Ide em paz: Um ensaio sobre arte e crítica de arte - capítulo 4

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brodagem e reivindicações Ser gênio não é difícil. Difícil é encontrar quem reconheça isso. Millôr, porque sim A obra de arte não é imune à crítica, nem a própria crítica o é. Este próprio livro, por exemplo (a rigor, um opúsculo, como já frisado), se vier a ser de ajuda, orientação ou deleite a alguém, como é de minha intenção17, certamente me deixará contente, mas isso não o isenta de ser apreciado como uma obra, de literatura não ficcional – mesmo que seja desnecessário dizer tal coisa, pois é óbvio (no Brasil de hoje, no entanto, alguém sempre se esquece de que a roda é redonda). Um ponto problemático da atividade do crítico – porém, não fatídico nem incontornável – é a eventual proximidade entre ele e o artista, mesmo que tal proximidade exista apenas no campo profissional. Considerando que muitos artistas alimentam o pensamento mágico de que a crítica artística serve para, necessariamente, falar bem da obra, o crítico estará sujeito a um inconveniente e indesejado assédio, que pode evoluir para uma intimidação, por vezes ofensiva, ou para um vexatório piti. Leve em conta que você, como crítico iniciante, não é membro do Poder Judiciário e não terá direito a escolta, muito menos às prerrogativas e garantias das quais os membros da magistratura gozam. Quem dera, no caso das garantias, que 17

Permitam-me escrever em primeira pessoa, porque “nossa intenção” ou “intenção do autor” seria o cúmulo da formalidade e falsidade, até porque este escrito é uma edição independente, ou seja, é de minha responsabilidade, de cabo a rabo.


permanecêssemos no meio jornalístico até a aposentadoria, sem riscos de sermos movidos arbitrariamente para outra editoria e de termos os salários reduzidos. O “privilégio” dos jornalistas na maior parte do planeta, ao contrário, é a manutenção do emprego enquanto outros não pedem sua cabeça ao dono do veículo de imprensa. De toda forma, a consciência quanto à linha editorial do veículo para o qual você escreve, ou a sintonia a ela, é mais dignificante do que estar refém da narrativa dos artistas ou acomodar-se em endossá-la, a não ser que sua opção (para não dizer, logo de vez, vocação ou competência) seja realmente o jornalismo de prestação de serviços. Não descartemos também a escolha do jornalista em ser um resenhista – seja permanente, seja como etapa prévia antes de exercer a crítica de forma habitual, seja, por fim, para a produção de determinados textos nos quais ele opte por não escrever uma crítica18. O perigo está na brodagem: naquela camaradagem ou cumplicidade que resulte em troca de favores ou afagos, ou, pior, na formação de uma panelinha. E há a brodagem servil, em que o jornalista abdica mesmo de fazer suas críticas para evitar melindres (quando ele reuniria condições para exercêlas). Sobre a panelinha, falarei mais adiante; sobre a cumplicidade, a consequência é fácil de se deduzir: menos um espaço para se contar, se estamos buscando ler críticas. Para completar o quadro sociológico da desertificação do universo da crítica cultural, vemos, ano após ano, a constante crise financeira dos

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Eu próprio escrevi poucas críticas propriamente ditas, se comparadas à minha produção total para a Continente. Comecei redigindo reportagens, entrevista e resenhas, antes de partir para a crítica. Inclusive, na coluna de resenhas, aproveitei para treinar, mesmo em espaço reduzido, meu viés crítico.


