Caleidoscopica

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Caleidoscópicas: Charo López Miguel Auria Pilar Abades Sabela Iglesias Silvia Mella Xiana Quintas Ana Parada Design gráfico: Ana Parada Design web: Jesús Rivera Design cabeçalho: Carla Trindade Colaboradoras neste número: Inés Salvado Vítor Vaqueiro Correçao ortográfica: André Taboada Contatos: www.caleidoscopica.gal info@caleidoscopica.gal caleidoscopicafotografia caleidoscopica.fotografia caleidoscopica



Índice

EDITORIAL 1 REPORTAGEM ARES DA RAIA 2-29 ENTREVISTA DELFIN BLANCO 30-43 DO ÍNTIMO ÁLBUM DE PARALAXE 44-59 EXPERIMENTAL SEN TÍTULO 60-79 RETRATO DISPARAR A POETAS 80-93 CALEIDOSCÓPIO: IDENTIDADE E TERRA 96-143 REFLEXÃO

CAPTURAS DE AMOR ROMÂNTICO 146-151 PAISAGEM E FOTOGRAFÍA 152-159 RELATO FOTOGRÁFICO SEN TÍTULO 160-189 NÓS 190-195 TIRAS DE PROVAS 196-199


Declaração de

rnalismo como Entendemos jo unicação social forma de com nestidade e inalicerçada na ho contadoras de vestigação das meio de transhistórias; como ferramenta de missão cultural e nsformação sodenúncia e tra cial.

intenções:

editorial

álgama de jorSomos uma am tografia e rural, nalismo, arte, fo caleidoscópio Olhamos de um sso redor. Defen pirata para o no subjetiva como demos a olhada nos olhos dum a única possível conteúdos essujeito. Os nossos nós e com aquitão ligados com ssa volta -que é lo que está à no ande-, porque um Nós mais gr espaço extenão vivemos no pés metidos na rior, mas aqui, de s cenas que folama. Dentro da tografamos.

ltura como todo Entendemos cu rtas dos museus. o que fica às po é o fruto de um A nossa cultura que resiste. Cul sujeito coletivo conclusões nos tura é escrever fazer em casa muros. Cultura é a máquina de o pião e na cela é saber quando tatuar. Cultura patacas e se apanham as e qu é e ad m bolas. cópio é se semeiam as ce do O nosso caleidos an qu l ta r em horizon pandeireta e o in Galiza. A olha Cultura é tocar a r ho el m é o mangar as nã o. Cultura é arre in o mundo; porque ol vi est po orgulho que Com s e estrear com ra ei Nova Iorque do rn pe m ne irmã ion Week, ue vintage!- da -q as lç la, por ter a Fash ca as r e Ramala po ar café sem or. Cultura é tom A Corunha do qu ai m i qu da os anhado alham o até deixar am gi ter a Ikea. Trab ló re , os em beijos. que nasc . Cultura são os do un porque foi aqui m o as mos contar histórias, com e de onde pode ultura é contar C m se e, ad com imamanid , com letras ou histórias da hu ns so au ac M ir para necessidade de gens. rieprocura do exóltura não é prop cu a ss no ou o Senegal na a E r ra a Índia faze ninguém. tico. Se formos pa a his- dade de um r se irá , m ge uma reporta pessoa, as fotos tória em terceira idental a sentir de mais uma oc Pós-data: a, não de uma fascínio pela Índi de esmolar em indiana. Estamos fartas fila nos centros prego, de fazer aumentar as es de emprego e iqu A igração. Glosário: tatísticas da em u dito marxismo deixo o e qu lo a como sendo do trabalho é Entendemos arte bre a abolição so ns tra de trabalmana mada contra as tra a capacidade hu or ag a o, spers da criaçã as não imos de m s, ra formação atravé do ha a filosofia, étic pedir para r mais tempo a partir da soma de ça di in a um ços assada de habilitarem espa e estética, afasta s no do ita vola e lim entes, alheios. dústria elitista, frí lariados, depend ura das fendas ra. Andamos à proc rar às martema para med sis do o m co sítio, lontografia atopar o nosso e Entendemos fo ns ge o. sã que a de expres árie. Achamos rb ba da sendo uma form ge potência por os dum caleidos um mundo em Como os espelh há s, ze lu as também na fletem truir deste lado, cópio em que re ns co ro nt de ser nós e vemos a. E podemos afi gr formas, cores qu to fo sm da nossa co . dum oco estreito próprias a fazê-lo ovisão.

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REPORTAGEM:ARES DA RAIA SILVIA MELLA

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“Vendo-os assim tão pertinho, a Galiza mail’ o Minho, são como dois namorados que o rio traz separados quasi desde o nascimento. Deixal-os, pois, namorar já que os paes para casar lhes não dão consentimento.” (João Verde, 1866-1934)

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“Se Dios os fixo de cote um p’ra outro e teñem dote em terras emparexadas, pol’a mesma auga regadas com ou sem consentimento d’os pais o tempo a chegar em que teñam que pensar em facer o casamento.” (Amador Montenegro Saavedra, 1864-1932)

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Como o envoltorio de um bombon de licor loce a história das cidades de passagem, áreas de infinito conflito e amizade interminável. A Salvaterra de há cem anos tinha cinema e mais cassino, grandes hotéis presidiam a praça floreada de Deu-la-Deu. Lindas histórias de castelos e batalhas ficaram no interior das muralhas que cobrem um lado da Serra da Paradanta e cercam o Alto de Santo António. Contos de dinheiro e falsos domínios encheram durante centenas de anos as bocas das pessoas daqui e de lá que compartilhavam palco com o estraperlo e mais as alfândegas. A linha úmida que separa Monção de Salvaterra é o fio condutor de tudo. O Minho, eterno protagonista, corre desenfreado banhando as margens, regando, curando e fazendo com lama escorregadia a fronteira entre Galiza e Portugal, pintando uma raia verde e preta na terra. A José Rodrigues Vale, assentado nas bordas, disque lhe chamavam o poeta regionalista mas firmava os seus textos como João Verde. A sua obra bebe do Minho corredor, águas escuras com as que pintou versos no ar que cruzaram a fronteira e tiveram resposta de um poeta galego que bufou palavras que o português houbo de amar.

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Delfín Blanco: “Faz falta uma revolução cultural. Nem mais, nem menos.”

