Caleidoscopica N4

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Caleidoscópicas: Charo Lopes Miguel Auria Pilar Abades Xiana Quintas Design gráfico: Ana Parada Design web: Jesús Rivera Design cabeçalho: Carla Trindade Imagem capa: Versom de Ana Parada da imagem de Miguel Auria Colaboradoras neste número: Roberto de la Torre Sabela Iglesias Lara Rozados Óscar Górriz Alexandre Folgoso David Mella Uxía Treitas X. m. Xespi Paloma Recio Moríñigo Toni Cortés Zeltia Iglesias Elena Agrelo Ergosfera André Taboada Jesús Castro Belén R. Soto Iris G. Merás

Correção ortográfica: André Taboada Contatos: www.caleidoscopica.gal info@caleidoscopica.gal caleidoscopicafotografia caleidoscopica

caleidoscopica.fotografia


01 Editorial 2-3 02 Caleidoscópio 4-45

12 Do íntimo: Água 152-169

Escadas: Miguel Auria A linguagem dos muros: Alexandre Folgoso El Paso: Charo Lopes Caminhos: David Mella Fruto em decomposição: Pilar Abades Z, Vejo o verde a morrer: Uxía Treitas Misérias: X. m. Xespi Cemiterio: Miguel Auria Rosa: David Mella Medrar: Charo Lopes

Pilar Abades

13 Reportagem IV: Attempt 170-189 Toni Cortés

14 Reflexão III: Antibandeiras 190-197 Zeltia Iglesias

15 Reportagem V: Ucraína 4 Trânsitos 198-207

03 Reportagem I: Peregrinações 46-59

Elena Agrelo

Roberto de la Torre

16 Relato III: Monelos 208-211 Charo Lopes

04 Reportagem II: Puerperio 60-73 Iris G. Merás

17 Reportagem VI: Com o urbanismo nos talões 212-223

05 Relato I: Uma viagem 74-79

Ergosfera

Miguel Auria

18 Relato IV: Aquele Mar 224-237

06 Relato II: Trânsito sem Ruptura 80-97

Sabela Iglesias e André Taboada

19 Relato V: Ser água e dar-se em água 238-247

Sabela Iglesias

Jesús Castro

07 Retrato: Não-binário 98-109 Xiana Quintas

20 Reflexão IV: Fotografia Postmortem 248-253

08 Reflexão I: Varda: olhar em trânsito, sem teto nem lei 110-113

Pilar Abades

Lara Rozados

21 Experimental: Fractais: Do onírico ao intangível 254-263

09 Reportagem III: A Insumisa - Zona Temporariamente Autónoma 114-125

Xiana Quintas e Belén R. Soto

22 Nós 264-269

Óscar Górriz

23 Colaboradoras 270-281

10 Entrevista: Black Emma 126-139 Pilar Abades e Charo Lopes

24 Tiras de provas 282-289

11 Reflexão II: Arte de Ação 140-151 Paloma Recio Moríñigo

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TRÂNSITOS O dicionário galego Estraviz incorpora cinco entradas para o substantivo trânsito: (1) Ato ou efeito de transitar, de caminhar. Marcha. (2) Tráfego, passagem de pessoas ou de veículos (3) fig. Passamento, morte.(4) Corredor. Galeria.(5) Faculdade de fazer passar mercadorias através de um Estado ou cidade sem pagar os direitos de estrada.

Com a fotografia pretendemos capturar algo, o inapreensível com as mãos, a cena efémera que as forças dos agentes e o tempo modificam constantemente. Todo é processo, e nessa certeza pusemos o foco. Nas imagens a falar do tempo, mesmo sem respeitar a cronologia, na narrativa não linear, densa, que permite outras associações, digressões. A história também não é progressiva e unidirecional, mas um torrente de águas revoltas e placas tetónicas a moverem-se por vezes. O tempo, a deslocação, a circularidade. As fronteiras são difíceis de retratar. Também as temporais, a mudança de época como um fio de água. A ideia de “avanço” como aproximação a algo melhor é uma fantasia capitalista. O passado inventasse a partir do presente. O futuro é um significante vazio. Transitamos no corredor, na escada, no cais. Nalguns não-lugares, na assepsia das estações. O trânsito na rotação terrestre e no crescimento das plantas. Na morte das pessoas e o parto das lontras. Nos movimentos migratórios, na androginia. No nexo entre alta e baixa cultura ou no passar do público para o privado. No movimento que discorre entre o binarismo falaz e limitador em que é dividido o nosso imaginário. A imagem fixa condensa e congela o fator tempo num único plano, carrega a densidade da história em tantas camadas de significação quanto der lido a pessoa que olha. Observe-se, aqui, a importância da moldura, onde e em relação a que vemos essa imagem. Observe-se aqui a importância das lacunas: a ausência, o segundo plano, as situações não fotografadas, as imagens descartadas. Fazemo-nos algumas perguntas, a capacidade de observação e o sentido crítico têm ligação entre si. Observação e análise, observação e fascinação, observação e indignação. Face à incerteza, construímos um visor, exibimos um relato.

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editorial

Ainda somos devedoras das palavras, apoiamo-nos na razão, mas a imagem abre as portas à perceção para além do logocentrismo, estimulando o poder simbólico e emocional também existe conhecimento, ou quando menos, sensações necessárias. Na constante do movimento; a imagem fixa. O controlo no uso das imagens, mesmo face ao descontrolo na ação de caminhar. Atendemos neste número ao ritmo, sem necessidade de explicá-lo. Tomamos algumas decisões, escrevemos um relato. No número quatro da caleidoscópica: a perceção dos passos. Mas a imagem abre as portas à percepção para além do logocentrismo, estimulando o poder simbólico e emocional também existe conhecimento, ou quando menos, sensações necessárias.

Escuita!

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Escuita!

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Escadas Miguel Auria

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Escuita! 7


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“Os graffitis não querem dizer mais nada do que são, mas muitas vezes são mais do que dizem” Brassaï

A linguagem dos muros Alexandre Folgoso

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El paso

Charo Lopes

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Digitalização de diapositivo comprado em 2016 no Flohmarkt Berlin am Mauer Park

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Caminhos David Mella

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Fruto em decomposição Pilar Abades

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Z, Vejo o verde a morrer UxĂ­a Treitas

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MisĂŠrias

X. m. Xespi

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TRÂNSITO Transitamos o tempo, os e s p a ç o s, as emoções... Amiúde alheios às imprevisíveis variáveis que todo o mudam. Agora adivinham-se bruscas viragens sobre o traçado inicial. Aboia um desejo incontrolável de rachar cadeias ancoradas em obsoletos tratados. Uma frenética necessidade de derrubar tabiques que seguram desgastados projetos. Deixar à luz as nossas misérias, olhá-las de frente e libertarmonos para sempre da emporcada vestimenta riscada.

