Jornal Discurso Sem Método - 2/2018 - Especial de Greve.

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EDITORIAL

lado trazendo uma caixa entre as mãos. Passada a catraca, caixa ao chão, um abraço.

O tema desta edição especial do Jornal da Filô é Greve. Decidimos publicá-la para propulsionar o debate entre os estudantes de filosofia, e das outras áreas da universidade, a cerca dessa grave questão, que é polêmica tanto quanto necessária. Também decidimos que nosso editorial não seria um textotese em defesa ou contra a greve, mas sim uma experiência inusitada de uma estudante da filosofia, justamente para que possamos começar com o problema em aberto: o que é a greve?

- Oi, vó! Quanto tempo. Que é isso aí?

Não foi o dia em que sabatinamos os candidatos à presidência da República, ou o dia que discutimos economia com o ex-ministro da fazenda. Também não foi o dia em que fomos à palestra do maior especialista em neoliberalismo do mundo; nem o dia que expulsamos o presidente do Partido Integralista do Prédio das Letras. Foi o dia que minha avó decidiu vir conhecer a Universidade de São Paulo.

Decidi que devíamos ir andando, assim ela conheceria um pouco do bairro e suas características. Supermercado, Posto, Farmácia, Vital, policiamento, acessibilidade. O trajeto de quinze minutos levou o dobro do tempo, mas valeu a pena. Esse labirinto de ruas tem alguma curiosidade. Minha avó, que não é de falar muito, comentou sobre o bairro ser bom, ser grande, e também sobre o excesso de carros: Como pode esse amontoado de carro passando de um lado pro outro!? Não dá nem pra atravessar a rua sem ter medo de ser atropelada.

É, realmente por essa eu não esperava. Foi uma surpresa. Digo “surpresa” porque ela nunca fez muita questão de saber o que que eu fazia aqui. Tinha memória fraca, provavelmente culpa da idade e da distância. Até dizia que gostaria de contar para as amigas sobre a neta que estuda em São Paulo, mas nunca lembrava o curso. O que é compreensível, afinal, como sempre morou no interior, esse mundo lhe era muito estranho. Estava mais acostumada com a vida do subúrbio. Casa pra arrumar, briga de família e fofoca. Outras situações, outras demandas. Porém, essa desatenção não era indiferença, gostava muito de mim. Tanto é que me ligava todo domingo, religiosamente, para saber da escola e como estavam as coisas. Tudo certo, ela desligava e só na outra semana. Entretanto, dessa vez disse que vinha pra cá, segunda à tarde e que era pra que a encontrasse na estação. Mal começou a semana e já vou ter que matar aula. Se começa assim, só pode piorar. – pensei. Me preparei para o evento, mesmo não sabendo se ela realmente viria. Limpei o apartamento pela manhã principalmente para recebê-la bem, mas também para não dar motivo de reclamação, bandejei e fui. Terminal Butantã, 14 horas, bocejava quando vi aquela silhueta familiar que chegava pelo outro

- Um fogãozinho elétrico pra você cozinhar. Você tinha reclamado que não tinha como comer de final de semana, taí. - Pô, vó, não precisava! Quanto você pagou, eu posso te... - ela me interrompeu antes que pudesse terminar de ser educada. - Não enche menina, tava na promoção, é tua. peguei a caixa e saímos da estação.

Aproveitei que chegávamos na portaria principal para introduzi-la à história da Universidade, afinal, esse espaço tem história. Me serviu de base aquela grande estátua do Armando Salles, com um pé de café de um lado e um de cana do outro. - Você sabia que esse terreno era uma grande fazenda antes de construírem a Universidade vó? Eles construíram as faculdades todas separadas, depois juntaram quase tudo nesse campus. Quando começaram, o projeto era formar a elite paulista para ocupar os cargos do governo e... - ela me interrompeu pela segunda vez, mas a essa altura já tinha me acostumado. - Ah! Entendi. É pra isso que serve isso aqui então. - Não, pera. Não só pra isso. Aqui a gente tá preocupado em fazer ciência. Principalmente pra ajudar a sociedade a ser mais produtiva, mais organizada e melhor pra população. - Tá bom. Seguimos em direção ao CRUSP, onde moro desde o ano passado. Fracassada minha empreitada histórica, decidi justificar minhas reclamações


sobre a moradia. Afinal, passei a acreditar que minha avó tinha vindo menos pela curiosidade e mais pela preocupação que as notícias suscitaram. Comecei dizendo que o CRUSP é uma ocupação onde vivem algumas das pessoas mais pobres da universidade, mas que há algum tempo a Superintendência de Assistência Social tinha tomado a gestão do espaço para ela. Que, principalmente por isso, as coisas estavam precárias: não tinha fogão, nem máquina de lavar roupa, nem manutenção de nada, um apartamento tinha pegado fogo ano passado... - Deus do céu. - ela disse – e você tá metida desde quando com essa história de ocupação? Dá pra ver que aqui é sujo mesmo, parece que ninguém faz nada. Bem que dizem que estudante é vagabundo mesmo. E outra, aqui mora menino e menina junto? Deve ser uma sem-vergonhice! Você não é dessas que sai com meio mundo não, é? - Calma, vó! Um vidro caiu, um gato miou, uma bomba estourou, alguém gritou: Canalha! Um morador de rua passou no corredor falando sozinho. Respirei e continuei. - É ocupação sim e eu tô envolvida, só que agora é “legal”. Agora, espera. Aqui moram meninos e meninas e eu saio com quem eu quiser, isso não importa. Antes o problema fosse esse! Tem inúmeros casos de agressão que passam por debaixo dos panos dessa universidade que diz defender os direitos humanos. Teve até ocupação por conta disso, por que estava insuportável, certo? Eu até te contei sobre isso, não contei? - Importa sim! - O que? - Com quem você sai! Não quero que você fique mal falada na boca do povo. - eu bufei e entramos no apartamento. Ela se assustou, primeiro com o tamanho, depois com a estrutura. Não dei tempo, porém, pra ela pensar. Puxei uma cadeira e a fiz sentar, ofereci um suco, ela aceitou. Fiz daqueles de saquinho, com adoçante, pois ela é diabética e não toma nada de açúcar. Começamos a conversar sobre a família, sobre meu avô que está dando trabalho por conta da idade, meus irmãos que estão desempregados e