ENTREVISTA:DELFIN BLANCO MIGUEL AURIA

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Vilanova de Rante (1939) Quando criança, o Delfim percorria nove quilômetros a pé de casa para a escola, regressando já pela noite à aldeia, dia após dia. Chovendo, ventando. Dia após dia. E se dava medo. Ia com medo. Com sete anos já talhava com a navalha em pedaços de madeira, enquanto pastoreava o gado em Soutopenedo. A sua curiosidade inata fez com que estudasse com avidez, de jeito autodidata, aproximou-se da história da arte, da música, da pintura, da escultura. Trabalhou em estúdios privados. Frequentou aulas de desenho artístico, cópia de gesso, modelado e vaziado e talha de madeira, obtendo em todas e repetidamente diploma com prémio. Entre 1955 e 1964 esteve ligado à escola de Artes e Ofícios de Ourense, como aluno primeiro e como professor depois. Nunca deixou de se formar. Em 1989 gradua-se na especialidade de talha em madeira na Escola de Artes Aplicadas Ramón Falcón de Lugo. Será a partir de 1990 que irá ministrar aulas na Escola de Artes António Faílde de Ourense, é lá que exerce como diretor durante vários anos. A partir de 1994 obtém vaga, por concurso oposição, de professor de Talha na Escola de Lugo, onde trabalhou como docente. Aos 65 anos, a administração concedeu-lhe uma prorrogação e continuou a exercer até 2008, ano em que deixou forçosamente o ensino para enfrentar uma batalha contra o cancro, situação que continua atualmente a combater A sua obra bebe da influência clássica da precisão, pormenor de linha e proporção de volume. Os tópicos passam por obra ornamental de inspiração barroca, retratos, temas religiosos ou cenas costumistas. A abundância barroca é a nota predominante, embora apareçam ainda peças de estilo mais depurado, de serenidade renascentista, e mesmo criações escultóricas de teor minimalista. A maior parte do seu trabalho está realizado em madeira, de buxo, nogueira, sangue de donzela, caoba, pau-violeta e castanheiro. Se bem também tem importantes peças de barro ou pedra. Há trabalhos de Delfín Blanco em coleções privadas e públicas por todo o mundo, da Argentina para a Austrália, mas especialmente na Galiza, com o epicentro a ser a cidade das Burgas.

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Batemos na porta da casa do Delfín antes do almoço. A Susana, o casal dele, abre a porta de sorriso aberto e entramos num mundo de madeira talhada que nos invade. Peças principalmente de baixo-relevo penduram das paredes de um átrio com pouca luz. Trasgos em urze, virgens em castanheiro, naturezas-mortas de carvalho a apresentarem-nos o ímpar País das Maravilhas em que acaba por tornar-se a habitação do escultor. — Uau! é aquilo que eu consigo expressar. A Susana ri “A nossa casa é como um museu, ou, por melhor dizer, o armazém de um museu. Fazia falta era uma casa mais grande.” Passamos para a sala, é lá que o Delfim se encontra, sentado debaixo de uma obra costumista de mulheres a vindimarem. Saúda, sorri. Tem o olhar doce, transmite confiança. É ele que resolve perguntar primeiro: “Tudo bem? Como é que vai isso?”. Complicadas respondo a sorrir. O Delfim é homem de sangue e ideias vermelhas. Fala devagarinho e faz pequenas pausas, tal quisesse deixar as palavras a assentar e arrumassem o mundo dos pensamentos.

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E então, as coisas estão como? Continuo no tema que ele encetou. Delfim: A coisa está mal, não gosto nadinha... Tantos países e tanta gente a viverem na tristeza, na ignorância, na violação... para onde é que vamos? Para mim isto é muito perigoso, porque como é que acabou a crise de 1929? Com uma guerra em que morreram 60 milhões de pessoas, com só os russos a contarem 25 milhões... O capital só consegue resolver as coisas a fazer a guerra.

santos para levar ao lombo. Será que já viste um sacerdote de santo no lombo? Eu nunca gostei disso; eu já restaurei algures um Cristo, não gostava, porque sabia que estava era a contribuir para a ignorância. Há que fazer com que a arte dê o seu contributo para o desenvolvimento, para a cultura. Enfim, aquilo que eu quero dizer é que sempre há um ponto de partida moral. Picasso, que foi um gênio mesmo, era um homem de esquerda, com ideias muito desenvolvidas. No GerniAchas que se deve fazer o quê? ka, por exemplo, a função pedagóAntes de mais faz falta é ter vonta- gica é fundamental, é um quadro inde...e formação, depois necessita- telectual, precisa de uma formação mos de que as pessoas se formem. de início. Enquanto outros artistas do A formação é muito importante. Há barroco faziam arte para despertar a muitas pessoas que conseguem ler sensibilidade, para públicos que não mas no fim de contas é mesmo como tivessem formação prévia. se não soubessem. Como era bom as pessoas lerem por toda a parte, até A arte revoluciona? nas paredes, eu vejo muita filosofia Pode. A arte purifica. A pessoa que nos grafitis. não goste de arte, para onde é que ela irá? Se até as cobras se erguem Será que a arte poderá ficar à mar- ao ouvirem tocar uma música boa. gem das circunstâncias? (risas). É claro que ninguém nasce Nada pode ficar à margem, a arte, ensinado, devemos é recorrer a pestambém não. O termo política ficou soas que tenham sensibilidade para corrompido, já lá sabemos como é transmiti-la. que os políticos profissionais são. Ora bem, se me falares no Carlos Marx ou Obviamente não é mesma coisa arte no Lenine...isso é que é diferente. O que indústria. Indústria é feita contra modelo atual não serve mais, deve o homem. A mim diziam-me na escoser ultrapassado, se continuarmos la: “Isto fá-lo uma máquina”, e se não assim, iremos completar 80 anos a vi- tiver mais eletricidade a máquina vai ver nesta merda toda. Precisamos de fazer o quê? Ainda, não podemos uma Revolução Cultural. É isso que fazer mais daquilo que se pode confaz falta. Se não, vamos para onde? sumir. A arte devia deixar de fora os critérios mercantis, o marketing, ora, Qual achas que deve ser a função da sabes lá bem como é que isto funcioarte? na, estamos a chegar ao momento A arte é uma forma de comunicar, e em que tudo é permitido, em que vepenso que tem de haver sempre um mos um gajo a cagar numa lata e vê posicionamento deontológico. A arte lá, expõe isso num museu. Ou um que não pode ser feita para deixar as pes- esparge terra lá num canto e acha soas de olhos estonteados, tal como isso ser uma instalação. se costumava fazer: uma cheia de

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Como é o mundo da arte? Muito amplo, muito amplo, e eu diria que, a muitos níveis, está quase dormido. Cumpre ser muito autocrítico. Não é a mesma coisa ver que olhar. É questão de preparação. Há uma base que deve ser conhecida, e a partir daí se queres romper com as regras, rompe.

gente tenha um humanismo como deve ter, devemos é trabalhar muito. A sociedade que estamos a ver com as pessoas a remexerem nos contentores... sobretudo para os que já passamos alguma vez, torna-se um desafio para aprender, para encontrar novas fórmulas.