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Cemiterio Miguel Auria

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Rosa

David Mella

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Medrar

Charo Lopes

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Digitalização de negativos comprados no “rastro” de Leão (2016)

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reportagem I Peregrinaçþes Roberto de la Torre

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Na velha Europa atlântica antes da chegada do cristianismo a morte era considerada a etapa final de um caminho, um outro mundo além do mar e da terra. Marcada por umha existência física de umha fronteira real, a que delimita a nossa envolvência e a natureza das nossas costas, pontos de partida das almas dos mortos. Onde acaba, mas também começa umha peregrinação: do corpo, da alma e do espírito. O fim do mundo.

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reportagem II

Puerperio Iris G. Merรกs

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relato I Uma viagem Miguel Auria

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Capturo manchas de tempo através de espaços fronteiriços que

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discorrem da janela de um comboio em movimento num lapso de

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tempo inferior a um segundo no qual a luz atravessa

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o obturador e desenha num sensor um cรณdigo binรกrio.

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relato II Trânsito sem Ruptura Sabela Iglesias

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O Matodoso, paróquia de Triabá. concelho de Castro de Rei, Terra Chã (Lugo). Povo de colonização durante a ditadura franquista, inaugurado no ano 1968.

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Afeitas à simbología intata. Uma mancha seca e putrefata. Está a clareio a memória cara el sol abrasador para aturar os símbolos sem que nos ardam os olhos e vomitemos a história. Lugares que seguram o tempo às que nascemos tarde.

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Nรฃo-binรกrio Xiana Quintas

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reflexão I Varda: olhar em trânsito, sem teto nem lei Lara Rozados

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No Cineclube de Compostela refletimos sobre cinema e trânsito e comparece a moça de Sans toit ni loi (Sen teito nin lei, 1985), que em novembro de 2011 encetava o ciclo “As desagradecidas”. Programado pela jornalista Xiana Arias, “a patir de duas rupturas com a ordem. As de duas personagens interpretadas por Sandrine Bonnaire. Mona en Sem teto nem lei, de Agnès Varda, e Sophie n’A ceremonia, de Claude Chabrol (…). Está construído, o ciclo, a partir de um ruído que talvez cada quem ouça à maneira dele: o de não sermos agradecidas (…). As ligações estão na exposição da ação não organizada, na exibição do momento de ruptura. Da fenda. Nos filmes de Chabrol ou Haneke nós assistimos ao acontecimento e ao que o precede. Agnés Varda avisa: “Não há juízos feitos nem se impõem um tipo de ideias”. A protagonista clochard de Varda, Mona, serve-nos de epítome para falar deste cinema que avança pela corda frouxa, que nos mostra, através da elipse, o oco ou o silêncio: a fenda.

nar a encontrá-los. A mocidade e beleza da atriz contrapõem-se com a sujidade sobre o seu rosto, o cabelo gorduroso, a roupa rachada: as pegadas do passar do tempo e do caminhar pelo seu corpo. Noutra entrevista, com Luciana Fina em outubro de 92, ao ser questionada com a ideia da peregrinação, a disponibilidade para o movimento, o risco, diz Varda: “eu procuro sempre esse duplo caminho do sentido e da ligeireza, não procuro a mensagem, não procuro o riso, procuro esse pequeno caminho um pouco estreito onde o filme faz o seu sentido mas os momentos são ligeiros, efémeros, feitos de palavras, e pequenos momentos de silêncio, de delicadeza, de pequenos nadas que servem uma ideia geral um pouco maior do que cada instante”. E afirma “A liberdade é o desenvolvimento. Qualquer história se conta em três linhas (…). Portanto a minha liberdade é a liberdade dessa rapariga na estrada, é a minha maneira de contar, de a fazer andar”. Nesta máquina errática que se perde e volve encontrar Mona, nos caminhos que “Para mim Mona não significa a se seguem à toa, na sujidade da liberdade. Significa a rebelião. terra nos rostos, está muito do poPara mim é a pessoa que diz não. der transformador da imagem em Não se sabe lá muito bem para movimento. onde é que ela vai. Para mim, a liberdade tem qualquer cousa de ativo. Mona diz: quero que me deixem em paz. Não busca nada, nem a ideia de liberdade”, disse Varda numa entrevista que lhe fez Fietta Jarque, publicada no El País a 26 de abril de 1986. No filme a câmera segue-a no seu caminhar errático. Mesmo muitas vezes os travellings perdem os passos de Mona para depois tor-

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Nos camiños que se collen ao chou, na sucidade da terra nos rostros, está moito do poder transformador da imaxe en movemento

Catálogo da exposição e ciclo Agnès Varda. Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1993. Blog do Cineclube de Compostela: http://cineclubedecompostela.worpress.com

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reportagem III A Insumisa - Zona Temporariamente Autรณnoma ร scar Gรณrriz

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Esta série não acabou e vai ficar sem acabar. Inacabada “sempre”, um termo que semelha inapropriado quando pensamos nos espaços dos Comuns Autogeridos. A Insumisa só existiu temporariamente, mas nem por isso foi efémera: as imagens que projetei com calma, mas publiquei apressadamente, servem para deixar uma memória que quantas mais vezes for lembrada, melhor. A memória é, nestes casos, a vitória face à perda. Os Comuns precisamos dela para podermos inspirar novas formas de resistência face à expropriação de liberdades por parte do Estado. Se calhar, a luta assenta em melhorar as tecnologias de resistência para manter o pulso. Se calhar, mantermos essa luta e reconhecermo-nos no tempo é já uma vitória, sempre. Na prática, fomos crianças a brincarmos. Vivas, livres e divertidas. Políticas. Temporariamente autónomas.

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entrevista Black Emma

Texto: Charo Lopes Imagens: Pilar Abades

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Anabel Varela, cozinheira anarquista: “introduzir o veganismo no rural é um trânsito necessário” Desde há algum tempo que os âmbitos das tradicionais “belas artes” estão a ser ultrapassados por práticas criativas que ampliam e redefinem o lugar do artístico. Especialmente interessantes enquanto alavancas para os “trânsitos” e os processos de transformação social são estes novos espaços, que hoje em dia fazem com que reconhecidos museus tenham nos seus fundos uma coleção de videojogos, ou reputados cozinheiros participem em mostras internacionais de arte contemporânea. Black Emma apresenta-se na rede como sendo um projeto de cozinha vegana, ecológica e artesã feita na Galiza rural. E achegamo-nos à sua base de operações, numa grande casa tradicional em Germade, na Terra Chã. Uma égua selvagem olha para nós ao pé do sendeiro que leva à vivenda. Gabriel ceifa erva com a gadanha. Seis cães latem ao nos verem chegar Anabel sorri e abraçamo-nos. Ela é o rosto por trás deste delicioso projeto, eis a cozinheira anarquista. Mostra-nos os seus ingredientes com orgulho, sentamos no prado, entramos na casa, prepara massa para empada, e paramos a falar na sala de estar; não há televisão, mas estantes com livros em diferentes idiomas: teoria política, história, sociologia e muitas receitas.

