Ocupação Saraí: dois anos de resistência pela moradia

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“O QUE IMPORTA É O CÉU AZUL”

Dois anos de resistência

pela moradia Prédio que já foi escritório da Caixa Econômica Federal e utilizado por facção criminosa hoje é ocupado por famílias que convivem com a incerteza de não ter um lar definitivo

Camila Oliveira

O

brilho que preenche os olhos ao observar da janela do quarto a dança do lago Guaíba toda vez que ele se encontra com o vento faz com que tudo pareça um sonho. Quando a janela é fechada, Cleusa Maria Medeiros, 40 anos, volta à realidade e à incerteza de ainda não ter um teto definitivo. Assim como os demais moradores da Ocupação Saraí, que são movidos pela liberdade, a mulher baixinha e de cabelo enrolado já morou em mais de sete “casinhas, casas e casarões” em Porto Alegre. Há cerca de cinco meses, ela e cinco dos seus seis filhos habitam uma peça de pouco mais de 50 metros quadrados no quarto andar do prédio localizado na Rua Caldas Júnior, esquina com a Avenida Mauá, no Centro. As dificuldades financeiras que se agravavam cada vez que chegava a conta do aluguel foram os principais motivos que fizeram a antiga moradora do Partenon procurar um novo lar. Quando Cleusa ficou sabendo sobre a Saraí, algumas incertezas faziam ela se questionar se valia a pena ou não mudar de residência outra vez. “Ficava me perguntando: Será que vai dar certo? Será que é uma coisa real? Mas medo eu não tive, porque não tenho medo de nada. E era minha única opção. Vim e não olhei para trás.” Todos que desejam morar na Saraí primeiramente precisam participar de uma reunião com os moradores da ocupação, que votam se a família será aceita ou não. Nesse encontro, é questionado por que aquelas pessoas precisam de mora6

dia, quantos membros compõem a família, se já morou em ocupações e se estão dispostos a conviver naquele grupo. Quando ingressam na Saraí, os moradores passam a desempenhar papéis que auxiliam no convívio em grupo, como fazer a faxina, cuidar da cozinha coletiva ou organizar as atividades da Ciranda. Esta última é motivo de orgulho dos moradores, principalmente da filha mais velha de Cleusa, Márcia Juliana, 20 anos, que aos sábados, durante a tarde, cuida das crianças enquanto voluntários promovem oficinas com elas. “Queria que decidissem logo” A mudança e adequação às regras do local não foram fáceis. As duas camas de casal, geladeira, fogão, sofá e armário de cozinha tiveram que passar pelos quatro lances de uma escada escura, úmida e estreita, enquanto as tábuas frágeis que cumprem o papel de paredes e delimitam os espaços do apartamento tiveram que entrar pela janela. Ainda em fase

de adaptação com o lugar, Cleusa sente que ali é seu lar, mas, assim como a filha Márcia, sonha com a casa própria. Ao contrário dos outros irmãos que dormem no mesmo quarto que a mãe, Márcia tem o seu cantinho reservado no apartamento. A menina de sorriso tímido e voz doce é mãe de Derik Matheus, 2 anos. Para garantir a qualidade de vida do filho, que é o seu bem mais precioso, ela trabalha como auxiliar de limpeza e dedica parte do salário aos custos de vida e guarda o restante para comprar uma casa. Por outro lado, a incerteza sobre a desapropriação do prédio, que se perpetua há mais de seis anos, faz com que ela tenha medo do que está por vir. “Eu queria que decidissem logo se a gente pode ou não ficar aqui, porque é muito difícil viver assim. Só de pensar em ter que sair... Imagina os policiais entrarem aqui, invadirem, coitado do meu filho. Deus me livre. Eu só penso nele”, desabafa. Fotos: Camila Oliveira

Márcia e seus irmãos moram na Saraí há pouco tempo, mas temem o dia em que terão de sair

“Polícia não entra” O medo da represália da polícia assombra todos os moradores da ocupação, os quais, embora pareçam estar cientes de que provavelmente tenham que deixar o prédio, se preocupam em como irão sair. Há mais de um ano, o quinto andar da Saraí é a casa de Luís Ricardo de Souza e de sua família, que, assim como a maioria dos moradores, foi parar lá por não ter condições de pagar aluguel. Embora já seja veterano na ocupação, toda vez que deita para dormir, acaba sendo tomado por sentimentos de insegurança sobre o destino. Ele relembra que, em 2014, o Estado entrou com uma ordem de despejo, e no dia 24 de dezembro todas as famílias teriam que deixar o prédio. “Foi um susto, embora 99% de nós não fôssemos sair nesse dia, tinha uma ordem judicial para abandonarmos nossa casa. E todo o ano é assim, é sempre uma incerteza e insegurança sobre o que vai acontecer”. Aos 39 anos, ele já demonstra estar cansado de conviver com essa instabilidade. Precavido, já começou a organizar as contas da família para, se possível, ir para uma moradia com aluguel social e ter um lar definitivo. A insegurança do local é um ponto que preocupa parte dos moradores, que temem a entrada de estranhos em suas residências. Cada apartamento tem uma chave do cadeado que mantém fechado o frágil portão de ferro da entrada, e é através de uma pequena janelinha no portão que eles indagam, com desconfiança e medo, todos os que batem à porta querendo entrar. Pelo lado de fora, o aviso é objetivo: “Polícia não entra”.


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