Ficções Ca d ern o de Fotograf i a N º 6
Caleidoscópicas: Belén R. Soto Charo Lopes Miguel Auria Sabela Fraga Xiana Quintas Design gráfico: Ana Parada Design web: Nadina Bértolo Design cabeçalho: Carla Trindade Imagem capa: Alexandre Folgoso Colaboradoras neste número: Alexandre Folgoso Ángel Santamaria Ariadna Silva Fernández Elena Agrelo Illa Bufarda Lucia Cernadas Mariola Mourelo Marta Pereira Paula Pez Paula Tomé Tere Fernandez Correção ortográfica: Noemi Vázquez Nogueiras Contatos: www.caleidoscopica.gal info@caleidoscopica.gal caleidoscopicafotografia
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caleidoscopica Ano de publicação: 2020
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índice CRÉDITOS 02 EDITORIAL 04-0
RELATO I 58-73 Essa figura na distância segues a ser tu Tere Fernández
REPORTAGEM I 06-17 Superheroina Paula Pez
REFLEXÃO I 74-79 A necessidade do assombro Sabela Fraga
ENTREVISTA 18-29 Marta Pazos Miguel Auria
EXPERIMENTAL II 80-87 Políquístico Xiana Quintas
EXPERIMENTAL I 30-43 Cartografia da alquimia Alexandre Folgoso
REFLEXÃO II 88-93 Cosendo vida(s) Texto Paula Tomé Fotos Xiana Quintas e Charo Lopes
DO ÍNTIMO I 44-57 Sem título Ángel Santamaría
CALEIDOSCÓPIO 94-111 Far Cry V Clara de Vargas Voar Miguel Auria REFLEXÃO III 112-117 Mo chorp, mo rogha, mo sceál Lucía Cernadas REPORTAGEM II 118-133 Com F de Farbuda Illa Bufarda RELATO II 134-143 Vestígios Marta Pereira EXPERIMENTAL III 144-151 Os jogos confinados Elena Agrelo REFLEXÃO IV 152-157 Wanda Wulz, luzes e sombras da mulher-gato Mariola Mourelo RELATO III 158-169 Cartografia do esquecimento Ariadna Silva Fernández NÓS 170-177
COLABORADORAS 178-187 TIRAS DE PROVAS 188-193
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ficcões
editorial
Toda fotografia é uma ficção Diz a teórica Ingrid Guardiola que “a representação é a ficção que cada qual faz da sua experiência”. Somos ficções andantes. A performatividade constrói-nos, ainda sem ser intencional ou consciente; mas expressamo-nos e buscamos um impacto. As ficções oferecem-nos a oportunidade de construir-nos e de apresentar-nos, hoje mais do que nunca, o mundo digital permite construir um sem fim de representações com facilidade: democratizou a ficcionalização das nossas vidas. Neste sentido, pode ser mais eficaz comunicativamente a ficção do que o realismo? Não é o realismo mais uma forma de ficção? Enfoque, enquadre, composição, formam parte da mesma cultura visual. Inconscientemente reproduzimos uns padrões de representação visual que vêm da época clássica greco-latina e se consolidam no chamado “renascimento” europeu, que perpetuam a representação identitária dominante, o modo de ver do homem cis branco, occidental, heterossexual, e pretendidamente “autónomo e funcional” que é o centro do mundo. Concordamos com a investigadora ferrolana Maribel Castro Diaz em que a fotografia é realidade e ficção a um tempo, o problema é assumirmos que estes termos são opostos: “A ficção tampouco seria uma reivindicação do falso, mas simplesmente uma caraterística sua, um caráter que mistura o “empírico e o imaginário”. Para ela a ficção não se propõe para elidir as responsabilidades de verificação dos feitos, mas para sublinhar o caráter complexo da situação, o qual sugere que o tratamento limitado do verificável implica um reducionismo e um empobrecimento: “a ficção adentra-se num pântano desprezando essa atitude que pretende saber sempre e de antemão de que está feita essa realidade.”
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A ambiguidade da fotografia cria produtos que podem significar cousas antagónicas. É o contexto o que determina as leituras potenciais, o significado em uma ou outra direção, onde está a chave para construir uma direção ética da imagem. O potencial narrativo da fotografia está nas ligações que cria: onde a vemos, com que referências, com que pés de foto… Daquela, das nossas óticas e do nosso contexto, o que é que aportamos? Falamos de hegemonia e toca fazer autocrítica: estamos bastante dentro para estarmos fora. E vivemos obsessivas com a busca do nosso fator diferenciador mas sem querer sair da segurança do hegemónico: “o inferno do igual”, do que fala Ingrid Guardiola. Assumimos que a fotografia é sempre uma ficção, e procuramos, quando menos, um relato honesto, uma senda que não se pretenda neutral. Uma ficção, sim, mas comprometida para a construção de um outro imaginário possível, mais largo, mais colorido, mais horizontal. Não o sabemos com certeza, mas por agora, pensamos colocar os pés de foto necessários para entender o contexto, ou para desentendê-lo, temos muito que desaprender para sair do marco. Explicitar os nossos enquadres, selecionar as nossas protagonistas. Documentar uma performance emancipadora.
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A ambiguidade da fotografia cria produtos que podem significar cousas antagónicas
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reportagem I
SuperheroĂna Paula Pez
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PEPITA FISHER “Levo uma máscara, e essa máscara, não é para ocultar quem sou, senão para criar o que eu sou.” Batman Pepita quis ser a super-heroína Marvel para lutar contra os malvados que queriam dominar o mundo. Quis ser homem porque acreditava que deste modo saltaria muros e derrubaria fronteiras. Quis ser mítica e imutável. Quis alcançar a glória, e ser reconhecida polos seus poderes. E lutou, até terminar perdendo-se no que na realidade, não era. Pepita quis ser muitas Pepitas numa, mas a Marvel jamais a reconheceu nas suas filas. Que é que fica quando se derrubam os teus sonhos? Qual é o caminho a seguir quando a dúvida e a falta de confiança agitam os fundamentos da sua própria personalidade? Este projeto fala das mulheres das nossas vidas. Fala de máscaras, de disfarces sociais mais fictícios do que reais, fala duma imagem de obriga, rompida, colada e recomposta a base de pedaços [ponhamos que falo da minha avó, da tua, daquela tia solteira ou mesmo da tua mãe. São muitas.]. Mulheres sempre fortes e sonhadoras, que derrubaram muros e fronteiras para serem ceivas, dispostas a criar a sua própria personalidade, para serem extraordinariamente normais.
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entrevista
Marta Pazos Miguel Auria
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Mergulhados entre artes cênicas e plásticas, num local onde ficção e realidade se misturam até perder os limites: Marta Pazos aproxima-nos ao espelho do teatro. Combinamos com ela no Auditorio de Galicia, espaço onde se estreou a sua última ópera “A Amnésia de Clío”. Sentados, enquanto os operários trabalham desmontando a caixa cênica, falamos sobre ficção, teatro, arte e feminismo. Marta define-se como realizadora de cena, pola liberdade com a que lhe permite trabalhar, mas também como cenógrafa, figurinista, intérprete, dramaturga e realizadora artística de “Voadora”, um projeto que a acompanha desde 2007. Apesar da sua formação em Belas Artes, sobe em 97 pela primeira vez ao cenário como intérprete para o tentar compaginar com a pintura... dous anos mais tarde decide: fechar o estúdio, “botar o barro à parede” e dedicar a sua vida ao teatro.