minha prima que arranjou um namorado ruim, “maloqueiro” - segundo ela. Disse que gostou do suco, embora estivesse aguado, eu falei ainda um pouco sobre a “escola”. Gostei da presença dela. Não quis perguntar por que ela tinha vindo, preferi deixar em segredo. Já eram quase seis da tarde quando percebi. Ela tinha que pegar o trem logo para não voltar muito à noite e sozinha. Convenci-a de que podíamos passar pelo prédio da FFLCH para que finalmente ela conhecesse o espaço com o qual gastava mais tempo nessa cidade. Tinha um ponto de ônibus na frente, então foi difícil negar o convite. Subimos. Pelo horário, já era de se esperar que estivesse acontecendo algo no prédio. No entanto, não esperava que fosse justamente uma assembleia de curso. Ótima oportunidade para minha avó ser apresentada ao espaço de debate e exercício político dos estudantes. Eles se aglomeravam em torno de uma mesa, quase como num roda, alguns de pé, outros sentados. O segurança estava distraído olhando o celular enquanto professores e doutorandos observavam do andar de cima a articulação juvenil. Um estudante de camisa colorida falava sobre a greve que tinha acontecido antes das férias, dizia que ela não tinha acabado oficialmente e que devíamos continuar com ela pelo menos até decidíssemos por outro meio de luta. Não entendi, achei que já tivesse acabado. Alguns estudantes bateram palmas, outros não fizeram nada. Outro estudante, mais jovem e de camisa social, assumiu o microfone. - Olha! Eu não sou contra greve, pelo contrário, é legítima. Mas sou contra cadeiraço! - como se tivesse acontecido algo, um certo tipo de euforia estranha afetou a plateia, ficaram inquietos. - É antidemocrático, impede o livre diálogo e o livre exercício da política cotidiana. - Alguém gritou “É pra isso que serve!” - Não dá pra continuar com esses métodos arcaicos e sem resultados, precisamos de resultados e … - Um outro estudante interrompeu para complementar. - Sim! Isso! Precisamos de um novo movimento. Mais democrático, menos violento, que zele pelo direito das pessoas de falarem e serem ouvidas, que garanta a participação de todos e que seja mais objetivo. - Alguns bateram palmas, outros ficaram indignados, o segurança foi ao banheiro.


Era curioso, parecia que já tinha passado por essa situação. Cumprimentei alguns amigos que estavam por lá, outros que passavam por cima; talvez já tivesse acontecido. Creio que não, minha avô nunca tinha estado ali e, por sinal, não queria mais ficar. Me cutucou para irmos embora. - Vamos? Minhas pernas e minha cabeça já estão doendo. - Sim. Creio que isso não vai levar a lugar algum. O ponto é aqui do lado, a gente passou por ele. De lá você chega na estação e pega o trem. - Eu vi, tinha gente esperando. Acho que consigo ir sozinha.

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- Certo. - fiquei na dúvida, enquanto esperávamos o ônibus, se puxava papo ou deixava para conversarmos da próxima vez que nos víssemos, mas decidi adiantar uma questão. - O que você achou, vó? -Achei legal. É grande, parece até de mentira. - Você gostou? Ela assentiu com a cabeça.

Michele B

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Não há vida sem procriação, portanto a greve de

A Greve de Dorian Gray

sexo é parar a sequência; não existe probabilidade

Por que raios alguém disse que a greve ficou velha?

Talvez

previsíveis.

por

Vejamos

conta

de

alguns

seus

passos

apontamentos:

“greve”; “movimento”; “velha”. Para começar, algumas paralisações na história: a greve de sexo; a de fome; e a de caminhoneiros.

fome é a estagnação de uma pessoa; no presente momento da História, não há sobrevivência no Brasil sem o transporte de caminhões, assim sua paralisação é a impossibilidade do giro econômico e, consequentemente, de suas relações. Aliás,

Se o movimento é sexy, então a greve é de sexo. A paralisação em Lisístrata, talvez escrita ainda em algum tipo de pergaminho de barro, por Aristófanes, pois é datada de alguns seculinhos antes de Cristo – calcule aí mais de 2 mil anos até o momento! -, pode nos servir de parâmetro de partida. A greve de fome mais conhecida talvez seja a de Mahatma Gandhi, na Índia, que mobilizou milhões, na segunda nação mais populosa do mundo – fato ocorrido na primeira metade do século XX. E a greve de caminhoneiros no Brasil, em 2018.

esquecemos

de

mencionar...

o

mundo

contemporâneo é capitalista e o capitalismo é baseado

no

movimento:

das

fábricas,

do

transporte, das finanças, da exploração do trabalho, etc. Se os fatores mencionados também estão na ordem do dia na USP, onde os processos se renovam pegando carona com o mundo, fica a perguntinha: se o carro está desgovernado ladeira abaixo o que deve ser feito? Dica: acredita-se que pisar no freio. Vejamos o que mudou. Da carroça ao caminhão,

Do paro do coito, quando o maior meio de transporte era o cavalo, passando pelas bigas, carroças, máquinas da Revolução Industrial e novos acervos tecnológicos do último centenário, até os mais sofisticados caminhões, muito mudou – redundante esta afirmação em vista do próprio parágrafo.

substitui-se o aparato e mantém-se a lógica, potencializando-a. A modernidade e o capitalismo, portanto, tornam alguns aparelhos e relações mais periódicas e rotativas. Quanto maior a velocidade do carro na descida, maior o estrago, certo? A não ser que... Em um mundo onde os ponteiros andam a

