arrecadar o dinheiro necessário. Geralmente, familiares de pessoas


FALTAM DADOS Em maio de 2017 foram relatados no Creas da Diversidade 98 casos de transfobia. Desses, em 35 casos as vítimas foram homens trans. Em período equivalente de 2016, foram 38 relatos por transfobia. Desses, 10 casos foram com homens trans. Apesar de importantes, esses são os únicos dados disponíveis sobre homens trans. A ausência de mais dados é um fator que contribui para a invisibilidade dessa população e para a dificuldade em se construir políticas públicas para elas, conforme explicou a assessora especial da Coordenação de Diversidade LGBT do DF Ana Paula Crozué. Segundo a assessora de direitos humanos do escritório da ONU no Brasil Angela Pires, o governo brasileiro tinha um registro de violência contra as pessoas LGBT através do Disque 100, canal de denúncia de violações de direitos humanos. Ela diz que esse relatório parou de ser produzido há alguns anos. Apesar de diversos contatos com o Ministério da Saúde em busca de dados nacionais não informaram se possuem dados sobre a população trans.

trans”, relata. Ele diz que para acessar um médico precisa explicar tudo, às vezes até mostrar explicações da internet. “A gente ajuda o médico a nos aceitar. Isso é uma luta”, diz. No Adolescentro, que funciona na L2 Sul, meninos e meninas transexuais têm acesso a atendimento médico, psicológico e psiquiátrico, segundo Eduardo Kimura. Lá, os trans ainda são acompanhados por ginecologistas e endocrinologistas que os orientam a usar hormônios na dose certa para a transição. O problema, segundo ele, é que como o centro não atende apenas pessoas LGBTI sempre é muito cheio e difícil de conseguir consultas. Mas não há outra alternativa, quando o paciente é menor de idade. Eduardo disse que se decepcionou quando descobriu que o Ambulatório Trans atende apenas pessoas a partir dos 18 anos. Ele acredita que o ideal seria os adolescentes também serem tratados no ambulatório, para evitar o constrangimento de falarem abertamente para um público que não se identifica com as questões dos transexuais e ainda é imaturo para saber lidar com tantas diferenças. Eduardo Kimura relata a importância do acompanhamento com ginecologista, inclusive para acompanhar a taxa hormonal. Mas diz que não faz esse acompanhamento, porque ainda é muito difícil de conseguir vaga para ser atendido pelo SUS. Encontrar um endocrinologista particular que

receita hormônios para pessoas trans e garanta o acompanhamento necessário também é muito difícil, segundo o rapaz. “Basicamente todo mundo que consegue fazer tratamento hormonal ou é de forma clandestina, que é bem perigoso, ou é a partir do encaminhamento público”, afirma. Ir ao hospital é outro problema, já que o Adolescentro funciona apenas como um posto de saúde. No atendimento de emergência, em geral, a pessoa é chamada, em voz alta, e pelo nome de registro. “E muitas vezes o médico é inconveniente no jeito de perguntar as coisas. Isso é muito ruim”, relata Eduardo. Apoio que muda tudo Se a sociedade discrimina e o serviço de saúde não acolhe, o apoio da família pode fazer a diferença. O estudante Renato Borges, 21 anos, tem uma família assim. Os primeiros sinais sobre a sexualidade e a personalidade do rapaz surgiram na infância. Os pais buscaram ajuda profissional. Ele lembra que a primeira psicóloga e o primeiro psiquiatra que o atenderam não sabiam lidar com a situação. Pai de Renato, o servidor público Antônio Celso Borges, 63 anos, conta que quando o filho era criança uma psicóloga disse que faltava uma figura feminina forte para influenciar o filho, que nasceu Renata. “Como a mãe é veterinária, só andava de macacão e botina”, relata.

RENATO BORGES teve apoio da família desde o início

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Mãe de Renato, Tânia Borges, 52 anos, conta que isso desencadeou um processo nela que desde então passou a usar só sapatos de salto alto. “Virei uma patricinha, uma perua e não adiantou nada”, disse. Ela conta que quando saíram da consulta com a psicóloga, eles foram comprar muitos vestidos, sapatos de salto e ela começou a usar maquiagem e levar “Renata” à manicure. A mãe diz que fez tudo que poderia. Como essa atitude da mãe não gerou a “mudança esperada” no comportamento de “Renata”, a família não deu prosseguimento na terapia. Na adolescência, quando “Renata” se descobriu transexual e contou para a família, os pais buscaram novamenGRAFITE FEITO pelo grupo Transcrew, te terapia com psicólogo e psiquiatra de homens e mulheres trans, no para ajudar o filho a se tornar o Renapátio do Creas da Diversidade to que ele sonhou ser. Mas o primeiro profissional que o atendeu tentava convencer o já garoto que ele não era transexual. “Ele era da equipe da cura”, ginecológicos. Ele diz que a ida ao gi- sas entidades e organizações ligadas diz a mãe, ao lembrar que o médico necologista é uma jornada e às vezes aos direitos das pessoas trans e defenpsiquiatra queria reverter a situação. até momento de constrangimento. “Eu de a despatologização das identidades Depois da certeza de que era um estava com muita vergonha de ir”, con- trans. Ou seja, defende que no Códihomem trans e do processo de tran- ta. Ele levou a mãe com ele, pois sabia go Internacional de Doenças (CID), a sição iniciado, Renato se aproximou que se fosse discriminado direta ou in- transexualidade não seja considerada mais da família e o convívio entre eles diretamente a mãe compraria a briga. um transtorno mental. O coordenador mudou por completo, conta a mãe. Renato conta que ligou para todos do Ibrat Leonardo Lima explica que o “Ele hoje é uma pessoa Instituto faz parte da campanha feliz, que conversa, que “A gente ajuda o médico a nos aceitar. e defende a revisão do CID, mas brinca”, diz. A relação que assegure acesso ao serviço com o irmão mais novo de saúde, como acontece com as Isso é uma luta” também teve uma mumulheres grávidas. Leonardo Lima, coordenador do Ibrat no DF dança radical. Renato O psiquiatra Gabriel Graça conta que hoje os dois são mais do os ginecologistas do plano de saúde explica que a Associação Psiquiátrique irmãos, mas que antes a relação perguntando se atendiam pessoas ca Americana lançou há alguns anos deles era quase inexistente. O irmão trans. As respostas eram acho que sim o manual estatístico da associação. de Renato, Henrique Borges conta que ou vou verificar. Apesar de saber que “Continua recebendo uma rubrica já sabia antes de todo mundo, mas tem o direito de ser atendido por qual- diagnóstica, entretanto mudou o que ignorava os comentários que ou- quer médico, ele queria evitar algum nome para disforia de gênero e a pavia sobre o irmão. Diz que levou um constrangimento. Cansado das respos- lavra transtorno saiu”, afirma. tempo para compreender tudo, mas tas, resolveu marcar e ir sem dizer que O psiquiatra explica que diferenque depois recebeu o irmão de braços era homem trans. A mãe conta que te dos homossexuais, os trans sentem abertos. “Entendia que se tinha sido ficou surpresa por apenas pergunta- desconforto com o corpo. “O indivídifícil para a gente, pra ele era muito rem se era a especialidade correta e duo sozinho dentro do seu quarto mais”, diz. para quem dos dois era a consulta e o se sente em desarmonia”, afirma. Ele O apoio da família foi funda- exame. Renato acredita que pode ser explica que ter um sexo biológico e mental para Renato. Apesar disso ele porque as pessoas estão com medo uma identidade diferente de gênero também passou por dificuldades no de serem processadas, mas também provoca sofrimento emocional, torna atendimento de saúde. Renato diz que acredita que as pessoas podem estar as pessoas mais vulneráveis à depresaté hoje ele tem um problema com o melhorando. “Que bom que a humani- são, à ansiedade, além de questões de plano de saúde. Mudou o nome, mas dade está mudando”, comemora. preconceito. “Tem estudos que mosnão pode trocar o gênero. “Se mudar tram, por exemplo, que apenas 1% dos Despatologização no plano de saúde tem um monte de transgêneros chegam a fazer curso exame que eu não posso fazer”, relata. A campanha chamada “Ser Trans superior. Porque? Porque são pessoas Entre os exames e consultas, estão os Não é Doença” é organizada por diver- mais vulneráveis”, diz.


ANA JÚLIA sofreu mais de uma vez assédio sexual no transporte público

NÃO É A PRIMEIRA VEZ redemoinho . ano 08 . número 13

Casos de molestamento, assédio sexual e violência doméstica assustam mulheres do Distrito Federal e geram debates ANDRÉIA BASTOS

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PROJETOS DE LEI CONTRA O ASSÉDIO SEXUAL PLS 740/2015, de autoria do senador Humberto Costa (PT-PE): altera o Código Penal (Decreto-Lei 2848/1940) e passa a considerar o ato de constrangimento ofensivo ao pudor em transportes públicos com pena de reclusão de dois a quatro anos e multa para os contraventores. PLS 312/2017, proposto pela senadora Marta Suplicy (PMDB-SP): sugere que o Código Penal seja alterado para prever o crime de molestamento sexual com pena de reclusão, de três a seis anos, a quem constranger ou molestar alguém, mediante violência ou grave ameaça, à prática de ato libidinoso diverso do estupro.

Código Penal e inclui o crime de Cons- dados disponibilizados pelo Metrôtrangimento Ofensivo ao Pudor, com -DF foram contabilizados por meio de pena de dois a quatro anos para quem denúncias de usuários pela Ouvidoria, “constranger, molestar ou importunar pelo WhatsApp e pela comunicação alguém de modo ofensivo ao pudor, direta a algum agente de seguranainda que sem ça presente contato físico, “Ele estava literalmente me no local. atentando-lhe Segundo a contra a digni- encoxando. Eu gritei porque gerente do dade sexual”. Centro Esesperava alguma reação do pecializado No Distrito Federal, em Atenpessoal” o número de dimento à Ana Júlia Sanfelice, estudante denúncias de Mulher, Graabuso sexual ciele Félix, o em estações e trens do metrô cresceu problema está em todo lugar e todas 200%. De janeiro a agosto de 2016, fo- as mulheres podem ser vítimas. “A ram registradas cinco denúncias, con- gente entende que a violência está tra 15 no mesmo período de 2017. Os inserida na cultura, na televisão, na

A GERENTE do CEAM, Graciele, enfatiza o combate a violência

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U

ma piadinha na rua ou um xingamento. O toque indesejado de um desconhecido. Uma ejaculação no ombro. O abuso sexual e o estupro. São muitas as formas de violência contra a mulher. O assédio sexual é crime caracterizado pelo molestamento e constrangimento da vítima. Ainda assim, a legislação deixa brechas. Usuária do metrô diariamente, a estudante Ana Júlia Sanfelice, 21 anos, passou por uma dessas situações recentemente. Um homem se posicionou atrás dela e começou a acariciá-la. “Ele estava literalmente me encoxando. Eu gritei porque esperava alguma reação do pessoal.” O caso dela é mais comum do que registram as estatísticas. Em agosto, um homem que utilizava o transporte público em São Paulo foi preso em flagrante após ejacular em uma mulher dentro do ônibus. Mas, em seguida, acabou liberado. A justiça entendeu que "não houve constrangimento ou violência". A repercussão nacional que se seguiu motivou a aprovação de dois projetos de lei no Senado sobre o assunto. Ambos criminalizam o assédio sexual. “Quando ocorre o molestamento, sem violência ou grave ameaça, não tem tipo penal. Meu projeto responde a isso. Agressões de natureza sexual sem violência – como a do ônibus – passam a ser punidas com prisão”, explica a senadora Marta Suplicy, do PMDB de São Paulo, autora de uma das propostas já aprovada pelo Senado e encaminhada à Câmara. Para a senadora, é importante acabar com o vácuo legislativo existente entre os crimes graves, como o estupro, e os mais leves, como o atentado ao pudor. Caso seja também aprovado pelos deputados e sancionado pela Presidência da República, pode levar para a cadeia os criminosos, com penas que variam de três a seis anos de prisão para quem “constranger, molestar ou importunar alguém mediante prática de ato libidinoso realizado sem violência ou grave ameaça, independentemente de contato físico”. Na mesma linha, um outro projeto, de autoria do senador Humberto Costa, do PT de Pernambuco, altera o

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O TRANSPORTE público é palco de vários episódios de assédio sexual diariamente

rua, em qualquer lugar. Você sai de A gerente do Ceam comenta que ao medo, a sensação de solidão é casa e está vulnerável a isso”. a impunidade quase sempre tem apontada como uma constante. “Elas Também foi no transporte públi- como origem o medo. “Medo de en- se colocam em um patamar de vioco que a estudante Caroline Rodri- frentar o homem que violou o meu lência e de isolamento, justamente gues, 21, foi constrangida. “Eu estava direito, medo de enfrentar a polícia e por causa do medo, então elas se prestes a descer e sentem sozinhas, frao cara se posiciogéis. Enfrentar tudo, “A violência física e psicológica são nou atrás de mim. inclusive o próprio Na hora em que o muito frequentes e, quando as mulheres se dão agressor, não é um motorista freiou, trabalho fácil”. conta já sofreram assédio” ele encaixou o corEm maio deste Graciele Félix, gerente do CEAM po dele no meu, e ano, o Metrô-DF, a Poeu gritei’’, lembra. lícia Civil e a SecretaEla não denunria Adjunta de Política ciou. Assim como Ana Júlia, Caroline a justiça, medo de tudo, do que vão para as Mulheres, Igualdade Racial e acredita que seria um desgaste a mais falar, de todo o julgamento da famí- Direitos Humanos (Sedestmidh) lanque acabaria em impunidade. lia e do trabalho”, destaca. Somado çaram a campanha “Assédio é Crime”.

