Sem relva - capítulo 2

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Carlos Eduardo Amaral

Sem relva

1ª edição

Recife 2020


Cena – Nella chiesa, gridavano assai A igreja ficava na periferia. Não no subúrbio; na região central da cidade mesmo – a cerca de quatro quilômetros da sede dos três poderes. Na capital, quase não havia áreas residenciais nobres ou de classe média que distassem mais de um quilômetro de uma favela ou de um mero grupo de barracas de papelão ou de míseros aportes de alvenaria, seja em zonas de palafitas, seja em invasões à beira de antigos trilhos, seja nas imediações do porto. “Ao redor do buraco, tudo é beira”, debochou Ariano Suassuna, alguns anos antes de morrer, em um paródia de canção punk viralizada na internet – um deboche que alvejava o vazio de conteúdo da música popular de massa; vindo dele, era digno de bons risos... “Rutherford... Bohr...”; “aqueles físicos alemães” (sic). Em linguagem metafórica, a sentença poderia fazer todo o sentido. No vácuo do bem-estar social que o poder público negligencia, tudo é periferia. Não havia – agora falamos da igreja – naves laterais, contrafortes, arcobotantes, galilé, altar-mor, sacrário, relicário, batistério, confessionário, sacristia, pias de água benta, órgão de tubos, roseta, vitrais, torre, sino (no singular ou no plural, estes dois últimos itens), abóbada, balaustrada, colunata, via-crúcis, castiçais, velas, incensório, mirra, porta-missal, missal, sequer uma cruz; muito menos, imagens. Seis ou sete desses elementos compunham outra igreja das proximidades, católica. Estamos em uma pentecostal. O prédio constituía-se, apenas, de um vão principal e de mais três cômodos, na parte de trás. Para se acessar a secretaria, pegava-se uma das duas portas que ladeavam


a parede texturizada e pintada à tinta óleo em um tom intermediário entre o vermelho e o salmão, e diante da qual ficava o púlpito de vidro negro. Sobre ela, em letras de meio metro de altura, recortadas em papel laminado dourado e coladas sobre isopor, lia-se “Jesus salva”, tudo em caixa alta. Esse vão – a nave central, ou melhor, a nave única – para tudo servia na congregação: encontro de casais (que antecediam alguns outros encontros de casais – estes, entre parênteses, de caráter mais particular), faculdade de teologia (não reconhecida pelo MEC), escola dominical (a cargo de um professor sem ensino fundamental completo), grupo de jovens (muito bem-sucedida em agregar jovens sem grupo na escola regular), colônia de férias (na qual vedava-se qualquer atividade lúdica não referente às Escrituras) e rodas de bate-papo (onde o poder das línguas de fogo era atestado pelas orelhas dos ausentes). O inconveniente da natureza multiuso da nave única estava na remoção e reposição constante dos bancos de madeira – não de todos, e o tempo todo; todavia, pelo menos uma vez por semana fazia-se preciso por completo, a fim de se limpar o piso principal inteiro. Consideravam os bancos um estorvo: pelo peso que possuíam e pelo incômodo a quem neles se sentava. Estamos para ver bancos de igreja ergonômicos. Quais congregações religiosas proveem poltronas ou cadeiras confortáveis para seus adictos? Por que não se tocam? Não tentem nos tapear com cadeiras de plástico: aquelas bostas se abrem com qualquer pessoa de peso um pouco maior. Ok, fui informado de que o quadro não é como estou pintando.