Quando tudo se modifica e ao mesmo tempo continua em frente, ao menos uma única coisa permanece: o movimento. É quase como a afirmação de Caetano Veloso, “o tempo não pára e no entanto ele nunca envelhece”. Talvez aí está o melhor creme rejuvenescedor. Porém há uma ressalva,

de ser humano sem alimento, então a greve de

é

fundamental

entender

que

a

movimentação de uma árvore é a retirada de sua vida – alguém já viu uma andando por aí? – mas o parar de uma cachoeira seria sua própria impossibilidade de ser o que é. Entender a diferença entre o que é estático e o que não, é básico para nosso raciocínio.

acelerar, pautado cada vez mais pelo movimento, que se torna sequencialmente mais veloz, nada mais atual do que uma... paradinha – que, convenhamos, bem que poderia ser o sonho de sonhador de Raul Seixas. Lisístrata conseguiu cessar uma guerra, Gandhi ajudou na conquista da independência de seu país (e tornou-se um ícone mundial) e a paralisação de caminhoneiros de 2018 é o mais básico, tradicional e (always!) recente: parar! Nada mais previsível em termos de eficiência e eficácia, como sempre antes na História. Quantas eras tem o sexo? Qual a idade da fome?


Quantos anos possui o movimento? Se a greve é que ficou velha, então há algum tipo de inversão nos moldes de Dorian Gray. Seria como contrariar Caetano e dizer que o tempo é que envelheceu. Mas hoje o tempo vai fazer um pedido ao soprar a vela. O primeiro pedaço é para a greve. Juntos, eles formam um belo retrato.

Guaraí Pereira Machado ___________________ * O Retrato de Dorian Gray é um romance do final do século XIX, escrito por Oscar Wilde, onde Dorian manifesta o desejo de oferecer sua alma num pacto em que um retrato envelheça em seu lugar.

Esboço para uma crítica da representação: o DCE como morto-vivo A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de um outro que os representa por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte. (Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo). A familiaridade com o atual, de modo que este se torna como que uma “segunda natureza”, sempre tem um “quê” de investimento positivo do campo social, pois é da natureza do que é familiar o apagamento da posição determinada do observador, no interior do campo social que se torna autônomo a ele. Quando a consciência contempla, é sinal que o campo social tornou-se não só quase-objetivo com suas leis próprias, mas também uma quase-causa, responsável por ordenar os agentes e meios de produção, distribuindo-os, assim como seus produtos, determinando todo um regime de produção, distribuição e consumo social. A facticidade do familiar é condição de reprodução pelas próprias pessoas do campo social que, como observadoras, tomam a si mesma como separadas dos fatos e compreendem sua consciência como reprodução da normatividade do objeto. Uma antinomia curiosa: a formação do sujeito cognoscente abstrato não se dá sem uma “sujeição” frente às normatividades sociais que os escapam, mas que aparecem ao mesmo tempo como desvendada pelo puro exercício da Razão. A Razão aparece, assim, como faculdade que tem um vínculo íntimo com a Verdade, que, por sua vez, pode ser apreendida com o uso de um método adequado. Dado esse vínculo entre Razão e Verdade, o que se apaga é que o consentimento em torno do valor de verdade atribui ao estado de coisas atual uma comodidade, familiaridade, sendo o sujeito do conhecimento o ponto pelo qual se estabelece este consenso a partir do reconhecimento do valor da


verdade pela faculdade de pensar. Toda a disputa, no interior dessa concepção, não é em torno do valor da verdade, mas do modo pelo qual se chega a verdade. Daí deriva uma divisão: entre falsos pretendentes a verdade e os verdadeiros. O método (crítico ou não) teria ai seu papel de selecionador. Descartes crítica a falsa pretensão da tradição escolástica como detentora da verdade, acusando esta de recurso a autoridade aristotélicatomista, mais do que a um uso da razão segundo suas próprias ordem, ao qual corresponde um método, mas que salvaguardaria a moral e a existência de Deus. Kant, depois, acusa a metafísica, a “falsa pretendente”, de fazer um uso ilegítimo da razão, sendo necessário a submissão desta a uma crítica, ao seu tribunal interno, de modo a demarcar o uso legítimo de suas faculdades enquanto condicionantes do conhecimento, puro ou empírico, mas salvaguardando um lugar, ainda que não do ponto de vista do conhecimento, à Deus e à moral. E assim segue a história da razão sangrenta ocidental, negando sucessivamente a moral, a religião, o Estado, mas para melhor se submeter à razão e reconcilia-se, assim, com Deus, o Estado, e a moral verdadeiros, legítimos. O importante a fixar é: o reconhecimento pelo sujeito cognoscente da verdade aceita a conclusão sem suas premissas, pois não se pergunta pelo conjunto de relações que levam uma determinada forma ser reconhecida como objeto do pensamento, não se questiona pelo conjunto de relações que produz ou força o pensar a ser mero pensamento de determinado objeto naturalizado. Apesar da aparência objetiva da separação, o sujeito cognoscente é produzido por um dado campo simbólico-prático como adequado ao objeto contemplado, isto quando ele mesmo não se torna objeto produzido por esse campo, como no caso das ciências humanas. Então há uma relação sujeito-objeto que já não figura mais como pressuposição de uma antropologia (ligada a uma teoria do conhecimento, que toma o sujeito abstrato como dado) ou de um naturalismo (objetos dados – sociais ou não – com leis próprias passíveis de serem dominadas, porém não modificadas) que seriam ponto de partida da análise social, mas produto de um certo modo como o mundo social e a vida cotidiana vão sendo tecidos na multiplicidade dos momentos que lhe são próprios, momentos constituídos por regras internas e externas de realização: ao mesmo tempo agenciamentos concretos tão distintos (a escola, a

