Celuzlose 03

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Aproveitando que você faz uma referência à teologia negativa, li um comentário seu sobre a obra de Augusto dos Anjos em que você desenvolve um conceito denominado “princípio de negatividade” ou “afirmação negativa”. Fale um pouco desse conceito. Augusto dos Anjos é um dos poetas brasileiros mais importantes para mim, embora sinta pouco a sua marca naquilo que escrevo. Às vezes temos admiração por um autor, ou até mesmo incorporamos elementos seus à nossa revelia, mas eles acabam não sendo centrais para o conjunto do que escrevemos ou para a nossa poética. O que gosto nele é a sua falta absoluta de definição, que é fruto de uma postura selvagem em relação à poesia, esta sim, mais moderna do que muitos modernismos. Sua forma é de cunho parnasiano; seus temas científicos poderiam ser tidos como naturalistas, ou como um enciclopedismo tardio, de almanaque, à moda do século XVIII, mas acabam sendo talhados em pinceladas grossas que se aproximam mais de alguns simbolistas excêntricos; algumas de suas paisagens são francamente baudelaireanas, mas ao mesmo tempo nada nele soa a spleen ou a tédio decadentista, estando mais próximo da podridão estelar e dos movimentos recônditos de pólipos e moneras do que de uma afetação finissecular de uma consciência crítica parisiense; por fim, em seus melhores momentos, creio que Augusto dosAnjos se aproxime de uma das poucas definições convincentes que lhe servem: um poeta expressionista. Um dos poucos, talvez o único expressionista brasileiro. Um expressionista sui generis que, obviamente, não chega aos voos de um Gottfried Benn nem à genialidade de um Trakl. Mas que assim mostra o seu lugar absolutamente excêntrico e, por isso mesmo, dos mais enraizados no imaginário brasileiro, com suas idiossincrasias e equívocos, com seus desenvolvimentos regressivos, plenos de contradições que, em arte, são um sinal de mais, não de menos. Quanto ao princípio de negatividade, é um conceito que tenho desenvolvido e que noto na arte sobretudo a partir do século XVII, especialmente a partir do Dom Quixote, mas que retroage ao século XII e até um pouco antes. Ele tem relação com um esvaziamento dos núcleos provisórios de sentido da realidade. Não é um conceito de ordem mística, pois a kenosis da mística acaba por reafirmar a transcendência divina. Esse conceito diz respeito, sim, aos níveis de articulação entre a linguagem e o mundo. Acredito que esse princípio negativo esteja no cerne da poesia de Augusto dos

Anjos, e sinto que, em razão dessa especificidade, seja muito difícil vinculá-lo à mística sem forçar demais o que tradicionalmente se entende por mística, como eu disse anteriormente. Dos Anjos identifica o movimento de nossa consciência à vida infracelular e à pulsação cósmica, feita de geração e corrupção, de devir e de decomposição; em alguns poemas, faz desse movimento uma espécie de apostasia do sentido não manifesto do mundo. Mas essa sua visão nunca nos conduz a uma transcendência da consciência em relação à linguagem, da linguagem em relação ao mundo e de Deus em relação à consciência, à linguagem e ao mundo, como se propõe no horizonte da mística. Para Dos Anjos, esse percurso se dá como intensividade e extensividade da matéria; ele, entretanto (e essa é uma das ironias de sua obra), o simula como ato divino, como se Deus estivesse presente no drama cósmico da criação e também no verme, no esterco, na podridão, no húmus e em cada um dos órgãos e secreções de nosso corpo, sem metáforas holísticas e sem totalizações simbólicas, tão ao gosto da nossa Nova Era. Para o Mestre Eckhart, o Universo é o movimento de editus e reditus, ou seja, a respiração de Deus; para Dos Anjos, é a sístole e a diástole do corpo de um Deus morto, de um Deus de tal modo humilhado pela matéria e subjugado pela degradação que o constitui, que sua potência praticamente consiste em confessar seu fracasso; sua glória e seu corpo glorioso se reduzem à sua mais confessa, suja e irredimível materialidade. Nesse sentido, Dos Anjos é profundamente cristão, pois ele realiza, em uma lógica ad absurdum, a descensão do Verbo no corpo até a sua consumação, de modo que sequer a carne ressuscita. Já o movimento da mística é praticamente oposto. A impotência é sempre e em primeiro lugar do sujeito que conhece, do intelecto arrogante em seus disfarces e miserável em sua clara e distinta estupidez. E quando a impotência é de Deus, o é para revelar um mais-além, que não é nunca material, mas sempre um abismar-se no Nada que é Deus e que é o que está além de Deus. O movimento místico quer ultrapassar o Deus concebido como substância, acessar o que se encontra além de toda a substância, inclusive das substâncias divinas. Daí sua espculação chegar aos limites do compreensível e também do existente, ao abismo sem forma e aos fundamentos sem fundos da alma, que é o Nada divino. Em Dos Anjos, essa viagem da alma estanca na plenificação absoluta da matéria e em sua imanência, além da qual não há absolutamente nada. Celuzlose 03 - Dezembro 2009 07


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