Circulemos mais e vamos achar igrejas que se preocupam, sim, com nosso conforto. Da parede ao púlpito, este o qual media um metro e vinte de altura por um de largura e trinta centímetros de fundura, o piso – elevado em relação ao nível do chão pela altura de dois azulejos quadrados de vinte centímetros de lado cada, com um degrau frontal de metade de tal altura e que abarcava quase toda a largura do piso em questão, cerca de quatro metros – era de carpete carmesim e comportava as cadeiras do ministério e dois vasos com flores brancas, equidistantes do púlpito, nas quinas do piso elevado. Só não me peçam para dizer de que flores se tratavam, porque, delas, nada entendo (mentira: sei a diferença de uma margarida para um copo-de-leite. Rosa? Conheço, também). Anotem aí que são lisiantos ou astromélias – obrigado, Google – mas continuo sem certeza, nem vou perder tempo conferindo de perto se são de plástico ou naturais. A igreja ia de parede a parede, colada com as casas vizinhas, sem becos, jardim e quintal, ocupando todo o terreno de dez metros por vinte e dois. Da calçada, entrava-se direto nela, pela porta principal, de mogno maciço, subindo-se, logo à direita, para o piso superior, que pegava ambas as paredes laterais e a frontal, limitando-se a três metros desta por um parapeito de um metro e vinte de altura com a melhor visão do púlpito. A fachada, com os azulejos azul-royal emoldurando os azul-turquesa, era encabeçada pelo nome da igreja, “igreja tal em localidade tal”, acima do nome da convenção nacional à qual pertence. As paredes internas eram, simplesmente, pintadas em branco-gelo, e tinham, pregadas em si, quadros de aviso, suportes de


ventiladores e de caixas de som, e oito aparelhos de arcondicionado, que, para vergonha dos que cuidam da manutenção do patrimônio, não podiam ser ligados ao mesmo tempo, pois algum disjuntor disparava e a assembleia ficava no escuro. Assim se explica a redundância de ares-condicionados e ventiladores naquele mesmo ambiente. Quer dizer, não se explica: os ares sequer alcançavam lá em cima, nem foram instalados na secretaria, cômodo do qual se acessavam os outros dois que não mencionámos, os banheiros masculino e feminino, e as duas casas laterais – a do pastor, esta da direita, e a do pastor, aquela também (mas que, para todos os fins, era a dos filhos e agregados dele). Dos ventiladores, portanto, carecia-se muito. Todos eles estavam em ação pouco antes das dezoito horas daquele domingo, quando a banda musical fez o breve e suave prelúdio de costume, sinalizando aos fiéis a preparação para o começo do culto: um lento ostinato, no violão elétrico, em compasso seis por oito, arpejando em subida no primeiro tempo composto e em descida no segundo; o baixo, atacando a fundamental do respectivo acorde junto com o violão, mas duas oitavas reais abaixo deste, e deixando-a soar até atacarem a seguinte; a bateria, apenas com discretos rufos ad libitum de vassouras na caixa e no prato de condução; o teclado, calado; o tecladista murmura uma leve melodia, que paira sobre a harmonia em desenvolvimento; a sequência dos acordes, a necessária (I, VI, V e I), tocada três vezes; ao final da última nota, o laissez vibrer se dissipa e a oração inicial é entoada pelo pastor. – Maravilhoso Deus, vimos novamente à Tua presença para Te exaltar, Te adorar e Te pedir para que


continues a agir sempre em nossas vidas, como tão bem tens feito desde o início dos séculos. Que o Espírito Santo permaneça concedendo Seus dons, isto é, Teus dons, ó Deus, a toda a nação cristã e que Teu reino se espalhe por toda a Terra, ao fim dos milênios. Dá encaminhamento a nossas petições. Que elas não emperrem na repartição de Satanás. Não! Porque Tu és forte, Tu és poderoso, Tu és... – etc. etc. – ...para honra e glória de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém! O amém enfático, em vez de soar em uníssono, vinha interferido por uns aleluias, glórias, obrigadossenhor e afins. As frases do pastor, ditas com acelerações ou retardos a esmo, mas sempre fortes nos vocativos e nos pronomes, atingiam a psiquê de alguns fiéis penetrantemente, enquanto, na de outros, despertavam uma tranquilidade mântrica. Amém. Aleluia. Obrigado, Senhor. Girando-se em torno de si mesmo, no eixo central, viam-se a modéstia e o asseio daquela parcela do Povo de Deus presente. Olhando lá para o fundo, perto da porta, notamos os irmãos e irmãs mais humildes – aqueles que guardavam o dinheiro da passagem durante a semana para poder estar presente ao culto, ou cujo único veículo que conseguiram adquirir em suas vidas inteiras fora uma Barra Circular usada, de pneus desgastados e constantemente remendados e de pintura corroída pela ferrugem. Desses irmãos e irmãs, o pastor atendeu o pedido pela instalação de um bicicletário na calçada, na falta de área interna para abrigar as bicicletas. Além de estender o bicicletário às duas calçadas contíguas, as das propriedades do pastor – deixando livre o acesso às