família, as prisões, a Universidade, os partidos) mas também mapografias sociais que respeitam a uma mesma lei abstrata de morfogênese da matéria, que vai dar na configuração atual da nossa topografia social, com suas instituições e formas de socialização correspondentes: dinheiro, capital, relações raciais, de gênero etc. Assim, romper com a familiaridade com o atual é se perguntar pela gênese das formas, como nascem as formas pelas quais é moldado e representado o Real, quais investimentos sustentam formas mortas que dominam sobre o vivo irrepresentável e tão degradado na história do pensamento ocidental: o corpo é sempre secundário.É sempre motivo para se desconfiar, portanto, quando a familiaridade, assim definida, já se instaurou na militância a ponto de esta (a militância) se tornar racionalizada. As fraseologias, formas de atuar e de tematizar os problemas se tornaram separada de seus militantes, constituindo uma instrumentalidade que torna previsível a reprodução das atuações em contextos qualitativamente diversos e em torno de questões com tempo e espaço que deveriam ser tomadas no nível de sua concretude ou de sua incomensurabilidade. Se tornar indiferente a essa singularidade em que o real se manifesta, é tornarse indiferente também as necessidades vitais que dão o conteúdo das mobilizações. Essa instrumentalidade se verifica no que diz respeito aos partidos e correntes de transmissão desses partidos. Nesse nível, se percebe todo tipo de cisão: dirigente- dirigidos, trabalho manual - trabalho intelectual. Mas a cisão mais fundamental é aquela entre todos os organizados a partir dessas cisões e a máquina autonomizada e vampiresca que se tornou a própria organização, entre os elementos constituintes e seu produto. As pessoas que estão fora da máquina, se tornam meios de expansão e conservação dessa máquina que se apresenta, por sua vez, como método de se atingir certos objetivos, que são pressupostos como telos de um desejo subjacente tanto de quem está dentro quanto quem está fora, mas que ainda não foi elaborado de forma autoconsciente. Assim, ao se autonomizar, o método se autonomizou do objetivo, se tornando um fim em si: a conservação e expansão do poder do partido, que pretende ser a forma auto-consciente do interesse objetivo ao qual esta consciência adjudicada falta. Daí o papel de “esclarecimento” da militância e de seu quadro


superior que constitui a vanguarda da consciência, de onde emana os mandamentos a serem executados. Se percebe, portanto, uma reificação própria à instituição, isto é, se forma um “sujeito coletivo” que se torna um sujeito sujeitado, pois o que interessa é a conservação do espetáculo da organização, da instituição que se torna a representante de um suposto desejo “objetivo”, coisificado. Toda instituição guarda, assim, algo de igreja, com sua forma contemplativa e ascética de vida, que parece ter tudo sobre controle a partir da disciplinarização de seus membros, mas que não deixa de ter seus segredos sujos. Para que essa redução do Real, a partir da qual a representação é realizada, se efetive é necessária uma abstração, isto é, que o incomensurável das relações, dos corpos, dos afetos, sejam reduzidos a uma forma comum de organização, que se torna quase-causa, um terceiro termo autonomizado em relação às próprias relações e que passa a media-las. A lógica da abstração, desse modo, não deixa de ser uma lógica da substituição, da comensurabilidade de processos qualitativos de produção e reprodução da vida social – o que demarca a pretensão totalizante da lógica da abstração, pois só por essa redução processos qualitativamente distintos podem ser subsumidos a uma mesmo princípio. Numa tal lógica de abstração, o incomensurável se torna objeto de destruição – é quando, no limite, vemos os mecanismos de exclusão, seleção, repressão e eliminação operarem. É a partir dessa lógica que a máquina de cooptação sem olhar quem - na medida em que o que interessa são números para angariar votos e aumentar a graça da organização - opera, com toda a fraseologia racionalizada. Quando a entrada e saída de um ou de outro se torna indiferente, é sinal que a lógica da sociedade baseada na equivalência já conquistou mentes e organizações, e que nosso comportamento se baseia agora em meras representações tornadas independentes. Mas a generalidade da representação não é uma ilusão, uma mera operação do pensamento, pois ela implica um modo de existência e, nesse sentido, ela produz efeitos concretos. É como o Espírito Universal em Hegel, que para fazer valer efetivamente a representação de si interior deve externalizar-se no mundo concreto, pois: O interno por si seria algo de morto, de abstrato, mediante a atividade tornar-se algo de existente (Hegel, A razão na História). O Estado, os

partidos e as correntes, são formas de interioridade, em que a exterioridade é apenas algo subordinado, um meio, uma aparência que tem menos realidade que a “essência” interior. Segundo a lógica da representação, a vida deve ser, portanto, depreciada, reduzida ao mero estatuto da “aparência”, suporte da interioridade que, diante dessa, aparece como seu negativo, seu não-eu, que entretanto é um momento necessário. A partir dessa depreciação, dessa metafísica social, a imagem, a representação ou a forma, enfim, o produto das relações concretas que passa a media-las e organizá-las, se torna mais real que o real. A representação aqui deve ser entendida, portanto, como uma espécie de despotismo do representante. Este é tanto mais eficaz quanto mais o seu estatuto real se baseia na sua natureza vazia, sua pura forma, que torna possível sua permutabilidade, sua circulação, encarnando em diversos seres empíricos, como, novamente, o espírito em Hegel, que ao incrustar o Universal no particular, dando a si mesmo uma configuração, uma realidade efetiva, faz do particular (indivíduos, e até as coisas inanimadas) meios pelos quais a razão chega à existência, mas que são logo sacrificados, se perdem e sofrem danos. Eis a astúcia da razão que subordinada todo o concreto, o particular, reduzindo-o a um momento, a um suporte de sua realização, moldando-o à sua imagem e semelhança com vistas a realizar a si mesmo como fim – a mediação (o Espírito) tornase o fim em si mesmo indiferente aos interesses vitais, concretos, como o trabalho abstrato no Capital, que em sua objetivação visa a si mesmo de modo sempre ampliado na forma do Valor. Daí o caráter também (auto)destrutivo da abstração real, já que a intensidade concreta das relações e dos seres uma hora padece de confinamento, frustrações e indiferença face uns aos outros e a si mesmo em decorrência do “trabalho” do negativo abstrato que subordina a vida concreta. Anúncio do niilismo. A questão é, então, que não existe organização sem aqueles que a compõem. Quando a autonomização do produto se dá, em decorrência da própria dinâmica de produção, inclusive das organizações, a escolha se torna uma escolha “já feita” para todos que se relacionam por meio do próprio produto que estabelece a comensurabilidade, as infinitas alianças que só se efetivam enquanto os interesses particulares se


