Sem gado - capítulo 3

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Carlos Eduardo Amaral

Sem gado

1ª edição Recife 2021


Coro – DonneZ-nous un petit peu plus d’argent, s’il vous plaÎt Em plena Terça-feira Gorda, a rotina em Santa Maria, ao sul da ilha do Sal, diferia conforme os três grandes focos populacionais a serem vistos a circular. O dos turistas, que inclui os passeantes, o dos bebentes e o dos banhantes. Podíamos denominar esses subgrupos como: transeuntes, bebedores e banhistas, mas vamos seguir nosso compromisso em expandir o léxico, quer pela invenção, quer pelo resgate vocabular. Ao lado dos bebentes, ou bebensais, vamos botar os comensais, porque beber sem pelo menos petiscar faz o álcool subir mais rápido – além do que, muitos dispensam bebidas, mas não a companhia de alguém que beba. Passar de uma daquelas três subcategorias à outra é uma mera organização de agenda – pois sair do mar, dar uma caminhada espraiante e achegar-se a um bar são o combo de atividades mais comum por parte dos forasteiros em balneários – e um tanto dos personagens do terceiro foco, mencionados daqui a pouco, igualmente alternam-se nesses três passatempos. Os passeantes desfrutam de vias bem conservadas e agradáveis na vila, sejam asfaltadas, sejam calçadas, incluindo-se, nestas, os bulevares. Ademais, as ciclovias são impecáveis, ainda que não abarquem toda a ilha; em breve vão atar Santa Maria a Pedra Lume, passando por Espargos, cidade-sede municipal. Desfruta-se também, em Santa Maria, de animados bares, em cujos sistemas de som toca-se mais música brasileira do que cabo-verdiana, não mais do que ouvimos em algumas emissoras de rádio portuguesas, para contragosto das gerações lusitanas de mais idade. Era bom que se desse a recíproca no Brasil, porém o brasileiro tende a só descobrir Portugal quando a crise 23


aperta – e imigra, junto com ele, uma boa amostragem de incultura, trambicagem e descortesia. (Se não for dito que há exceções, aparecerá gente a dar com pau. Há, claro. Muitas e mui dignas.) Pensando pela face boa da história, dispor de muita música lusófona é um alento para quem quer se salvar do pop rock de cariz norte-americano e da música eletrônica – não a de Stockhausen e companhia, a dos disco-jóqueis mesmo. Pena que estas duas grandes vertentes já estão a influenciar o gosto da juventude local, nos mezaninos das torres gêmeas, na ponta leste do litoral sul do Sal. Não é lá nosso destino, por ora. Vamos desviar da Avenida 1° de Junho, dobrando à direita, na esquina da igreja da padroeira local, para irmos ao Pontão de Santa Maria, o cartão-postal da ilha, a disputar o posto com a Buracona. Mais um camelô senegalês aqui na esquina vendendo óculos de sol, uma cena que já vi em Brasília, Almada e Paris – Não, obrigado. Bom dia. – Dá para discerni-los muito bem dos habitantes da terra porque são retintos e têm dificuldades com o português. Caso falassem apenas os idiomas locais, nossos ouvidos ocidentais não diriam de onde são, porém deve haver também guineenses, de Conacri, pois, tendo estes origens étnicas diferentes das do Senegal, acabam recorrendo ao francês para a intercomunicação. E delimitamos o universo de dedução a esses dois países por serem as nações francófonas mais próximas de Cabo Verde – não do Cabo Verde, pois o cabo que deu nome ao arquipélago é, a rigor, a localidade mais ocidental do continente africano, na cidade de Dacar. Nosso recorte dos trabalhadores conta com os citados imigrantes ambulantes e com os trabalhadores formais cabo-verdianos, nos bares, nos restaurantes, nos 24