A LEGISLAÇÃO PARA MULHERES redemoinho . ano 08 . número 13

Lei Maria da Penha (Lei nº11.340/2006): criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, além de prever a criminalização dos atos cometidos com a intenção de causar danos às mulheres. Com a lei aconteceu a adaptação dos processos jurídicos aos casos de violência doméstica, permitindo maior agilidade no julgamento. A pena varia de acordo com cada caso. Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015): transforma em crime hediondo o assassinato de mulheres por questão de gênero. A pena é de no mínimo 12 anos e, no máximo, 30 anos de prisão. A norma abrange desde o abuso emocional até o abuso físico ou sexual e ainda prevê o aumento da pena em um terço se o crime for cometido contra uma mulher grávida ou nos três meses posteriores ao parto. O mesmo vale para feminicídio cometido contra menores de 14 anos, mulheres acima de 60 anos ou pessoa com deficiência, e também se o assassinato for cometido na presença de descendente ou ascendente da vítima.

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O CASO DIEGO NOVAIS Em agosto de 2017, o ajudante de serviços gerais Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, foi preso por assediar uma passageira, após tirar o pênis da calça e ejacular na jovem. Apesar de ter cinco casos de estupro anteriormente registrados, segundo informações da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, foi liberado por decisão do juiz Souza Neto, que alegou que o crime não configuraria estupro, apenas importunação ofensiva ao pudor, o que não estava previsto na legislação. Na avaliação dele, “não houve constrangimento”, nem violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco do ônibus quando foi surpreendida. O caso ganhou grande repercussão nas redes sociais e movimentos sobre o que de fato representa constrangimento ou não. A partir daí, dois projetos de lei foram aprovados pelo Senado.

com 17,1% e 36,9% das ocorrências, respectivamente. A cobradora Edilene*, 34, vivenciou esse drama todos os dias enquanto esteve com o ex-companheiro. Desde o princípio do rela-

cionamento, sofria com maus-tratos e agressões. “Eu ficava apreensiva, tinha dias que eu não queria voltar para casa, pensava em ficar lá pelo serviço mesmo. Eu queria paz e sossego”, conta. A cobradora não está

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O objetivo alertar os usuários sobre atitudes ofensivas contra mulheres e incentivar as vítimas a denunciarem. Os abusos vão desde encostar e passar a mão intencionalmente até praticar qualquer movimento corpóreo considerado obsceno. O Metrô-DF informou que os funcionários são orientados a atender as vítimas e a sugerir que elas façam a ocorrência em delegacias, pois tais atitudes estão enquadradas na Lei de Contravenções Penais. No Brasil, a lei tipifica cinco tipos de violência: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Segundo a coordenadora de Políticas Públicas para as Mulheres da Sedestmidh, a psicóloga Miriam Mendonça, essa tipificação permitiu que se ampliasse muito a percepção do que é violência contra a mulher no cotidiano e se desnaturalizasse o problema. “Sem uma legislação que dê consequências a esses atos, acaba que as pessoas naturalizam e podem achar que isso faz parte da vida e das relações”, conclui. O problema é considerado histórico e está intrínseco na sociedade. Miriam observa que, desde quando foram estabelecidos os papéis sociais, a mulher é constante vítima do constrangimento. As sociedades têm como base a ideologia patriarcal em que as mulheres, por muitos anos, foram consideradas inferiores aos homens e subordinadas à dominação deles. Segundo a psicóloga, o problema surge desta relação estabelecida, na qual para muitos faz parte da cultura tratar a mulher de forma inferior, menosprezando-as e maltratando-as, se considerarem “necessário”. “Entendemos que as causas da violência estão ligadas a uma cultura patriarcal e machista, ela tem muito a ver com valores e crenças sociais que legitimam uma desigualdade entre homens e mulheres”, explica. Como consequência desta forma de pensar, muitas mulheres sofrem com a violência, não somente nas ruas, mas em casa também. A realidade é que elas morrem, são agredidas e humilhadas por pessoas com as quais vivem, fazem parte do cotidiano e deveriam ser provedores de segurança e conforto emocional. O Mapa da Violência 2015 apontou que pais e parceiros são os principais agressores,

CAROLINE RODRIGUES considera a experiência de assédio sexual traumatizante53


O CEAM oferece orientações jurídica e psicológica

sozinha. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP), somente no primeiro semestre deste ano já foram registradas 7.100 ocorrências de violência doméstica no DF. O índice é 5% superior ao verificado no mesmo período do ano passado. A agressão física e a psicológica são as práticas mais usados, segundo

o mesmo Mapa da Violência, correspondendo por 48,7% e 23%, respectivamente. Edilene* sofreu as duas. Evitava sair de casa para não ter confusão. Almoço na casa de familiares e celebração de datas comemorativas precisavam ser ignorados. Segundo ela, a agressividade era tamanha que o medo do que o ciúmes pode-

ria provocar alterou completamente a rotina. “Quando eu me arrumava, ele me perguntava para quem eu estava me arrumando, se era para os ‘machos’. Isso não é vida, é uma prisão’’, desabafa. Hoje, sob medida protetiva, ela conta que aguarda a decisão da justiça após denúncia baseada na Lei Maria da Penha. “Vou ter

OS TIPOS DE VIOLÊNCIA Física: Qualquer agressão que se dê sobre o corpo da mulher. Ocorre por meio de empurrões, beliscões, queimaduras, mordidas, chutes, socos ou, ainda, pelo uso de armas brancas, como facas e estiletes, ou armas de fogo. Moral: Este tipo de violência se dá no abalo da auto-estima da mulher, por meio de palavras ofensivas, desqualificação, difamação, proibições de estudar, trabalhar, se expressar, manter uma vida social ativa com familiares e amigas (os), etc. redemoinho . ano 08 . número 13

Psicológica: Conhecida como agressão emocional, tão ou mais grave quanto a física, consiste em realizar ameaças, humilhar, rejeitar e discriminar com o intuito de causar prejuízos ao outro. Sexual: Qualquer ato onde a vítima é obrigada, por meio de força, coerção ou ameaça, a praticar atos sexuais degradantes ou que não deseja. Este tipo de violência também pode ser causado pelo próprio marido ou companheiro da vítima. Patrimonial: Qualquer ato que tem por objetivo dificultar o acesso da vítima à autonomia feminina, utilizando como meio a retenção, perda, dano ou destruição de bem e valores da mulher vitimizada. Fonte: Sdestmidh

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ONDE BUSCAR AJUDA? Centro Especializado em Atendimento às Mulheres (Ceam) Endereço: Estação do Metrô 102/103, SHCS - Brasília, DF, 70309000 e Telefone: 3323-6184 Casa da Mulher Brasileira Endereço: SEN Setor de Grandes Áreas Norte 601 - Brasília, DF, 70297400 e Telefone: 3324-6508 Delegacia de Atendimento Especial à Mulher (Deam) Endereço: Entrequadra 204/205 Asa Sul, Brasília - DF, 70234-400 e Telefone: (61) 3207-6172 Disque 180 O Ligue 180 foi criado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPMPR), em 2005, para servir de canal direto de orientação sobre direitos e serviços públicos para a população feminina em todo o país (a ligação é gratuita). Associação das Mulheres de Sobradinho II Endereço: Quadra Ar 19 Conjunto 3 - Sobradinho II, Brasília - DF, 73041603 e Telefone: (61) 99247-7493

Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas e Cras): Taguatinga Endereço: A.E. Nº. 09 -Setor “D” Sul - Taguatinga Sul, DF, 72015-603 Telefone: (61) 3352-9635 Samambaia Endereço: Quadra Casa 01 Norte, Q. 408 Conjunto 4, 1 - Samambaia Sul, DF, 72318-301 e Telefone: (61) 3358-1426 Ceilândia Endereço: QNM 16 A.E. Módulo A.-, Ceilândia Norte, DF, 72210-161 Telefone: (61) 3581-6005 Guará Endereço: Área Especial, Guará II, Brasília - DF, 71050-15 e Telefone: (61) 3568-4059 Plano Piloto Endereço: SGAS II St. de Grandes Áreas Sul 615 Lote 104 - Brasília, DF, 70200-740 e Telefone: (61) 33061411

“O homem nunca admite o que faz. Eu me sentia muito culpada, suja, uma série de coisas” Geralda Gonçalves, fundadora da Associação de Mulheres de Sobradinho II

mas ele batia em mim e nos meus filhos, tive que criar coragem para me livrar disso”, lembra Geralda. A assistente social da entidade, Mariana Marçal, diz que muitas mulheres não conseguem reconhecer que são vítimas de violência. O processo é lento e necessita conscientização. “Muitas pensam que ser maltratada psicologicamente não é violência, não veem xingamentos e maus-tratos como violência, acham comum. Só na hora que bate e machuca é que na cabeça delas se configura como violência”, comenta.

Toda a violência a qual são submetidas pode deixar sequelas tanto na saúde física quanto na mental. A psicóloga Miriam Mendonça lembra que várias pesquisas mostram que, em geral, elas apresentam tendência maior à depressão, transtornos de ansiedade, insônia, distúrbios alimentares, uso maior de medicação psicotrópica, entre outros. “A violência abala muito a autoestima da mulher, então a gente tem um trabalho muito importante no sentido de uma reconstrução da identidade”, conclui. (*O nome das vítimas de violência foram preservados a pedido delas.)

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uma segunda audiência por injúria racial. Ele tentou me enforcar, teve tudo, sabe?”. O caminho para ela foi, inicialmente, buscar ajuda no Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam), na estação 102 Sul do metrô. O local oferece informação e orientação psicológica e jurídica às vítimas de violência. Segundo a gerente da entidade, Graciele Félix, os dados mostrados pelo Mapa da Violência encontram espaço também aqui no Distrito Federal. “As violências física e psicológica são muito frequentes e quando as mulheres conseguem entender o que está acontecendo, se dão conta que já sofreram violência sexual, patrimonial ou moral.” A violência moral é caracterizada por conduta que inclua calúnia, difamação ou injúria, tais como xingamentos e atribuição de fatos falsos. A diarista Elis*, 29, passava por um misto de violência moral e psicológica com o companheiro quando resolveu se separar. Diariamente, segundo ela, eram usados termos depreciativos e de desprezo, sem contar as ameaças físicas constantes. Hoje, vive em constante estado de alerta. “Ele não vai chegar perto de mim, eu estou evitando até de sair na rua e a boa notícia é que lá no apartamento tem câmera”, afirma. Edilene*, Elis* e tantas outras mulheres fazem parte desta realidade que se repete todos os dias no Distrito Federal. Segundo dados divulgados pelo Ministério Público, anualmente são cerca de 13 mil denúncias. Diversos centros especializados em ajuda estão espalhados pela Capital Federal. Um deles é a Associação de Mulheres de Sobradinho II, que há mais de 17 anos atua junto a mulheres em situação de vulnerabilidade. A fundadora da organização, Geralda Gonçalves, 61, foi vítima de violência e, em uma roda de conversa com mulheres, ao contar a história para amigas, descobriu que não era a única a enfrentar tal problema. “O homem nunca admite o que faz, eu me sentia muito culpada, suja, uma série de coisas. Eu tinha uma vida boa, várias roupas e mais de 58 pares de sapatos,


PARA RÉGIS Francisco, o problema não está na profissão, mas no preconceito

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AS PESSOAS POR TRÁS DO LIXO Na pintura, varrição, capina ou coleta, 3.396 garis cuidam diariamente das quadras do Distrito Federal VICTOR LUZ

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vida um pouco melhor para ela e as duas filhas. “Eu gosto mesmo é de estar trabalhando, não importa como”. Para ela, a atividade é sinônimo de ter uma vida digna. “Quando venho trabalhar, venho sabendo o que fazer e que é isso que me sustenta”. Animada, entre uma vassourada e outra no percurso entre a 706 e a 710 Norte, aproveita para cantar e dançar. Assim, diz, a noite passa mais rápido. Dupla de Claudiane, Maria Leísa, 51, concorda. “O bom de trabalhar em dupla é que uma pode falar com a outra e fazer a noite passar muito mais rápido. Dá para fazer nosso trabalho de maneira eficiente e ainda assim ter momentos legais uma com a outra”, afirma.

de gari. A necessidade o escolheu, quando a filha nasceu e tinha apenas 23 anos. Em busca de sustento para a menina, desistiu de estudar, mas não esconde o orgulho dela com as notas na escola. “Chorei em uma reunião de pais, quando me falaram que minha filha era muito inteligente e a elogiaram”, conta Jonathas. Hoje, pensa em voltar à sala de aula e, no futuro, ter um pequeno comércio. Para Régis Francisco das Mercedes, 41, o problema não está na rotina, mas no preconceito. “Eu trabalhava como coletor em São Sebastião, fui pedir água e as pessoas entregaram copos e mandaram a gente ficar com eles”, comenta ele, que se sentiu des-