O teatro é uma arte política
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Poderias falar-nos dos teus referentes visuais? Bebo de muitas fontes distintas: do mundo da fotografia, a literatura, o cinema… também tenho muitos referentes no romance gráfico e doutros e doutras artistas em atividade que, como eu, navegam entre artes plásticas e cênicas. Por exemplo Míete Warlop, que introduz as suas peças visuais no teatro ou a tradição performativa dos sessenta: Yoko Ono, Barbara Kruger , as Guerrilla Girls… com um compromisso político com a arte de género. O teatro é uma arte política. De cinema, realizadoras como Jane Campion, ou Katie Mitchell, que funde cinema e teatro em trabalhos maravilhosos. E ilustradoras muito frescas, como Agustina Guerrero, Juanita Banana ou Ciryl Pedrosa. A cor dos seus trabalhos influiu-me muitíssimo nas últimas produções...e, por suposto, da vida em geral: as criadoras do mundo cênico estamos muito influenciadas polo contexto e o nosso trabalho bebe da realidade. Que peso tem a corporalidade do teatro frente à barreira da interface que cria o cinema? Proporciona algo muito orgânico, a imediatez da identificação. Estás a ver um corpo como o teu frente a ti e o efeito espelho é imediato. Noutras artes não acontece de um jeito tão direto: sempre está a própria técnica do meio de representação. O teatro permite uma representação desde a fantasia, mas os elementos são reais . E esse tempo, esse absoluto presente, é o que marca a diferença com as outras artes. É insubstituível.
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Como percebes a relação entre realidade e ficção? Como relacionas a performatividade com a ficção? A relação entre realidade e ficção é uma magia que relaciona o visível e o invisível, dando um sentido completo à existência. Legitima outros jeitos de compreender e de sentir. As artistas somos alquimistas, trabalhamos como parteiras de dous mundos: realidade, ficção, visível e invisível. Ajudamos a compreender o mundo através do nosso olhar. Por outra banda, toda performatividade implica uma ficção. Eu trabalho com essa dualidade: integrar o real numa fantasia. Desfruto de trabalhar com materiais da vida não cênica e introduzi-las no teatro. Quando essa partícula entra na pipeta teatral, estás a modificar a realidade, e essa realidade está a modificar tudo. A união de realidade e ficção em todo o projeto é o que realmente me interessa na arte. Este espíritu de transformação...é uma sanação, uma catarse.
Que te permite o espaço acoutado do cenário?
As artistas somos alquimistas, trabalhamos como parteiras de dous mundos: realidade, ficção, visível e invisível
O espaço acoutado permite pintar um quadro delimitado. Eu trabalho no cenário como se fosse um lenço. Dependendo do trabalho, é um 16/9 um f5, uma marinha, um retrato, uma paisagem… Depois tenho elementos que são os que coloco no quadro. Aí é onde percebo que a minha formação vem das artes plásticas, já que trabalho desde um rectângulo que me permite ter um controlo quase absoluto da técnica. Assim, levo ao espectador a diferentes planos, de um jeito cinematográfico faço-o viajar de um plano geral a un americano ou a um primeiro plano.
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Qual é a diferença entre intervenções de rua e o espaço/tempo acoutado da peça no teatro? Num “Site-Specific”, na rua, o formato é 360º, além de não existir planos. O trabalho abre-se a outra experiência distinta. No início acabava frustrada pola falta de controlo, mas com o tempo aprendi a desfrutar de como a vida entra de cheio, porque é o contexto próprio da peça. Afinal podemos relacioná-lo com a fotografia de estúdio e a fotografia de rua… aportam cousas distintas, porém cada experiência é fascinante à sua maneira. O teatro foi tradicionalmente uma das artes mais populares, com as companhias que se moviam por todas as aldeias e com muito componente político. Permite a máscara do teatro, desmascarar a sociedade?
O público leva milhares de anos indo ao teatro para ver perguntas sem resposta
O público leva milhares de anos indo ao teatro para ver perguntas sem resposta. Para ver como se questiona a realidade desde o cenário. Tem muito a ver com o ancestral, com as tradições, com a transmissão dos contos, com a criação da fantasia, a mitologia e o simbolismo. O teatro é um jeito de ritualizar a relação entre a artista e o público. Relação que nasce nas cavernas, na pré-história. Também é uma arte espelho da realidade. Isso converte-o num ato político. A autora lança uma pedra à água sem saber o impacto que vai ter. Tem de ser “bonito” o teatro em tempos de crise? Não penso que um teatro reflexivo tenha de ser feio. Sempre vou na procura da beleza e isso não significa que o meu trabalho seja naif. A caligrafia
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pode ser naif mas ter uma profundidade e uma radicalidade esmagadora. O importante é pôr os materiais ao serviço da ideia para transformar o mundo. Ser artista implica pôr uma visão própria do mundo em cima do cenário e com isso transformá-lo. Crias no cenário uma realidade paralela? Para mim o cenário é como comer a bolacha de Alice, fazer-te pequena e introduzir-te polo buraco a perseguir um coelho branco até chegar ao País das Maravilhas. Oferecer uma ficção fechada? Ou introduzir chaves para que o público construa a sua própria recepção? A ficção sempre é aberta: trabalho nas pontas do iceberg. Deixo migalhas de pão para que o público complete o percurso. Nunca lhe dou tudo mastigado, porque o que me interessa é que o público seja ativo e relacione a peça com a sua própria experiência vital. Se faço o caminho fechado, não deixo espaço para entrar na peça e a experiência que o público e eu vivemos fica incompleta. É uma das bases que mais me interessa também como espectadora. Qual é o rol do público? O teatro é um rito que só se sustenta baixo a olhada doutro ser, sem isso, não existe. Por isso é que é o protagonista. Como numa fotografia se não há uns olhos que a olhem.
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Imagens da ópera A Amnesia de Clío, composta por Fernando Buide.