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Vemos nas redes sociais que fazes alimentos a partir de massa-mãe como diferentes pães, empadas e doçaria vegana. E também processados, em conservas e fermentados como o chucrute e tempeh. Sim, parece magia como a transformação dum alimento pode potenciar as suas propriedades, como no caso dum repolo, que apenas com sal e deixando passar o tempo, se converte em chucrute, um produto mais nutritivo. E é uma elaboração ancestral, um método de conserva tradicional, como acontece com os vinagres e outros fermentos. O uso de massa-mãe é outro exemplo, e com o tempo vai tornando o pão mais saboroso; a minha tem três anos. Aqui já havia tradição do pão de fermento, e ademais era comunitário, passava-se o anaco de massa duma casa para outra, segundo fossem cozendo. E a saber quantos anos chegava a ter. A tua produção é autogerida, a maioria dos ingredientes produzidos na tua casa, os alimentos elaborados no teu obradoiro, e os produtos finais distribuídos em venda direta em mercados locais. Assim é, comecei há quatro anos, antes trabalhava em hotelaria convencional como cozinheira, mas não podia continuar a trabalhar assim, aquilo era terrível, e foi o caminho que encontrei, com a intenção de procurar um meio para ganhar a vida de forma coerente com os meus princípios políticos e éticos. A indústria alimentar hegemónica também está a incorporar muitas alternativas veganas.

Sim, a dia de hoje é um movimento que está a ter muita popularização, e o capitalismo tem capacidade para o absorver. Para mim é conflituoso, sabes que responde apenas a interesses económicos, mas independentemente disso, se esta mudança implicar que se salvem alguns dos milhares de bilhões de animais que se matam anualmente para consumo cárnico, penso que já terá algo de bom. A nível ambiental também é precisa a mudança, praticamente o 40 % do efeito de estufa é provocado pelo gás metano dos animais de gado. O atual modelo é insustentável. Como foi o processo de fazer-te vegana? Eu já em criança, dunha maneira intuitiva, recusei-me a comer carne e era uma guerra na minha casa. Até aos 18 anos não me decidi, e lembro-me do dia que tomei essa decisão como um dia feliz. Depois disso chegaram os obradoiros de cozinha. Quando resolves virar vegano tens é que te formar, até porque o veganismo não faz parte da nossa cultura. E queres que funcione, para estares bem alimentada... disto há 20 anos, tinha 19 anos, e não havia tanta informação como agora, nem usava Internet. Havia era aulas de cozinha em centros sociais. E como é que vês o processo de mudança cara a isso, como é que avalias a dificuldade de introduzir o veganismo no rural galego? Vejo-a como um trânsito necessário. Às vezes é na cidade que encontro mais rejeição, de pessoas que julga estares a corromper qualquer cousa, um símbolo, ao falar contra a gadaria, como se fosse menos galega, mas que é insustentável a nível planetário, não são

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apenas ecologistas e veganas que o afirmam, também a FAO tem alertado para isso. Na aldeia, quando metes conversa com quem se dedica a isso, há mais compreensão, sabe-se que é um trabalho embrutecedor, que depende de subsídios e políticas alheias, que não se consegue enxergar um futuro certo... cumpre uma transformação. Poderia o veganismo vir a achegar futuro ao rural? Com certeza, o veganismo oferece futuro no rural a nível económico, alimentar e ecológico. Se abandonamos a agricultura animal e começamos a trabalhar em recuperar as plantações de cereais como o trigo ancestral galego, o centeio, a cebada, o milho corvo… E legumes como a soja, que ainda que não foi um cultivo tradicional na Galiza, dá-se bem; nós já o experimentámos! Acho que este é o único caminho que temos se queremos reverter a mudança climática, o abandono do rural por falta de oportunidades e a perda de fauna e floresta silvestres. A maioria das plantações destinam-se para alimentação animal, mas se for para consumo humano, poderá haver muito mais potencial económico e alimentar… Mas como é que chega essa informação aos paisanos? É muito difícil, e Meio Rural da Junta não o vai facilitar. E a nível cultural, como poderia transitar-se para outro modelo, a partir da normalização do consumo de carne na nossa dieta? O consumo que se faz atualmente de carne no Ocidente também não é tradicional, agora mesmo a indústria normalizou um sobreconsumo de carne como nunca se tinha dado. Requer de um esforço, sim. Se estás a pensar em deixar de comer carne, parece que imaginas um prato de bife com batatas e salada, e o que vês é desaparecer o bife, mas, claro, isso não chega para estares bem alimentada. Entom, exige criatividade. Tens que inventar uma cozinha, tens que repensar a forma de comer, tens que mudar por completo. A cozinha vegana é muito mais rica e variada da cozinha convencional que conhecia eu. E o reino vegetal é incrível, apenas comemos uma pequena percentagem dos milhares de espécies comestíveis.

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O veganismo é uma oportunidade, poderia oferecer um grande futuro ao rural galego. Há cada vez mais procura de produtos veganos


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Tens que inventar uma cozinha, tens que repensar a forma de comer, tens que mudar por completo. A cozinha vegana é muito mais rica e variada do que a cozinha convencional que conhecia eu

Na alta cozinha contemporânea há pratos impressionantes. Há emoções, provando um alimento podemos viajar, trasladar-nos a outro momento vital, a outros países...

É essa criatividade a ligação com o artístico? Há muito de criativo num projeto integral, como o processo de chegar a esta casa, sentarmos Gabriel e mais eu, termos o mapa do terreno, desenhar, dividir os espaços, fazer os caminhos... pensarmos onde colocar estas plantações, aqui estas flores... o sítio para os animais. Essa rastreabilidade toda vejo-a como um trabalho artesanal com que desfruto imenso. Na minha elaboração concreta, centro-me mais na técnica. Considero-me artesã, gosto de começar do zero, dominar a técnica, controlar as receitas, ter a informação nutricional, trabalhar todo. Levo dous anos enlouquecida com a fermentação, interessa-me dominar esses processos, e é o que mais tempo me consome.. os alimentos são fungíveis, consomem-se e desaparecem. Mas também há arte efémera Por suposto, claro que a cozinha pode ser artística, há uma intencionalidade, há uma vontade estética, especialmente na alta cozinha contemporânea há pratos impressionantes. Há emoções, provando um alimento podemos viajar, trasladar-nos a outro momento vital, a outros países... Mas eu, nesse sentido sou humilde, acho estranha essa autodefinição de artista, quando estou na cozinha sinto-me artesã.