Qual o papel que tu jogas nesse mundo? Eu nunca optei pela figuração pública. Valorizo é muito a prudência e a responsabilidade. Provenho de uma família em decadência, que já teve escudo e desabou. Ficas desamparado, e aprendes que o valor humano tem de ser construído pela própria pessoa, não vai ser dado pela procedência ou o ambiente.

Ajudou-te o rural na tua conceição do mundo? Ajudou mesmo. Foi nele que eu cresci. No rural galego do franquismo, que machucava, que negava o pão, que negava a escola. Piolhos, lêndeas, pulgas a comerem-te vivo... E não eu, mas todos. Havia quem conseguia safar disso, mas eram poucos. Todos os rapazes vivíamos assustados com a Guarda Civil. Aquele tricórnio negro... E para quê? Sendo ciente e responsáComo é que começaste? vel não faz falta Guarda Civil, nem poA minha obra é fruto de uma luta fe- lícia, nem justiça. roz. Nunca me dei por vencido. Desde Para além desse contexto político, o muito pequenino que tive uma curio- rural é uma forma de vida, o galego sidade doente. Reparava em tudo, e tem um apego grande à terra, e tem são tantas as coisas que há que olhar, razão, porque é da terra que sai o que analisar... se come, a terra somos nós, e a terra Naquela altura não tinha quem me come-nos. explicasse nada, via alguma gravu- Eu sempre gostei de ouvir os velhos, ra ou escultura e fazia questão de o porque são eles que sabem. Também conseguir fazer eu também. Não tinha aprendi muito a observar a natureza. meios, desconhecia as leis do design, Se não repararmos a natureza viramos da perspetiva... Isso aprendi e desen- cegos. volvi com os anos. Ainda que esse não devia ser o caminho, que aprendas Qual é a diferença entre arte e artesuma coisa quando tens 50 anos; as ania? coisas há que aprendê-las ao princí- O artesão faz as coisas bem feitas e pio, para aproveitar muito mais a po- cobra pouquinho, e o artista faz as tencialidade das capacidades criati- cousas sem jeito nenhum e pagam-lhe vas. muito. Miguel Angelo disse, que um escultor e um pintor tem que ser um arTodo mestre é aprendiz? tesão. Quer dizer, que existe uma arte Claro. Eu cada vez sou mais aprendiz. saudável, bem feita. Depois podes Acabas de descobrir uma coisa, dás fazer coisas de outra maneira. uma reviravolta e aprendes alguma Artista nem sou, nem quero ser. Arcoisa nova. Não existe nada nem nin- tesão sim, isso não quer dizer que não guém infalível. Até conseguirmos uma queira fazer caralhadas e haja parvos sociedade com garantias de que a a pagarem por isso.

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DO ร NTIMO

รกlbum de paralaxe

PILAR ABADES

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Analisar o meu álbum como uma observadora distante a evitar o próprio (re)conhecimento nas personagens representadas dá num relato que decorre em simultâneo aos acontecimentos nele narrados. Não observo apenas o entrudo de ‘89 nem o meu décimo dia de anos mas o discurso completo com os seus pinçamentos e erros; a meta-linguagem que no passar das páginas fia foto a foto. É assim que teço entre químicos, cola, rasgaduras e pó um entrançado de constantes técnicas a criarem um mural translúcido entre o papel alegadamente dado à fotografia como meio e o verdadeiro papel que ela já jogou na minha infância. A coleção de fotografias que uma família realiza para o seu próprio júbilo, a assinalar e festejar a própria existência, não é mais do que uma idealização do ninho familiar, uma fantasia assente na mais pura falsidade preenchida de saltos e constantes manipulações sobre aquilo que realmente foi. Aos cortes e suturas espaço-temporais comuns a qualquer álbum deverei acrescentar outro tipo de fenda determinada pela máquina fotográfica, a qual, imperfeita no que respeita aos seus automatismos não deixa enxergar aquilo que tenta representar. Pode-se pensar no erro da paralaxe, um mal funcionamento das câmaras de visor direto que refere ao desfasamento que se cria entre a imagem que o olho do fotógrafo enquadra e a imagem que o objetivo impregna no material fotossensível. Como resultado, a câmara engana quem a usa, desafiando e colocando em perigo quem foca e metendo no enquadramento, um fora de campo a reivindicar a sua presença e desloca os sujeitos protagonistas ao ponto de os negligenciar. Assim, a configuração da lembrança e a transferência da memória é deixada a quem se torna narradora ou criadora do álbum e no esforço memorialístico de quem nele quis ficar representado. Para além do ficcional, o meu álbum da infância torna-se num forte e perverso discurso a representar não ações mas sentimentos. Faço face a um álbum que não tem o relato esperado e na procura da minha própria apareço a arrumar e desarrumar fotografias na tentativa de esbater os buratos negros da minha linha temporal, só que, ao passo que muda a aparência dele, revela o verdadeiro problema. Não é da história no seu conjunto que tratamos mas desses “pedaços” cujo enquadramento sofreu dum corte abrupto fazendo com que da realidade extraíssemos um fragmento de si própria. O corte involuntário do enquadramento e o passar do tempo contribuíram para o esquecimento e, portanto, posso é tão só resgatar a dor por essas ausências, pelas falsas decapitações e pelos centros de imagem ocupados pelo pano de fundo. Embora o estragado resultado, a recolha de fotogramas avançou mesmo, passo a passo e a cada vez que o obturador daquela imperfeita câmara era guilhotinado, sabíamos que estávamos a cumprir com a tarefa de testemunhar um presente sem sequer importar-nos com o resultado final, bastava era a intenção de tirar a foto, para ela existir plenamente. Embora a desordem e a falta de informações que parece ler-se no meu álbum, existe um discurso coerente quanto à própria auto-definição pois a minha infância apresenta fendas e ferimentos parecidas com o próprio suporte que contém a imagem. Há inúmeros episódios que, embora tenha constância deles, já esqueci integralmente, são lembranças cortadas pela dor ou o medo sofrido nos primeiros anos da minha existência. A câmara e o seu erro de paralaxe a brincar maleficamente com a realidade ajuda-me, salvaguarda parte da minha pessoa e capta sem errar o meu medo a desaparecer, à morte e à dor que a vida implica.