garagens, obviamente –, até correntes e cadeados os fiéis ganharam deste. Diaristas, donas de casa, serventes de pedreiro, garis, costureiras, camelôs... Não havia um que não agradecesse a Deus por estar ali pelo menos duas horas durante a semana, antes de voltar para casa, assistir a um pouco de TV e partir para a labuta, ou à busca de uma, na segunda. Ex-prostitutas, ex-presidiários, ex-drogados, exvigaristas... O conjunto desses predicados intersecciona-se com o das classes profissionais citadas mais outras tantas, mas ambos estão contidos no da salvação divina desencadeada pelo clamor ao arrependimento e à fé – clamor que se deu, no mais das vezes, nos momentos mais críticos da vida de cada um: na perdição de uma solidão assustadora, face à qual não sabemos lidar; da miséria moral por um vício; da autodefesa ditada pela sobrevivência social ou pela mesquinhez; de uma injustiça que lhes tenha privado da liberdade; da perda de um ente por motivo vil, seja por negligência, seja por ignorância, seja por hediondez; da deficiência de referências familiares, ausentes ou mal presentes. Esses irmãos mais humildes sabiam, de cor, muitas letras da Harpa Cristã. Aprender as canções e hinos dela consistia em uma terapia ocupacional e uma aquisição espontânea de vocabulário – para nós, letrados, irrisória; para eles, rica. Onde teriam chance de deparar com palavras tais quais as encontradas em versos como: “Rude cruz se erigiu...”, “Contra as hostes do vil tentador” e “Desfrutarei prazer veraz, tempo de paz primaveril”, entendessem ou não o significado delas?


Pois bem. Meia hora antes do culto dominical daquele dia, um porteiro habitué parou uma das irmãs do ministério de louvor e perguntou-lhe se, no cântico de entrada, poderia ter a alegria de ouvir o ministério cantar A Mensagem da Cruz, a música de número 291 da Harpa. E foi atendido, tamanha a honra do pedido modesto e despretensioso, transmitido por ela aos demais ministros de louvor. Eis que podemos, olhando para nossos dois lados, no eixo central, mirar a estes. Os varões e os viragos (as varoas, no linguajar comum) sentam-se frente à frente: aqueles, à direita de quem olha para o púlpito, de terno (de duque, porque ninguém usa mais colete), cinturão, meias, sapatos sociais, tudo preto, camisa cor de vinho e gravata comprida prateada; aquelas, à esquerda, estreando vestidos cor de vinho, de altura até pouco abaixo dos joelhos, gola aberta, mangas até antes do cotovelo e usando sapatos de salto baixo em cor bege. Essa é a combinação de roupas do mês; daqui a quatro semanas, será outra. Posicionado, então, para fazer a palavra introdutória, ficou o primogênito do pastor, um dos boysunção da assembleia, destacado dos demais concorrentes pela vestimenta: terno de lã virgem azul-marinho, gravata italiana de seda, camisa branca de linho egípcio, cinto de fivela de prata, no formato da marca famosa da peça, e sapatos pretos de bico fino. “Nem o pai ostenta tamanha vaidade”, diziam à boca miúda alguns invejosos coetâneos que lamentavam a direção de tantos e quantos olhares femininos ao irmão de igreja, cujo genitor, de fato, mal se distinguia dos fiéis com menos carência financeira no vestir-se. Tal como estes, o pastor sacava do guarda-roupa a camisa branca de