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reflexão II Arte de Ação

Paloma Recio Moríñigo

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Fotografia: Paloma Recio Moríñigo Alba González Homenaje a Joseph Beuys. Residência artística de AcciónMad, Astúrias. 2018

ARTE DE AÇÃO - O PERCURSO DE UM CORPO ENQUADRADO Quando falamos em arte de ação estamos a referir-nos a todas aquelas práticas artísticas que valorizam a ação in loco, que podem ser apreciadas no mesmo momento em que se estão a realizar. A presença do artista, o tempo e o espaço que ocupa são os três pilares principais. O tempo que dura o acontecimento é o que enquadra a obra, o corpo, o sucesso e o instante fazem com que virem rapidamente consumíveis, e mesmo que a ação possa deixar pegadas e documentação, o único que se considera obra, é a própria ação e não as várias partes de que pode ser composta. A partir de uma perspetiva enquanto artista desta prática, poderia dizer que a arte de ação é efetuada como um mecanismo para retorcer as ideias e desviá-las daquilo que é habitual, para se criarem situações novas, com a razão de somar para o quotidiano, de olhar e ser observado, desconcertar e enganar o dia-a-dia.

A arte de ação é efetuada como um mecanismo para retorcer as ideias e desviá-las daquilo que é habitual

Tratar da quotidianeidade torna-se uma espécie de artimanha. Que cada uma das pessoas que compõem esse espaço, nesse tempo determinado estejam aí, implica que tenham tido de ocorrer determinados acontecimentos e rotinas nas suas respetivas vidas, de que cada um trata a diferentes velocidades, tudo isso faz com que tropecem com um indivíduo que os interrompe na sua forma de olhar e essa pessoa pode ser mesmo um artista de ação. Nas teorias de Artaud também descobrimos essas referências, entre as quais propõe um conceito geral como modo de protesto contra a ideia de separar a cultura da vida, um dos motivos principais de que esta separación tivesse acontecdo é ter-lhes dado um nome por separado - Cultura / vida. Para Artaud (1986) há um estranho paralelismo entre o afundimento generalizado da vida, base da desmoralização atual, e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida, e que, na verdade, a tiraniza 1 . Dar vida às ideias, é compreender que a criatividade é válida e capaz num formato vivo e encontramos esta característica pensando que o ser individual tem pensamentos e ideias válidas que podem ganhar vida e introduzirem-se no quotidiano, mesmo no trânsito dos demais. 1

ARTAUD, A. El teatro y su doble. Edhasa, 1986. p. 9. 144


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Os conteúdos que manifesta o corpo do artista cumprem as súas necessidades e inquietações, e estes, são também postos a julgar pelo público desde o corpo. A ação pode ser vista como uma janela metafórica na qual, como espetador, é possível perceber alguma coisa que tenhamos sentido, pensado ou imaginado alguma vez, isto é um exemplo que pode abrir um vínculo afetivo ao espetador com a arte da ação desde o risco, por “desvendar” nuances de intimidade em que o espetador pode sentir-se ou não, refletido. Richard Martel (Martel, 2004) nombra esta intimidade, a privacidade, a publicidade (o público), como un conteúdo que rompe com o quotidiano e com o passar contínuo do tempo no espaço: “Favorece-se a intimidade porque o corpo presente utiliza os dados do próprio corpo, nas secreções, o delírio ou a atitude nihilista, por exemplo. A intimidade é aquela zona do tabú em que o público encontra a sua oposição potencial […]. O facto de incluir gestos de ações íntimas num contexto público quebranta os usos e as normas; ocorre então uma posta em causa do valor e dos condicionamentos.” 2 Entendendo a intimidade deste ponto de vista, a partir da posição em que o corpo utiliza os dados que conhece do próprio corpo, podemos colocá-la aqui em relação com a noção de improvisação em ação de uma ideia, quer dizer, podemos intuir daqui, que há situações em ação que podem ser resolvidas a partir da intimidade, a improvisação recolhe esses dados. Em qualquer caso, podemos compreendê-lo como sendo a sucessiva extensão do artista, com a possibilidade de improvisar a partir da sua intimidade, por isso é que a arte em ação se destingue doutras disciplinas e ganha outro valor percetivo no que respeita à obra de arte. Isto decorre da imediatez e da capacidade de adaptação a qualquer circunstância, ou ainda, de acolher os vários imprevistos que se originem in loco, dando molde a estes a partir daquilo que já conhece, a partir da própria intimidade. 2

MARTEL, R. Arte Acción I. Valencia: Ivam, 2004. p. 33

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A ação pode ser vista como uma janela metafórica na qual, como espetador, é possível perceber alguma coisa que tenhamos sentido, pensado ou imaginado alguma vez


Martel explica a composição geral do discurso e exibição na arte de ação. O íntimo, o privado e o público criam hierarquias e vários níveis que compõem o espaço no momento da ação. A curiosidade do íntimo é o que mais penetra no público, introduz-se nos seus corpos até porque interrompe o seu conforto e as suas regras. Por outro lado, depois de uma procura nas bases históricas da arte de ação e nas suas influências das vanguardas até aos seus antecentes mais próximos como Fluxus, o Happening, intermédia ou o acionismo vienense, na maior parte dos casos aquilo que se procura é um contexto relacionado com uma sociedade mais próxima da rua do que da instituição. É a necessidade de experimentação com os vários espaços que não possam ser controlados de uma forma tão evidente e normativa como o museu. Pôr em causa o local e a adaptação ao contexto é um dos princiapis elementos da construção de uma ação, mesmo da construção do próprio artista em situação, isto pode provocar a transformação do acontecimento a partir dos elementos externos que se sobrepõem ao corpo e à atitude que se assume ao respeito. Nos começos do Happening e sob o olhar de Jodorowski fazia mais sentido escapar à interpretação para ir ao encontro de ideias criativas a partir do próprio corpo em contextos não artísticos. “Me pregunté: ¿sería posible que el teatro prescindiera de los acto-

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res? ¿Y por qué no del público? El edificio del teatro me pareció limitado, inútil, anticuado. Se podía crear un espectáculo en cualquier sitio, en un autobús, en un cementerio, en un árbol. Interpretar un personaje era inútil. El actuante -no actor- no debía darse en espectáculo para escapar de sí, si no para restablecer el contacto con el misterio interior”. (Jodorowski, 2004)3 3

JODOROWSKI, A. La danza de la realidad. Siruela, 2004. p. 203.