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EXPERIMENTAL XIANA QUINTAS

Convertendo corpos de mulheres em telas em que expor a minha obra e dar um novo olhar, será que existe uma sala de exposição melhor?

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Processo inteiramente manual, em que apenas intervieram as mulheres, o projetor, uma tela pendurada de um armårio, a minha Exakta, o meu scâner e uma cheia de carreteis e químicos.

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RETRATO:DISPARAR A POETAS CHARO LOPEZ

XIANA ARIAS repite comigo: alucinación. Alucinación. É importante nomear? eu evítoo cando máis doe. Pensaba que tiña bichos correndo polas veas. Ao médico só lle preguntei se había algo que curase a hipocondría. Díxome: – estás ben. Viñeches a tranquilizarte. Levántate, colle o abrigo. Vísteo lenta. Abre a porta. Volve á casa. Pero sinto arañas. nos caixóns da cociña. subindo polas pernas. Correndo pola cama. (Mátoas cando me atrevo, e non me sinto máis libre) Acusación, Ed. Galaxia (2009)

“Uma cousa é fazer uma fotografia do que uma pessoa parece, outra cousa é fazer um retrato do que é.” Paul Caponigro

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Disparar a poetas Conheci -construí- no sensor da minha olhada a Xiana Arias que eu imaginara desde o primeiro poema de Ortigas. Uma Xiana de aspeto inocente mas consciente, erótico e libertário, jogando comigo no pátio do colégio, fazendo grafites nos esconderijos do parque de Belvís, bebendo whisky no salão da sua casa. E destas sessões, entre outras coisas, saíram mais de seis centos de fotos.

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a criação de personagens precisamente com a popularização do retrato, relacionando diretamente as representações a construtos estereotipados. A partir do contexto em que a fotografia entra na sua fase industrial promoveu, segundo ele, além do abaratamento do processo, a “criaçom de umha série de estereótipos sociais que se sobrepõem ao indivíduo, destacando o personagem em detrimento da pessoa.” Joan Fontcuberta chega a falar abertamente de mentira, e considera que “o único sincero que existe nesta vida é o que sabe como mentir. As imagens sempre mentem porque está na sua natureza interpretar o que mostram.”

Arredor do retrato A representação: pessoas e personagens São, hoje em dia, todas as pessoas retratadas1atrizes a representar um role? Diz o Richard Avedon que “Um retrato fotográfico é uma foto de alguém que sabe que está a ser fotografado, e o que faz com este conhecimento é uma parte tão importante da fotografia como o que leva vestido ou como se encontra.”

A representação permite lembrar, graças à função de fixação da memória -ainda que as sensações durante a trazida ao presente do recordo sejam variáveis no tempo-. Também permite aprender, mediante a indagação em possibilidades expressivas para definir uma realidade. E ainda, e sobretudo, criar novas realidades. Entende-se então que o retrato é a criação de uma personagem -diferente da pessoaconstruída com uma linguagem concreta -neste caso a fotográfica-. Se se pretende conseguir certa identificação pessoa-personagem, trabalha-se com base em uma ou várias características da pessoa; em muitas ocasiões apenas o uso do corpo como modelo é o vínculo com a pessoa. O resultado é sempre um reflexo parcial e subjetivo da intenção -consciente ou inconsciente- da fotógrafa.

As características técnicas: luz, enquadre, nitidez, profundidade de campo, tipo de plano... Conformam toda uma linguagem, dialeto da iconografia greco-latina e a cultura visual da representação ocidental -tanto pictórica como fotográfica-; e É a fotógrafa, então, a diretora de um fo- mesmo que a priori não haja pretensão de tograma fixo, dirigindo à protagonista da seguir determinadas convenções, é inevihistória que queremos contar. Estamos tável acontecer, são estes traços os que sempre na representação. Existem as pes- fazem inteligível a imagem. soas sobre papel ou na luz do ecram? Ou aí somos apenas roles? No retrato somos Afundar nas ligação entre o sujeito e a sua representações de algumas das múltiplas representação é um grande oceano de e intercambiáveis máscaras do eclético e possibilidades. Podemos retratar desde a seriado estilo global. Walter Benjamin liga 86


olhada da antropóloga, da socióloga, da psicanalista, da amante, da turista... Tudo depende de onde ponhamos o olho, de que aspeto nos atrai, nos comove, do que nos interessa. Honestamente, sem preten3 o mapa à escala real do conto de Borges. der dissimular o sesgo da olhada. Um disfarce do tamanho do mundo. O retraNos primeiros retratos de estudo objetos e to fotográfico está tão diversificado, tão exposses contribuem a desenhar uma per- plorado em âmbitos diversos e divergentes, sonagem predefinida de forma explícita, e simultaneamente inserido até tal ponto na com características determinadas de gé- vida diária das pessoas, que já não é apenero, raça e classe. Por exemplo, os ho- nas uma técnica popularizada de captação mens aparecem com ferramentas e ves- de determinados momentos rituais ou lugatiário referentes ao trabalho e espaços de res especiais. As fotos já não recolhem lempoder (canetas, bastões..), com lingua- branças para guardar mas mensagens para gem gestual ativa e orgulhosa. As mulheres enviar e trocar. na maior parte dos casos ficam em posses Hoje em dia a imagem das pessoas capmais passivas ou ligadas a atividades de ta-se e difunde-se massiva e continuamente. “entretenimento de senhoritas”; em estes A massificação e presença da imagem, e retratos a atitude e vestiário tem muito a do retrato em particular, através das novas ver com uma representação do “eterno formas comunicacionais na rede cria uma fonte imensa de representações, invenções, feminino”; beleza e submissão. 4 fantasias e identidades à carta. As construções culturais hegemónicas impõem-se. O olhar criativo tem então a necessidade de indagar e reconhecer relações e perfis sociais para saber se quer reproduzir os protótipos patriarcais, racistas, classistas... que veem de série no nosso 2 imaginário-mundo ocidental. As imagens são uma manifestação social, em que o agente produtor -em este caso a fotógrafa- é uma representante do meio social onde está inserido. E atualmente, na sociedade do espetáculo, a imagem, a fotografia e o audiovisual em geral são