demais estabelecimentos comerciais, na venda de pescado fresco ao ar livre, no setor hoteleiro, nas agências de passeios turísticos e nos serviços públicos essenciais, como policiamento e saúde. Estes todos falam uma língua estrangeira... Quer dizer, o português é que é estrangeiro... Estes todos falam uma língua nativa... Aliás, também não é nativa, porque as ilhas de Cabo Verde eram desabitadas quando os portugueses arribaram... Vamos em definitivo. Estes todos falam uma língua originada aqui, estranha aos lusófonos de hoje, mas cheia de palavras extraídas do camoniano de antanho, com diferenças de ilha para ilha – língua esta a qual poderíamos chamar de romanche arquipelágico ou ladino arquipelágico, não existisse o termo “crioulo” para designar, na cultura da colonização portuguesa, os mestiços de africanos com lusitanos. Se não fosse por essa delimitação semântica de ordem geo-humana, ao romanche dos Grisões bem cairia ser alcunhado de crioulo suíço, ou, ao ladino, de crioulo dolomita; contudo, “romance” ou “romanche” designava “língua românica”, qualquer uma nascida do cruzamento do latim vulgar com os falares locais, e “ladino” significava “latino” muito antes de ter a conotação de “astucioso”. Assim, vemos que é o caso do crioulo cabo-verdiano, um romanche de segunda geração, porquanto filho de um filho do latim vulgar, tão diversificado em suas variantes – e tão titubeante, ou despreocupado, no tocante à eleição de uma gramáticapadrão – quanto as línguas em risco de extinção nos Grisões e nas Dolomitas. Tal língua, de habitantes de orgulho tão patente quanto o dos povos alpinos em questão, redobraria o sentimento de regozijo se soubesse que é falada, no mínimo, por dez vezes mais gentes do que as outras duas juntas e que, ao contrário delas, afasta-se cada dia 25


mais da extinção à medida que a população do arquipélago vai crescendo. Tal língua que, de dicção afrancesada e relativa semelhança vocabular ao papiamento, o crioulo neerlandês do Caribe, une-se de coração e de som à alma de ex-escravizados de milhares de milhas a oeste. Se funciona alguma câmara de dirigentes lojistas na ilha do Sal, esta adota outro crioulo como idioma oficial, o da Britânia, mais miscigenado que qualquer romanche, por conter bases germânicas e contribuições, discretas ou substanciais, dos vikings, dos celtas, do latim, do francês medieval e do neerlandês (vamos atender o pedido dos Países Baixos de não mais dizer “holandês”). Esses detalhes são explicitados, aqui, para dar-nos o prazer de imaginar o desgozo e a inglória de algum supremacista racial que passe os olhos por estas páginas. É pouco plausível, porém, que se encontre algum exemplar da espécie que seja culto ou sensível às artes. Por precaução, é bom acrescentar que o inglês de Uganda é tão bonito quanto o de Oxford... Muito sádico impor tanto “chola mais” dessa maneira. Mas fazer o quê?... Mentira. Atochemos tudo. Voltemos. Só assim, por meio do crioulo da Britânia – esteja desvirtuado e liberto o termo “crioulo” –, para se entenderem espanhóis, italianos, brasileiros, portugueses, poloneses, holandeses, belgas, alemães e outros que não sabemos, proprietários de muitos comércios filiados à hipotética CDL salense. Parte deles está trabalhando hoje; outra parte está a folgar, a viajar ou a cuidar dos negócios alhures; e nenhum aparece – mesmo nada impedindo – em meio aos foliões, o terceiro foco populacional a circular. Estes não dispõem sequer de um boi para engordar, ao contrário dos filiados da suposta câmara – os olhos destes, portanto, só cevam ou descansam; um dos dois. 26