A curiosidade do íntimo é o que mais penetra no público, introduz-se nos seus corpos até porque interrompe o seu conforto e as suas regras

BIBLIOGRAFIA ARTAUD, A. El teatro y su doble. Edhasa, 1986. BAENA, F. Arte de Acción en España. Análisis y tipologías (1991 – 2011). Universidad de Granada. 2013. FISCHER-LICHTE, E. Estética de lo performativo. Abada Edito-

res. 2011. GOLBERG, R. Performance Art. Barcelona: Destino, 1996. JODOROWSKI, A. La danza de la realidad. Madrid: Siruela, 2001. MARTEL, R. Arte Acción I. Valencia: Ivam, 2004.

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Gangurru

Pablo Prado e Pilar Abades

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do íntimo Água

Pilar Abades

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Uma história de morte, de dolo e de vida

O 10 de março de 1989 um grupo de cinco pessoas assaltou o Banco de Espanha em Praterias e disparou aos guardas civis que custodiavam a sucursal. Eu, que estava a brincar no salão, recebi a notícia ao mesmo tempo que ela.. “Carmen, mataram o Tino.” Lembro o sofá de três lugares, a galeria que dava ao pátio trás de mim e aquelas duas mulheres fora de si, a gritarem e a chorarem. A gritarem. No primeiro piso umas mãos cuidarem de mim diante de uma mesa de formica azul de uma cozinha escura. Meus pais, que viram a notícia na televisão, acudiram a recolher-me. Na volta a casa e durante dias não fui capaz de falar. Nem tão sequer ao atravessar o rio Ulha consegui dizer a palavra Água.

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As pessoas comuns como nós não saem na televisão. As pessoas comuns como nós não saem na televisão. As pessoas comuns como nós não saem na televisão E pela primeira vez em min, o medo.

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Desde então a morte agochou-se sob a cama, nos veios da madeira e no faiado da casa. A casa com o som da máquina de coser enquanto todas dormiam e ali, no mesmo local dos sonhos, a morte trágica da mãe protetora noite após noite.

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Jogar às escondidas, dormir sozinha, as máscaras do entrudo e a noite de São João eram lêvedo para os meus pesadelos e depois de uma “cacharela” vi-me a caminhar pelo agro a fugir de alguém. Ao olhar para trás a terra abria-se e as árvores retorciam-se como serpes a emitirem um som tão fino e agudo que continua a me assaltar e paralisar.

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Durante muito tempo sofro de insónia e com uma máquina compacta analógica começo a fotografar os espaços que habito como um presente que a criança que já fui faz à mulher adulta que sou. Através dos disparos arrumo os medos da infância entre as pedras das velhas paredes.

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E a morte outra vez. Meu avô cai para sempre sobre a terra que acaba de lavrar diante da casa um mês de abril. Quando ajudei a limpar a pele e a tirar-lhe a roupa experimentei pela primeira vez o verdadeiro significado da carne, vísceras e amor. Foi assim, com a verdadeira morte entre as mãos que me senti mais viva que nunca.

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reportagem IV

Attempt

Toni CortĂŠs

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Como ponto de partida escolho como guia o livro do filósofo e antrópologo francês Marc Augé chamado “Los no lugares, espacios del anonimato” escrito no ano 1993. O livro em causa fala sobre um vasto leque de locais que a Pós-modernidade criou e constatou como sendo espaços em trânsito, sítios de passagem para as pessoas tais como estações de comboio, aeroportos, vias rápidas, áreas de lazer, centros comerciais… localizações onde as pessoas devem passar algum tempo, o que faz com que estes locais permaneçam “habitados” a maior parte do tempo, mas há sempre uma faixa temporária de tempo, por pequena que ela for, em que permanecem vazios.

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reflexรฃo III Antibandeiras Zeltia Iglesias

Menciรณn de honra do Xuventude Crea 2018

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As Antibandeiras são propostas gráficas alternativas criadas para questionar a simbologia e importância das bandeiras territoriais oficiais, entendendo estas como imagens aleatórias, controladoras e geradoras de ordem social e identitária. Mediante a reivindicação destas propostas como símbolos representativos igual de legítimos que os oficiais, este projeto pretende desvalorizar e ridicularizar o significado destes últimos na sociedade, pondo ainda em causa as fronteiras atuais.

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Elena Agrelo

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reportagem V

Ucraína 4 Trânsitos


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relato III Monelos

Charo Lopes

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Não aprendemos a ler nas ondas da água. Por debaixo do Martinete, Someso, do Birloque, do Polígono de Elvinha, Monelos, da Cubela e da Gaiteira há sepultado um rio. Angeles Huerta fez um documentário. Esquecemos quase tudo.

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reportagem VI Com o urbanismo nos talĂľes Ergosfera

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A maior parte das pessoas vivemos em casas e bairros sobre os quais não existe uma ameaça direta e planificada de transformação urbanística, mas os planos gerais de ordenamento municipal estão sempre a incorporar âmbitos de transformação que acabam por atingir locais habitados e que envolvem o deslocamento forçado de quem os habita. Se bem que durante os períodos expansivos, esta era a causa por trás deste tipo de movimentos involuntários, cada vez é mais comum que diferentes âmbitos das cidades sofram dalgum tipo de processo de expulsão cidadã. Processos que resultam na substituição das populações residentes num determinado território ou na transformação radical das suas condições de vida com base em planos ou processos urbanísticos (mormente, imobiliários) nos quais quase nunca participam na altura da sua conceção. Nos últimos anos tem vindo a configurar-se um contexto socioeconómico em que a pressão sobre a vizinhança urbana se articula através de três processos claramente diferenciados: a gentrificação, a turistificação e as operações de desenvolvimento ou

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transformação urbanística. Cada cidade pode ou não experimentar estes processos com distintas intensidades, origens e âmbitos de influências, mas as suas consequências (sempre nos dous primeiros casos e frequentemente, no terceiro) acabam por ser as mesmas: substituição duns ecossistemas humanos e não humanos mais ou menos arraigados num local por outros novos, sempre a partir de uma lógica do poder político e económico e, mesmo que usando de vias legais, quase nunca visando a justiça social que esse mesmo sistema legislativo deveria de garantir numa democracia.