algodão, o cinto de couro sintético e as meias vendidas em pacotes de cinco pares, tudo comprado em lojas de departamento; o terno preto, que reluzia bonito, devido à microfibra; os sapatos, meio opacos; e a gravata – item, para ele, de menor significância: bastava uma preta, comprida, arrematada em um gavetão de brechó de um irmão, no Centro da cidade, pelo valor de dois cachorrosquentes com refrigerante. Uma distorção, claro; aliás, duas: os boys, unção ou penitência, não reparavam que outros tantos olhares, de garotas que pouco se importavam com qualidade material de roupas, eram-lhes oferecidos, e o filho mais velho do pastor não iria, ao menos segundo seu desejo atual, cursar Teologia, pois entrara na faculdade de Administração há quase nove meses e fixara como meta assumir os negócios do pai para geri-los melhor. Àquele dia, como acabasse de entrar de férias, coube-lhe eleger o trecho bíblico para a palavra introdutória. Abrindo ao acaso, e de olhos fechados, a Bíblia – como optava por fazer –, fixou os olhos a partir do versículo trinta do capítulo décimo da Epístola de Talvez São Paulo aos Hebreus: – Pois conhecemos aquele que disse: "A mim pertence a vingança; eu retribuirei"; e outra vez: "O Senhor julgará o seu povo". Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo! Lembrem-se dos primeiros dias, depois que vocês foram iluminados, quando suportaram muita luta e muito sofrimento. Algumas vezes vocês foram expostos a insultos e tribulações; em outras ocasiões fizeram-se solidários com os que assim foram tratados... Esse método de leitura, inspirado pelo Espírito Santo (porque, se for para não reconhecer Sua


manifestação, só sendo-se ateu ou agnóstico – ou, então, atribuindo-a a Deus em si, caso sejamos de fé não trinitarista), incomoda. Improvisar sobre o tema dado, como pianista de jazz ou repentista do Pajeú, fica para quem tem bom raciocínio e bom repertório. O recomendado é informar ao pastor o trecho que se deseja ler, durante a semana ou no dia do culto, veja aí com ele: mesmo com os cânticos, os testemunhos e o ofertório no meio do caminho entre a leitura introdutória e a pregação (diríamos homilia, na liturgia católica; o popular “sermão”), há ministrantes que interagem no primeiro desses momentos e prestam bastante atenção no segundo; no terceiro, o tempo é curto, porque quem tem de dar dá logo. Por sorte, neste dia marcava presença o bispo, que possuía o dom da palavra. E também da leitura dinâmica: com uma simples passada de vista em dois sites bíblicos, durante a própria recitação do trecho da Epístola aos Hebreus, o discurso veio à mente e ficou preparado para a hora certa. Para a hora do cântico, a igreja dispunha de cinco grupos vocais: de crianças, de senhoras, de jovens (varoas e varões) e o ministério de louvor em si, reunindo os mais aptos de todos os grupos, conforme seleção do ministro de música da igreja. Todos apresentavam-se acompanhados da banda musical, de formação pop: um grupo por semana – o ministério de louvor, sempre que queria. E queria sempre. Todavia, nos cultos mais importantes do ano, como os de Natal e Domingo de Páscoa, ou quando o pastor dissesse que era ocasião para tal, um quinteto de cordas participava, em números pré-combinados. Ano que vem,