Estamos no último dia de Carnaval, conforme já dito, e os preparativos para o desfile da noite andam a contento. Nenhuma comemoração carnavalesca em Cabo Verde supera a do Mindelo, segunda cidade mais populosa do país, situada na ilha de São Vicente. Contudo, a animação no Sal nem por isso é menor, e atrai moradores das outras localidades do concelho a Santa Maria: as vilas da Murdeira e da Palmeira, a cidade de Espargos e as aldeias de Pedra Lume e da Terra-Boa. Ao longo da caminhada feita pelas redondezas, vimos uns quinze ou vinte músicos, especialmente com instrumentos de percussão; três grupos de cinco ou seis passistas cada um, e você não vê diferença entre aquelas mulatas e as brasileiras (os cabo-verdianos são tão parecidos conosco; ora, se são); um figurinista e um costureiro a conversar com um mestre-sala; um grupo com, pelo que deu para identificar, um funileiro, um soldador e um lanterneiro, a consertar um modesto carro alegórico emperrado no girador principal de Santa Maria, aonde convergem a estrada para Espargos e três vias locais; transeuntes para empurrar o carro alegórico, que trazia, para nossa surpresa, a figura de um caboclo de lança queer de cinco metros de altura, a caráter, com surrão, cravo branco à boca e tudo o mais; dois carpinteiros e dois pintores, a atuar em um segundo carro alegórico, em estágio inicial de montagem, estacionado a um quilômetro do anterior, em um ponto da Avenida Amílcar Cabral; e um esquenta de bateria, a cerca de uma quadra desse último veículo. A bateria tocava samba, sim. Não estranhem havê-lo em Cabo Verde. Levamo-lo para lá e para Portugal faz tempo. A bateria tocava samba com os mesmíssimos instrumentos que conhecemos – e um sutil dissabor rítmico, se cobrarmos 27


brasilidade ao pé da letra, mas aí é pressupor rigor e purismo e não querer que uma coisa adquira feições outras que não as de costume, tal qual a defesa da integralidade de uma língua como pertencente a um só povo, que há muito deixou de ser uma potência colonizadora. Por que não dizer que o samba de enredo cabo-verdiano é de baque solto e o carioca, de baque virado, como no maracatu, ou que sejam de sotaques diferentes, como no bumbameu-boi maranhense? Assim seja. Na via à beira-mar, já próximo ao Pontão, agora deparamos com alguns mecânicos e donos de carros ajustando suas viaturas para o corso de logo mais, às onze horas, que só iremos acompanhar se der tempo, devido às nossas obrigações narrativas. São nove da manhã, neste momento. No Pontão, o píer em formato de palheta de sorvete que se projeta a uns cinquenta metros mar adentro e onde se compra pescado fresco da melhor qualidade, caminha o Padre Gil, que vai ao encontro de dois de seus garotos para chamá-los de volta à comunidade. Ele haviaos deixado ali, a se divertirem, dando mergulhos a partir do píer, enquanto ia agradecer por três doações recebidas de donos de hotéis e restaurantes. Mesmo despachando os recibos por e-mail, fazia questão de dirigir-se em pessoa aos benfeitores e agraciar-lhes com um rosário, uma pequena imagem ou, aos não católicos, um cartão assinado por si. Baixinho, um metro e sessenta e oito de altura; crânio bem arredondado; calvo, com cabelos negros apenas ao redor da parte traseira da cabeça; nariz núbio, a sustentar óculos de armação prateada fina, com os nomes Jesus Cristo gravados, um em cada perna, próximos aos parafusos que as ligavam diretamente às respectivas lentes 28


retangulares, de uma polegada de altura por duas de largura, cada uma destas; pele queimada; barba e bigodes feitos; lábios finos e sorriso juvenil e largo, de tamanho coincidente ao de uma linha que se traçasse de uma ponta exterior à outra da cavidade de seus olhos miúdos, de íris escuras e expressão humilde, Padre Gil andava sempre de batina, não no convencional branco, mas num tom de amarelo bem claro, quando não cinza, pérola ou salmão, também muito amenos. Após os garotos saírem da água, o cura, que os aguardava a uns quinze metros de distância, fez-se localizar: – Euclides! Carlos! Vamos. Ao se aproximarem, comentou, feliz: – Missão cumprida por hoje. Sinto que nossa comunidade será ampliada em breve.

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