ENTRE OS problemas enfrentados diariamente está o descarte inadequado de objetos cortantes

“As pessoas pensam que os garis têm doenças e por isso ficam com medo de entrar em contato” Régis Francisco

Se Jeová e Claudiane afirmam gostar do que fazem, o mesmo não acontece com Jonathas Carvalho, 33. “Eu trabalho nesse trecho há dez anos, e todo dia é a mesma coisa, e eu já não aguento mais”, reclama ele, que durante todo esse período se dedica à mesma função entre as quadras 702 e 706 Norte. Não escolheu a função

respeitado. “As pessoas pensam que os garis têm doenças e, por isso, ficam com medo de ter contato”, avalia. Companheiros de trabalho de Regis, Miquiel Nunes, 52, e Jailson dos Santos, 45, contam sobre algumas dificuldades que os garis enfrentam, especialmente na época de pintura, são as fortes dores nas costas por ter

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om os mesmos percursos de segunda a sábado e jornadas de 7 horas e 20 minutos, os garis reclamam da falta de respeito e humilhação que sofrem. Ainda assim, muitos deles gostam do que fazem, lembram da importância da atividade para a sociedade e de como enfrentam o cotidiano. “É a hora do dia que eu posso ficar tranquila e esvaziar a cabeça”, conta Claudiane Azevedo, 34 anos. “Por maior que seja o trabalho, eu fico mais descansado do que estressado”, completa Jeová Gonçalves, 62. Ambos trabalham na varrição no período noturno, das 21h30 às 4h50, e fazem parte dos 3.396 garis que atuam no Distrito Federal. O trabalho no Serviço de Limpeza Urbana (SLU) é recente para Jeová. Até os 60 anos, atuava como mestre de obras. Tornou-se gari por, segundo ele, a atividade ser mais calma. “Aqui eu posso vir, trabalhar e me sustentar”, diz Jeová. O trabalho braçal não é considerado problema. Calado e às vezes com um cigarro nas mãos, conta que faz o trecho do Setor Comercial Sul sempre no mesmo tempo. A rotina é companheira inseparável para eles. Todos os dias são deixados no mesmo local por um ônibus da empresa, já com a rota pela qual serão responsáveis na cabeça. Separados em duplas, em geral fazem pelo menos quatro quadras e, ao final da jornada, aguardam o mesmo ônibus para retornar à empresa, onde marcam o ponto, deixam o material e o uniforme, e então podem voltar para casa. O salário mensal chega a pouco mais de R$ 1.300, somados o fixo de R$ 1.124 e 20% de insalubridade. O valor recebido pelos que varrem, capinam e pintam as vias do Distrito Federal é um pouco inferior ao dos coletores, aqueles que recolhem os rejeitos e jogam na caçamba dos caminhões, que têm 40% de adicional de insalubridade. Já os motoristas ganham R$ 1.822,62 mais 20% de insalubridade. Todos têm vale alimentação de R$ 700. Apesar de considerar o salário bom, Claudiane complementa a renda como diarista para garantir uma


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que realizar o trabalho todo abaixado e sem proteção para os olhos. “Se a cal cair em nossos olhos, a gente pode ficar cego na hora”, diz Miquiel. “Eles não entregam proteção para a gente nos dias de pintura e capina”, completa Jailson. A questão maior está no descarte incorreto dos rejeitos, o que pode causar ferimentos e contaminação dos garis. Além disso, há necessidade constante dos equipamentos adequados, os chamados EPI. O médico Dalcy Albuquerque observa que os riscos são diários, daí a necessidade de receberem por insalubridade. “Eles estão sujeitos a todo tipo de ferimentos e doenças. O trabalho que os garis realizam faz com que eles estejam em contato com qualquer tipo de vírus e bactérias”, explica. As transmissões podem ocorrer por ar, líquidos, perfuração e até ingestão. Daí a necessidade de check-ups anuais. “As aulas e treinamentos que os garis recebem para a segurança deles são muito importantes, nesses treinos é reforçado várias vezes que eles usem todo equipamento de proteção individual”, afirma. Os fiscais e supervisores são responsáveis por verificar se os equipamentos de proteção individual estão sendo usados corretamente. Gari há dez anos, Edvar Jesus, 58, é fiscal há cinco. O trabalho dele consiste em acompanhar toda a equipe, enquanto os supervisores atuam em área maior e, de carro, conferem o serviço de vários grupos ao mesmo tempo. Edvar observa que para a equipe de pintura quase sempre são escolhidos os mais novos, porém, com experiência. “Eles vão ter que aguentar fazer o trecho inteiro curvados para pintar os meio fios”. O trecho inteiro ao qual ele se refere é a W3, Sul ou Norte, que tem o branco da borda da calçada renovado por uma equipe de 12 a 20 pessoas. A organização dos funcionários nesta área é mista, com homens e mulheres. Já na área de coleta, há predominância masculina, pois as empresas consideram que o trabalho exige mais resistência física. Atualmente, duas terceirizadas são responsáveis pela limpeza urbana do DF: Valor Ambiental e Sustentare Meio Ambiente. O Serviço de Limpeza Urbana vistoria e checa os equipamentos e materiais

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DOENÇAS E TRANSMISSORES NO LIXO Baratas, moscas, mosquitos e ratos são animais que diariamente ameaçam o trabalho dos garis. As doenças carregadas por esse animais, por conta do lixo, pode causar uma vasta gama de doenças, tais como: Leptospirose: O lixo em conjunto com as águas das enchentes podem causar a Leptospirose, doença provocada pela bactéria leptospira. Originária da urina dos ratos, a enfermidade pode inclusive matar, se não houver tratamento rápido; Febre amarela: O lixo pode contribuir para o aparecimento de Febre Tifoide. A complicação pode matar se não houver tratamento ágil. O sintoma mais comuns é febre, como o próprio nome diz, de forma intensa, o que a difere de outras complicações onde a febre também se manifesta; Tracoma: Conjuntivite que pode provocar a formação de cicatrizes na conjuntiva e na córnea, podendo levar à cegueira. A transmissão pode ocorrer pelo contato dos olhos com as mãos, toalhas ou roupas; Tétano: Doença extremamente agressiva, pode, inclusive, matar uma pessoa em pouco tempo. O lixo pode ser um precursor no surgimento desta complicação, visto que a doença na maioria das vezes é transmitida por ferimentos em objetos cortantes. Os garis também estão sujeitos aos riscos de doenças como HIV e hepatite, por conta do lixo perfurocortante descartado indevidamente. utilizados pelas empresas terceirizadas. “Os garis passam por treinamento com uma equipe de segurança para poder realizar o trabalho da maneira mais adequada possível”, garante o coordenador da limpeza urbana, David Peixoto. Peixoto observa que um dos maiores problemas está no vidro

CLAUDIANE E Maria trabalham sempre juntas

descartado. “O vidro aqui no DF não é considerado reciclável, por causa do custo muito elevado para levar para São Paulo para fazer a reciclagem”, comenta. Doutora em desenvolvimento sustentável e professora da Universidade de Brasília, Valéria Gentil afirma que a viabilidade econômica do lixo é um


JEOVÁ TRABALHA há dois anos como gari; até os 60 anos, era mestre de obras

DOUTORA EM desenvolvimento sustentável, Valéria Gentil diz que viabilidade econômica do lixo é um dos desafios

poderia estar no incentivo da produção de vassouras de garrafa pet, bolsas de alumínio e outras peças que poderiam ser usadas na coleta. Valéria comenta que é comum a sociedade culpar os garis pelo descarte inadequado de resíduos. “Já ouvi diversas vezes pessoas falando que não têm por que fazer a coleta seletiva, já que os garis vão pegar tudo e misturar no mesmo container”, diz. A professora considera que esse pensamento faz com que se perpetue o descarte inadequado sob o argumento de se estar fazendo o certo. “Penso que várias das pessoas que afirmam fazer o descarte correto, falam da boca para fora, para ficar com boa imagem social”, reclama. Uma pesquisa feita em 2009 em Belo Horizonte sobre a qualidade de vida dos garis apontou o “desgaste físico e sofrimento psíquico, advindos de condições de trabalho bastante adversas durante muitos anos.” A conclusão da dissertação da pesquisadora Eliana Fátima Belo, que concluiu o mestrado em administração na Faculdades Integradas de Pedro Leopoldo, é a ausência de desafios psicológicos suficientes para o trabalho ser considerado como de boa qualidade de vida, apesar de cotidianamente apresentar metas a serem cumpridas. Eliana observa no estudo que existe “um grande vácuo nas pesquisas acadêmicas sobre os garis”.

COMO ARMAZENAR VIDRO QUEBRADO Um dos maiores riscos para a segurança dos garis são os pedaços de vidros descartados indevidamente. O corte pode levar a doenças, provocar o afastamento e até mesmo a aposentadoria por invalidez, dependendo da gravidade dos ferimentos. O que é aconselhado pelo SLU é que todo o vidro, por segurança dos garis, deve ser quebrado o máximo possível e colocado em um recipiente plástico, como uma garrafa PET. Em seguida, deve ser vedado com uma fita para selar completamente o recipiente para que não tenha como o vidro sair. Depois de finalmente ter lacrado completamente o vidro em um objeto seguro, deixe escrito na parte de fora, alertando que é vidro, para que os garis possam saber e não ter qualquer chance de ferimento.

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dos desafios, tanto no sentido do lucro que pode ser gerado, quanto nos gastos. “O lixo interfere na economia diretamente, o mundo movimenta 600 bilhões de dólares com a reciclagem de metais ferrosos”, afirma. Outras formas de se produzir um ambiente economicamente mais sustentável e de maneira socialmente melhor para os garis, na avaliação da professora, seria a aplicação de tecnologias de baixo custo. Para ela, uma das formas para tornar o trabalho mais humanizado

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CASTRAÇÃO É o melhor método para solucionar definitivamente o problema de super polução de cães e gatos

DEPOIS DO ENCANTAMENTO, O ABANDONO redemoinho . ano 08 . número 13

Brasília tem pelo menos 30 mil cães e gatos que vivem e se reproduzem, indiscriminadamente na ruas

BRUNA ANDRADE

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no ninho, ainda junto de animais, por isso, viu a necessidade o direito da pessoa devolver o animal com a mãe, que eles cos- de ter um local mais adequado para e, conforme a protetora, a devolução tumam chamar a atenção eles. Então, Orcilene foi morar em é bastante recorrente. “É melhor dede quem sonha em ter uma chácara, que hoje é o abrigo. A volver do que abandonar. A gente um animal de estimação protetora lembra que a primeira par- ampara os bichinhos, tira da situação em casa. Ali, nas feiras ceria foi com uma protetora que tinha de risco e dá um conforto. Não quede adoções ou nas lojas 60 animais em um apartamento no remos que eles voltem para as ruas”, onde são vendidos, os filhotes pare- Plano. Depois de conhecer o trabalho comenta. Orcilene ressalta que uma cem sempre encantadores, dóceis, da Orcilene a pareceria começou. “Na vez dentro do abrigo os animais não sem nenhum traço de travessura. É medida em que ela entrava com os são mais “coitadinhos”, porque o abriquando são comprados ou adotados animais, ela castrava os que estavam go foi fundado exclusivamente para por muita gente que, poucos meses sobre o meu poder e alimentava to- eles e, nele eles têm qualidade de vida depois perde o encanto e acaba por dos, eu tinha o espaço e ela o recur- e dignidade. abandoná-los e ajudar a O principal desaengrossar a estatística fio de quem trabalha que aponta a existência em abrigo e feiras de de pelo menos 30 mil adoções é encontrar Os protetores tiram os animais da cães e gatos nas ruas do adotantes de animais Distrito Federal, segun- indigência, da invisibilidade e transformam que estejam disposdo as ONGs que atuam tos a enfrentar as dina causa. Como o tempo ficuldades que qualem seres com qualidade de vida” de média de vida de um quer animal apresenOrcilene Arruda, protetora de animais cão é de 13 anos e de um ta, como os casos de gato de 15 anos, a tendoenças, por exemdência é que se nada for plo. “É natural o anifeito, esse número só tende a crescer. so”, lembra. Atualmente, o abrigo é mal adoecer e essa devolução prova Só para se ter uma ideia, sem castra- responsável por 400 cães e 200 gatos. que a pessoa não está pronta”, diz. ção ou vacina, uma cadela pode dar à Os animais chegam ao abrigo de “A gente é só um lugar temporário, luz até 50 filhotes por ano. Uma gata diversas formas. Alguns a protetora uma casa de passagem. Os protetopode ter até 90. resgata na rua. Outras vezes ela re- res tiram os animais da indigência, da O trabalho das ONGs e pessoas cebe pedidos de ajuda de pessoas invisibilidade e transformam em seres que trabalham com proteção e defesa que encontram animais na rua e não com qualidade de vida”, afirma. dos animais. É essenciais para o res- têm condições de ficar com eles. A Proteção aos animais gate e cuidados dos bichos que são maioria, no entanto, é abandonada descartados pelos donos. O que eles na porta do abrigo. “As pessoas são A Associação Protetora dos Anitêm em comum, além do amor aos oportunistas. Elas veem esse trabalho mais (ProAnima), de caráter socioamanimais é a força, empenho e dedica- como se a responsabilidade fosse so- bientalista, desenvolve um trabalho ção para cuidar. São horas dedicadas mente nossa e descartam os animais”, que vai além do resgate aos animais a eles. Sem ajuda financeira do esta- alega. Segundo Orcilene, a adoção no domésticos. A ProAnima trabalha pelo do, eles se viram do jeito que podem, Flora e Fauna é flexível porque ela dá avanço da legislação e de políticas por meio de doações de pessoas que acreditam na causa e no trabalho realizado. A protetora de animais Orcilene Arruda de Carvalho, 52 anos, é a responsável pelo abrigo Flora e Fauna. O local que existe há 12 anos é a consequência do trabalho que ela desenvolve. “Não foi algo premeditado. Desde criança eu acolhia animais na rua e levava para casa e a minha vida seguiu assim”. Orcilene lembra que no começo mantinha 50 animais, mas faltava comida para tanto bicho. Muitas vezes, ela conseguia a alimentação por um único dia, e ia para a cama à noite preocupada com o que dar de comer no dia seguinte. A BIÓLOGA e protetora Ana Teresa Nessa época ela viu que incomotrabalha com animais há 20 anos dava a vizinhança com a quantidade