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relato IV Aquele Mar

Sabela Iglesias e AndrĂŠ Taboada

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“Se halla situada al sur de la prov. y en los confines con Portugal. Reinan todos los vientos: el clima es templado, pero á consecuencia de las humedades producidas por los r. y regatos, y especialmente por las emanaciones de la Laguna de Antela ó de Limia, es poco saludable en casi todo el part., donde a pesar de la benignidad del temperamento, la buena calidad de los alimentos, y la robustez de los habitantes unida á su vida sobria y activa, son harto comunes la gota, paralisis, reuma, hidropesia, fiebres pútridas, y las intermitentes, las cuales adquieren cierto grado de malignidad y pertinacia.” Diccionario Geográfico-Estadístico-Histórico de España y sus Posesiones de Ultramar por Pascual Madoz – 1847 “Nos tempos d’antes, os vecinhos de por eiqui subiam deica o Larouco pra ver o mar, eu só fum de rapaz porque logo claro, quitárono, mas prá gentinha, daquela, ve-lo lá estava na veiga da Antela” Benito Galiña, Tixós (baltar) lavrador, 55 anos (1992) Fonte: Antela. A Memoria Asolagada. Martínez Carneiro X.L. Ed. Xerais 1997

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Benito Galiña, claro, via o mar. Benito Galiña mais não tinha do que cobrir os 3 km que separavam o seu Tixós da varanda que sobre a chaira da Límia desenhavam, e desenham, os montes de Baltar, pois lá no fundo, espetado entre a serra de São Mamede (1616 metros) a norte, Junqueira d’Ambia a oeste e Sarreaus e Ginzo a Oeste, lá no fundo estava o nosso mar. Um mar minguante no verão e pletórico no inverno, ei-la nossa maré sazonal. 7 km de comprimento por 6 km de largo. Em Congostro, perto de onde finda a nossa chaira e 14 km a jusante da Lagoa, ainda há quem diga “que boa maré vai!”, e se o nosso mar tivesse sido algures mais grande?

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A Benito Galiña foi em Madrid que lhe tiraram o mar. Em vingança da decisão de 27 de dezembro de 1956, a Límia seique chorou o inverno todo e só em 1958 é que as máquinas puderam começar a “sanear” o “pestilente charco”, o “pestilente charco” que ora dava cama ao gado, ora pasto, ora terrenos de cultivo bem regados polos inúmeros regatos que desaguavam nele.

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De Tixós talvez não se conseguisse enxergar, mas as vacas e bois pasciam às centenas; não havia verão que não deixasse erva fresca onde antes, na maré da invernia, mandara a água. Aquele “pestilente charco” teimava em dar de comer aos animais e também às pessoas. Para além da “lendária” Antioquia, tínhamos nas beiras da Límia, prova arqueológica da existência de umas construções palafíticas que o estudoso Rivas Quintas coloca como sendo os “povos mais antigos” da Límia, tanto de um lado quanto do outro da Lagoa; 58 palafitos em Cortegada, a leste, e 56 e 36 em Cardeita e Zadagós. No entender de Conde Valvís, que investigara os vestígios, remontariam a 2000 anos

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antes da nossa era. Bem demorariam ainda os romanos em encetar a teima de nos tirar a Lagoa. Contudo, não conseguiram, como não conseguiram os sucessivos governos e particulares (sob concessão) que o tentaram ao longo do XIX depois de anos de literatura pretensamente racionalista a recomendar o saneamento. Como deixava dito Madoz, não valia “la buena calidad de los alimentos” e “robustez de los habitantes” se aquilo deixava um rasto de “gota, parálisis, reuma, hidropesia…” e demais doenças que quem cá isto escreve não consegue quantificar.

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Só cento e dez anos depois daquela descrição, confesse-se, curiosa, de Madoz, e só no contexto repressivo de um estado totalitário que controlava mão de ferro quer a política económica, quer a vontade pública, é que conseguiram tirar-nos o mar com nota promissória de uma aldeia antelã chantada no meio dos terrenos, terrenos ainda para forragens, seique não serviam os que, em vida da Lagoa, alimentaram os bois de maior tamanho do País, e outra multiplicidade de aproveitamentos que hoje resumimos em campos de trigo e

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batata, um hipódromo que sustenta a repentina vocação limiã pelo desporto equino, aviários e mais aviários, alguma área recreativa de sinalética chumbada e futuro também chumbado se é que já teve passado e, ao lado dela, uma estrada a gretar.

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Aproveitamentos todos presenteados com a cheia anual com que a Lagoa cobra a portagem de a terem silenciado. É na invernia que desborda a água verdosa, calma, domada com que discorre a caminho do Límia, a Lagoa; e de Tixós, ou lá de cima do Larouco, das Torres do Castro e de Pena ou do São Bieito de Uzeira, consegue-se, novamente, enxergar o mar que roubaram a Benito Galiña, que nos roubaram.

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relato V Ser água e dar-se em água Jesús Castro

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Este trabalho é uma alteração a um poema “Ultramarino” (Chan da Pólvora, 2017), livro conformado por poemas e cianotipos.

Nesta série as imagens vão e vêm, reconvertem-se e deformam-se as umas com as outras ao entrarem em contato; e, ao mesmo tempo, geram espaços livres e elipses no seu trânsito: não são imagens interessadas no poder, mas em relacionarem-se. Imagens será o termo usado tanto para os recortes de fotogramas de vídeo (impressos, recortados à mão e posteriormente digitalizados) quanto para as palavras, pois ambas as duas partes operam aqui do mesmo modo: indo e vindo de um lado para o outro, também do analógico para o digital, sem desejar nunca uma linearidade, nem sequer chegar a qualquer local.

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reflexĂŁo IV Fotografia postmortem Pilar Abades

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Fotografia postmorten Memento mori Aquilo que uma sociedade fotografa, a frequência em que o faz, a forma como aponta a máquina e como mostra as imagens serve para definir e construir o imaginário em que assenta. Com a popularização das máquinas domésticas e, sobretudo, com a chegada do digital estamos a nos definir como a sociedade do presente eterno, não importando mais as lembranças que deixarmos para o futuro, mas o eu cá estou ou o eu estou a fazer como constituindo uma forma de celebrarmos uma vida frívola e afastada da velhice. Mostrando-nos assim, e depois de uma camada de maquiagem, cirurgias e filtros, não admira que muitas práticas relacionadas com a morte fossem empurradas para fora do lar e colocadas nas periferias das vilas e outras chegassem mesmo a desaparecer, como é o caso dos retratos postmortem, presentes em todo o mundo desde pouco depois da invenção da fotografia. O principal motivo pelo qual se faziam era poder obter um único e último retrato da pessoa que morria e, para além do romantismo de que se costumava vestir nalguns locais do mundo, na Galiza, em particular, permaneceu muito vinculada aos processos migratórios e à partilha de heranças. A fotografia funcionava como um documento que, enviado aos familiares, dava fé de que a pessoas tinha, realmente, falecido, e de que fora despedida como correspondia. Deste modo podiam começar a partilha dos bens entre os seus descendentes. Nalguns outros casos de fotografias postmortem o cadáver passava para um segundo plano com os vivos a virarem os verdadeiros protagonistas do retrato e a deixarem pegada da sua participação ativa na despedida de um elemento da comunidade.