Assim como muitas linguagens audiovisuais estão viciadas (homogeneidade), acontece o mesmo no teatro? Podem-se rachar os formatos, géneros…? Penso que agora mesmo é um momento fulgurante para o ato cênico. A evolução da tecnologia ajudou muito, permitindo que trabalhos que antes apenas podiam realizarem-se em determinados cenários sejam acessíveis. Na questão de género fica trabalho por fazer, mas as cousas já são diferentes há anos. Podemos ver muitos tipos de trabalhos, e artistas mulheres, que estávamos invisibilizadas, por vezes dentro dos guetos do “alternativo”, e agora estamos a assaltar os grandes centros de produção e os teatros públicos. Está a fazer-se um teatro mais transversal, mais diverso e, por suposto, mais interessante. E agradeço muito a tecnologia! De nova levava sempre caderno e lapis e sonhava com levar uma câmara instalada todo o tempo, agora por fim o temos! Como chegas a cenografia desde as artes plásticas? Cheguei no ano 2005 por um convite da companhia Sapristi. Pensei que a chamada era para participar como intérprete, mas surpreendentemente foi para trabalhar desenhando como cenógrafa. Aí começou tudo mas isto vem de muito antes. Que dirias dos teus últimos projetos? E dos futuros? De 2019 com os projetos que mais gostei foram com as duas óperas que eu dirigi, porque não tinha feito ópera a estas dimensões e foi uma aprendizagem enorme. Uma experiência vital impactante para mim, que desfrutei sobretudo por estar a fazer ópera contemporânea, trabalhando em tríades com o libretista e compositor, com uma fluidez máxima até abrir-se o pano. Um privilégio. Poder ver uma posta em cena tua enquanto se escuta a Real Filharmonia de Galicia é um sonho. A respeito dos novos projetos, estou expectante por voltar a reencontrar-me com os clássicos e o diálogo com Shakespeare, com um Otelo em Madrid, e com a estreia este novembro de “ Siglo mío, Bestia mía” de Lola Blasco.
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experimental I
Cartografia da alquimia Alexandre Folgoso
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Cartografia da alquimia A construção de uma ficção, em tanto que manipulação da realidade, partilha com a alquimia a finalidade de obter algo que não existe por si só. Esta série fotográfica da mesma maneira que a alquimia, num sentido pragmático, manipula a matéria fotografada para a construção de um microcosmos próprio que emane da simbologia e do substrato cultural galego.
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do íntimo
Sem Título Ángel Santamaría
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Nós, a nossa projeção, onde nos dirigimos e o que na nossa mente tentamos ser é uma ficção. Onde esquecer-se de tudo e estar a salvo, na minha cabeça, na minha imaginação, onde ninguém mais pode entrar. Os meus mundos então são estas coleções de cousas (inservíveis). São o meu quotidiano; lixo, desperdício, desfeitos, merda. São uma âncora à que se sujeitar entre a razão e a loucura. São um escape, onde nada é verdade, porque não há mais nada.
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relato I
Essa figura na distância segues a ser tu Tere Fernández
Desde então todas as figuras ao longe continuam a serem tu. Com o passo do tempo os sucessos do passado vão coloreando-se num presente em que a realidade pesa mais do que qualquer lembrança.
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reflexĂŁo I
A necessidade do assombro Sabela Fraga
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A ideia de ficção que temos depende do conceito de realidade que manejamos. A percepção desta última está condicionada por alguma outra partícula: quem, quando, desde onde, como...se observa. Também variam as explicações que consideramos oportunas para justificá-la, mudando com os tempos em função do progresso de cada época. Eis as ciências, os mitos, as religiões... Assim, o horizonte de expectativas a respeito da realidade está limitado por certas regularidades e convicções com as quais codificamos o nível de tolerância do possível e do impossível. Patrões e receitas diárias com as quais acoutamos e delimitamos o mundo que nos rodeia para poder funcionar de um jeito mais confortável. Nessa mesma linha, os modelos e identidades a escolher do mundo digital também traçam os limites que nos afastam do imprevisível, da experimentação, do lugar onde poder encarar as contradições diárias e traçar o sentido da nossa existência. Perante a dúvida, ao conflito responderemos com o que se espera de nós: com o repetido, com o conhecido, com o hegemónico. Umas fórmulas baseadas na adaptação, para que nada mude. O encaixe perfeito para funcionar como uma peça mais na engrenagem do sistema. Um dos objetivos da ficção será desestabilizar esses limites que nos proporcionam segurança, problematizar as convicções coletivas e questionar a validade dos sistemas de percepção da realidade comumente admitidos. Como demonstram os trabalhos de Pedro Meyer, a liberdade de criação que nos confere a arte permite operar com uma dose mais alta de autenticidade mas a brincar com o tempo, com o espaço e com o encontro de forças opostas. Uma linha muito diferente é a defendida por fotógrafos como Sebastião Salgado, a consciência documental que emerge nas suas peças libera-se da normativa deontológica que rodeia o campo. <<Todas as minhas imagens aludem a documentar experiências. (...) Por exemplo, os aviões de guerra na imagem “Regadera
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Regadera en el desierto, Yuma, Arizona, 1985 / 93
A imaginação, em tanto transformadora, também pode ser revolucionária porque nos permite modificar o conhecido e criar novos referentes capazes de produzir contágio
en el desierto” respondem exatamente à minha lembrança; na realidade passaram voando, e simplesmente não pude captar isso no filme. As minhas limitações, as da câmara, a quem lhe importam? O facto é que o que apareceu no negativo não é o que aconteceu na realidade: esses ominosos aviões de guerra na realidade passaram voando”1. Neste caso, a recordação formaliza-se num ato imaginativo, numa manipulação. É um disparate misturar memória e ficção? Lembrar é um ato da imaginação? Segundo explica Úrsula K. Le Guin: “um conto é uma invenção, umas memórias são uma reinvenção, e a diferença entre ambas coisas é insignificante”2. No contentor da ficção vão-se acumulando como fertilizante os factos, a memória e as experiências que se vão combinar para germinar algo novo graças ao trabalho da imaginação. A cópia pode significar o ponto de apoio principal que nos permita dar o salto. A imaginação, em tanto transformadora, também pode ser revolucionária porque nos permite modificar o conhecido e criar novos referentes capazes de produzir contágio, ajudando-nos a transformar uma realidade que nos atravessa e nos fere. A ficção copia da realidade mas também acrescenta uma realidade nova ao mundo para problematizá-lo. Costumamos aceitar exagerações de todo tipo nos mídia: anúncios publicitários, histórias sobre celebridades, storytellings que regem a comunicação política, filtros nas aplicações fotográficas...isto tudo e mais, sem importar demasiado que o material seja acreditável ou que estejam a tentar dirigir-nos para uma determinada sentença ideológica. Como adoita lembrar Fontcuberta, não existe ato humano que não implique manipulação. Esta está exenta de valor moral per se. O que com certeza está sujeito ao juízo moral são os critérios ou as intenções que se aplicam à manipulação e o que está sujeito ao juízo crítico é a sua eficácia. 1 MEYER, Pedro (1995) Verdades y Ficciones. Un viaje de la fotografía documental a la digital. Coyoacán: Casa las Imágenes. pág 108 2 K. Le Guin, Úrsula. (2017) Contar es escuchar. Sobre la escritura, la lectura, la imaginación. Madrid: Círculo de Tiza. pág. 185
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Toda ficção remete a um contexto real e toda realidade possui um fundo de ficção. Longe do que muitos poderiam pensar, é uma ferramenta que emprega o código realista, mas para o transgredir: “os elementos que habitam os relatos fantásticos participam da verossimilitude e do realismo próprios da mímese e unicamente a irrupção do acontecimento inexplicável marca a diferença essencial entre ambas formas. Todo deve parecer normal mas os acontecimentos superam o nosso marco de referência”. Quer dizer, a ficção mais perturbadora será a que mais se aproxime à cotidianidade e menos ao espetacular, aquela que prepara a irrupção do impossível num mundo em aparência normal para provocar uma impressão inquietante, para sugerir a possível anormalidade da realidade na que vivemos. Este mecanismo, esta ponte que se tende com o mundo quotidiano, reconhecível, é o que envolve a pessoa que observa, porque o mundo construído nos trabalhos deste tipo é sempre um reflexo da realidade onde habita. Daquela, as ficções precisam tanto da cópia, de um pouso comum para serem compreendidas, como da imaginação para transformarem-se. Num contexto onde parece que tudo é visível, talvez o mais revolucionário seja abrir uma fenda nesse fluxo audiovisual frenético que provoque uma interrupção. Um deslocamento na nossa percepção. Um artifício que ponha a trabalhar a imaginação. Um curto-circuito que despregue o inadmissível na nossa trama de certezas mas que, ao mesmo tempo, mobilize algo dentro de nós para produzir uma mudança.