com a implantação das aulas de música na igreja, ter-se-á estruturado aos poucos o coral profissional. Em cinco anos, espera-se contar com uma orquestra de cordas; apenas a sede estadual da igreja estará mais bem-dotada, musicalmente falando. Hoje, a hora do cântico destinava-se ao grupo das varoas, do qual uma de suas integrantes – uma garota de seus catorze, quinze anos, que costumava andar de tiara violeta de bordas brancas finas – empunhou o microfone para cantar como solista, ladeada por um coral formado pelas demais seis ou sete colegas, o hino 187 da Harpa Cristã, com uma letra diferente da versão registrada no hinário pentecostal brasileiro, embora conservasse a mensagem central: – Perto, meu Deus, de Ti. Perto de Ti, esta nossa cruz me elevará, até que esta canção esteja perto de Deus. Perto, meu Deus, de Ti. Perto de Ti. Meu caminho pro céu, com sol e estrelas, subindo eu chegarei ao meu Deus, até que esta canção esteja perto de Deus. Perto, meu Deus, de Ti. Perto de Ti. No momento dos testemunhos, dois fiéis fizeram uso da palavra: um vigia de restaurante e um funcionário de uma empresa de reboque marítimo. Mesmo sendo interessante reproduzir trechos dos testemunhos e indicar as respectivas cargas emocionais envolvidas nos discursos, bem como contemplar de que forma os testigos interpretaram a ação divina na mudança operada em suas respectivas vidas, não vamos encontrar nada de relevante para a nossa narrativa. Ou talvez sim. A ver. Neste culto, os testemunhos correram com tranquilidade – nada como naquele dia em que a irmã do fiteiro da esquina, uma senhora de seus cinquenta e


poucos anos, cujo sotaque se assemelhava ao de MC Loma, oferecera-se para falar logo que a palavra havia sido aberta e foi-se desatando a gritar à medida em que contava como havia conseguido livrar-se dos males do álcool: – Meus irmãos!... A cachaça é um perigo!... Olhe!... Pense como eu era escrava da cachaça!... Eu acordava e já ia logo pro banho com meio copinho de cana. Quando tinha água pra tomar banho, né? [...] Tinha dia que só tinha café em casa... Nem pão tinha... Mas a cachaça tava lá, não faltava nunca... A irmã acreditava estar indo no caminho certo, com a emulação do mau hábito de gritar de muitos ministros e fiéis de igrejas neopentecostais – tal qual em uma, nas proximidades. A reverberação das caixas de som ia, frase após frase, perturbando a assembleia – se não a vizinhança. – ...Mas Deus tinha um plano pra mim. Ele tem pra cada um de nós. Aleluia! Eu nem esperava a ajuda Dele. [...] Ele que me deu o fiteiro ali onde eu fico. Me deu por meio de uma pessoa abençoada... Foi preciso o pastor esperar uma brecha de respiração de meio segundo para abraçá-la por trás – falando-lhe qualquer coisa simpática ao pé do ouvido esquerdo (além de um “Obrigado pela palavra, irmã”) e tomando-lhe suave e rapidamente o microfone da mão direita dela para, voltando-o a si, conclamar: “Glória a Deus!”. A irmã do fiteiro estava prestes a dizer quem era a pessoa abençoada, mas esta, precavida, impediu-a na hora exata e colocou-a sentada com as irmãs do ministério de louvor, enquanto se preparava para chamar o ofertório.


Nesse momento de deslocamento, a irmã virou-se para seu benfeitor e sussurrou: – Pastor, tô com fome... O bafo de cachaça que acompanhou a constrangida súplica o entristeceu e o preocupou. Não imaginava o pastor que aquela irmã recaísse no vício depois do esforço dele, dois anos atrás, para dar-lhe um encaminhamento, bancando a compra do fiteiro, o pagamento da licença na prefeitura e o capital de giro inicial, desde que nunca se comercializasse cigarro e bebida. Ela veio a morar com o irmão de sangue – o porteiro que pedira a música de entrada – e a esposa dele, ao perder o marido, que era o arrimo da casa. Não tiveram filhos. O ofertório, emoldurado por uma canção lenta em vocalises, durava em torno de dois minutos, pois os cestos, divididos entre doze fiéis, circulavam rápido pela assembleia. O pastor não gastava energia desnecessária invocando versículos diversos sobre dízimos para exortar esse momento. Apenas citava Êxodo, 35, 5: – Com toda a humildade, irmãos e irmãs, faço meu pedido de costume: “Tomai, do que vós tendes, uma oferta para o Senhor”. O que puderem dar será destinado à continuação da Sua obra, por meio de nossa igreja. Distraídos os fiéis com a coleta, o pastor acenou para que levassem a irmã do fiteiro à cozinha de sua casa e dessem-lhe algo de comer. Acenou mandando o recado pelo filho, discretamente, e quase ninguém deu por falta dela durante o resto do culto, exceto o irmão, que a viu sendo conduzida e a acompanhou. Ao sentar-se para esperar a circulação das cestas, percebeu a ausência da viatura de costume estacionada do outro lado da rua. A polícia militar montava guarda, geralmente, por volta das