1 Entende-se a imagem como histórica e culturalmente construída, por isso é descodificável num contexto dado. É interessante lembrar quando Edward Sheriff Curtis mostrou uma fotografia do seu filho numa comunidade índia dos Estados Unidos, e a reação foi não acreditar, pois nunca uma mulher parira uma folha de papel. 2 Entendemos, como ponto de partida, que o retrato é uma forma de representação visual humanizante, geralmente de uma pessoa, mas poderíamos fazer um retrato de outro animal ou de uma figura inanimada, se o olhar for empático, se se tratara de contar o que de humano vemos na retratada. Acredito que partindo desta definição se pode chegar a retratar árvores, paisagens e desoladores desertos. Pelo mesmo que também não é preciso ver-mos uma imagem figurativa ou uma cara para identificar uma retrato a descrever identidade. 3 “Del rigor en la ciencia”, Jorge Luis Borges. 4 Difuminados completamente os confins e as categorias, a questão da imagem posfotográfica rebasa uma análise circunscrita a um mosaico de pixeis que nos remete a uma representação gráfica de carácter escritural. Ampliemos o enfoque a uma perspetiva sociológica e advirtamos com que conforto a posfotografía habita na internet e nos seus portais, quer dizer, as interfícies que hoje nos ligam ao mundo e veiculizam boa parte da nossa atividade. O crucial não é que a fotografia se desmaterialize convertida em bits de informação mas como esses bits de informação propiciam a sua transmissão e circulação vertiginosa. (...)De facto, a posfotografía não é mais que a fotografia adaptada à nossa vida on-line. Um contexto no que, como no ancien régime da imagem, colhem novos usos vernaculares e funcionais frente a outros artísticos e críticos. Joan Fontcuberta, Por un manifiesto posfotográfico.

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O corpo O corpo entende-se aqui como o suporte material da aparência, que se articula com diferentes códigos de linguagem, como a gestualidade, a decoração corpórea, a moda, etc, circunscrevendo os sujeitos num determinado espaço de significação, conforme nos falam Kathia Castilho e Marcelo M. Martins: “O corpo é o suporte que constrói (e onde também se constroem) significados, efeitos de sentido e processos de identidade, onde se constroem também narrativas e significações válidas em uma coletividade determinada”.

A leitura A foto joga com as experiências não-verbais da representação e em alguns casos com a ligação entre a retratada e a retratista. Depois, estará ao dispor da subjetividade das terceiras pessoas que as veem, e estarão sujeitas à interpretação de quem as estuda. A respeito da descodificação da imagem por parte da própria retratada, da fotógrafa ou de terceiras pessoas é interessante a distinção de Mauad, sobre a diferença entre o que ele denomina “leitor de fotografia”, e o simples consumidor de imagem. O leitor ou leitora tem uma série de saberes para a compreensão e interpretação de imagens, igual que para outros textos sociais. A fotografia é cultural e historicamente compreendida pela leitora a partir dos signos que presenta. Contudo, as consumidoras de fotografia hoje teêm um abano visual de referências como

nunca antes. Na sociedade do audiovisual na que estamos imersas, a democratização do conhecimento dos signos das imagens permite a valorização das mesmas por parte da maioria social, já que o código está amplamente popularizado. E mesmo de maneira inconsciente se pode “ler” um clima geral da imagem. Falta um debate substancial arredor de se as fotógrafas somos hoje “leitoras-escritoras” de fotografias, ou se ficamos em produtoras e consumidoras de imagem, limitadas a escolhas estéticas mais intuitivas que fundamentadas. Como em outras artes, há quem se dedica à indústria cultural e há quem faz criação independente. Haverá quem tenha interesse em disparar best-sellers. Apologia dos protótipos hegemónicos bem lustrosos e rechamantes, fogos de artifício, mínima profundidade de campo e HDR. Mas, para quem tenha um interesse em contar desde as aforas, em retratar periferias ou aprofundar nas identidades, então requer-se um mínimo conhecimento do contexto social e artístico para desenhar um retrato consciente da sua mensagem. A capacidade de leitura funda de imagens é uma aprendizagem que há ajudar a desentranhar os segredos das histórias mais complexas e interessantes da fotografia contemporânea. E é o conhecimento da realidade pessoal e social da retratada o que vai fazer que consigamos desenhar umas personagens sólidas, dentro do nosso fotograma baseado em feitos reais.

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MIGUEL AURIA

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A natureza encantada é o reflexo histórico-simbólico dos povos livres. Somos nesta terra habitada como nossa e com os nossos onde irrompe a certeza de umha co-pertença profunda. Porque somos natureza e existimos nela. “A defensa da Terra e a dialéctica do progresso”, co-editado pola Escola Popular Galega (EPG) e o galizalivre.org em 2010

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INÉS SALVADO

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XIANA QUINTAS

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SABELA IGLESIAS

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Reflexom

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“Ata que o lixo nos separe”

Sabela Iglesias,2011

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no lombo e a deixar uma “Quanto menos te mereço, cheia de lendas para desmais te preciso” diziam mitificarmos: do amor tudo umas letras gravadas em pode, passando pela ideia prata. da alma gêmea ou pelo Também na forma como dar tudo até ao amor eterentendermos o amor é que no e irrevogável, produto nos deixaram fogueiras do destino. de um machismo a entrar pelos poros e que quei- Atualmente vivemos com ma. O amor romântico é gente à nossa volta a fotouma faísca daquele lume, grafar tudo: o pequeno-alsegura os nossos sonhos e moço, a chuva que não inquietações, enche-nos o pára, o novo estilo que desótão de esquemas men- mos ao nosso quarto ou os tais “corretos”. De maneira petiscos daquele bar que quase inconsciente, nutre está na moda. Fotograma das histórias alheias e idíli- após fotograma conseguicas que sobre nós deitam mos criar uma vida santa, a publicidade, os filmes, os que só o nosso imaginário anúncios de bonecas, a é que consegue moldar. música, a igreja, o estado Assim, a foto social costue as gerações passadas. A ma ser um elemento plásfaísca ateia...nem é difícil. tico que nos apraz porque torna a afirmar a história “perfeita” e “normal” das A representação coletiva nossas vidas. do amor não é mais do que mais uma arma de um A falarmos nos casais, faria sistema a ser dominado falta seria referirmos as fopelos homens, que renova tografias de casamentos, a sua supremacia no seio consegue resistir ao perturda sociedade ou, por mel- bador “até que a morte nos hor dizer, por ser o tópico separe” e firmar mais ainda de que tratamos, no âm- a mitificada perdurabilidabito de uma relação senti- de do amor romântico. O mental desigual. Este amor suporte, o papel fotográfiromântico que em nós as- co, sobrevive em álbuns lasenta não tem qualquer cados por um branco roto e coisa de saudável nem, com um nimbo longo-prapor acaso, é real, visá-lo cista, “porque sim”, porpassa por anularmo-nos, que “o amor” é que “vale incomunicarmo-nos e virar- tudo”, porque foi “Deus ou mos superficiais. Mais uma o destino que assim o quis”. vez foi o imaginário coleti- Poderemos, portanto, dizer, vo a dar uma palmadinha que existe uma estreita re-