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a ficção mais perturbadora será a que mais se aproxime à cotidianidade e menos ao espetacular, aquela que prepara a irrupção do impossível num mundo em aparência normal
Como criadoras, temos a responsabilidade de ampliar os limites da imaginação, de projetar aquilo que ainda não é, mas que pode chegar a ser
São imprescindíveis os trabalhos que aprofundam na crítica para mostrar como operam os mecanismos de dominação presentes em múltiplos espaços. Porém, é hora já de pensar fórmulas que nos permitan desenvolver outra maneira de viver. Como criadoras, temos a responsabilidade de ampliar os limites da imaginação, de projetar aquilo que ainda não é, mas que pode chegar a ser. A abertura dum presente de possibilidades dependerá de uma olhada propositiva e política que pouse a sua atenção nas narrativas pessoais que estão por contar, que não têm espaço na divisão do visual que estabelece o poder. Os trabalhos artísticos que se movem no terreno do fictício são capazes de distanciar-se da realidade para trazer à colação a curiosidade, o assombro e a pergunta política que expõe que as cousas podem ser doutra maneira. Temos a oportunidade de nos anticipar com as possibilidades que a ficção nos oferece. Como bem expõe Remedios Zafra nos seus textos, a arte e os ecrãs podem operar como marcos de fantasia que estabeleçam potenciais espaços de transformação onde operar contra as identidades estereotipadas. Daquela, urge trabalhar na procura de imagens com capacidade de resistência às lógicas do empobrecimento da experiência e dos sentidos que o capitalismo consegue através da homogeneização. Trabalhemos juntas então para conseguir uma consciência que seja quem de imaginar o que verdadeiramente desejamos e identificar as criações onde nós queremos ver refletidas, com dignidade.
3 ROAS, David (2011). Tras los límites de lo real. Una definición de lo fantástico. Madrid: Páginas de Espuma. pág 113 4 PALLIER, Maria (15 marzo 2017) “Carta Blanca a Remedios Zafra: ARTE, REDES y (CIBER)FEMINISMOS”. Metrópolis
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Cosendo vida(s) Paula Tomé
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Cosendo vida(s)
A ficção dá forma ao que se derrama em nós. Anne Carson O delírio nem é verdade nem é mentira: é ficção (como o enamoramento). Uma ficção evasiva do tamanho certo de um monstro. Evade-se a mente à procura de conflitos fantasmagóricos, com a matemática certa das grandes cosmovisões metafóricas. Chegamos à metáfora como chegamos às estrelas, com cálculos infinitesimais que explodem no cérebro com a geometria de um conto, com a narrativa abstrata de uma viagem ao coração esquivo duma dor, carência ou ferida sem tempo nem acougo. Uma separação dramática do eu-com as outras, do eu-com o mundo, uma droga cartográfica de sonhos sem limpar. Pouco mais tem o delírio com uma soidade poética, autorreferencial, incompreendida. Um guião surrealista sobre trajetos e capacidades, uma tentativa de mapa que nunca será território. Um vazio alucinado vivido sinceramente, como a euforia manuseada de querer ser qualquer coisa que não somos. Não queremos soidade? Venha duas cuncas. A soidade povoada de fascinantes relatos entrelaçados, experimentados com a mesma soidade a falar em código consigo mesma. Longe muito longe das outras. Só no seu mapa alucinado podemos habitar com a ideia mais absurda de todas: a da trascendência. Mundo revelado contra um vazio que não se reconhece, porque magoa.
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Entre a ficção e o mundo, há um botão
Imagem de Charo Lopes
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É possível construir outro querer (se) desde a derrota consciente da normalidade, e que alívio, a ausência de normalidade
O delírio como ficção: fazer algo criativo, ser criadora mais do que “vítima” ou marioneta do argumento do sonho
Imagens de Xiana Quintas
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No enamoramento viajamos no mesmo carromato com uma leve novidade: a projeção das metáforas para um outro que se perde também na autoficção evasiva do que não funciona. Entre a ficção e o mundo, há um botão. Cá está a porta de todas as histórias. Queríamos aprender sobre botões de ligar e desligar os delírios, mas era dicotómico de mais, e somos cuir de mais nesta altura. No contínuo do delírio como ficção monstruosa ainda ficava a possibilidade da costura, do tecido, dos retalhos, algo de material próximo à terra (nunca mais território), qualquer tipo de terra-corpo amorosa de cuidados, prazeres, e amor, muito amor. Mas esse botão costureiro estava, está sempre, em construção. Uma vem devagarinho. Ficção? mais de casa, mais larpeira. Com a retranca a afogar em cócegas a transcendência. Muito melhor um botão de costura, o fio sempre é de mais ajuda . Há caminhos bem esquisitos no viver, como perder-se nos delírios, e descobrir que são ficções, criações perigosas da mente ferida… mas criações no fim, com possibilidades de leitura, escritura, cozinha, viagem, intervenção, questionamento… o que se derrama em nós bem pode apanhar-se e embalar-se no amor próprio, nalgum ponto diferente à patologização sistémica do que não se compreende. É possível construir outro querer (se) desde a derrota consciente da normalidade, e que alívio, a ausência de normalidade. O botão éramos nós (tu também) caminhando a vida. O delírio como ficção: fazer algo criativo, ser criadora mais do que “vítima” ou marioneta do argumento do sonho. Metaficção: converter no projeto vital o desenvolvimento da ideia do delírio como ficção. Delírio como adaptação: o que há é o que eu quero (embora não seja deste modo). Apesar de terminar por chegar a uma espécie de realismo cru com forma de vazio, até chegar, sobrevivi nesse confundir a realidade com o meu desejo.