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A fotografia postmorten na Galiza esteve muito vinculada aos processos migratórios e à partilha de heranças


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É fácil entender que este tipo de fotografia-documento tivesse desaparecido como prática habitual com os fins concretos que tinham no país, mas devemos salientar como chegou a ficar esquecida e recusada mesmo nas mentes dos mais velhos que se tinham servido dela. Na verdade, não faz muita diferença entre colocar o cadáver da melhor forma possível diante da máquina e a forma como hoje ostentamos flores e ataúde atrás do vidro dos velórios. Simplesmente assenta no ato fotográfico o perverso e lúgubre porque no passo pela vida e na sua celebração não há espaço para a morte, descartamo-la e desnaturalizamo-la através de processos sanitários e burocráticos. Tanto é assim que na montra do presente se uma pessoa falece, os seus perfis continuam ativos com os seus murais, como se fossem zombies, a se atualizarem.

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Assenta no ato fotográfico o perverso e lúgubre porque no passo pela vida e na sua celebração não há espaço para a morte

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Experimental Fractais: Do onírico ao intangível Xiana Quintas e Belén R. Soto

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Fractais: do onírico para o intangível Este projeto tem origem na necessidade de representar uma caveira de golfinho como o monstro dum sonho recorrente da minha infância; da paixão pelo infinito e as matemáticas.

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TRANSITANDO ENTRE GEOMETRIAS A Geometria é aquela parte das Matemáticas que estuda o espaço e as formas e figuras que podem ocupá-lo. O termo geometria empregou-se, até bem entrado o século XIX, para designar a geometria descrita nos Elementos de Euclides. Ora bem, foi nesse século que também se desenvolveram outras geometrias alternativas, derivadas do incumprimento do quinto postulado de Euclides. A geometria euclidiana satisfaz cinco postulados; o último parece menos óbvio do que os outros quatro e, ao tentar reduzi-lo ao absurdo, surgem duas geometrias novas: a geometria elíptica ou de Riemann ou a geometria hiperbólica ou de Lobachevski. Um mosaico mais não é do que um modo de cobrirmos o espaço, de molde a evitar que as figuras que o conformam não se solapem nem deixem ocos entre elas. Na geometria euclidiana podem-se construir mosaicos de polígonos regulares só se o número de lados de cada polígono, p, e o número de polígonos que se encontram em cada canto, q, satisfazem a seguinte relação: (p-2)· (q-2) = 4 1. Ora bem, em geometria hiperbólica, um mosaico feito com base em polígonos hiperbólicos regulares com p lados, ao ser o somatório dos ângulos de um triângulo inferior a 180º, pode ser construído sempre que a relação satisfizer (p-2) · (q-2) > 2. De resto, um mosaico inserido dentro da geometria euclidiana não impõe qualquer restrição de tamanho aos polígonos que o conformam; em geometria hiperbólica a dimensão dos mesmos decorre dos parâmetros p e q. As seguintes imagens mostram cinco possibilidades que a geometria hiperbólica oferece na tesselação construída a partir de uma só fotografia, com parâmetros {p,q} = {3,7}, {3,∞}, {4,6}, {6,4}, {7, ∞} 2. 1 2

Esta equação tem três raízes, {p,q}: {3,6}, {4,4}, {6,3}. Esta equação tem inúmeras soluções. {4,4}, {6,3}.

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{p,q} = {3, 7}

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{p,q} = {4, 6}

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{p,q} = {6, 4}

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{p,q} = {3, ∞}

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{p,q} = {7, ∞} Em Física discute-se se a forma do universo é euclidiana, elíptica ou hiperbólica. Referências: - http://www.malinc.se/math/noneuclidean/poincaretilingen.php - http://www.malinc.se/m/ImageTiling.php 263


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David Mella Situo-me numa linha de criação artesanal que me achegue sensações para saborear o processo lento das máquinas antigas e o laboratório analógico. Fujo ao imediato, ao fugaz e no caminho procuro aprender mais e mais para melhor perceber o mundo em que pouso o olhar.

Alexandre Folgoso (Ginzo de Limia, 1996) é um fotógrafo graduado em Línguas Estrangeiras. Nado no capitalismo da imagem, acredita nos sais de prata do negativo como revolta contra os procedimentos digitais que simplificam a capacidade expressiva e poética do meio fotográfico. A sua obra foi publicada em vários portais digitais e acaba de inaugurar a primeira exposição individual do seu trabalho no espaço Peluq-art (em Vigo do 17 de novembro ao 25 de janeiro)

http://davidmella.es/

negralente.tumblr.com

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X.m. Xespi Sou X.m. Xespi. Aficionado à fotografia e às composições verbais que emocionam. Escrevo alguns textos curtos que numa alta percentagem têm origem em imagens que previamente capturo com o objetivo da minha máquina. O resultado desse binómio serve-me para refletir sobre o mundo no qual vivo e ao mesmo tempo para descobrir-me e afundar em mim mesmo.

Uxía Treitas Graduei-me este ano em belas artes, moro em Madrid e sempre que posso volto à Galiza para respirar. O meu interesse pela fotografia começou quando era muito pequena; com a máquina analógica que tínhamos em casa comecei a explorar este mundo até hoje, que sou incapaz de viajar sem uma máquina comigo. Com uma preferência sobre a fotografia analógica, tento mostrar a beleza da paisagem galega ao mesmo tempo que defendo os seus direitos.

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Roberto de la Torre (Vigo 1978) Tendo nascido na cidade de Vigo, a minha existência ficou, no entanto, marcada por me ter criado numa aldeia rural tradicional. Foi neste espaço que acabei por perceber os costumes e os “fazeres” da sociedade que nos deu sentido como povo. Comecei a fotografar por necessidade de comunicar com o mundo, de documentar o microcosmos dos homens e mulheres da Galiza. Os mitos, as crenças, a cultura popular, eis os alicerces do meu trabalho fotográfico. Retratos de um fóssil vivente do passado, que dá sentido ao nosso futuro.

Sou Sabela Iglesias, nasci em Xanceda na primavera de 1987. Sou comunicadora e criativa audiovisual. Emprego a máquina para contar através da fotografia, da colagem e do vídeo. Interesso-me com as olhadas, a perceção, os imaginários e o poder criativo e transformador da linguagem visual. Atualmente habito a produtora audiovisual Illa Bufarda, um local que me enche de aprendizagens e satisfações.