públicas de proteção aos animais, se- 10 a 15 anos. Portanto, é um compro- UnB, para tratamento, recuperação e gundo a diretora da fundação, Suza- misso longo que estará sendo assu- encaminhamento para lares de apona Coelho A associação não mantém mido. Além disso, haverá gastos com sentadoria. abrigo e os animais são amparados alimentação e assistência veterinária, O Veganize tem o objetivo de por ela ficam em lares temporários, de pois cães e gatos precisam ser vacina- estimular as pessoas a repensarem pessoas comuns que se dispõem, com dos, vermifugados e ter acompanha- os hábitos alimentares e de consuo apoio financeiro, mo e a adotarem um estilo médico e material e vida que não patrocine da associação a eventos que impliquem o “Eu achei um gato na rua. Depois outro. cuidar deles até sofrimento animal, como Depois que comecei a pegar animais, em circos, rodeios, vaquejadas que sejam doados. Segundo Sue touradas. O Pelos Amigos todo lugar eu via” zana, as dificuldaampara cães e gatos proveThaís Barbosa, dona de casa des enfrentadas nientes principalmente de pela ProAnima são apreensões decorrentes de vividas por muitas denúncias e maus-tratos. outras associações do tipo. “Todo nos- mento. “É preciso zelar pela seguran- Esses animais são encaminhados a laso trabalho é feito por voluntários e ça e bem-estar deles”. res temporários, recebem tratamento mantido com doações. Portanto, nosOutra questão importante a ser veterinário, são vacinados, vermifugasas ações ficam limitadas aos recursos observada é a castração, método dos, castrados, socializados e encamidisponíveis”, explica. Atualmente, a recomendado por sociedades de nhados, por meio de criterioso profundação é responsável por cinco proteção animal de todo mundo e, cesso de adoção, a lares definitivos. gatos, 13 cães e um cavalo. O histó- também pela Organização Mundial Trabalho Voluntário rico desses animais é de situações de de Saúde (OMS), para solucionar demaus-tratos e negligência. finitivamente o problema de superA bancária Lucianna Guerrante O processo de adoção adotado polução de cães e gatos. Além disso, Schlottfels 37 anos, é voluntária do pela fundação ProAnima envolve o a cirurgia traz benefícios para a saúde projeto desde 2014, quando resgatou preenchimento de um questionário, e o bem-estar do animal e facilita a um cachorro e entrou em contato com com perguntas dirigidas, que fazem convivência deste com humanos e a ProAnima que ajudou a socorrê-lo. com que o adotante pense na res- outros animais. Ela nao conhecia o trabalho deles e ponsabilidade envolvida. Estando A ProAnima mantém outros pro- foi convidada para ajudar. A bancária tudo certo, a pessoa é convidada a gramas, como o Pangaré, voltado para participa de alguns projetos da assoconhecer o animal. “A adoção é um o acompanhamento, principalmente, ciação como o projeto pelos amigos, ato muito sério, deve haver consen- da legislação do DF que veta o uso onde ela faz a triagem das pessoas so entre os membros de uma família, de cavalos em carroças. A iniciativa que querem adotar um animal. quando se resolve levar um animal também é voltada para a assistência De acordo com Lucianna, é uma para fazer parte dela”, destaca a dire- direta a esses animais, resgatando-os maneira de garantir que seja uma tora da associação. de situações de negligência e aban- adoção responsável. Então é aplicaDe acordo com ela, as pessoas dono, encaminhando-os em parceria do um questionário e partir dele é precisam estar cientes de que um com a Secretaria de Agricultura do DF avaliado o perfil do animal e a expecanimal doméstico vive, em média, de (Seagri) e o Hospital Veterinário da tativa do interessado na adoção. “A

PARA ADOTAR UM BICHINHO

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Abrigo Flora e Fauna - feiras todos os sábados das 11h às 16h na 108 sul ao lado do pet shop di petti.

ProAnima - Para adotar um dos animais da associação os interessados devem escrever para queroadotar@proanima.org.br

Thais - pelo facebook Thais Barbosa

Projeto acalanto - basta acessar a página no facebook do Projeto Acalanto

Atevi - pela pagina no facebook Atevi Anate Casasanta ou pelo e-mail atevi.df@gmail.com

O ABRIGO Flora e Fauna organiza feiras de doação


tegidos”, que são resgatados das ruas. Para Lucimar a castração é importante porque é por meio dela que existe o controle populacional e consequentemente a diminuição do abandono, doenças sexualmente transmissíveis. “Castração deveria ser obrigatória. Quem sofre são os animais por conta da covardia do ser humano”, acredita. Projeto Atevi

gente faz essa triagem e tenta fazer a melhor combinação possível”, relata a bancária que acredita que o questionário é importante pois irá fazer a pessoa refletir se ela realmente quer o animal e as responsabilidades. Ela, também ajuda no projeto de lar temporário, onde ela atualmente cuida de 5 gatos da associação. Dedicação em tempo integral A dona de casa Thais Fernanda Barbosa, 23 anos, é uma protetora independente. Ea começou a se interessar pelo resgate e cuidado com os animais aos 19 anos. “Eu achei um gato na rua. Depois outro. Antes eu não via nenhum gato, depois que comecei a pegar animais na rua, em todo lugar que eu ia, via”. Thais ainda lembra que chegou a ter 72 gatos em casa. Atualmente la cuida de sete cães e 55 gatos. Ela diz que ainda existe muito preconceito com os gatos, porque as pessoas dizem que eles não gostam do dono. “É um animal mais arisco, que vai embora”, explica. Thais ressalta que quem quer ter gato precisa morar em casa segura, com tela nas janelas. Os animais cuidados por Thais são mantidos por meio de ajuda de amigos que acompanham o trabalho da protetora e, pela divulgação do trabalho no Facebook (Thais Barbosa). “Geralmente eles me dão o dinheiro ou depositam na conta do veterinário e eu mando os recibos, tiro foto do animal, das rações que chegam. Eles

depositam eu presto conta de tudo”. Geralmente o histórico dos animais que chegam até Thais são de abandono e maus-tratos. “São pessoas que dizem gostar de animais, mas não tem coragem de castrar o gato ou o cachorro e, quando procriam, tem a coragem de abandonar o filhote, que é mais indefeso”, conta a protetora que lembra já ter achado dois gatos em uma BR. Projeto acalanto

Saúde dos animais A veterinária e professora universitária Paula Diniz Galera, 48 anos, explica que por falta de cuidados adequados um animal de rua pode trazer algumas doenças que são chamadas de zoonoses e, de acordo com ela, alguns exemplos clássicos são a raiva e a leptospirose. Há, ainda, uma série de doenças que podem ser transmitidas para os outros animais, levando-os a uma situação deplorável de saúde Na opinião da veterinária, deve-

A assistente administrativa Lucimar Aparecida Pereira, 44 anos, se encantou com os animais desde criança. Naquela época ela já pegava cachorros e gatos da rua e levava para casa escondido dos pais. Hoje, ela trabalha na proteção aos e criou o projeto acalanto. “Temos parceiros como veterinários. Não conseguimos nada de gra“Todo nosso trabalho é feito por ça. Faço rifas voluntários e mantido com doações. e bazar para Suzana Coelho, diretora do ProAnima arcar com as despesas veterinárias. Também recebo ração de uma amiga”, comenta riam ser incentivadas ações de políLucimar que diz quem em casos gra- ticas públicas voltadas à medicina do ves publica a conta da clínica vete- coletivo, com foco na guarda responrinária em sua página no Facebook sável, por meio da educação. “Esta e as pessoas depositam para ajudar seria uma forma de conscientizar a nos custos. população sobre a responsabilidade A assistente administrativa não das pessoas sobre os animais que estem ONG, apenas um quarto e um ba- tão sob sua guarda, evitando o ciclo nheiro em casa onde acolhe os “pro- do abandono”, comenta.

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DE ACORDO com as ONGs que atuam na causa há pelo menos 30 mil cães e gatos nas ruas do Distrito Federal

A bióloga e professora Ana Teresa Casasanta França, 44 anos, trabalha com o resgate de animais há 20 anos. Ela desenvolve um trabalho educativo com jovens, onde é ensinado a proteger e respeitar os animais. “Na medida do possível temos ajudado outros protetores e abrigo do DF”, ressalta. A história dela é semelhante às outras, seu encanto pelos animais ocorreu ainda na infância. A bióloga é responsável pela ong Atevi, onde eles cuidam dos gatos da UnB, de todas as colônias dos campus no qual eles são alimentados, castrados e tratados, no total são aproximadamente 1.500 gatos.


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O SISTEMA DE SAÚDE TEM COR Racismo velado negligencia a saúde e mata todos os anos milhares de mulheres pretas no Brasil KETILEN CARVALHO A pesquisadora conta que todas as fases do atendimento são negligenciadas e que não se restringe apenas ao diagnóstico. “Ele [o atendimento negligenciado] começa desde a portaria, quando tem aquele guarda ou segurança que vai abordá-la de alguma maneira, depois você tem a triagem até chegar ao médico ou à médica”, critica. Marjorie explica que na maioria dos casos, essas mulheres são pobres, moradoras de periferia. E que para elas são dificultados até a dada de informação. “Nem sempre o médico vai explicar para ela a doença que ela tem, porque ele acha que ela não vai entender”, completa. Marjorie ressalta que outra questão é a menor incidência de números de consultas médicas de pré-natal para as mulheres negras. “Existe uma negligência nesse atendimento, que faz com que essas mulheres não façam o acompanhamento devido”, opina. A proporção de mães que declararam fazer sete ou mais consultas médicas pré-natal, em 2012, (o mínimo recomendado é de seis consultas)

foi de 85,8% em mulheres brancas, seguida da amarela (80,7%), parda (71,8%), negra (71,2%) e indígena (39,7%). Além da falta de acesso ao serviço pré-natal, segundo a pesquisadora, as negras são as maiores vítimas da violência obstétrica. Até a quantidade de anestesia que é dada a essas mulheres é menor do que a dada as brancas. “A gente tem uma sociedade que cria representações sobre mulheres negras. Faz essa associação com uma mulher que aguenta tudo”, explica. Violência obstétrica A assistente de departamento pessoal, Rafaela Conceição dos Santos, 30 anos, disse que sentiu na pele o peso do preconceito e da violência obstétrica contra as mulheres negras. Grávida do primeiro filho, ela sofreu para dar à luz. No dia, o hospital estava lotado, segundo ela. A assistente de departamento pessoal ficou uma hora sentada, aguardando atendimento. Ela lembra-se da frase dita por uma enfermeira, ao ouvir as reclama-

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O

racismo mata e adoece as mulheres negras do Brasil. Os dados mais recentes do Sistema de Informações sobre Mortalidade (Sim), do Ministério da Saúde (MS), mostram que das 1.583 mortes maternas em 2012, 60% eram de mulheres negras e 34% de brancas. Além de enfrentar questões como essas, elas são praticamente ignoradas pelos bancos estatísticos do país. Muitos dados ainda são coletados sem levar em consideração a etnia, segundo a pesquisadora Marjorie Nogueira Chaves, do Observatório da Saúde da População Negra sob cogestão do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília (Nesp/Ceam-UnB). Para a pesquisadora a mudança precisa ser estrutural e são necessárias políticas específicas para isso. “O racismo institucional no atendimento à saúde é prejudicial para que as mulheres negras exerçam seus direitos humanos”, enfatiza. O Governo tem medidas como o Estatuto da Igualdade Racial, instituído em 20 de julho de 2010, e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída em 13 de maio de 2009. Mas ainda assim instituições como o Conselho Federal de Medicina não fazem estudos levando em consideração a etnia e a cor da pele da população. “Essas informações são completamente importantes para que se possa dar uma argumentação para essa reinvindicação de políticas específicas” explica, Marjorie.