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Aproximei-me da estĂŠtica da verdade. Mas tudo era falso. Aproximei-me duma intimidade. Mas tudo era falso. Ficam imagens roubadas de um link do youtube. https://www.youtube.com/watch?v=lBMuUf9ZWNU&t=109s
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reflexão III
Mo chorp, mo rogha, mo sceál Lucía Cernadas
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Mo chorp, mo rogha, mo sceál1 Numa entrevista com a jornalista Una Mullally, a professora e ativista Ailbhe Smyth pergunta-se por que é que precisamos as histórias pessoais para nos envolvermos nas causas justas2. No momento da entrevista, a Oitava Emenda da constituição irlandesa - An Bunreacth Na hÉireann - levava trinta e quatro anos a igualar a vida da mãe à do feto, impedindo a prática totalidade dos abortos legais na República: “O estado reconhece o direito à vida da criança por nascer e, com a devida consideração ao igual direito à vida da mãe, garante nas suas leis respeitá-lo e, até o ponto em que for praticável, defender e reivindicar através das suas leis esse direito”.3 Foi na campanha prévia ao referendum que o aboliu, no 25 de maio de 2018, que muitas das histórias das mulheres afetadas pela emenda saíram à luz. Numa atmosfera política em que a compaixão era esgrimida como argumento central, os relatos destas mulheres foram escutados. A nação é também um relato. Como explica Anne Marie Thiesse, esse relato, com todos os seus elementos, deve ser defendido com um proselitismo tenaz até ser naturalizado como algo autêntico4. No caso irlandês, quatro elementos centrais, em oposição à identidade nacional inglesa, reservavam a maternidade, a passividade e abnegação para as mulheres: o catolicismo, a importância da família patriarcal, o tradicionalismo e uma heterossexualidade altamente masculinizada5. Esse relato passou a incidir diretamente na vida das mulheres quando foi sacralizado pela lei, nomeadamente pela Bunreacht Na hÉireann, que até hoje, por exemplo, recolhe como o Estado deve evitar que as mulheres se vejam obrigadas a realizarem trabalhos remunerados “em detrimento dos seus labores domésticos”6. Afortunadamente, este relato começou a ser contestado por aquelas que compreenderam que a dicotomia entre a realidade e a ficção tende as mais das vezes ao colapso.
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A nação é também um relato
este relato começou a ser contestado por aquelas que compreenderam que a dicotomia entre a realidade e a ficção tende as mais das vezes ao colapso
Especialmente desde a entrada em vigor da Oitava Emenda, algumas escritoras levaram à sua obra algumas das experiências mais cruas de mulheres privadas dos seus direitos reprodutivos. É o caso de Ann Lovett, uma moça de quinze anos que em 1984 foi parir aos pés duma estatua da virgem Maria e morreu ali com o seu bebê; Paula Meehan recorda-a no seu poema “The Statue of the Virgin at Granard Speaks”. Também é o caso de Ms X, mais uma adolescente de catorze anos que foi declarada suicida após ter-lhe sido negado o direito de viajar a Inglaterra para abortar o fruto de abusos sexuais reiterados, cuja história sinalou a contradição evidente da equação entre a vida do feto e da mulher contida na Oitava Emenda quando o tribunal supremo falhou em favor da vida da moça; este caso foi levado ao romance Down by the River por Edna O’Brien. Ambas as obras mencionadas têm em comum a vontade de abrir o caminho a discursos alternativos sobre a feminidade em Irlanda, sinalando o irreconciliável do ideal nacional hegemónico e os problemas quotidianos das mulheres irlandesas. 1 Em irlandês: “o meu corpo, a minha decisão, a minha história” 2 SMYTH, Ailbhe (2017): “The obvious explanations on how power is held and exercised over women are very basic”, p. 140. Em Mullally, Una (2018): Repeal the 8th. Unbound: Londres. 3 Eighth Amendment of the Constitution Act (1983). Tradução minha. 4 THIESSE, Anne Marie (1999): “A Criação das Identidades Nacionais”, pp. 15-22. Lisboa: Temas e Debates 5 SMYTH, Lisa (2016): Abortion and Nation. The Politics of Reproduction in Contemporary Ireland, p. 37. Routledge. 6 An Bunreacth Na hÉireann (1937), art. 41.
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Neste caminho aberto, outras autoras criaram narrativas com protagonistas hipotéticas, mas que encarnavam essas experiências como algo reconhecível. É o caso dos textos contidos nas antologias Repeal the 8th e Autonomy, que representam a maior parte dos problemas relacionados com a emenda. As editoras, Uma Mullally e Kathy D’Arcy, recolheram a arte e as reflexões feitas desde as bases do movimento pelos direitos reprodutivos não apenas para levarem ao público essas experiências, mas também para financiarem com as vendas dos livros a campanha contra a emenda. Nas suas páginas lemos as histórias daquelas que tiveram de viajar ao estrangeiro para abortar, que sentem, ainda assim, o privilégio de poderem adotar essa “solução de classe média”. Também assistimos às histórias das que tiveram de encomendar medicamentos abortivos online e tomá-los clandestinamente, às das mulheres pobres que tiveram de mudar a sua vida radicalmente por não terem os meios para abortar, às das demandantes de asilo que perderiam esse direito caso irem para o estrangeiro ou às das mulheres da comunidade nômade irlandesa, estigmatizadas pela sociedade e pelo seu próprio entorno. Aliás, outros textos sinalam como os argumentos biologicistas ganham protagonismo, antecipando a legislação atual, que, embora mais permissiva, considera de base a gravidez um processo que deve ser monitorizado pela autoridade médica, enquanto a vida é um simples estado biológico resumido no que demora em ser localizado o latejo do coração.
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assistimos à ficcionalização das vivências das mulheres irlandesas sob a lei, com uma vontade clara: desnaturalizar a violência simbólica das leis do Estado-nação sobre os corpos
Ailbhe Smyth surpreende-se da necessidade dos relatos, mas, na verdade, dá com a chave das nozes: a ficção que cada quem faz das suas experiências, o desejo de se sentir representada, como diz Ingrid Guardiola8, é comum; por isso nos interpela além dos factos e os argumentos. Aproveitando casos reais ou criando relatos plausíveis, no traslado à literatura dos anos da Oitava Emenda assistimos à ficcionalização das vivências das mulheres irlandesas sob a lei, com uma vontade clara: desnaturalizar a violência simbólica9 das leis do Estado-nação sobre os corpos. As autoras e editoras mencionadas souberam ver esse potencial e transformaram em apoio material à causa essas vivências. Afinal, a literatura que elas criam e publicam tenta fazer um lugar para as experiências das mulheres no relato da nação irlandesa e, por enquanto, estão a conseguir. 7 ENRIGHT, Anne (2018): “The Question of Consent”, p.30. Em Mullally, Una (2018): Repeal the 8th. Unbound: Londres. 8 GUARDIOLA, Ingrid (2019): El ojo y la navaja. Arcadia: Barcelona. 9 FERNÁNDEZ, J. Manuel (2005): “La noción de violencia simbólica en la obra de Pierre Bourdieu: una aproximación crítica”. Madrid: Universidad Complutense de Madrid.