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Iris G. Merás (Oviedo, 1979) é licenciada em Psicologia. Obteve vários prémios e reconhecimentos pelas suas imagens. Nelas deparamos com o amor, a dor e uma especial atenção para os valores humanos tidos por “tradicionalmente femininos” bem como para a incorporação da fotografia dentro da fotografia. O seu trabalho pode ver-se em www. irisgmeras.com Atualmente investiga a utilização da fotografia no tratamento da depressão. É com base nessa questão que a Iris alimenta o blog https:// psicofoto.wordpress.com

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Lara Rozados (Poio, 1982) cursou Jornalismo e 14 anos depois obteve o doutoramento em Literatura. Trabalhou, entretanto, para meios como Vieiros, A Nosa Terra, no âmbito das artes cénicas com Berrobambán ou Culturactiva, e colaborou com Grial, Andaina, ProTexta, Luzes, Novas da Galiza... tem publicado um livro de poemas que recebeu o VII Prémio Victoriano Taibo de Poesia, O caderno amarelo, e um capítulo no volume editado pelo Cineclube de Compostela em 2010 Non conciliados. Argumentos para a resistencia cultural. Faz parte do Cineclube de Compostela, da plataforma de crítica literária feminista A Sega e de Histeria Teatro. Está a preparar as oposições ao ensino secundário enquanto tenta viver da língua, a literatura e cria filha e textos. O Cineclube de Compostela programa nesta cidade há 17 anos. Tendo passado por diversos locais e frequências, as suas sessões decorrem, atualmente, na Gentalha do Pichel, às terças, entre setembro e maio, pelas 21:30. É uma associação autogerida mantida através das quotas das pessoas sócias.

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Óscar Górriz Fotógrafo da resistência, realizador e ativista. Criado na Corunha e aprendido em Barcelona, vivo a rever permanentemente as engrenagens do mundo, ao serviço de ideais maiores, a perseguir estrelas fugazes e a olhar para o Sul. Tal como pensar, fotografar é para mim un ato político, mas também uma rendição face ao destino. Na práctica, sou pai de duas formosas crianças e amante incondicional.

Paloma Recio Moríñigo, Estremadura, 1987. Investigadora, artista visual e performer Tendo terminado Belas Artes em 2014 em Granada, nesse mesmo ano começa um mestrado em Produção e Investigação em Arte, o que a incentiva a continuar a investigar na Universidade de Vigo, sendo nesta universidade que atualmente desenvolve a sua tese de doutoramento sobre arte de ação na instituição. Completa a sua formação trabalhando em salas de exposições da Universidade de Granada bem como através da curadoria de algumas férias, bienais e exposições em Jaén, Granada e Porto. Desde 2008 que tem vindo a mostrar a sua obra em exposições individuais e mostras coletivas com paragens em Andaluzia, Porto, Berlim, Galiza, Astúrias, Castela e Leão e Estremadura, normalmente sob o formato de instalação artística, embora ela confesse sentir-se mais à vontade a trabalhar no âmbito de residências artísticas onde implementar ideias expressas através do próprio corpo.

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Antonio Cortés (Ourense, 1990) titulado como técnico Superior em Fotografía Artística pela EASD Antonio Failde de Ourense e como Técnico de Laboratorio de Imagem pelo IES Arcebispo Xelmirez I de Santiago de Compostela , colaborador do jornal La Voz de Galicia até 2017, atualmente envolvido em exposições e trabalhos independentes.

Zeltia Iglesias Em Ribeira nasci junto às fotografias do meu pai Em Rois cresci a dançar e a desenhar No Texas falei galego com um brasileiro e dancei Ruxe-Ruxe com os ianques Em Compostela aprendi que a arte é unha ferramenta de luta Em Tirana nasceram as Anti-bandeiras Em Ourense estudo Design Gráfico e dança Contemporânea https://antibandeiras.wixsite.com/antibandeiras

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Elena Agrelo, 1990 Caldas de Reis. Sou fotógrafa pela EASD Mestre Mateo desde 2016. Graças à fotografia aprendi a conhecer o território que ocupo, o corpo que habito. Como todas somos filhas de umas circunstâncias, descobrimos antes ou depois que a criação artística é ainda um processo para a sanação de uma mesma.

A Ergosfera somos um grupo de arquitet@s (organizad@s como associação universitária desde 2006, como associação cultural desde 2014 e como cooperativa de trabalho desde 2016) que desenvolvemos projetos de investigação e intervenção urbana desde A Corunha. Embora tivéssemos começado organizando oficinas e realizando ações urbanas diretas, atualmente o nosso trabalho foca-se no desenvolvimento de propostas urbanísticas e estudos sobre as formas de uso e urbanização do território contemporâneo, tanto através da prática profissional quanto de hipóteses teóricas, mas sempre com base numa perspetiva crítica e partilhando os resultados como conhecimento livre na procura de experimentação e debate. Para tanto, utilizamos qualquer oportunidade de trabalho que surgir, ética e politicamente assumível, quer seja da área do urbanismo, da arte, do ativismo ou da produção cultural. Fazemos parte da rede Arquitecturas Colectivas. Somos partidários da cidade.

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Sou o André (Taboada Casteleiro) e seique nasci em terras da Límia lá pelo 1982, terra que batendo com a Raia Seca, me aproximou em forma definitiva da ideia de o galego e o português serem a mesma língua. Completei o ensino primário e secundário na minha comarca e no ano 2000, com o virar do século, entrei à Universidade de Santiago de Compostela, perdi um ano a tratar de aturar Direito, em 2001 comecei a estudar o curso de História, fiz ainda um mestrado em História Contemporânea (2007) para, afinal, tirar o curso de Português Avançado pela EOI de Compostela (2011). Dois anos antes tinha começado a trabalhar como tradutor de português. Sou ainda amador em viagens de Google Earth tendo conseguido a estranha marca de seguir para um campo de prisioneiros norcoreano a partir do paralelo de Vilar de Santos, faço ainda altimetrias, sonho Países e adoro debulhar a história do meu País.

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Jesús Castro Yáñez Interessa-me o breve e frgamentário, o desenfocado e inacabado. O que consegue ser ao dizer quase nada. O gesto. A interação entre o digital e o analógico, a interação em geral. Acredito em Jean-Luc Nancy quando diz que “o gesto está numa frase, numa relação entre palavras, num modo de vincularmos e desvincularmos palavras.” http://jesuscastroyanez.tumblr.com/

Belén R. Soto Transito no interior de uma bola aberta, a construir uma função objetiva que vai das ciências naturais até às ciências sociais. Não consigo distinguir o zunido das árvores do vento a zoar nas ondas do mar.

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