dezenove horas, cobrindo a segunda metade do culto e a saída dos fiéis. Os cestos seguiram logo para a contagem, na secretaria, em vez de os irmãos dessa tarefa retornarem para o serviço e continuarem a tomar parte da celebração. Era uma precaução: contava-se tudo na hora e guardavase o montante no cofre. Depois, voltava-se ao culto. Voltaram já no meio da pregação, a cargo do bispo, de fala mansa e moderada, sem nenhum arroubo emocional onde a homilética recomendava que se fizesse. Ele contava com a própria segurança e boa dicção para cativar: – Deus, quando fala que toda vingança pertence a Ele, quer dizer que ele tem o monopólio do mal? Não, claro que não. Quem detém o monopólio do mal é Satanás e sua legião, aquela mesma legião que, expulsa do geraseno por Jesus, encarnou em uma vara de porcos, conforme relato dos Evangelhos. Mas você, se tem consciência do mal, consciência clara, e o faz, quer que Jesus o perdoe? Perdoar, ele perdoa, só não pense que isso significa passar a mão na sua cabeça e lhe dar permissão para continuar fazendo as mesmas besteiras, ou os mesmos crimes, até. Significa que, no Dia do Juízo Final, seus erros serão apagados. Os católicos têm, em uma parte, no início da missa deles, uma oração chamada ato penitencial, em que dizem: “Confesso a Deus todopoderoso, e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes, por pensamentos e palavras, atos e omissões”, e, batendo no peito, dizem mais, “por minha culpa, minha tão grande culpa...”. É um exame de consciência ao qual nenhum de nós pode escapar... O bispo podia recorrer à internet para consultar sermões e artigos teológicos, mas ninguém poderia dizer


que ele não tinha acesso a boas fontes. Ele já comentara ao pastor desta igreja e a outros mais próximos que, ao longo de trinta anos de ministério, conseguiu encontrar boas edições das 95 Teses de Lutero, das cartas de Jan Huss, da Confissão de Fé e dos Catecismos (Maior e Breve) de Westminster, do Missal Romano, da Liturgia das Horas, do Código Canônico, do Mês Eucarístico, do Manual do Coração de Jesus, de novenários e livretos de orações diversos, dos targumim da Tanach, além de uma peshitta em aramaico e outra em copta, uma Torá em rolo e a última edição do Index Librorum Prohibitorum. Aproveitou, o bispo, para emendar o sermão com o apelo à conversão – pro forma, já que todos os presentes ao culto eram convertidos, embora a um ou outro faltasse a cerimônia batismal – e passou a palavra de volta ao pastor, que transmitiu os avisos sobre a programação semanal da igreja, aguardou o cântico de encerramento, conduziu a oração final e proferiu a bênção apostólica: – A graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, o amor de Deus, o nosso Eterno Pai, a comunhão, as doces e eternas consolações do Espírito Santo sejam sobre nós e sobre todo o povo de Deus, desde agora e para sempre. Amém – “Ite missa est”, finalizaria um padre, em latim, e todos regressariam aos seus lares. No cântico de encerramento, cinco minutos antes, a viatura havia encostado na calçada da casa do pastor. Uma dupla de policiais, conhecida dele e dos obreiros mais ativos, falou com a irmã que acompanhava a do fiteiro – ambas acomodadas na sala de estar – e solicitou chamar o chefe da igreja, que, tendo pedido licença ao bispo, encontrou os dois militares menos de um minuto depois.


De pé, como o aspirante, o segundo-tenente – ele, mais exatamente, que se dirigira às irmãs – foi polido e calmo, mas sem arrodeios: – Pastor Godofredo, seu filho está preso.


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