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reportagem II
Com F de Farbuda Illa Bufarda
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4 de janeiro de 2016
Nascimento virtual da Mancomunidade da Farbuda. Aparentemente, jĂĄ existia no plano real, mas agora sabemos que nĂŁo era tudo verdadeâ&#x20AC;Ś
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8 de janeiro de 2016
Pode que a Farbuda esteja às beiras do Úmia, certamente o rio alagou tudo.
11 de janeiro de 2016
Para existir há que convocar reuniões, embora só gostem disto duas pessoas.
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13 de janeiro de 2016
Será esta a primeira pista desta ação?
14 de janeiro de 2016
À reunião veio a Rosa e trouxe bolachas. Da publicação só gosta uma pessoa, será a Rosa?
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29 de janeiro de 2016
Para existir há que ir a manifestações e se são contra Ence, melhor!
1 de março de 2016
Começam os acontecimentos paranormais (a expansão do eucalipto na Galiza também o é, mas já leva tempo a acontecer).
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3 de março de 2016 A vida na Mancomunidade continua.
7 de março de 2016
Numa jornada de deseucaliptização, Luís vê um animal estranho e consegue capturá-lo num vídeo. Chegou a ter 706 visualizações. Ninguém comenta nada.
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11 de março de 2016
Continua o mistério do animal e os vídeos (em vertical) que provam a sua presença.
16 de março de 2016 As eleições também chegam à Farbuda.
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22 de março de 2016
Koalas na Galizaa??????
23 de março de 2016
Metaficção. O que estamos a viver na Farbuda é incrível, parece a brincadeira que tinha feito Adega pelos Santos Inocentes do ano anterior.
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30 de março de 2016 Mais provas e 1,1 mil visualizações.
31 de março de 2016
A prova derradeira! Já há mais três fontes (experimentadas e/ou com provas gráficas) e pelo tanto é real: há koalas na Galiza. Olhem para o resultado da publicação.
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1 de abril de 2016
Com todas as provas e quase quatro meses de atividade no facebook, conectamos com os meios a primeira hora. (aquí podedes poñer a imaxe “1abril.jpg”, “1abril2.jpg e 1abril3.jpg”) Depois que os koalas sejam notícia durante todo o dia, publicamos o seguinte manifesto. Cumpre lembrar que no dia 1 de abril os burros vão onde não devem ir.
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O Koala evoluiu ao revés, cada geração é menos inteligente do que a anterior. Quando as selvas australianas começaram a substituir-se por eucaliptos, muitíssimas espécies desapareceram pela sua toxicidade. O koala preferiu adaptar-se e conformar-se. Para poder ingerir folhas de eucalipto nocivas para a maioria dos mamíferos e muito pobre a nível nutritivo, dotou-se de um micróbio estomacal para suportá-las. Isto supôs mudanças grandes na sua vida: come durante cinco horas e dorme dezoito para poder digerir a dificultosa ingesta. Pelo de agora não existem koalas na Galiza. Koalas entendidos como espécie animal que habita na Austrália. Mas se chamamos “koalas” aos humanos que regrediram, se conformam e se adaptam, koalas há a moreas! Mastigamos por muito tempo a ideia do benefício curto pracista. Quando acordemos depois da dura digestão deste mato já não teremos monte. O eucalipto provoca a perda de nutrientes do solo diminuindo a sua fertilidade (alosteria), altos níveis de erosão sobretudo nas plantações em pendente, redução da disponibilidade de água, abrupta limitação da biodiversidade, elevada vulnerabilidade ao fogo, radical deterioro da paisagem e tem um caráter invasor que potencia a sua expansão incontrolada. Deste jeito, fazem empobrecer o nosso solo e esgotam a nossa diversidade arbórea. Apesar disto as plantações de eucalipto supõem mais de 30% da superfície florestal galega, frente ao bosque autóctone que não chega a 2%. Os montes galegos sofrem a política continuísta do tardo-franquismo que executa a Xunta de Galicia sem reparar nas mostras de deterioro da terra, nos saberes das pessoas expertas em políticas florestais e em todas as organizações ecologistas e naturalistas galegas que levam anos a lutar e reivindicar uma política florestal que não hipoteque o futuro dos montes galegos e limite a consecução de um rural multifuncional e sustentável.
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Atualmente está vigente o Plano Florestal de Galicia ditado no ano 1992, um documento básico que estabelece um modelo florestal a longo prazo com a intenção de manter uma coerência na intervenção do monte e nos setores privados. Durante o ano 2015 reuniu-se um grupo de trabalho criado no Conselho Florestal polo governo da Xunta. Vinte dos vinte e cinco membros do Conselho Florestal representavam o setor da madeira. Agora, em 2016, o governo em funções do Estado, do mesmo Partido Popular que a Xunta de Galicia, acaba de renovar por 60 anos a concessão a Ence na ria de Pontevedra. Esta fábrica de celulose serviu como pretexto desde 1957 para a plantação massiva de eucaliptos na Galiza. De facto, em Espana hai por volta de um milhão de hectares de superfície plantada de eucalipto das quais mais de 50% se situam em Galiza, em concreto eucalipto globulus e, desde hai uns anos, também nitens. Tendo en conta que 22% de eucalyptus globulus (branco) no mundo está registado em Espanha, pode-se valorizar que na Galiza se concentra perto de 15% do total mundial desta espécie arbórea australiana. A ação que fez acreditar que existem koalas na Galiza foi realizada pola produtora criativa Illa Bufarda com a colaboração de muitas pessoas e cúmplices nas redes sem os quais não teria sido possível. Criamos uma página de facebook fictícia da vizinhança que integrava uma suposta Mancomunidade chamada Farbuda (“Bu-far-da”), tendo como ideia desmentir tudo o 1 de abril, pois já sabemos que nesse dia vão os burros, as burras e koalas onde não devem ir.
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A ação que fez acreditar que existem koalas na Galiza, teve uma importante repercussão na rede no mesmo dia e provocou o interesse nos meios de comunicação galegos e estatais chegando a publicar-se nalgum deles
A ação teve uma importante repercusão na rede no mesmo dia e provocou o interesse nos mídia galegos e estatais chegando a publicar-se nalgum deles. Isto também nos faz refletir sobre o funcionamento dalgúns mídia que obriga a profissionais do jornalismo a produzirem notícias como se for madeira de eucaliptal, sem contrastar fontes, nem indagar nos factos,tudo isto resultado de uma precarização laboral imperante. Agradecemos a todas as pessoas que nos ajudaram a difundir isto, que nos forneceram informação sob o funcionamento das mancomunidades, e também àquelas pessoas que nos mastigaram a informação sobre a eucaliptização no nosso país e a todas e todos os que não se convertem em koalas e lutam por um monte melhor. Cumprimentos! As habitantes da Illa Bufarda Illa Bufarda, 1 de abril de 2016
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relato II
VestĂgios
Vivenda nĂşmero 10: Marta e Xavier Marta Pereira
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experimental III
Os jogos confinados Elena Agrelo
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Sobre jogar confinadas… ... fugir da catástrofe global da hipervigilância, o engaiolamento e a morte. A expressão artística, como uma porta traseira da ficção. Aqui é um cenário teatral, um lugar seguro, onde a mente se desprende da ansiedade e dança livre. Construir uma vivência alternativa semelhante o real, é um jeito de entretenimento.