A PESQUISADORA Marjorie é engajada na luta contra o racismo


ções dela, sobre as dores: “mulher da coitada que engravida sem que- um choque, por isso eu estava com dosua cor aguenta bem as dores. São rer para ficar colocando filhos no res intensas”, lembra. mais fortes. Se fosse uma branca já mundo”, pergunta. A assistente social foi encaminhada estaria gritando”. A assistente social, Lúcia Silva*, ao centro cirúrgico. Foi quando penMas o caso que a marcou foi na (nome fictício) 34 anos, não tem dú- sou: “Vou ter um bebê. O que faço desegunda gravidez, que ocorreu sem vidas de que é uma vítima do racismo pois?”, interrogou. Ela passou por uma planejamento e com ela usando institucional. Ela buscou o serviço de cesariana, porque corria risco de morte. métodos contraceptivos. Rafaela diz saúde quatro vezes, por sentir fortes Acordou em uma sala com outras mães. que teve um sangramenTodas com os filhos. to, buscou atendimento Menos ela. “Todos os de emergência e foi exaleitos tinham berços, “Ele ignorou. Me receitou buscopan e minada por um médico. inclusive o meu. Mas “[Ele me atendeu] sem o meu estava vazio”, ultragestan e me mandou pra casa” nenhuma atenção”. Raretrata, com voz trêRafaela Conceição dos Santos faela estava na décima mula. Lúcia conta que semana de gestação. “Ele chamou a enfermeira ignorou. Me receitou buse perguntou sobre o copan e ultragestan e me bebê dela, mas a promandou pra casa, sangrando ainda dores na barriga, sem sequer imagi- fissional não sabia responder, talvez por mais do que estava quando cheguei”, nar que estivesse grávida. Somente na ter ocorrido uma troca de plantão. A lembra. quarta vez foi atendida. “Cheguei com enfermeira perguntou para uma outra, Rafaela conta que foi para casa quadro hemorrágico e desacordada”, que segundo a assistente social, com e seguiu as recomendações. Tris- detalha. A médica pediu um teste de tom ríspido, ignorou o que ela pergunte. Pois sabia que sangramento no gravidez e passou um remédio para tava, e insinuou, que provavelmente início da gravidez não é normal. dor. Segundo a assistente social a dor Lúcia estaria ali por ter feito aborto. Ela diz que tomou um banho, se não cessava e ela ainda teve que aguarSó depois de várias horas ela soube deitou por alguns minutos e sentiu dar mais três horas para ser reavaliada. o que havia acontecido, mas ficou sem vontade de ir ao banheiro. Ao sen- A profissional a encaminhou para uma entender o tipo de gravidez que tivera. tar no vaso, viu o feto ser expelido. maternidade, pois segundo Lúcia, a Ela ainda se revolta ao falar que teve a “Sentindo isso eu peguei ele nas médica a acusava de ter provocado o barriga aberta e a trompa retirada, sem minhas mãos. Gritei”, recorda. “Essa aborto que sofria naquele momento. consentimento. “Eu olho pro meu corimagem não sai da minha cabeça”. Ela disse que tentou argumentar des- po e não me reconheço mais nele”, laA assistente de departamento conhecimento sobre a gravidez. Não menta. Na enfermaria com outras mães, pessoal voltou ao hospital onde adiantou. ela disse ter passado noites de pânico. foi recebida de forma pior que a Na maternidade, a assistente social “Eu tinha pesadelo com os bebês do anterior. “As enfermeiras me per- foi examinada por outro médico, que quarto”, detalha. guntaram o que fiz com o feto e pediu uma ecografia. O exame, constaLúcia chora ao lembrar do ocorrido como eu sabia que era um”, de- tou que o embrião estava se desenvol- e afirma que se sentiu culpada pelo que talha. Ela conta que sentiu raiva. vendo na trompa direita, que havia se aconteceu. “E carreguei essa culpa sozi“O que para eles era só mais uma rompido. “O sangue acabou causando nha” completa. Ela ainda conta que não

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De negro para negro Negra, a estudante de medicina da Instituto Master de Ensino Presidente Antônio Carlos, Mariana Lemos Prado, 24 anos acha que os médicos e alunos do curso não se atentam para as questões raciais por serem prioritariamente brancos e de classe média. Outro problema pode estar na grade curricular, que na maioria dos casos, não aborda o assunto. “Se o problema do racismo estrutural não existe pra eles, como irão lutar contra?”, questiona. A estudante, doula, assistente social e terapeuta comunitária Petrushka Barros Alves, 26 anos é uma das fundadoras da NegroSus, uma rede de apoio aos estudantes negros da Universidade de Brasília- Faculdade Ceilândia (UnB-FCE). Eles trabalham aspectos da terapia comunitária, como forma de fortalecimento de vínculos. “É um espaço de autocuidado”, explica. Ela conta que NegroSus surgiu da falta que ela e um amigo sentiam de um espaço de discussão que abordassem essa pauta. “É difícil ser um estudante negro na saúde”, afirma. Para ela os outros espaços tratam as demandas dos negros como vitimização. A estudante relata que diversas vezes médicos sequer olham para o rosto dela. Ela ressalta que por usar dreads,

sempre que busca atendimento de saúde, as pessoas a olham de forma preconceituosa. “Olham para os meus pés pra ver se estão limpos”, lamenta. Para a terapeuta, o primeiro passo é reconhecer o racismo institucional. “Já se tem a PNSIPN [Política nacional de Saúde integral da População negra], que é um avanço. Agora a demanda é para que ela seja colocada em prática. A assistente social ressalta que o investimento na capacitação de profissional poderia contribuir muito. Petrushka mora em Ceilândia e relata que na cidade está um dos hospitais que mais fazem parto no DF. Ela questiona as condições desses partos e por isso decidiu ser doula. “A mulher negra dentro do serviço de saúde , o corpo dela não tem dono”, critica. Ela lembra de relatos como “na hora de fazer foi bom né? Para de chorar”. Ela diz que trabalha para evitar situações como essas. “Para que quando elas cheguem lá encontrem um ambiente tranquilo, acolhedor” enfatiza. A estudante Kamila Silva, 24 anos, relata que nas vezes que foi ao posto de saúde com alguma dor, era muito comum nem chegar à sala do médico. “As técnicas mediam minha pressão, perguntavam o que tinha acontecido e me mandavam pra casa descansar”. Ela relata que enfrenta maiores dificuldade em casos ginecológicos. “Eu já tive a impressão de que o médico ou a medica tinha meio que nojo de me tocar”, relata. Para ela definitivamente não é fácil buscar ajuda do serviço público de saúde, principalmente quando é negra. “Eu sinto que tenho que contar com a sorte”, conclui.

KAMILA SILVA milita para que o negro seja enxergado pelo sistema de saúde

PETRUSHKA LUTA para que a mulher negra tenha autonomia

Saúde da população negra em números A mais recente Pesquisa Nacional sobre Discriminação de Cor foi feita em 2003 e mostra que até a percepção de discriminação racial sofrida pelos negros é pequena. Apenas, 3% já se perceberam discriminados nos serviços de saúde. Entre as pessoas negras que referiram à discriminação, 68% disseram que passaram pela situação no hospital, 26% nos postos de saúde e 6% em outros serviços não especificados. As doenças mais comuns entre os negros são a diabetes, hipertensão arterial, anemia falciforme, miomas, mortalidade infantil e tuberculose. A taxa de mortalidade registrada na população negra, por diabetes, foi de 34,1 (por 100 mil habitantes.), na população parda 29,1 e 22,7 na branca. As taxas de mortalidade por hipertensão arterial nas populações negra, parda e indígena aumentaram. Diminuíram na amarela e ficaram estáveis na branca, entre 2005 e 2012. A taxa mortalidade por hipertensão na população negra foi de 32,3 (por 100 mil habitantes), na população parda 25, e 17 na branca. Em 2012, a taxa de mortalidade por doença falciforme na população em geral foi de 0,23 (por 100 mil habitantes), na de cor negra, 0,73, na parda de 0,28, enquanto na branca foi de 0,08. Das mortes na primeira semana de vida, 47% foi de crianças negras e 38% de crianças brancas. As principais causas da mortalidade infantil entre crianças negras são problemas congênitos, prematuridade e infecções perinatais, enquanto na branca foi de 0,08.

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houve acolhimento e nem sensibilidade com o caso dela por parte da equipe médica do hospital. A assistente social trabalha em um abrigo pra mulheres e o lar tem crianças e bebês recém-nascidos e apenas 15 dias depois do ocorrido, teve que voltar a trabalhar.


ADJÁ - sineta utilizada por sacerdote na condução de cerimônias no Candomblé

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TESOURO QUE O BRASIL IGNORA Pela primeira vez, DF fará mapeamento de terreiros e casas de santo. Ao mesmo tempo, tradição oral se mantém, mas ameaça a preservação de rezas e cânticos

LIDIANE MAKENA

–, e reconhecidas como patrimônio histórico, apenas nove terreiros têm tal título. Nenhum em Brasília. Todos estão na região Nordeste. Um está no Maranhão. Os demais, na Bahia. O único registro oficial destes lugares trata apenas da memória imaterial. É o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) feito em 2012, pelo Iphan-DF. Mas nele constam apenas as dimensões de 52 lugares de culto, das religiões de santo mais praticadas no DF. O documento possui 324 páginas. O “Mapeamento dos Terreiros do Distrito Federal do Brasil”, como foi denominado, começou a ser feito no ano passado. O levantamento ocorre a partir do preenchimento de formulários, via internet, por representantes de terreiros. Após o cadastro, eles devem receber a visita das equipes da cartografia. A estimativa, segundo a chefe de Proteção ao Patrimônio Afro-bra-

sileiro na Fundação Palmares, Adna Santos de Araújo - a Mãe Baiana-, é de que o número real e a identificação das religiões por região sejam confirmados oficialmente após o mapeamento. “Hoje, muitos se escondem por causa do aumento da intolerância [religiosa]. Às vezes, até têm um terreiro no quintal, mas não colocam placa na porta, por temerem os ataques”, denuncia. “Esperamos que, a partir do mapeamento, surjam mais políticas públicas e que o governo dê visibilidade a esses terreiros, para que saiam da situação de vulnerabilidade e medo”, justifica. De acordo com o responsável pela pesquisa cartográfica, o professor do Departamento de Geografia da UnB, Rafael Sanzio, os trabalhos devem ser publicados no primeiro semestre de 2018. “A pesquisa cartográfica consiste, basicamente, na localização espacial e não irá realizar inventário (pesquisa antropológica-

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Q

uando deixaram os locais onde nasceram para vir construir Brasília, os pioneiros que ergueram prédios, abriram e pavimentaram vias e ajudaram a formatar uma das capitais mais emblemáticas do mundo, também trouxeram na bagagem os sonhos, a religiosidade e a fé. Muitos deles, seguidores de doutrinas de matriz africana. Com o passar dos anos, a população de Brasília se multiplicou, como multiplicaram também os terreiros e casas de culto. Mas só agora, 57 anos depois, está sendo feito o primeiro mapeamento cartográfico das comunidades de santo, como são chamadas. A pesquisa é da Fundação Cultural Palmares órgão ligado ao Ministério da Cultura (MinC) em parceria com a universidade de Brasília (UnB) e vai compor a busca de novas políticas públicas para a preservação das tradições orais e dos bens materiais destas comunidades. A estimativa é de que no DF e Entorno existam cerca de 450 terreiros. É o retrato três por quatro de um Brasil que se recusa a documentar um traço fundamental da própria identidade. Para se ter uma ideia, segundo tabela de bens tombados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), enquanto o país tem mais de 350 igrejas tombadas (incluindo capelas) – dentre elas, 102 em Minas Gerais, 56 na Bahia, duas no DF (Plano Piloto)

FILHOS-DE-SANTO PEDEM a bênção através de Pai Ricardo

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EGBOMES (PESSOAS com obrigações de santo completas) com suas filhas

-sociológica-cadastral) nos terreiros”, esclarece. Assim como Mãe Baiana, o pai-de-santo Rafael Rebouças também teme a repressão dos intolerantes. A diferença é que esse medo faz com que o religioso, que desde 2016 mantém o templo umbandista São Miguel Arcanjo em Santa Maria, desconfie da utilidade do mapeamento. Ele tem medo de que o estudo deixe os terreiros muito expostos. Pai Rafael teme até proibições por parte do governo, por acreditar na possibilidade de tentativa de regular dogmas e rituais. “Ainda não temos condições regimentais para a legalização das nossas áreas como templos religiosos. Não temos representantes de força dentro do governo. Não temos união entre os templos. Eu acho que tínhamos que nos organizar, nos conhecermos melhor. Só assim teremos força para

organizar, mapear e legalizar nossas casas”, afirma. Antes de ser umbandista – religião essencialmente brasileira com influências da raiz africana que se comunica em português e cultua entidades brasileiras e também orixás –, Pai Rafael passou pelo espiritismo de Alan Kardec e pelo Candomblé. Desde 2015 ele também frequenta outra denominação: o Culto Tradicional Africano ou Culto Tradicional Yorubá, com intuito de aprimorar os estudos sobre rituais e iniciações orixás. O Culto está no Brasil há 30 anos, é uma denominação que se configura pelo resgate à devoção aos orixás como é feito na África. Já o pai-de-santo Aurélio de Odé concorda que o mapeamento possa melhorar as condições das comunidades por meio de políticas públicas. O Ilê Odé Axé Opô Inle, terreiro de

Candomblé que ele dirige, recebeu a visita da equipe de cartografia. Mas, assim como Pai Rebouças, Pai Aurélio também aponta a intolerância religiosa e o aumento da violência aos povos-de-santo como ameaça à religiosidade de matriz africana. Para ele, outro problema é também a falta de representatividade no governo e a consequente insegurança, causada por discussões no Poder Legislativo Nacional. “A bancada evangélica é que comanda o Congresso Nacional e tem sempre tentado criar projetos de leis que nos atacam, que nos tiram nossos direitos”, diz. “Enfrentamos agora um Projeto de Lei de um deputado que tenta nos tirar o direito aos sacrifícios de animais nos nossos rituais. Então a pessoa cria uma religião um dia desses e quer mandar nas religiões seculares, milenares como o Candomblé”, protesta.