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lação entre as imagens que queremos guardar das nossas experiências e aquela idealização dos nosso planos de vida. A fotografia serve de simulacro daquele amor que ia ser eterno, fá-lo a embalsamar o tempo e o desgaste amoroso que, é por si, inquieto. Não faz falta uma grande abordagem para apercebermo-nos de como as posturas corporais conseguem falar e o lugar que cada quem ocupa na foto, confirma aquilo que já foi acima referido: é o homem a colhê-la no colo, a protegê-la, dá um beijo para ela com o fraco lombo dela a cair no braço musculado dele. Podemos ainda reparar na teima materialista e na insistência nas feições da mulher: o calçado, o anel, o penteado e o raio do ramo a assinalar quem irá herdar o ritual amoroso.

das de olhares a fugirem. Retrata casais resignados e entediados. A cor negra da maçadura em forma de coração que podemos ver na fotografia de Nan Goldin (The Ballad of Sexual Dependency, 1986) diverge imenso das cores pasteis que associamos ao amor romântico. O corpo guarda, padece e calca na pele as experiências reais (os ferimentos e o tempo) e atrás fica o romanticismo criado no imaginário. Tal acontece com as imagens do trabalho documental de Richard Billingham (Ray’s A Laugh) em que retrata o pai e a mãe dele; perdidos no abismo do álcool, abalados pelas consequências de um desleixo insalubre. Vivem num limbo, talvez se amem, mas não concordam com a imagem de relação amorosa que teríamos colocado num álbum para a posteridade.

Se, para além disso, insistimos nos brilhos excessivos, nos nacarados kitsch, nas posturas impossíveis e os troquelados de estrelas, o álbum de casamento poderá ser paradigma do amor romântico.

Dar-nos-á conforto sabermos que restam ainda imagens combativas, fotografia e criatividade a fazerem discurso que nos acalente, que nos permite abrir os olhos muito, enxergarmos, atentarmos Aconteceu virmos a deparar com os estereótipos e imagens doenfotografias de casamento num tias que encurralam as relações contentor de entulho de uma para desprendermo-nos deles. obra numa rua do centro da Corunha. São poses para lembrar, Criar é, no fim de contas, uma imagens a reproduzirem o amor, a forma de combatermos as faísrepresentarem, talvez, o dia mais cas do patriarcado para sermos feliz das suas vidas; se calhar re- autónomas e gerirmos de jeito inpresentam entrega, possessão e dependente as nossas imagens viexclusividade com a mulher ape- tais, atirando-as ao lixo se isso nos nas a completar, sofrer, aturar...foi aprazer ao lado das meias laranentre o lixo que vieram a apare- jas* a ganharem mofo. cer. O fotógrafo Martin Parr retratou com precisão o desgaste do amor e a incomunicação usando do seu particular tom irônico. No seu projeto Bored Couples de 1993 evoca o fastio das refeições mu-

*Meia laranja refere aqui a casais com uma alegada alta compatibilidade. Alma gêmea.

Sabela Iglesias, criativa audiovisual. Artigo publicado no jornal Sermos Galiza em suplemento sobre o amor romântico, fevereiro 2014.

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Martin Parr Bored Couples, 1993

Nan Goldin The Ballad of Sexual Dependency, 1986

Richard Billingham Ray´s A Laugh,2000

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paisagem e

VĂ?TOR VA

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e fotografía

AQUEIRO

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1 Francastel, Pierre. SociologĂ­a del arte. Madrid, Alianza Editorial, 1975 (1970), p. 59

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Ao longo da História da Humanidade, os diversos povos e civilizações tencionaram levar a cabo, com diferentes objetivos e sobre distintos suportes, a descrição gráfica da realidade plural existente no seu arredor. Chegaram até nós, desta maneira, retratos, estampas do trabalho quotidiano, construções utilitárias, cerimônias rituais, desenhos de feras ou de animais domésticos, reproduções de batalhas, imagens da divindade ou gravados de coitos que, procurando exercitar –segundo fosse o caso– um ato de natureza mágica, de louvor social, ou de qualquer outra intencionalidade, tentavam (re)produzir aspectos mais ou menos parciais do que se oferecia aos olhos de quem fazia imagens. As descrições ás que nos referimos, longe de constituírem a definição objetiva da realidade –nem, aliás, serem arbitrarias na sua execução– eram devedoras duns critérios precisos, fixados por fatores sociais definidos pola ideia que do mundo tinha a sociedade, quere dizer-se, pola sua cosmovisão, pola sua ideologia. Assim, a peculiar representação do corpo humano que a civilização egípcia desenvolveu não era a con-sequência da ignorância ou da incapacidade técnica, mas de critérios que tentavam salientar a plenitude frontal do individuo, independentemente do ponto de vista de quem observar e do ângulo com o que se olhasse o modelo. Por isso, em figuras humanas situadas de perfil, os ombros representavam-se, embora, em posição frontal enquanto o olho aparecia de idêntica maneira, obedecendo todos estes aspectos á conhecida lei de frontalidade. Afastada de qual-quer noção de perspectiva, a arte bizantina representava as estaturas dos personagens não em consonância com a altura verdadeira, mas com a sua estatura social, de tal maneira que o im-perador, independentemente da sua altura objetiva (medida em unidades de longitude), devia ostentar sempre o maior tamanho em qualquer cena na que aparecesse ao pé doutras pessoas. A repre-sentação pictórica medieval –de caráter planar e ge-radora de espaços justapostos, correspondentes á vi-são de que todo estava em Deus, toda representação ficava ligada ao dogma de Cristo, o Universo é a con-cretização do pensamento divino, em palavras de Pi-erre Francastel1– resulta varrida polos critérios de perspectivas que emergem com Alberti e o Renascimento e, pola sua vez, Cezanne abria o caminho a outros códigos de representação ba-seando-se, entre outras ideias, na violação do critério de perspectiva. Será a fotografia, a partir do século XIX quem arvore,