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reflexĂŁo IV
Wanda Wulz, luzes e sombras da mulher-gato Mariola Mourelo
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Io + gatto, Wanda Wulz (1932)
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Da mesma maneira, a máquina fotográfica oferece a proteção e possibilidade de olhar à alteridade, e a nós próprias, com um certo anonimato
Essa abstração da nossa personalidade, cheia de matizes e irregularidades, fica bem expressa na fotografia de Wanda Wulz
Colocar uma máscara é separar, de forma temporária, o nosso corpo do nosso contexto sociocultural. Dá-nos a oportunidade de olhar sentindo que não somos vistas, como se desaparecêssemos, embora simbolicamente, da cena. É também, intencionalmente ou não, uma maneira de dar a conhecer uma parte de nós menos visível. Da mesma maneira, a máquina fotográfica oferece a proteção e possibilidade de olhar à alteridade, e a nós próprias, com um certo anonimato. A fotógrafa Wanda Wulz (Trieste, 1903 - 1984), sem dúvida soube utilizá-la como um meio de expressão a partir do qual retratar a sociedade e pessoas da época, ao mesmo tempo que foi capaz de construir ficções que se materializassem em imagens fotográficas. A sua composição mais conhecida, Io + gatto (1932) é uma fotomontagem em que Wanda superpõe um retrato dela mesma junto com o de um dos seus gatos. O resultado é uma bela e intrigante imagem em que os traços do animal e da mulher fundem-se criando um outro ser com entidade própria. A ambivalência entre animal e pessoa, entre o que se mostra e o que se é, a capacidade mutante que temos para nos adaptar ao meio, para encontrar esse balanço entre os nossos desejos e o que a vida nos oferece. Essa abstração da nossa personalidade, cheia de matizes e irregularidades, fica bem expressa na fotografia de Wanda Wulz, que ainda hoje cativa quem com ela se encontra. De facto, tem sido amplamente divulgada em redes sociais como Pinterest, tumblr e instagram, chegando a uma nova geração de espetadoras de diversas partes do mundo.
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É evidente a habilidade técnica de Wanda, especialmente considerando a época em que foi realizada esta e outras das suas imagens de estilo surrealista. Apesar de a fotografia ser uma atividade profissional e em rápido desenvolvimento e popularização nas cidades industriais do Ocidente de inícios do século XX, como era o caso de Trieste, os processos de manipulação da imagem eram produto de um alto conhecimento do meio físico e químico, de cuidada precisão manual e de longas horas e muita paciência no estúdio e laboratório fotográfico. Ficavam ainda longe os intuitivos programas digitais de edição de imagem ou as rápidas aplicações dos telemóveis atuais. Wanda Wulz é uma das tantas fotógrafas desconhecidas mas imprescindíveis na história deste meio visual. Iniciou a sua profissão no estúdio de fotografia que o seu pai e avô abriram em 1883 em Trieste, quando esta cidade ainda pertencia à Áustria. Passou de ser, junto com a sua irmã Marion, de sujeito a fotografar, a gerir o estúdio de 1928 até o seu encerramento em 1981. Foi uma mulher com uma grande atividade profissional, artística e social, fazendo parte do movimento Futurista em 1932, depois de ter conhecido um dos seus artífices, Filipo Tommaso Marinetti, numa exposição. Nos finais da década de 30 abandonaria este movimento e focar-se-ia no trabalho comercial do seu estúdio, não sabendo-se muito bem as razões desta rutura. Especula-se que o caráter profundamente machista deste grupo, que em princípio não parecia afetar Wanda, e o gradual apoio às correntes fascistas possam ter influenciado a sua decisão.
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Wanda não casou nem teve filhos. Teve gatos, uma profissão que evidentemente a fascinava e uma liberdade pessoal e artística pouco habitual para as mulheres da sua geração. Como a sua imagem Io + gatto, a sua vida é metade máscara metade real, com luzes e sombras, histórias incompletas e ambíguas, e sobretudo um trabalho e perspetiva visual interessante a conhecer e do qual aprender.
Referências: Rosenblum, N. (2010). A history of women photographers. New York: Abbeville Press Publish. Poynor, R. (2015). Exposure: Cat and I by Wand Wulz. Hamden (USA): Design Observer. Circarq (2020). Wanda Wulz (1903 – 1984). Publicaçom online: Circarq. www.circarq.wordpress.com
Como a sua imagem Io + gatto, a sua vida é metade máscara metade real, com luzes e sombras
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relato III
Cartografia do esquecimento Ariadna Silva Fernández
Há agora três anos, depois de presenciar como o incêndio devorava uma parte de mim, deu-me por refletir sobre o que supunha essa perda. Sempre mantive uma correspondência com a natureza, mas dessa vez fui consciente que a comunicação começava a esvaecer. Num vestígio de pretender realizar uma cartografia, comecei um processo de investigação e de percurso polas diferentes realidades paisagísticas do monte galego: uma fraga, um eucaliptal e um incêndio. Percebi que o que estava a traçar era uma cartografia do esquecimento. Ultrapassando os prejuízos ambientais, creio que a devastação do bosque autóctone também leva à autodestruição porque se esquece uma estrutura cultural e simbólica que se erigiu ao longo de gerações. Esta cartografia permite-me partilhar uma série de perguntas a respeito da paisagem: como nos afeta, como nos amolde, como nos modifica. E, inevitavelmente, é necessário questionar que consequências e responsabilidades têm as interações humanas neste contexto. Feitas as observações posso tirar duas conclusões, uma como certeza e a outra como interrogante. A primeira é que o bosque autóctone é um legado presente do que ainda somos testemunhas. A segunda é se chegará a ser parte dum futuro coletivo.
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Belén Soto Transito no interior de uma bola aberta, a construir uma função bijetiva que vai das ciências naturais até às ciências sociais. Não consigo distinguir o zunido das árvores com o vento do arrolo das ondas no mar.
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Charo Lopes Apesar de tudo, não mudo de filme. Porque pagou a pena aquele concerto do Bitxobola na Casa Encantada. O avanço da traineira saíndo da ria. O som de agitar o spray antes de escrever o poema. Ou a assembleia nacional na que rematamos queimando os textos para evitar que os atopasse a polícia. O piquete na greve geral, a alegria de cortar uma autovia. O lume cruzado entre os olhares, o peso da palavra “Nós”. A música, cantar juntas “senhora do Almortão” quando sai o sol no Festival da Poesia. Ou aquela noite na serra de São Mamede. A comida familiar debaixo da vinha. O abraço da cadela quando me sentiu chorar. O riso da minha gente. A leitura daquela mensagem encriptada. Publicar um livro. Publicar outro livro. Um festival de mulheres no meio dum bosque em 2015. Um licor café com música e sorrisos. Uma mani-festa-ação. O beijo. A viagem. O beijo. O beijo. A dopamina, a oxitocina e a feniletilamina aumentando por 7000 a sua quantidade durante o apaixonamento. A vida.