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YALORIXÁS, FILHAS de Oyá, conduzem ritual no Ilê Odé


A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, define patrimônio imaterial como práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados, que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. A Constituição Federal reconhece nos artigos 215 e 216 a existência de bens culturais de natureza material e imaterial. E o Decreto no. 3.551/2000 institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial no país.

Pai Aurélio de Odé foi iniciado no Cancomblé em 1991 pelo babá António de Oxossi no Ilê axé ofá de prata, que fica no Gama. Mas ele só assumiu o posto de sacerdote em 1999, ao atingir a maioridade para dirigir o terreiro, que é de nação Ketu. Desde 1993 o Ilê Odé está localizado na fazenda Mestre D'Armas, em Planaltina, a cerca de 30 quilômetros da Rodoviária do Plano Piloto, num terreno de quatro mil metros quadrados, com 1,8 mil metros quadrados de área construída. O local funciona como centro de inclusão social e recebe visitantes de várias partes do mundo. A casa tem mais de 200 membros, abriga um ponto de cultura e oferece serviços à comunidade. Outros cinco terreiros já foram abertos por filhos-de-santo descendentes de lá. Sobre as perseguições da intolerância religiosa, o advogado, mestre e doutor em sociologia da Religião e professor da UnB, Eurico Cursino dos Santos, afirma que esta é fruto das religiões universalistas, que desejam se impor como verdades absolutas. Religiões europeias que tendem a tratar como massa a ser dominada as afro-brasileiras, justamente por estas terem base na população afri-

CANTOS DE TERREIRO É dentro da Nação Ketu do Candomblé que o antropólogo Cláudio Bull estuda a religião e a oralidade das tradições afro-brasileiras. Foi lá que ele criou e conseguiu aprovar um projeto junto ao Fundo de Apoio à Cultura (FAC) para gravar em CD as cantigas sagradas, num trabalho de registro estético e documental. Diante das gravações dos ritos culturais e festas nos Ilês e casas afro-brasileiras, encontradas na internet, segundo ele, carregados de elementos da música pop, Bull se deparou com a necessidade de documentar os sons do terreiro tais como são, em sua rusticidade. “O nome do CD é Sons dos terreiros. A ideia é tentar ir para os terreiros e fazer quase que um trabalho etnográfico, de maneira a pesquisar como essa música sobrevive dentro da tradição dos toques e como eles acabam [se] mantendo dentro disso”, conta. São gravadas neste primeiro projeto canções de apenas uma tipologia. De acordo com Bull, cada tradição possui a própria sonoridade e essas são, entre si, distintas, apesar de algumas possuírem uma mesma raiz. Para o antropólogo, o registro audiovisual é um instrumento para a preservação das tradições ágrafas, que se perdem, muitas das vezes, pela morte das matriarcas e dos patriarcas. “Por isso importância dos registros fotográficos, fonogramas, audiovisuais, para o conhecimento das gerações futuras, mesmo que a contragosto de dirigentes, de algumas casas de santo ou de alguns conservadores”, diz.

cana escravizada, que tiveram que lutar pela própria sobrevivência e, por isso, cercaram-se de um caráter de mistério, do qual ainda se valem como autoproteção. Para o sociólogo, fazer um levantamento da quantidade de terreiros e um mapeamento das comunidades de matriz africana no DF pode ser perigoso. Como pode ser perigoso também registrar de forma escrita as tradições orais delas. O sociólogo acredita que isso pode ter efeitos ambíguos e com grandes riscos à autonomia desses povos. “Tudo o que for a ciência dominante tomando para si o objeto, e ela faz isso através do método dela, ela quantifica, mede,

numera”, explica. “Vai cada vez menos servir às pessoas e mais servir à grande sociedade estabelecida”, acredita. Natureza imaterial Muitos esforços para registrar os traços da oralidade são feitos por estudiosos das ciências sociais desde o século XIX, antes pela curiosidade, depois pela preservação das matrizes tradicionais. Essas religiões são bens culturais imateriais que, mais do que formar a base mística do país, embasam as tradições e engrossam o caldo da diversidade dos modos, usos e costumes do povo brasileiro. É consenso entre vários dirigentes das comunidades de matriz afri-

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PATRIMÔNIO CULTURAL

DEVOÇÃO NA reza para Omolu, patrono do terreiro do Pai Ricardo Araújo

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Foto: Ògan Luiz Alves

PRESERVAÇÃO CIDADÃ

Trabalhos como o primeiro registro, em 1951 na Bahia, do ritual do Candomblé pelo fotojornalista teresinense José de Araújo Medeiros, publicado na revista O Cruzeiro e em livro alguns anos depois, inspiram, em Brasília, o fotojornalista carioca Ògan Luiz Alves, cujas lentes dedicam-se há mais de 20 anos a registrar, de forma independente, as comunidades afro-religiosas. Por meio do projeto "Iyás e Ìyáwos - Mães e Filhas de Àsé", ele retrata o cotidiano das mulheres nos Ilês e a importância delas nas religiões de matriz africana. Alves foi contemplado em 2014 pelo prêmio Mês da Fotografia, realizado pela ONG Lente Cultural Coletivo Fotográfico, do calendário oficial de eventos do GDF –, e, atualmente, a exposição é apresentada em ambientes escolares com o objetivo de combater o preconceito e a intolerância social, racial e religiosa. Luiz Alves é filho de santo, confirmado como Ògan em 1991, em Djedje Mahin e integra o terreiro de Mãe Baiana. Foi o avô de santo que o incentivou a fotografar com a intenção de combater a demonização do povo de santo. “Fiz da fotografia um instrumento de luta contra todas as formas de intolerância”, diz.

cana no DF que o registro dos cantos e rituais pronunciados na língua raiz facilita na hora de passar de forma oral os conhecimentos e fundamentos da religião que se tornam, com

o tempo, cada vez mais dissonantes. Alguns até se utilizam dos próprios meios. Mãe Baiana, por exemplo, produz internamente cartilhas impressas e CDs, para instruir os membros da

casa. Os pais-de-santo afirmam ser difícil para quem não é nativo aprender uma um idioma ou dialeto de características tão diferentes daqueles que se falam naturalmente, desde a infância. Afinal, trata-se de religiões que possuem rituais de iniciação e que aceitam novos adeptos sem restringir idades ou idiomas. Tudo é absorvido com o tempo. O músico Guilherme Machado Maranhão, 33, por exemplo, é abian, uma espécie de aspirante ao ingresso na doutrina, no terreiro do pai Ricardo Araújo. Lá ele recebe os primeiros ensinamentos do Candomblé, para se iniciar como filho-de-santo. Ele pretende ser um Alabê, caso a mediunidade não mude, pois, segundo conta, o cargo exige que o médium que o executa não seja de incorporação de espíritos. “As cantigas, os toques dos instrumentos percussivos, a música presente nos terreiros de Candomblé são de responsabilidade do Alabê”. O abian, por enquanto, recebe ensinamentos também de outros irmãos de santo que já têm essa incumbência em outros terreiros da mesma denominação. Segundo Guilherme, muitas cantigas são entoadas de maneira diferente em terreiros de uma mesma nação e por esse motivo ele julga ser importante a passagem de conhecimentos de maneira correta, para que as tradições sejam mantidas. “Por ser músico, lá me foi dada a permissão para que eu aprendesse os toques e começar a ajudar na casa. Os toques são diferentes e específicos para cada entidade e em cada nação. Aqui, uma nação Jeje, tocamos com os agdavis (varetas finas), os três atabaques e o abê, que no maraca-

DIALETO DO SANTO redemoinho . ano 08 . número 13

No estudo A tradição musical Iorubá no Brasil, publicado no ano 2000, o antropólogo professor da UnB José Jorge de Carvalho fala da preocupação dos povos de santo com o desaparecimento do Idioma Iorubá e de outros dialetos como o quicongo e o quimbundo. De acordo com as considerações de Carvalho, atualmente os adeptos das religiões de matriz africana no Brasil não falam mais a língua materna, mas há um esforço, por parte dos líderes das comunidades, de preservar o dialeto nos ritos da religião. O Iorubá, por ser um idioma tonal, onde uma mesma palavra adquire sentidos distintos quando é pronunciada em tonalidades diferentes, é de difícil memorização para falantes dos não tonais, caso do Brasil.

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INTOLERÂNCIA É fruto de relações universalistas, diz Eurico


DIREITO AO CULTO No artigo Políticas Públicas e a fé Afro-Brasileira: uma reflexão sobre ações de um Estado laico, Mariana Ramos de Morais (2012) diz que é a partir da integração das religiões afro-brasileiras no discurso do movimento negro em prol da igualdade de direitos, que essas ganharam maior destaque nas ações do Governo. As religiões, segundo ela, embasam a identidade negra e disputam, simbolicamente, a herança africana cultural e étnica, reconfiguradas num contexto de globalização. Neste contexto, segundo ela, as consideradas religiões de negros, constituídas no Brasil, entraram para o rol das religiões universais.

PAI AURÉLIO de Odé sacode o xere, um instrumento que imita o barulho da chuva

das tradições como patrimônio imaterial e dos próprios terreiros como patrimônio cultural. Pai Ricardo conta que, no Candomblé, as gerações herdam a casa e dão prosseguimento às formas de culto dos antepassados. E tudo, inclusive as rezas, é entoado no dialeto africano Iorubá, em agradecimento ou pedido de misericórdia aos orixás. Contudo, há dificuldades para preservação do idioma, com a semântica e a pronúncia das palavras. Muitas letras acabam descaracterizadas, um problema com raiz na passagem dos saberes. Há também a preocupação com a passagem dos segredos da religião que, diz o babalorixá, aca-

bam se perdendo com a morte dos mais velhos, zeladores dos terreiros (pais-de-santo). “Há conhecimentos transferidos a apenas aqueles que, sabidamente, serão sacerdotes”, diz. "Muitos zeladores passaram a guardar certos segredos. E que os segredos se mantenham sagrados”, explica. Há 13 anos, o terreiro do pai Ricardo está situado na QE 28 do Guará II. O babalorixá iniciou-se no Candomblé em 2004, na capital mineira, Belo Horizonte. A nação denominada Djèdjè Marrin foi dada a ele pelo terreiro Keuê Sejà Rundê, da cidade de Cachoeira de São Félix, interior da Bahia, uma das primeiras casas de santo do Brasil.

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tu chama-se xequerê e o gan, que é aquele agogô”, explica. No terreiro do candomblecista e babalorixá Ricardo Araújo, assim como também é no terreiro do Pai Aurélio de Odé, a tradição, os cânticos e os ritos são preservados por meio da oralidade, passados de geração para geração, igualmente como ocorre nos cultos na África. Mas Pai Ricardo se recorre à pouca literatura que diz ter acesso para evitar equívocos quanto aos fundamentos, execução e significados do que entoa no terreiro. O pai-de-santo defende inclusive o registro e documentação das cantigas e outros traços orais da religião para evitar que eles se percam com o tempo, defende também o tombamento

ALABÊS TOCAM Instrumentos sagrados, os toques são distintos a cada entidade

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YAÔS ( pessoas recém iniciadas) do Ilê Odé Axé Opô Inle (terreiro de Pai Aurélio de Odé), se abaixam em respeito aos mais velhos, que ficam em pé

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'MUITOS NOS VEEM COMO O PRÓPRIO DIABO' 74


Foto: Lidiane Makena

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Seguidores de algumas doutrinas relatam casos de preconceito e intolerância, mas é difícil encontrar quem admita agir assim

MELISSA ALVES

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prisão e multa para os praticantes de intolerância. Nem assim as pessoas se intimidam. Os números do Disque 100, serviço criado pelo Ministério dos Direitos Humanos (MDH) para registrar denúncias de discriminação e abusos contra pessoas, comprovam isso. Entre janeiro e setembro de 2016 foram registradas cerca de 300 denúncias de intolerância religiosa no Brasil. No mesmo ano, foi criada em Brasília a Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência. A Decrin já registrou 163 ocorrências e recebeu 278 denúncias. Dos 89 inquéritos abertos, a unidade da Polícia Civil do DF concluiu 25. Este ano, nenhum caso foi considerado grave pela polícia, segundo uma das delegas, Elisabete Morais. Os casos denunciados até agora são de ofensa verbal contra os seguidores das doutrinas. Segundo dados do MDH, vinculado ao Ministério da Justiça, em 2016 foi registrado o número mais alto de denúncias desde a criação do Disque 100, em 2011. É que em 2015 foram registradas 146 denúncias, o que significa um aumento de 105%. Os números, no entanto, não representam o total de casos. É que a maioria das pessoas não denunciam. Muitas sequer sabem da existência do Disque