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como consequência da sua gênese técnica –a específica natureza das imagens criadas polas lentes– e ideológica –o nascimento num contexto social definido po-la ascensão da burguesia, a Revolução Francesa e a industrial– o critério de representação da perspectiva central renascentista.

no Diccionario enciclopédico gallego-castellano de Eladio Ro-driguez, sem dúvida o que melhor representa, entre todos os galegos, as componentes ideológicas presentes na língua:

El paisaje gallego es tan vario, tan múltiple, tan lleno de bellezas naturales y tan pródi-go en matices, que en el encuentran nuestros pintores campo vastísimo para producir obras de bretemosas (sic) transparencias; (...) románticas; (...) saturadas de ambiente de égloga; (...) rincones de leyenda; (...) y exuberantes de sabor racial.2

As linhas precedentes desejam enquadrar o objeto das que seguem, as quais, pola sua vez, tentarão um achegamento aos critérios –que achamos de natureza ideológica– que acompanharam e seguem a acompanhar a representação da paisagem galega espalhada por meios fotoquímicos, magnéticos ou digitais e que vai destinada a um consumo massivo, no que se prescindiu da imprensa diária. Esta categoria abrange, pois, as imagens fixas que ocupam suplementos dominicais, campanhas de publicidade institucional, feiras turísticas, reportagens digitais e outros âmbitos semelhantes nos que se ache a paisagem e que, baixo a estratégia de salientarem as belezas paradisíacas galegas, inserem-se em publicações escritas, esmagadoramente, em espanhol. Todas elas, justamente por serem basilarmente de natureza comercial, ou destinadas a cumprirem fins propagandísticos, vêm, por regra, definidas pola ausência de juízo crítico, são, em muitas ocasiões, um conjunto de “efeitos especiais” e “artísticos” —imagens movidas ou desfocadas, uso de filtros—. Cumpre dizer também que a ideia de paisagem deveria, ou poderia, abranger o que hoje, notadamente no espaço fotográfico, conhecemos como paisagem urbana. Desbotara-se, porém, este domínio para nos centrar só no que tradicionalmente se tem definido como paisagem, entendida como a extensão do território que se oferece aos nossos olhos num lance, que reflete a natureza na sua realidade botânica, geológica e hídrica e onde a presença humana direta –pessoas– ou indireta –construções– é inexistente ou anedótica. Do nosso ponto de vista, a representação que tradicionalmente se vem fazendo da paisagem galega obedece a critérios que fincam as suas raízes no século XIX e tencionam apresentar uma realidade que se pretende idílica mais que se suspeita –ou se sabe– que não o é. Quer dizer, esta representação constitui um intento duplo de pôr ordem no Caos e, ao tempo, proceder á sua falsificação. Neste sentido, é extraordinariamente reveladora a terminologia empregada no artigo “paisaxe”

O conjunto lexical que apresenta o parágrafo (bretemosas, románticas, égloga, leyenda, racial) situa o texto num (con)texto embrulhado na magia, no romantismo –com a sua carga de sentimentalismo e fantasia– nos territórios bucólicos que nos enviam até a poesia renascentista, ou á do mundo clássico greco-latino, e mesmo numa duvidosa alusão á raça de difícil identificação. É preciso lembrar que, no tempo no que tem lugar a publicação da obra de Eladio Rodríguez (1961), a paisagem galega, no seu conjunto, começara já a ser estragada polos incêndios e invadida por espécies de árvores foráneas que se situam nos antípodas dos soutos, das carvalheiras e dos vidoeirais que sugere o texto. Contudo, o dicionário do que se fala não faz mais que continuar uma tradição que se patenteia com claridade cinco décadas antes em Vida Gallega, onde, teimudamente, se faz referência ao nosso país baixo o apelativo da “Suíça espanhola” terminologia que situa a definição de Galiza em coordenadas alheias: por uma parte, na Suíça, nação tida por paradigma de verdor e, por outra, em referência inevitável –em sintonia com o ponto de vista ideológico de Vida Gallega– a Espanha; pensemos que, mesmo partindo da referência suíça, o nosso país poderia ser definido como “A Suíça atlânti-ca”, “a Suíça do Sul”, “A Suíça do Finis Terrae”, ou outros semelhantes. Porém, a publicação que dirige Jaime Solá prefere sinalar com exatidão ideológica a situação do nosso país dentro do âmbito espanhol. Com diferente –como é natural– focagem ideológica, a Geração Nós teimará nesta visão arcádica do país, na que o camponês e o seu mundo ocupam o centro do universo simbólico. Em honra á verdade, cumpre sinalar que outras geografias europeias e norteamericanas consideram igualmente o camponês como a pedra basilar da sua sociedade, como tem sublinhado com acerto Ian Jeffrey. 3

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2 Rodriguez González, Eladio. Diccionario enciclopédico gallego-castellano. Vigo, Galaxia, 1961, tomo III, p. 68 3 Jeffrey, I. La Fotografia. Una breve historia. Barcelona, Destino, 1999

Segundo se apontou no parágrafo anterior, se atendemos á realidade paisagística galega, olharemos a desfeita por toda a parte. Verão após verão, os incêndios apouvigam o país, mudando massas florestais em superfícies ermas que a ação posterior da água rematará por virar terras de barbeito. Extensões vegetais que um dia acolheram carvalhos, castinheiros, ameneiros ou faias, ficam hoje inçadas de pinheiros ou eucaliptos. A ação insaciável das empresas extrativas –o problema está a aparecer agora mesmo nas terras montesias do Courel– procede á destruição sem trégua. A arquitetura tradicional galega vai-se vendo de vagarinho substituída por construções que quebram tradição e costumes seculares e que, sem satisfazerem tampouco as necessidades, funcionais e estéticas, da contemporaneidade, contribuem eficazmente á devastação. Começam assim a abrolhar engraçadas vivendas familiares com aparência de barracas valencianas e feiticeiras casas tirolesas, imóveis com a fasquia das mansões que Falcom Crest, Dalhas ou Dinastía há algumas décadas propagaram –segundo semelha com sucesso notável– e nas que se adivinha a pegada ruim do narcotráfico, ou moradas com aspecto de castelos medievais, incluídas ameias, que constituem um homicídio arquitetônico. Ao cabo, a emigração primeiro e as baixas taxas de natalidade depois conduziram ao dramático abandono de paróquias e aldeias que hoje semelham terras fantasmais. E, porém, nada do que vai enunciado e que constitui a generalidade da paisagem galega, enuncia-se nas imagens a que se refere o presente texto e que, não obstante, seguem a se reclamar testemunhos verazes, “reais como fotografias”, em contra da conhecida opinião de Franz Kafka. Perante este feito cabe, então –licitamente– perguntar-se o porque desta fugida da realidade em meios que se querem –sem o ser– raivosamente realistas; o porque desta atitude de recuso do majoritário, justamente, numa sociedade que atende, basilarmente, a critérios de ordem quantitativa norteados ao redor do concepto numérico que emerge do sistema parlamentar. Ao contrario, na representação da paisagem galega, na esfera que nos ocupa, só se atua sobre o minoritário, sobre a anedota, sobre os casos que não constituem norma.