tornam passíveis de serem realizados à maneira contratualista, desvelando o identitarismo de base. Há um ar de familiaridade entre os pretendentes ao aparelho do Estado, com seus órgãos burocráticos e empresas que concorrem na esfera da circulação do valor. Eles – os pretendentes à “política” (o Estado) - também concorrem entre si para serem cãos-de-guarda da burocracia e agentes do Estado, para serem administradores e gerenciadores do conflito social, e, assim como no mercado, essa disputa pela instância de regulação das relações capitalistas e seus produtos pode ora respeitar a normalidade contratualista, ora passar para violência extra econômica. É essa separação do representante e do representado - o domínio do “morto” (tempo passado) sobre o vivo, fazendo do passado um presente que não passa, um presente perpétuo que mina uma experiência política capaz de abrir espaço para as ações transformadoras e irrepresentáveis da vida social cotidiana. O DCE e demais organizações do movimento estudantil sugam essa potência de uma experiência real na medida em que se autonomizam da base. Enquanto aparelhos de poder da ordem existente, que se apresentam com o invólucro progressista e como elaboração consciente dos interesses estudantis por uma melhoria social, o DCE e demais organizações funcionam como máquinas de captura das forças produtivas, contribuindo para um investimento conservador da ordem existente, pois não muda o modo de produção do desejo - um modo alienante. Isso é manifesto no conjunto de reuniões independentes da base com a reitoria. Isso não se restringe ao PT, não é um mero dado programático, mas partidos como o PSOL se estivessem no DCE fariam algo semelhante, como já fizeram. Pois a lógica da representação leva a uma autonomização da estrutura, que se torna uma máquina propensa a conciliações para administração da matéria humana que essas estrutural moldam e buscam representar. O fato de ser uma organização burocratizada e espetacular, faz com que o DCE e os demais pretendentes à agentes de Estado que ocupam essa estrutura, estejam intimamente ligados à dinâmica fetichizada da forma-Estado e seus adjacentes aparelhos. Como o objetivo se torna a conservação da própria máquina, as pautas e demandas vitais se tornam um subproduto, mero aspecto secundário em relação ao fim em si

mesmo do aparelho – a própria organização partidária, ou o próprio DCE. Aliás, se há uma apatia em relação ao movimento estudantil, arrisco dizer que se deve, em parte, a lógica da representação, que apesar de entrar muitas vezes em crise, ainda se mantém como princípio pelo qual se faz a exigência de solução, vendo o problema como um problema de caráter ou de quem ocupa essas estruturas autonomizadas do poder. Alimentando, assim, uma espécie de servidão voluntária cujo desfecho é um niilismo generalizado. O niilismo não é o ponto de partida, mas o ponto de chegada de uma forma de vontade que é a vontade do nada, a vontade do nada é a vontade da representação, da contemplação de um objeto produzido que se separou da ação de produção, se tornou um telos ou um ideal pelo qual o real deve se conformar, um além do próprio desejo, uma falta comum: “A assembleia é dominada por um minoria extremista”; “a greve ficou velha”, “a assembleia não é representativa”, diversas frases enunciados por estudantes que lidam com o movimento estudantil como se fosse uma zeladoria que deveria garantir as condições normais de sua preciosa formação, sem importar que já não há condições para tais e que sua preciosa formação é miserável. A representação, não tomada meramente como representação da consciência, mas como uma abstração real que dá uma forma organizada e autonomizada à vida social e as forças produtivas desta, apenas adia o niilismo suicida. E ela adia na medida em que dá um sentido ao sofrimento, à má consciência social, seja pela figura do Deus, seja do Partido, e suas promessas de redenção e cura delegadas a um Outro. Quando o ideal ou a representação entra em crise, o que se evidencia é esse empobrecimento da vida, uma impotência, um cansaço, uma negação da vida, mas já desprovida do seu Ideal que foi desvalorizado, também reduzido ao nada: daí a manifestação ressentioda contra o movimento estudantil. É necessário ir além do cansaço, do nada da vontade e passar a uma posição afirmativa, afirmar a si mesmo como algo positivo. Ainda somos muito piedosos com a representação. Aqui se apresenta a autogestão como forma de subordinar a estrutura organizacional aos seus elementos constitutivos (as premissas da conclusão), invertendo a relação.



Entrevista com Jorge Grespan. Nos perguntamos não só de nossa miséria enquanto estudantes, mas a da teoria em seus diversos campos: histórico, filosófico, geográfico etc. Esse é o eixo que orientou a presente entrevista com Jorge Grespan, que faz parte de um projeto mais amplo denominado “O mal-estar na teoria”, na qual se aborda conceitos como de historiografia e de história de uma maneira crítica, de modo que, nesse processo, se delineia o próprio papel do intelectual e, por conseguinte, a condição da teoria na situação atual e sua potência crítica. Assim, uma linha de força perpassa a entrevista: ao mesmo tempo que se reflete sobre o papel do intelectual, fixado no interior de uma instituição que ele alimenta, alimentando aquilo que o oprime e fornecendo o saber necessário para a reprodução da instituição e da sociedade a qual pertence, busca-se identificar os índices de linhas de fuga que perpassam o próprio corpo institucional. Identificação que envolve apesar das dificuldades de nomeação - pós-moderno, contemporâneo, pósguerra - por um diagnóstico do atual estágio do capitalismo e dos diversos colapsos que o acompanham: não só político econômico, mas também de uma imagem, também de uma forma de experiência da resistência anti-sistêmica que parece ter passado para a história: a forma partido. Gustavo (G): Como o exemplo da São Remo demonstra o processo de desenvolvimento histórico do espaço e espacial da história enquanto disciplina. Essa separação entre a Universidade e a cidade enquanto momentos da divisão do trabalho? Diante disso, qual é o papel do intelectual? Jorge Grespan (JG): A São Remo não existia até um tempo atrás. Quer dizer, não houve uma divisão entre a USP e a São Remo. Na verdade, a USP se estabeleceu aqui nos anos 60, no tempo que recém tinham conseguido retificar o Rio Tietê e, portanto, construíram as marginais. São Paulo cresce muito rápido, então esse panorama da cidade pra esse lado do rio não existia até há 50 anos. Tinha o Instituto Butantã e tinha esse terreno vazio aqui, botaram a USP aqui por causa disso. E, inclusive, não é por acaso que esse bosque da botânica é de mata atlântica original, eles não chegaram a destruir, deu pra não destruir um pedaço da mata atlântica que havia aqui no