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Miguel Auria
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Sabela Fraga super YO Conviver com uma contradição que não foi um complexo, senão a aprendizagem de uma aposta. A confiança no contínuo exercício de estranhamento. um risco no marco imposto para um EU que estava por vir A (auto)determinação de um gesto deixava latente outra vida possível... ...atrás uma identidade anacrónica que nunca foi.
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Xiana Quintas Aferrar-me as cores quando a oscuridade inunda o meu interior. Um ponto de esperanรงa que dรก forรงas, demostrar a nossa natureza nรฃo deveria ser uma debilidade.
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Ana Parada
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COLABOR
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RADORAS
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Alexandre Folgoso Ginzo da Limia, 1996 É um fotógrafo e filólogo especializado em estudos literários. Acredita na fotografia analógica como revolta contra os procedimentos digitais que marcam o ritmo atual do meio fotográfico. A sua obra é uma procura por encontrar uma linguagem própria; refletindo sobre o conceito de identidade e a relação entre fotografia e motivo poético.
Ángel Santamaría Díaz Cantábria 1992 Graduado em Belas Artes, moro na Galiza há 7 anos. Faço coleções de cousas quotidianas relacionadas com resíduos aproximando-se de esculturas ou instalações, alguma vez pinto, por vezes faço alguma foto que vale a pena, e a maior parte das vezes não sei o que eu faço.
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Ariadna Silva Fernández A Estrada, 1996 Mestrado em Fotografia Artística e Documental na Escola TAI e Grau em Comunicação Audiovisual pela Universitat Oberta de Catalunya. O seu trabalho pessoal deriva entre a fotografia e o cinema experimental. Nas duas disciplinas utiliza retóricas documentais que se interpretam como necessidades por aprofundar na sua relação com a paisagem natural para construir uma olhada sobre ele. Também lhe interessa o trânsito, a mudança e a dúvida: prefere a incógnita antes do que a evidência. Foi seleccionada no Canon Student Program 2017 do Visa Pour l`image de Perpignan (França), nos VIII Encontros de Artistas Novos, no X Festival de Fotografia Pa-ta-ta e foi selecionada no Prêmio Internacional Emergentes 2020 dos Encontros da Imagem de Braga (Portugal) . Em 2018 publica o seu primeiro fotolibro ‘Fillos do vento’ (BANCO Editorial), um relato pessoal sobre a Rapa das Bestas de Sabucedo, e em 2019 autopublica ‘Historias mínimas’, um fanzine de relatos íntimos. Recebeu o Prêmio Xuventude Crea 2019 da Xunta de Galicia, a XVIII Bolsa Albarracín com ‘Cartografía do esquecemento’ e publicou en varias revistas nacionais e internacionais de fotografia contemporânea como C41 Magazine, Float Magazine, Clavoardiendo ou Handbali Magazine.
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Clara de Vargas A Corunha, 1988 Noutra vida, estudei História e andava à toa a respeito de assuntos académicos e geográficos até topar certa estabilidade de volta na minha cidade. Sobrevivi à ansiedade, saudade e tristeza pela distância e perda durante o confinamento graças aos mundos fictícios do manga e videojogos. A violência e a fantasia conseguem anestesiar todos os sentimentos destrutivos desta realidade cada vez mais escura que estamos a viver.
Elena Agrelo Janza Caldas de Reis, 1990 Fotógrafa pola EASD Mestre Mateo, 2016. Nestes anos pude conhecer alguns dos muitíssimos códigos que há na criação fotográfica. Sigo a produzir uma série de ficções paralelas à minha linha temporal,os seres resultantes levam no seu adn os componentes principais que definem a cronologia que habito: depressão, introspecção, no futuro, natureza.
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Illa Bufarda 2012 Sabela Iglesias e Adriana P. Villanueva fundan a produtora creativa Illa Bufarda no 2012. No último periodo a equipa medra coa incorporación da fotógrafa Pilar Abades. En todo este tempo adquiren experiencia na creación audiovisual, en todos os seus procesos, dende a idea á postprodución, tanto en formatos curtos como longos, sempre botando man de colaboracións profesionais para acadar un mellor resultado. Da Illa Bufarda saíron as longametraxes documentais “Fíos Fóra” (2015) e “Patrimonio Habitado” (2016). Tamén a mediametraxe “Aberto e con fume” (2017) e a curtametraxe “Isaac, editor da memoria” (2012) entre outras moitas e variadas producións.
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Lucía Cernadas Cecebre, 1997 Nasci em Cecebre o três-do-seis-do-noventa-e-sete; cresci entre a fraga e uma estação de serviço. Gosto de cantar, de nadar despida, da literatura e dos buffets livres. @luciacev_
Mariola Mourelo Foco-me no trabalho comunitário e ativista ligando os meus três principais interesses: o feminismo, a fotografia e a educação, através dos projetos ffotoeduca, Revirada, revista feminista, e a facilitação de grupos. www.ffotoeduca.com - ffotoeduca@gmail.com (optativos - www.reviradafeminista.com - www.gruposaderiva.wordpress. com)
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Marta Pereira Fernández Ourense, 1994 Formei-me na faculdade de Belas Artes de Pontevedra. Os meus trabalhos iniciaram-se no âmbito fotográfico mas foi durante o meu ano de intercâmbio na Escola Superior Artística do Porto quando a minha obra se consolida e se orienta para temáticas muito concretas, explorando outras técnicas como a escrita e a performance. O indivíduo em relação com a sociedade é um dos temas principais nelas criando diálogos entre situações antágonas onde costuma confrontar-se o íntimo e o público, a presença e a ausência e o indivíduo face ao coletivo.
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Paula Pez Vigo, 1981 Começo a voar no mundo da imagem por necessidade pessoal, fascinada pola fotografia e a versatilidade da câmara de vídeo. Depois de anos a trabalhar como bióloga, decido formar-me no campo da fotografia ao mesmo tempo que continuo a experimentar com o audiovisual. Desde hai mais de sete anos a biologia ocupa um lugar secundário na minha vida. Trabalho como diretora de fotografia na produtora audiovisual Verve Creative Group à vez que continuo a misturar trabalhos comerciais, com outros de índole mais pessoal. Realidade ou ficção?
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Paula Tomé Son Paula Tomé, docente de profesión e tola de corazón. Escrebo arredor da saúde mental, entendida como proxecto persoal e político. Desde o feminismo, tamén, porque vai todo xunto. Encantada e agradecida de colaborar en Caleidoscópica.
Tere Fernández Sempre falei comigo mesma. Sou a que está por trás das minhas sobrancelhas, por vezes estou tanto em mim que as rugas que lá se formam magoam como feridas frescas, e outras vezes mesmo parece que saio pola nuca. Porém não sei desenhar, desejaria que ao fechar com força os olhos a minha boca vomitasse as imagens que me inundam, e deste jeito, dar-lhe ritmo ao caos. Procuro um lugar para olhar ao longe, tão longe que não veja o fim.
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