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ALVO DE intolerância, estátua de Oxalá foi queimada

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Número de denúncias de discriminação religiosa no primeiro semestre de 2017

Fonte: Ministério dos Direitos Humanos

U

m dos traços culturais mais significativos do Brasil, além da miscigenação da população, é a diversidade religiosa. Não raro, no mesmo bairro ou rua em várias cidades do país é possível encontrar uma igreja evangélica, uma católica, um centro espírita ou terreiro, onde são realizados rituais das doutrinas de matriz africana. A última é a principal vítima do preconceito e até de intolerância, situação que afeta principalmente os candomblecistas e os umbandistas. A umbanda é a única manifestação religiosa nascida no Brasil. Ela foi criada no Rio de Janeiro em 1908. Já o candomblé chegou ao país trazido pelos escravos e era praticado nas senzalas e no meio das matas. Inicialmente foi chamado de batuque de negros e só recebeu nome definitivo por volta de 1888. Como a maioria das pessoas não sabe as diferenças entre elas, a umbanda e o candomblé são comumente confundidas. É que a religião brasileira tem fortes elementos da cultura africana. O direito de credo é assegurado pela Constituição Brasileira desde 1988, sendo regulamentada por lei específica um ano depois e atualizada em 1997, passando a ser crime inafiançável. A pena vai de um a três anos de

100. Até 2016, dos casos reportados a central de denúncias, 26,19% das vítimas eram candomblecistas e 25,79% eram umbandistas. Os atos de intolerância, no entanto, atingem outras religiões também. Para o candomblecista Johnason Silva, de 24 anos, ser vítima desse tipo de preconceito é tão comum que os religiosos passaram a ver a situação como algo normal. “O desconhecimento das leis faz com que muitos religiosos nem percebam que estão sendo vítimas de intolerância e não vão denunciar, o que dificulta ainda mais a consolidação real dos dados. ” Casos no DF Em novembro de 2015, o terreiro Ylê Axé Oyá Bagan, localizado no Núcleo Rural Córrego do Tamanduá, entre O lago Norte e Paranoá, foi incendiado. A Policia Civil investigou o caso, mas não o classificou como criminoso. Depois do incêndio, Mãe Baiana, líder da casa, foi nomeada pela Procuradoria-Geral da República como a maior porta-voz da questão da intolerância religiosa no DF e Entorno. Em Sobradinho II, outro terreiro foi incendiado. Cinco homens usaram gasolina e etanol para atear fogo ao centro espírita Auta de Souza, em janeiro de 2016. O local foi destruído. Após o caso ser levado a julgamento, o promotor de Justiça Thiago Pierobom pediu que os responsáveis pagassem R$ 70 mil de indenização ao centro. No documento enviado à Justiça, ele escreveu que "intolerância religiosa é um câncer social".


No Lago Sul, a Praça dos Orixás, mais conhecida como Prainha, possui 16 estátuas e é um dos cartões postais de Brasília. Frequentemente o local é alvo de ataques. Em abril de 2016, uma pessoa ateou fogo à imagem de Oxalá – orixá associado à criação do mundo e é sincretizado com Jesus Cristo – e cortou uma das mãos da estátua. O caso foi registrado como dano ao patrimônio público, e não como intolerância religiosa. Algumas soluções

NO CANDOMBLÉ os cânticos são em línguas africanas (Iorubá ou Banto)

crime, as pessoas podem se dirigir a qualquer delegacia, de preferência a mais próxima do local, então o caso será encaminhado para a Decrin. A unidade investiga também casos de intolerância na internet, algo que é mais comum do que se imagina. Segundo a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, de 2006 a 2012 foram 247.554 denúncias ¬anônimas de páginas e perfis em redes sociais que continham teor de intolerância religiosa.

à intolerância religiosa”, explicou. A promotora de Justiça do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), Liz-Elainne Oliveira Mendes, destaca que os ataques virtuais são muitos. “Os agressores acreditam que a disseminação de ódio ficará no anonimato, e cometem crimes lançando opiniões racistas e discriminatórias nas redes sociais. As pessoas precisam entender que temos a liberdade de pensamento, mas isso não nos auto-

Apesar do crime de intolerância religiosa poder levar à prisão, o intuito da legislação não é encarcerar Entre um ano e outro, houve decréscimo nas denúncias: 2.430 páginas em 2006 para 1.453 em 2012. Mas isso não quer dizer que os crimes tenham diminuindo. Segundo o coordenador da associação, Thiago Tavares, 38 anos, uma das razões para essa queda é a classificação feita pelo usuário. “Algumas páginas são reportadas por possuir conteúdo racista, antissemita ou homofóbico, mas elas têm, também, conteúdo referente

riza a abusar desse direito”, acrescenta a promotora. Além do Disque 100, pelo telefone, em maio de 2016 o Ministério dos Direitos Humanos criou o aplicativo “Projeta Brasil”. Ao alcance das mãos e com apenas alguns cliques, o usuário consegue registrar queixa à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Não é preciso se identificar. O aplicativo passou a integrar o sistema de denúncias do Disque 100 e a incluir

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Anunciada inicialmente como a primeira delegacia especializada do país, a Decrin tem suporte semelhante a outras três, já existentes em Mato Grosso, Pará e Piauí. Isso porque, também incorporará às suas atribuições a repressão a outros casos, como os crimes por orientação sexual ou contra a pessoa idosa ou com deficiência. Levando em consideração os ataques que aconteceram em Brasília e no Entorno, a Decrin tem como foco principal ações de intolerância religiosa, sobretudo contra os adeptos do candomblé, que é a religião mais atacada. Delegada há 12 anos, Elisabete Morais, 39 anos, disse que a investigação desses casos é exclusiva da polícia, porém, o combate é obrigação de todas as pessoas, na medida do poder dela de ação. Apesar do crime de intolerância religiosa poder levar à prisão, a delegada diz que o intuito da legislação penal não é encarcerar. Ela acredita que a prevenção do crime é mais importante. “Ações de conscientização nas escolas, nas faculdades têm um poder maior do que imaginamos. É o melhor jeito de prevenção, para que esses jovens cresçam conscientes do quão errado são essas atitudes”, explica Elisabete. A delegada diz acreditar muito no trabalho da delegacia especializada, pois desde a criação, não teve mais ciência de crimes de alta gravidade, como os incêndios aos terreiros, mas os casos de vandalismo aos santos nas ruas, por exemplo, continuam. “Só o fato de ter uma delegacia especializada que irá trabalhar na prevenção daquele ato, as pessoas já ficam um pouco intimidadas”. Apesar da especialização dessa delegacia, Elisabete destaca que caso ocorra esse tipo de


NOS TERREIROS as mulheres são maioria e elas participam de quase tudo, com exceção apenas de ser ogã

quatro formulários, assim como os canais online: ligar para o disque 100; denunciar local sem acessibilidade; violação na internet; e violação fora da internet. Os casos denunciados ao Disque 100 – via telefone ou pelo aplicativo – chegam à Ouvidoria, que tem a competência de receber, examinar e encaminhar as denúncias, além de viabilizar a resolução de conflitos nos casos que efetivamente envolvam violações de direitos humanos. De acordo com o MDH, apesar do aumento de casos desde 2015 no Distrito Federal, o maior número de denúncias ao Disque 100 foi feito em São Paulo, seguido pelo Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Relatos de vítimas Pai de Santo do terreiro Atò Egbé Agbárìşá, Guto Santana, 41 anos, contou que nunca sofreu ataque direto no templo, entretanto, os filhos da

casa já foram vítimas de preconceito, lares e algumas marcas pelo corpo, na rua, diversas vezes, principalmente tudo era motivo de piada e perseguipor causa das vestimentas. “A umban- ção dos outros alunos. “Quando não da tem por princípio acolher, receber entendia muito sobre a fé, morria de bem, dar um rumo para as pessoas. vergonha das roupas, do turbante, da Mas, infelizmente, muitos nos veem minha religião. Tinha medo de que as como o próprio diabo ou algo do pessoas não me aceitassem. Muitas tipo”, conta o pai de santo. vezes, inventei histórias de que era Da mesma casa de Guto, Jhon um colar comum para não ser vítima Carlos Dornelas, 23 anos, conta que de chacota na escola”, lembra. Jhon praticamente nasceu dentro da um- Carlos afirma que hoje entende mebanda, pois toda a família dele era “Assim que saí da sala, ela fez uma seguidora da religião. Òrişá Dárè, espécie de exorcismo para tirar o como é conhecido ‘diabo’ de onde eu estava" no terreiro, o filho Ricardo César, professor de teatro de santo disse já ter sofrido bastante preconceito, principalmente na lhor e tem convicção da própria fé e escola, quando era adolescente. As diz que, apesar de todo preconceito, roupas, na maioria das vezes brancas, os seguidores das religiões de matriz o cabelo às vezes raspado por causa africana precisam levantar a cabeça e de algum rito da casa, os vários co- seguir em frente.

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COMO AGIR Ao procurar uma delegacia, o delegado tem o dever de instaurar inquérito, colher provas e enviar o relatório para o Judiciário. A partir daí terá início o processo penal. Em caso de agressão física, a vítima não deve limpar ferimentos nem trocar de roupas – já que esses fatores constituem provas da agressão – e precisa exigir a realização de exame de corpo de delito. Se a ofensa ocorrer em templos, terreiros, na casa da vítima, o local deve ser deixado da maneira como ficou para facilitar e legitimar a investigação das autoridades competentes. Todos os tipos de delegacia têm o dever de averiguar casos dessa natureza.

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Pai de Santo, Ricardo César, 41 anos, sentiu de perto a intolerância. Professor de teatro, há seis anos ele inaugurou o terreiro Ilé Asé Odé Einlé, em Águas Lindas, cidade do Entorno de Brasília. “Arrombaram as minhas portas, quebraram tudo. São pessoas que duvidam da fé e cometem vandalismo”, lembra Ricardo, que fez denúncia formal à polícia, mas nada foi feito. Ninguém foi preso. O professor da Secretaria de Educação também diz que sofreu preconceito no trabalho, devido à religião. Em 2007, ele foi dispensado de um cargo por uma nova chefe. Pouco depois soube que a atitude estava ligada a um forte preconceito religioso. “Assim que saí da sala, ela fez uma espécie de exorcismo para tirar o ‘diabo’ de onde eu estava", conta Ricardo. Filho da Casa Tia Chiquinha da Luz de Oxalá, que fica localizada no Gama Leste, Emerson Rodrigues, 22 anos, lembra que o preconceito religioso com os seguidores de doutrinas de matriz africana é muito latente, primeiro pelo vestuário característico da religião, que tende a atrair os olhares tortos. “Você sempre será notado quando estiver voltando de um terreio. Já aconteceu comigo de estar na frente do centro que eu frequento e as pessoas passarem com olhar de medo, como se naquele momento fosse acontecer algo muito ruim. ” Emerson explica que os orixás muitas vezes são vistos como uma espécie de demônios. “Quando você vê alguma coisa estranha, a primeira coisa que surge na cabeça do intolerante é a famosa frase ‘chuta que é

EMERSON SE diz triste com o fato de a Prainha ter se tornado um lugar de churrasco

macumba’”, reclama. Ele diz também que os intolerantes não se reconhecem como tal. “Eles vão dizer que respeitam as religiões. Mas, a partir do momento que você associa uma divindade de uma religião que não é a sua a uma força maligna, você está sendo intolerante. Você está sendo de forma precária e ridícula um ser

humano que não suporta um pensamento diferenciado do seu. ” Bacharel em direito, Emerson comenta que quando se trata de legislação, a própria Constituição traz a não discriminação por credo ou religião como um dos pilares dos direitos humanos, mas ela é bonita só na teoria. “A única forma de mudar isso é trazendo à humanidade conhecimento e estudo, e que a forma livre de pensar seja mutável de acordo com o tempo e com as culturas”, conclui. Existem vários canais para receber denúncias e reclamações de pessoas que sentirem vítimas de preconceito ou intolerância. A ouvidoria do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios pode ser acionada pelos telefones 127 ou 0800644-9500. O Disque 100 funciona 24 horas, os sete dias da semana. Além desses, a Polícia Civil também está disponível através do 197 ou em qualquer delegacia.

O PAI de santo Guto e o filho de santo Jhon Carlos carregam laços religiosos e de sangue

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Serviço


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A BIÓLOGA Christielle Rezende é adepta da prática de vaporização do útero


SABER ANCESTRAL Mulheres buscam autoconhecimento em relação ao próprio corpo e usam a ginecologia natural para garantir saúde com práticas como uso de vaporizadores, coletores menstruais, chás e absorventes ecológicos ANA GABRIELLE RAMOS

ERVAS NA GINECOLOGIA NATURAL TPM: Chá de tansagem, casca de limão e manjericão. CICLO IRREGULAR: Chá de Artemísia, cravo, canela e alfavaca HEMORRAGIA UTERINA: Chá da folha de algodão, cavalinha, milem-rama, sálvia, erva-de-Macaé e vitex. CORRIMENTO: Chá de calêndula, tanchagem, cana-de-macaco, folhas de algodão e algodãozinho. Uso local: calêndula, barbatimão, manjericão, cana-de-macaco, hortelã graúdo e algodão. CANDIDÍASE: Chá de ervacidreira-verdadeira, calêndula e manjericão. Uso local: ervacidreira-verdadeira, calêndula, manjericão, alecrim, alho e açafrão.