campus. Então o que aconteceu depois? A São Remo foi surgindo nos 70, principalmente anos 80, em função. Os funcionários que ganham menos, cujo o salário é menor na USP, não queriam morar longe, e começaram morar aqui perto. Quer dizer, no fundo a origem da São Remo são os próprios funcionários, uma espécie de um apêndice da USP. Aí sim há uma divisão do espaço, porque existe um espaço capitalista, o espaço da valorização predial, da valorização do terreno urbano, e o espaço da desvalorização, mas que precisa do trabalho por perto, então o trabalho mal pago. E agora inclusive sem sequer Hospital. A São Remo tinha um Hospital Universitário aqui do lado, e o hospital está sendo desativado. Isso é um absurdo completo. Então o que a gente tem é isso: um reflexo, um retrato desses processos do Brasil, que entra no século XXI com os problemas mais graves do século XX, do século XIX. É o que aconteceu em Brasília, né? Quando os planejadores urbanos pensaram Brasília, eles não se lembraram que os ilustres funcionários públicos iriam precisar de serviçais, como é a tradição escravista brasileira. E esses serviçais se colocaram nas cidades satélite. Que hoje é um problema, que começa a ser debatido com mais força. Aqui aconteceu isso também. O que a gente tem que fazer como historiadores, é contar essa história, e contar essa história, enfim, eu não tenho condição de contá-la com detalhes aqui, de modo crítico para que não apareça como uma coisa que caiu do céu, que sempre teve aí. E sim que apareça como resultado de um processo, de um processo capitalista de destinação do solo urbano, numa cidade gigante de um país brutal, em que as injustiças sociais são terríveis e que, portanto, a divisão do espaço urbano reflete esse negócio. Pedro (P): Mas o que você disse é que a São Remo foi também um resultado do urbanismo que a USP criou, do fato da USP estar aqui. Mas por quê esse resultado tão contrastante? JG: Porque é isso, esse é o Brasil. Já os viajantes do século XIX vinham pra cá e chamavam “Brasil Terra de Contrastes”, porque eles chegavam e viam os caras “pseudo nobreza da terra” querendo imitar os europeus, enquanto isso os escravos africanos e indígenas passando mal. Esses contrastes é o tipo de capitalismo periférico do Brasil. E que continua século XXI afora, mas muito mais agudo. antecipando um pouquinho a


questão mais pra frente do século XXI etc. Enquanto o Brasil teve a possibilidade de exportar as commodites pra China, basicamente, o Brasil conseguiu ficar mais ou menos até 2013. A partir do momento que a China começou a comprar menos, e o preço caiu, a crise entrou com força no Brasil, a crise mundial que o governo brasileiro se recusava a ver a gravidade. Me lembro de ter conversado com pessoas do PT que diziam “não etc… não”, um pouco a repetição daquela coisa que tinha até na Ditadura Militar que era: o Brasil é uma ilha de tranquilidade, o mundo inteiro desabando, mas o Brasil ficava de pé. Bom, finalmente, quando entrou aqui, aqueles contrastes todos - que não chegaram a diminuir, mas ficaram mais ou menos mascarados, contemporizados voltou a explodir com força a partir de 2013: os pobres ficaram mais pobres e os ricos mais ricos. Isso é um fenômeno mundial da crise de 2008 e no Brasil ela assume uma proporção assassina.

pra essa parede, talvez essa parede escutasse mais. Foi levado um abaixo assinado com não sei quantos milhares de assinaturas, o reitor, o atual, o Vahan, se recusou a receber as pessoas que levaram a abaixo assinado para ele. Quer dizer, a reabertura do HU não está em vista.

G: Dá pra dizer então, pelo que você falou, que o planejamento urbano uspiano ignorou e ignora esse refugo que ele mesmo cria, a São Remo por exemplo?

JG: Não, foi antes, foi 7 eu acho, não me lembro mais exatamente o ano.

JG: Não sei. Vocês teriam que conversar com o pessoal da arquitetura, da FAU. Conheço vários professores de esquerda na FAU, aliás a FAU tem uma tradição de esquerda muito forte, e deve ter vários projetos de tentativa de, vamos dizer assim, se aproximar da São Remo, de integrar a São Remo, inclusive do ponto de vista da urbanização. Acontece que isso não sobe, não bate, porque para nas instâncias do Conselho Universitário. A USP tem um dos sistemas mais fechados das Universidades Paulistas (Unicamp e Unesp) e do Brasil. A Unicamp e a Unesp são muito mais abertas, as federais também. A USP, os esquemas de poder são muito fechados. Quando o ex-reitor Zago entrou aqui ele disse: “a USP está com uma crise econômica”. E disseram: “mas como é que você não falou isso antes? Você era pró-reitor do Rodas.” E ele disse: “eu não sabia desses dados”. Então, isso, se é verdade, isso assusta, porque se nem um pró-reitor sabe dos problemas, então quem é que sabe? O reitor só, e o governador, sei lá. Quem é que sabe? A falta de transparência é total. Então, por exemplo, a gente tá pleiteando a retomada a pleno vapor do HU para atender a comunidade lá da São Remo e por vários fatores, inclusive também para ter um hospital escola pros estudantes de medicina. É a mesma coisa que falar

G: O Zago, quando teve na gestão dele, falou que a USP tinha sido pacificada, você acha que isso aconteceu? JG: Nunca, pacificada… imagina. Esse tipo de diagnóstico surgiu quando teve a invasão da reitoria. A invasão da reitoria pelos estudantes foi muito importante, tanto que foi o momento que surgiu uma nova forma de luta né, que se espalhou pelo Brasil, vários estudantes de outras universidades também invadiam… Laila (L): Isso foi em 2012?