veículos de imprensa – materializada nos inúmeros passaralhos – e a escassez de opções de formação acadêmica específica. Quanto à questão da recepção dos artistas às críticas sobre suas obras, entramos em um terreno movediço. Eles não são obrigados a aceitar tais críticas, concordar com elas, em partes ou no todo, mas também não podem pretender que suas narrativas, motivações e contextualizações sejam obrigatoriamente ouvidas: o crítico credencia-se como tal justamente por se propor a contribuir, por meio de sua visão autêntica, para a fortuna crítica da obra de arte, independentemente de sua opinião sobre ela. Mesmo nos casos de má-fé ou ignorância de um crítico, outros críticos e o público têm o poder de contestá-lo. Não que o artista tenha de ficar calado; deve apenas ponderar, primeiro, se convém rebatê-lo e como fazê-lo. Esse tópico acima – que sintetiza, miseravelmente, em um único parágrafo um fenômeno que, ao final das contas, só pode ser ponderado caso a caso – só me parece menos vasto, no campo das polêmicas artísticas, que o arcano interesse do público pela vida do artista. Evite-se desde já o falso problema de julgar a obra e não o artista: exemplos de pensamentos, palavras, atitudes, condutas e conquistas movem a humanidade há mais tempo que a arte em si, senão as biografias não seriam algo tão valioso e apaixonante. Para a discussão estética, o julgamento do artista não anula a sua obra. A arte sublime vem de santos e criminosos, fleumáticos e extrovertidos, depressivos e eufóricos, compenetrados e frívolos, medíocres e gênios, caridosos e egoístas, vaidosos e desapegados, burgueses e proletários, crápulas e generosos, milionários e mendigos, aclamados e anônimos. Em todos os casos, ela prevalece porque aliena-se do artista, tornase patrimônio de seus próximos – quando não de um povo, de


uma sociedade ou da humanidade – e é usufruída por todos que a alcancem. Na arte, como em outros tantos domínios da cultura (no sentido mais amplo da palavra, ou seja, do domínio do que é humano, em contraposição ao que é da natureza), temos de dar o mérito ao artista. É um aprendizado de vida; de sabedoria. Já a arte medíocre perece; não resiste ao passar das gerações, por mais que joguem confetes sobre ela, por mais que tentem inverter ou definir forçosamente padrões de gosto, por mais que ela polua os mares da beleza. É dever da arte tentar – mesmo que não consiga – transcender formas e pensamentos; renovar a linguagem; criticar costumes estabelecidos ou a pauta da ordem do dia (sem rebaixar-se ao panfletarismo); induzir a contemplar a natureza ou o homem; lançar novos olhares e reflexões a problemas já estabelecidos (dizer mais do que o mesmo); repensar o passado ou alertar sobre possíveis futuros; desligar o leitor/ouvinte/observador do agora e elevá-lo ao sempre. Uma obra de arte verdadeira, em particular, não mira tudo ao mesmo tempo, mas carrega algumas dessas intenções; o verdadeiro artista é consciente da maior parte dessas vias, senão de todas elas. Vejam: eu disse a arte medíocre, não a arte do medíocre... Podemos até ter uma previsão ou expectativa de que algo vindo de alguém irrelevante seja também irrelevante, mas não a certeza. A certeza tende a ser maior quando lidamos com um autoenganado, com alguém que acha que suas produções são inerentemente boas, “melhor do que o que se vê por aí”, e que o mundo está a negar-lhe a fama. Autênticos artistas gostam de elogios, claro, como quase todos nós no planeta, mas não o mendigam: lutam pela glória e a reconhecem quando ela arriba em seu porto.


O problema que emerge da curiosidade pela vida do artista está em saber qual o do limite do direito dele à intimidade – J. K. Rowling que o diga – e tal problema, além de situar-se fora do campo da estética, é insolúvel. A vida do artista gerará interesse de seus fãs sempre, mas, para um crítico de arte, talvez seja prudente, muitas vezes, deixar que outros jornalistas e pesquisadores revirem as trouxas de roupas e baldes de lixo enquanto for possível, nesse ínterim, voltar o foco para a produção artística. É quase inútil tentarem demover-nos de muitas de nossas atrações e rejeições em relação a um artista, mas, repetindo, o julgamento da obra de arte é da ordem da estética. Se acabar por entrar também na ordem da moral, entrará por conta da discussão moral levantada por tal obra ou pela postura artística de seu autor, não pelas atitudes do artista na sua esfera privada, por mais que tenhamos motivos para rejeitá-lo ou elogiá-lo. Quanto aos artistas incomodados pela intrusão do público e da mídia: enquanto seu lobo não vem, vamos passear.


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