Jornal da Filosofia nº0

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Amar a mulher, amar o desejo Notas sobre literatura e psicanálise André Paes “La Femme n’existe pas.” De todas as frases de efeito surgidas nos Seminários de Lacan, essa é certamente a mais controvertida (e enigmática!). São inúmeros os sentidos que se poderia atribuir a tal afirmação, desde a bizarra acusação de misoginia até a filiação a um pensamento próprio ao estatuto do feminino, como em Simone de Beauvoir, por exemplo. Mas se essa “inexistência” da Mulher em geral é a causa de uma espécie de “sofrimento de indeterminação” do feminino, no caso da mulher por mim desejada, o problema é exatamente o inverso.

pelo corpo – mas como se houvesse empunhado uma pedra que encerrasse em si o sal dos oceanos imemoriais ou o raio de uma estrela, sentia que estava apenas aflorando o invólucro fechado de um ser que por dentro tinha acesso ao infinito... se o seu corpo estava sob o poder do meu, o seu pensamento escapava ao domínio do meu pensamento.”

Uma variação desse segredo maldito pode ser encontrada, entranhada na religião do estilo de Flaubert, no impulso de Emma Bovary pelo amor puro e simples, Tomada enquanto “este obscuisto é, pelo êxtase frenético de uma ro objeto do desejo”, como gosredenção amorosa e sexual que as taria Buñuel, a mulher padece, convenções nunca lhe permitina verdade, de um excesso de ram alcançar. Emma padecia do existência. incontrolável desejo de desejar; uma variante da inacessibilidade Uma mecha de cabelo que cordo objeto que constitui a Albertire por trás da orelha, um certo ne do narrador da Recherche. A modo de olhar para o lado ao mulher que amo é pura vertigem cruzar as pernas, a pequena cido absoluto. Aquele que camicatriz em uma das mãos, etc... é nha em direção ao objeto amado só por meio desses signos que repete continuamente o ato de a mulher aparece como objeto atirar-se no abismo da despersoda minha experiência; aquela nalização; de reinstaurar sempre que desejo só me é visível como o gesto de uma busca desmesuraque pelo pelo buraco da fechada por curar-se de si mesmo, do dura do meu desejo. Ainda que vazio de sua própria ausência. a mulher que amo me apareça Se o desejo de Emma Bovary era como um todo, a totalidade de marcado pela desmedida, sem um mundo, o seu mundo; ainda medida também era sua solidão. O Beijo, de Gustav Klimt que, por uma série de inumeráConstituo-me a partir do outro, mas veis acasos e inefáveis coincidências eu tenha encontrado nela é também nele que desabo, desfaleço, me despersonalizo... Não a imagem exata de meu desejo, sou incapaz de apontar o que conheço as trilhas daquela que amo, minhas mãos tateiam por desejo naquele corpo, pois se a mulher traz consigo uma tota- seu corpo, seus caminhos são meus mistérios e o único conhecilidade, ela não deixa de encerrar também um saldo, um exces- mento que dela alcanço é o de que estou diante do incognoscível. so, algo de inexprimível e que é justamente aquilo que faz com que ela deixe de ser uma pessoa comum para transformar-se Se, como quer Lacan, “a Mulher não existe”, é porque não é possível apontar a singularidade de seu desejo. É impossível defní em uma espécie de objeto de “soteriologia”. -la, a não ser negativamente, pela falta. Um vestígio disso sobreA mulher escurece, venta e chove a partir desse resto que não se vive na angústia daquele que ama, pois a mulher que se ama é deixa jamais apanhar. Uma forma sublime de reconhecer esse a medida própria do desejo do amante e não o objeto ao qual resto é o adorável, como nos diz Barthes. O adorável fala lá onde se direciona o amor. Como a determinação do meu desejo não a linguagem esmoirece, onde a gramática se esfacela e a sintaxe equivale nunca a determinação particular daquela mulher que é acometida pelo cansaço da impossibilidade. O que é o adorá- se coloca, por assim dizer, do lado de lá do abismo do impessoal, vel senão aquela especificidade que só vejo nela e em nenhu- a “imagem” da mulher que amo só pode padecer de um certo ma outra? O adorável é “a palavra vazia, o grau zero de todos excesso de existência, que se estabelece pela sobreposição da deos lugares em que se forma o desejo...” Por isso, a Albertine, de terminação particular da mulher ela mesma e da imagem exata Proust, é um ser de fuga, por isso seus olhos são opacos apesar do meu desejo sobre a ausência de determinação da Mulher em de refletirem toda a voluptuosidade das águas do mar de Bal- geral. Talvez por isso, por esse excesso, seja tão fácil escutar a bec: “Bem podia eu sentar Albertine nos meus joelhos, agarrar- melodia inaudível dos passos, marcados pela distância, daquela lhe a cabeça, acariciá-la, passear-lhe demoradamente as mãos que se faz, através de sua ausência, continuamente presente.


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