L: Teve outra invasão depois né? Invasão não… Ocupação. JG: Mas a primeira grande foi em 2005, 6, 7, não me lembro bem. Foi na gestão da Sueli Vilela. E foi ela justamente que provocou a situação toda, porque os estudantes tinham chamado a reitoria pra vir conversar, tava tendo uma assembleia estudantil, do DCE, aqui no anfiteatro da geografia. E aí a reitoria foi convidada, os estudantes tinham toda uma pauta de reivindicação, e aí ela não veio. Podia ter mandado um representante, também não mandou. Então o pessoal disse: “bom já que ninguém da reitoria veio até aqui, vamos até a reitoria”. Quando chegaram na reitoria, a Reitora mandou fechar tudo, tudo... pra ninguém poder entrar. Aí sempre tem alguém que resolve tomar a história na mão e meteu o pé na porta. Aí todo mundo entrou, ninguém tinha planejado, na hora, os estudantes resolveram ocupar a reitoria. E isso foi uma coisa, enfim, que denota bem a dificuldade das autoridades da USP de entender, de acompanhar o movimento democrático. Uma coisa de conversar, sequer com seus colegas a conversa acontece, sequer com os professores. É só vocês assistirem uma sessão do Conselho Universitário, realmente é assustador. Então imagina conversar com funcionários, imagina


conversar com estudantes. Se cria esse clima que o pessoal fala de violência de não sei o que no campus, então foi autorizada a entrada da PM no campus em caráter permanente, e tudo mais que foi surgindo. O Rodas tinha um plano de construir uma reitoria, uma segunda reitoria lá na praça Roosevelt, caso a reitoria fosse ocupada de novo ele levava a reitoria pra lá. Ia gastar uma fortuna pra fazer isso. P: Nossa, pior ainda. Ia ocupar mais ainda na praça Roosevelt. Riso geral JG: Mas é isso, é a cabeça de quem era do Largo São Francisco, o cara não tem nenhuma relação com o campus e ele queria que a reitoria ficasse lá perto da faculdade dele e não aqui do campus. L: Eu queria entrar num ponto específico, que você comentou, com relação à crise. Supondo que há a crise mundial. Eu acredito que exista mesmo uma crise mundial, não sei até que ponto ela é realmente econômica, realmente financeira ou se ela é um modelo político em crise. A minha preocupação é como isso é utilizado como justificativa de continuidade da precarização. A crise mundial eu até posso aceitar. Mas essa crise existe num Estado como São Paulo riquíssimo, que arrecada e nem repassa o que arrecada e que deveria ser destinado… o fundo que prevê a USP é o ICMS, e é o maior recolhimento tributário do Estado, e parece que no acordo era pra ser repassado 30% e não é repassado nem 9%. Então como também o discurso da crise sempre se atrela ao economicismo e acaba sendo usado quase como uma carta para justificar tudo. Então os estudantes não conseguem estudar direito, porque não tem como imprimir seus textos, não tem como imprimir os textos que são programas na ementa. E quando isso é colocado pra reitoria, por exemplo, vem a desculpa da crise, a justificativa é “estamos em crise”. Mas você mesmo disse, como a gente pode acreditar nessa crise, se não tem minimamente uma abertura das contas, se não tem uma transparência. Se nem o vice-reitor, algo que a gente consegue declarar como um teatro, uma farsa um vice-reitor se colocar na posição inocente ou quase uma vítima de desconhecimento, de uma ignorância da estrutura. Eles estão um do lado do outro. A gente consegue entender que um professor diga que não sabe, um estudante, porque

essas foram as pessoas que foram barradas de entrar na reitoria. Agora quem tá ali na reitoria e num cargo tão próximo, isso é monstruoso né. Acho que o espanto que você coloca pra gente é exatamente o ponto que a gente podia desenvolver pra pensar o que é essa crise realmente. Danilo (D): Na entrevista que o Zago deu ano passado pra Veja, tem um momento da entrevista que ele fala que o programa de sustentabilidade que ele aprovou ano passado é como se fosse uma lei da responsabilidade fiscal da USP. Então, pegando um pouco o que a Laila falou, como pensar o discurso da crise na universidade, a sua relação com o que é nacional e mundial? Como esse discurso legitima suas medidas por uma espécie de necessidade ou emergência políticaeconômica e como ele se vincula a uma intensificação dos processos de repressão e militarização? Porque algo que foi bem emblemático na aprovação desse programa de sustentabilidade, é que ela foi feita sob repressão, muita repressão de quem tava tentando mostrar o quão absurdo era aquilo e protestar contra a aprovação desse programa. JG: A crise existe de fato. É uma crise econômica que começou lá entre 1999 e 2000. Uma crise de acumulação de capital típica do capitalismo. O capitalismo tem essas crises de acumulação, que são resultados das contradições profundas do sistema, da relação do capital com o trabalho. O ponto é, quando não existe crise, quando existe uma acumulação, digamos assim, fluída do geral, do capitalismo mundial, é possível, se os trabalhadores se mobilizarem, se os estudantes se mobilizarem dentro da Universidade, arrancar alguma coisa do capital. Mas, em geral, o capitalismo não quer dar nada, porque justamente a crise brota da contradição entre capital e trabalho. E essa contradição significa o seguinte: o capital só existe e só é capital porque ele explora a força de trabalho. Se ele não explorar a força de trabalho ele não existe, ele não é capital. Entretanto, acontece um conjunto de fatores ali entre 1999 e 2000 que faz com que a crise apareça de modo visível, inegável. Ela foi contornada, em seguida, entre 2001 e 2002 até 2008, com um conjunto de estratégias adotadas dos Estados Unidos pela política econômica americana. Só que em 2008 não deu mais para segurar a crise... L: A bolha estoura…