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A resposta a este interrogante achamos que deve procurar-se na obriga imperiosa de agachar a dramática (também neste âmbito) face do país, sobre o que se levou a cabo uma agressão, que desembocou num estrago que semelha indispensável não mostrar. Como noutras moitas ocasiões presentes na ação cultural, linguística, política e social, na concretização da realidade galega existe algo que se nega a ser nomeado ao surgirem certas circunstâncias de natureza indizível, irrepresentável. Não somos os primeiros que vivemos esta situação: a representação que de Nova Iorque Wiliam Kleim levou a cabo em 1954 resultou tão inaturável aos olhos das empresas editoriais norte-americanas que o livro New York houve de ser publicado em Paris. Sorte semelhante correu o seu compatriota Robert Frank, em 1958, com a sua obra Les americains. A desculpa dada era, em ambos os dous casos, que o derrotismo, o pessimismo, o niilismo presentes nas duas obras fotográficas era de tal magnitude que mudava a realidade nova-iorquina ou norte-americana irreconhecível. O meu ponto de vista é justamente o contrario: a obra dos dous fotógrafos definia com tal precisão um cenário desapiedado, violento, alienante, miserento e injusto que a sua visão resultava insuportável, paralisante como, se se tratasse da olhada da Gorgona e, portanto, impublicável. Como impublicável e lesivas foram, em muitos territórios, as fotografias de Robert Mapplethorpe. Refletir a realidade paisagística galega implica, no nível econômico, a denuncia dos interesses especulativos que as empresas privadas estão a propiciar de maneira teimuda, bem como a inibição dos poderes políticos. Resulta neste sentido significativo o rejeito radical de diferentes carregos institucionais, galegos e não galegos, a publicarem ou financiarem imagens que mostrem realidades nas que a amargura, a dor, o conflito ou a pobreza se achem presentes, atitude que arrasta trás de si a editores e autores e que contrasta com a publicação profusa de materiais de duvidoso interesse mais que mostram uma situação carente de conflitos. No nível estético, afastar-se dos modelos até o de agora experimentados supõe o risco da elaboração do desconhecido, duma argumentação nova que aprofunde, por pormos um caso, em metáforas visuais de natureza conflituosa já que atingem o território da polissemia e, por tanto, da ambiguidade, questões que gerarão, como o texto poético, pluralidade de leituras e, como consequência, hipóteses de reelaboração de

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William Klein. Gun 1. Do livro New York, 1956

Robert Frank. Car accident. U.S. 66, between Winslow and Flagstaff, Arizona.1956. Do livro Les americains, 1958

Robert Mapplethorpe. Cock & Gun. 1982


discursos críticos. Ás avessas, a insistência na trivialidade, no conhecido, no velho, implica uma ausência de esforço e uma boa dose de comodidade. Decide-se por isso perseverar em mensagens de esclerose, não desacougantes para os diferentes tipos de consumidores, optando pola conveniência de não lutar “contra a vida quotidiana”, por empregar um conhecido verso de Maiakovski, ou por propor a atividade estética da maneira na que o sargento Paine lha fazia saber ao escritor Holly Martins ao começo d’O terceiro home, de Carol Reed: “gosto das novelas que você escreve, porque um pode lê-las e, ao mesmo tempo, seguir pensando nas suas cousas”. Com esta focagem ignora-se uma ideia essencial inerente aos procedimentos dos que estamos a falar: a produção duma imagem, como de qualquer outro texto criativo, deve ser um processo onde agromem não as certezas nem os convencimentos, mas a dúvida, a confrontação e a descoberta. E, justamente, não é com a realização de postais amáveis, nem pos-turas de sol com contraluzes a desenharem cruzeiros como se procura na face oculta que toda realidade proclama desde o seu silencio. Rotundamente especifica-o Elfriede Jelinek: “A paisagem cala amansada no seu dia de repouso nas fotinhas que você merca no estanco” 4. Eis outra consequência da que já tenho falado noutros lugares: a domesticação da paisagem e, como consequência, a conversão do processo estético não em antiestético mas em anestésico. Contra a crença costumeira, cristalizada no conhecido e falaz dito de que “uma imagem importa mais que mil palavras”, a fotografia que (re)presenta (quer dizer que volta a apresentar) a realidade pouco tem a ver com a realidade, a não ser o seu caráter de pegada, de vestígio, de rasto, de sinal. Uma mínima reflexão deveria advertir da dificuldade que oferece a identificação entre uma paisagem –por cingirmo-nos ao tema– com todos os seus matizes –profundidade, qualidades complementares, sons, temperatura– e um conjunto de manchas –não é outra cousa uma fotografia– pousadas numa superfície com base celulósica. Como tem sinalado Philippe Dubois, entre o referente e a sua representação fotográfica existe uma relação semelhante á que se manifesta entre o pé e a sua pegada na areia, ou entre a fogueira e o lume que enxergamos na lonjura, relações que se poderiam qualificar atendendo ao seu cará-ter indicial.5 Ao se por em movimento o processo de representação e produzir-se, inevitavelmente, a cisão entre o objeto e a sua imagem, põe-se em funcionamento, de maneira semelhante, todo um complexo de significados, posto que a representação é, justamente, criadora de significação, e, como tem sinalado Alain Badiou, “o Bem na atividade artística é a invenção de novas formas que portam o significado do mundo” 6 . Deste processo abrolharão diferentes leituras, orientadas em grande parte pola filtragem que a ideologia dominante põe em marcha sem interrupção. Combater esses modelos de representação revela-se como uma tarefa que desvende a opacidade, estética e social, que embrulha sem descanso a nossa contorna.

4 Jelinek, Elfriede. A Ansia. Madrid, Cátedra, 1993, p. 135-6 5 Dubois, Ph. El acto fotográfico. De la Representación a la Recepción. Barcelona, Paidós, 1986, pp. 42-51 6 Badiou, Alain. O retorno do mal. Santiago de Compostela, Noitarenga, 2002, p. 24

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RELATO SILVIA MELLA

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