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busca por um olhar de e novas adeptas. Após conhecer a diferente em relação técnica, a bióloga Christielle Rezende, ao próprio corpo 33 anos, passou a usar vaporização vem fazendo com do útero para limpeza; óleos essenque as mulheres op- ciais para controle de cólica e TPM; tem por uma nova e absorvente interno feito com alho, visão e estilo de vida. para eventuais infecções com fungos, A fim de mudar essa concepção e ga- como no caso de cândida. “A ginecorantir a saúde com autonomia e liber- logia natural foi um chamado que me dade, surgiu a ginecologia natural. A reconectou comigo mesma, e com prática não é uma especialidade da quem sou na essência”, relata. medicina, mas um processo de auJá a microempreendedora Letitoconhecimento, cia Dittberner, de cuidado com “A ginecologia natural 29, passou a usar o corpo, de recoabsorventes feinhecer o processo foi um chamado que tos com tecidos e de adoecimento e coletor menstruo ciclo menstrual. me reconectou comigo al. “Acho impor“A prática é forte mesma, e com quem sou tante despertaraliada no empodemos para nosso ramento feminino poder interior, na essência” e tende a devolver para o que aconChristielle Rezende, bióloga a autonomia à mutece conosco e lher”, afirma a terapeuta holística Jés- assumir novamente o protagonismo sica Portes, que também atua como da nossa cura e cuidado”, conta ela, facilitadora de oficinas de ginecologia que passou recentemente por uma natural. oficina de ginecologia natural. Por meio de oficinas e workshops, Aprender a cuidar do eu feminias mulheres podem ter acesso a infor- no de forma integral inclui não só o mações e receitas milenares. Originá- acompanhamento do ciclo menstrual ria da América Latina, em países como como também métodos de contraChile, Uruguai e Argentina, a prática cepção não hormonal, estudo de erresgata saberes ancestrais que tratam vas e a utilização delas na saúde, além dos cuidados da saúde íntima. São da compreensão das prováveis causas receitas tidas como da avó, bisavó, e emocionais de enfermidades, como que ganham cada dia mais visibilida- a menstruação irregular, cólicas, TPM

Modo de preparo dos chás: Ferver com água durante dois minutos. Fonte: Manual de Ervas para os Ciclos Femininos

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e candidíase. Durante o workshop lizado em medicina tradicional chi- que as duas práticas devem caminhas de ginecologia natural, Jessica ainda nesa e fitoterapia, não existe uma juntas, tendo em vista que a proposensina o acompanhamento do ciclo medicina melhor que a outra. “O que ta da ginecologia natural não é a de menstrual por meio da Mandala Lunar existe é que cada uma intervém me- substituir a medicina convencional e a ligação dos ciclos femininos com lhor em partes diferentes do processo por tratamentos naturais. A proposta os da natureza. Ela observa que tan- de cura. Nisto vemos que enquanto é “desmedicalizar” o corpo feminino, to a ginecologia natural promover conexão dela quanto a tradicional com o próprio corpo e “Acho importante despertarmos para tem como foco a cura apresentar às mulheres dos transtornos ginecooutras opções de cuidalógicos que as mulheres nosso poder interior, para o que acontece do, a partir do resgate apresentam. “A diferende saberes ancestrais. conosco e assumir” ça é que a ginecologia Cuidados mais naLeticia Dittberner, adepta da ginecologia natural natural tem como funturais, integrais e holísdamento para esse proticos não abandonam a cesso de cura física a compreensão os métodos tradicionais são exce- medicina convencional. Segundo a das causas emocionais, mentais e lentes para curar, são os modernos ginecologista Bel Saide, as pessoas espirituais da doença.” que salvam a vida das pessoas nos costumam associar o método natural Na avaliação do fisioterapeuta momentos de crise aguda”, aponta. com o simples tratamento de doenças Túlio Americano, também especia- A psicóloga Raissa Mendes salienta com plantas e até mesmo a substitui-

JÉSSICA PORTES ministra o workshop de ginecologia natural

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ção de remédios por ervas. "O principal ponto é uma visão integral em relação à saúde da mulher, buscando compreender o que ela está vivendo ou que já viveu, e a partir daí iniciar um tratamento adequado”, ressalta. Bel reconhece que a técnica vai além dessa concepção. As medicinas ayuveda, chinesa e até mesmo a tradicional são complementares à técnica. Para a psicóloga Patrícia Miranda, muitas vezes o sistema ginecológico traz sérias consequências psicológicas. “Em relação às situações obstétricas durante o parto, elas são vividas como experiências de violência sexual”, aponta. Essa vivência para Patrícia interfere não somente na saúde psicológica como também na saúde

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intima, podendo causar medo de procurar um profissional e a necessidade de buscar atenção e cuidados extras. De acordo com Túlio, a autonomia do próprio corpo é um direito inalienável e intransferível. “Isto significa que a mulher, mesmo sendo uma pessoa moderna, tem que conhecer seu próprio corpo a ponto de se proteger dos enganos promovidos pelas indústrias da medicina dos cosméticos e da mídia.” Para ele, há realidades pontuais que devem ser preservadas, tais como a gestação, a amamentação, a menopausa e a sexualidade sensual e social. “Esses assuntos tratados com preconceitos impedem que as mulheres estejam confortáveis com suas necessidades e realidades”, acrescenta.

Após passar por frustações frente à realidade cotidiana do sistema público, a ginecologista Tarlisa Ostega deixou de atuar em hospitais e busca novos métodos e práticas naturais na profissão. “Pretendo equilibrar tal problema com medicamentos com a ajuda da medicina natural, que tem se mostrado favorável e eficiente em relação à mulher”, enfatiza. Hormônios Sem menstruar há quatro anos e há um sem tomar hormônios, Christielle teve o primeiro contato com a prática após buscar a correção do ciclo. Hoje é adepta da ginecologia natural, passou a usar um termômetro basal para acompanhar o ciclo e até uma mandala lunar.


mulheres ou individualmente, com valores que variam entre R$ 160 e R$ 300. “Sinto que elas buscam atendimentos mais humanizados e que as emponderem no autocuidado com a saúde intima”, observa Dyvia. Aos poucos, as mulheres vão ganhando mais consciência do corpo, do ciclo, da sexualidade e da intimidade, acrescenta.

GINECOLOGIA SEM HORMÔNIOS O livro escrito pela ginecologista Bel Saide visa questionar e debater sobre o modelo atual de cuidados ginecológicos e mostrar para as mulheres que existem outras formas mais saudáveis para lidar com o corpo. O E-book é vendido por R$ 39 no site: http:// ginecologianatural.com.br/.

Bizzotto, 33, recorre à ginecologia natural por meio de consulta via Skype. A naturóloga Divya Prem, que mora em São Paulo, realiza atendimentos à distância. Ambas se conectam de 15 em 15 dias, para novas orientações. As conversas, segundo Emília, são longas e detalhadas. Ela relata o que está passando, descreve as queixas, a rotina e os sentimentos. Dyvia ouve, analisa e, a partir daí, indica o melhor procedimento. “Mesmo não tendo uma consulta física, com toque, ela procura entender o que pode estar acontecendo com o meu corpo”, afirma a jornalista. Em 2016, Dyvia participou da formação de facilitadoras em ginecologia natural. Hoje, atende grupos de

Por muito tempo, as mulheres de diversas culturas costumavam sintonizar-se com o ciclo da lua e com o que cada fase representa arquetipicamente e, partir disso, conseguiam compreender melhor os seus próprios ciclos - especialmente o menstrual. Dessa forma, a Mandala Lunar, uma das diversas ferramentas utilizadas pela ginecologia natural, tem a proposta de resgatar esse contato milenar, facilitando o exercício da auto-observação. Na mandala é sugerido que a mulher registre seus sonhos, intenções, projetos, além de percepções acerca de sua natureza cíclica, de modo a se reconectar cada vez mais consigo e com os ciclos naturais. De acordo com Raissa, há diversos modelos prontos no mercado, mas a mulher pode criar a própria mandala, anotando basicamente os dias de seu ciclo menstrual, caso ainda menstrue, dia do mês, fase lunar correspondente, seus estados físico, emocional e sexual em cada dia,

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O anticoncepcional é um dos métodos contraceptivos mais populares. O uso abusivo de hormônios vem sendo questionado por pacientes e especialistas. “Cabe dizer que, no caso dos anticoncepcionais hormonais há riscos que devem ser pontuados pelo profissional que prescreve, para que a mulher tome uma decisão consciente”, alerta o ginecologista Bruno Ramalho, que não pratica a ginecologia natural, mas esclarece o risco do uso de hormônios sem indicação adequada. A trombose, observa, é o efeito colateral mais temido. “Esse risco é alto para algumas mulheres, que preferem não utilizar ou abandonar o método. Para outras, o benefício do uso supera o risco. É uma questão de ponto de vista”, pontua Bruno. O importante é que, qualquer que seja o método, em qualquer consulta, a mulher deve escolher de forma soberana o que vai adotar. “Estou nessa jornada desde que decidi abandonar o uso da pílula anticoncepcional e me dei conta de todos os malefícios que ela fazia ao meu corpo. Percebi a quão desconectada eu estava de mim mesma, e como eu desconhecia sobre a minha própria fisiologia”, conta Raissa, que se viu insatisfeita com a padronização e medicalização excessiva do corpo feminino. Ela ainda reclama da falta de escuta e de atenção dos profissionais de ginecologia. Para Túlio, é preciso conhecer o significado ancestral do que significa ser mulher. “Os tempos são de questionamento e reinvenção”. A busca por tratamentos alternativos extrapola barreiras físicas. Moradora de Brasília, a jornalista Emília

Mandala Lunar

A MANDALA lunar é usada para o acompanhamento do ciclo menstrual

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COMO USAR O ABSORVENTE ECOLÓGICO Os absorventes ecológicos possuem abas com botão de pressão para fixação na calcinha. A parte atoalhada, que fica em contato com o corpo, possui duas fitas para encaixe das toalhas íntimas. O produto pode ser usado com uma ou duas toalhas íntimas sobre a base, conforme o fluxo. As toalhas podem ser trocadas durante o dia e são reutilizáveis após higienização. Para limpá-las, basta colocar o absorvente e as toalhas íntimas de molho na água pura por pelo menos meia hora. Em seguida, basta lavar normalmente com água e sabão.

indicadores de fertilidade, relato de sonhos, pensamentos, entre outras informações que ela julgar relevantes. “Fazendo isso diariamente, a mulher conseguirá comparar suas anotações umas com as outras, observar a existência ou não de um padrão em cada ciclo e, assim, conhecer melhor os seus movimentos internos.” Coletor menstrual

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Após ganhar o coletor menstrual da mãe, a estudante Luisa Goppa, 24, ficou encantada ao saber sobre os benefícios. Nas primeiras tentativas, sentiu dificuldades em usá-lo. Após três meses, sentiu-se confortável com a diferença em relação ao absorvente descartável. “Meu ciclo dura três dias a menos, meu fluxo menstrual diminuiu, o odor do sangue não existe e a economia financeira fez toda diferença”, desabafa. O coletor menstrual, também conhecido como copo menstrual, substitui o absorvente descartável e é considerado mais ecológico. Para Bruno, a opção é totalmente recomendável. “Tenho várias pacientes que utilizam o coletor e costumo encorajar quem me pergunta. Não há uma literatura científica vasta, mas a própria prática demonstra que é seguro, eficiente e higiênico”, afirma. A psicóloga Beatriz Bandeira não só é adepta do produto como também começou a revende-lo. “No começo pode ser desafiador, mas logo a mulher pega o jeito e não larga mais”, ressalta. O coletor é feito de material hipoalérgico e 100% cruelty free, o que significa que não foi testado em animais. O tamanho A é recomendado para quem tem mais de 30 anos ou que já possui filhos, e o B para mulheres mais jovens e sem filhos. O coletor

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só precisa ser trocado após 12 horas, tendo duração de cinco a dez anos. Absorvente ecológico O absorvente de pano ou ecológico, como é conhecido, é reutilizável, feito com tecido 100% algodão, antialérgico e foi retomado como alternativa responsável, ecologicamente correta e econômica. A estudante Bruna Lobato, 25, é revendedora do produto. Após comprar para testar em si, o entusiasmo foi tamanho que

começou a revender. “Eu vejo muito como estilo de vida, pois a mulher começa a se observar, a observar o fluxo menstrual. No absorvente descartável, o sangue se espalha. Já no de pano, se concentra e fica com uma cor mais escura. Ou seja, a pessoa começa a se questionar se o sangue que ele esta sendo coletado é diferente”, conta. O absorvente comprado pronto é oferecido em três tamanhos, que incluem o para uso noturno e para fluxo intenso.


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