JG: A bolha estoura… e ela não é mais financeira, ela é realmente um problema que tem a ver com essa contradição profunda da relação do capital com o trabalho assalariado. O capitalismo pode encontrar uma solução de longa prazo, mas não dependente dele, que é a adoção de um novo patamar tecnológico-institucional, como aconteceu depois da segunda guerra mundial, e que dá uma sustentação durante algumas décadas para o capitalismo. Enquanto isso não acontece, e pelo jeito não está acontecendo, as tecnologias novas que estão pintando não estão conseguindo retomar o patamar da taxa de lucro anterior, a forma mais simples que o capital encontra para continuar sobrevivendo é arrochar ainda mais a força de trabalho e pagar menos ainda. Por isso que a gente tem uma crise mundial, mas que parece que não é mais crise mundial, porque ela rebentou entre 2008 e 2011, 2012 no primeiro mundo, todo mundo arreganhou os olhos. Não foi uma crise porque o México não pagou, porque o Brasil deu um calote, porque a Rússia não sei o que. Não, foi uma crise que arrebenta nos Estados Unidos, pega a Inglaterra, França, Itália, Espanha. A Grécia e Irlanda, como pontas da Europa, mas pegou o núcleo da própria Europa, pegou a Inglaterra, depois pega a menina dos olhos da Comunidade Europeia, que era a Espanha, em seguida pega a Itália, chegou a pegar um pouco a França, que daí foi que a extrema direita cresceu pra caramba. Então a relação com a política é exatamente essa. É que daí justamente a extrema direita vê justificada o seu projeto de poder, dizendo: “Olha, como existe uma crise econômica, só nós temos a solução pra essa crise”. Foi o que aconteceu na Alemanha prénazista. Entre 31 e 33 o Partido Nazista ascende porque eles dizem: “Só nós temos a solução”. E eles chegaram lá apresentando a solução deles. E qual é solução hoje em dia? Neoliberalismo, arrocho salarial, retirada de todos os direitos mínimos que o trabalhador tinha de saúde, educação, transporte, a retirada de tudo isso. E por isso então a violência, por isso a militarização, por isso a implantação das polícias, porque é claro que as pessoas vão protestar. As pessoas ficam tirando a aposentadoria, tirando a saúde, tirando a educação. Agora os exames médicos saíram do SUS e vão passar para a iniciativa privada, de modo que o pobre não vai fazer mais exame médico. Em função de tudo isso, o que é que a gente tem? A gente tem uma situação, vamos dizer

assim, em que a crise econômica real acaba também, é lógico, servindo de pretexto para proposta de direita e extrema-direita. Uma coisa não anula a outra, as coisas estão se completando, justamente, elas vão se completando. Por isso o quadro que a gente tem é um quadro cada vez mais grave e assustador. Assustador, porque a gente não sabe onde vai parar as coisas. L: A extrema direita se coloca como a única alternativa, porém os autonomistas (esquerda nãopartidária, extrema-esquerda) também se colocam como uma alternativa, não fascista inclusive. Nos momentos de crise como na França, Espanha e Grécia eclodiram várias ocupações autonomistas que apontavam para uma ruptura, assim como a extrema direita. Um ponto em comum que evidencia a disputa pelos movimentos sociais. Porém, o primeiro segue por uma via que vou definir de maneira quase poética como um banditismo por uma questão de classe, e isso é tido como violento. Mas há uma grande diferença entre você reconhecer uma revolta de um quilombo ou de uma ocupação autonomista que está sofrendo um arrocho, uma precarização completa, declarando que não fará mais parte disso e que está disposta ao confronto; e a violência criminosa ou institucional. É possível definir essa “violência” de outra forma, ou seja, separá-la e compreender que a reação desses movimentos passa muito mais por um viés defensivo diante da violência como fator institucional? Pois, por exemplo, quando olhamos para o fato de que num contexto de crise o Estado investe 30% de seu orçamento em segurança pública (violência institucional) como solução, ao invés de investir em estudos que nos ajudem a solucionar o problema econômico em questão. Como que o investimento tem que ser nessa área? Que tipo de saída para crise é essa? JG: De fato, já faz muito tempo que a via dos partidos burocratizados de esquerda se mostrou um caminho muito parcial para se chegar a uma mudança mais profunda da sociedade. Daí, vários movimentos que surgiram posteriormente a crise de 2008, assim como os que surgiram no final do século XX, com vários graus de consciência, que não acreditavam mais que por dentro do sistema era possível alguma forma de emancipação. O que vem de encontro, quando falamos do Brasil, com a ideia de muita gente que acreditava na melhoria por meio de reformas que levassem o país a


posição de um país burguês de capitalismo avançado – o que deu com os burros na água. Como a Primavera Árabe ou os Indignados que, por sinal, tem um nome muito interessante, pois se indignaram em relação ao que? Acreditaram em uma determinada saída? Foram traídos? Se decepcionaram? Coitados. A Espanha que era a menina dos olhos da Europa se desfez de forma efêmera, assim como o capitalismo tardio, administrado que muita gente apostou. Esse capitalismo tardio, por sinal, era próximo daquele dito por Lenin no começo do século XX, ou seja, o capitalismo de oligopólio, financeiro. Quanto a violência, ela não pode ser autonomizada. Se assim for, todos tornam-se bandidos menos o Estado e suas forças de repressão. Nesse sentido é melhor tratarmos de repressão quando falamos da violência do Estado e, quando tratamos do crime, por exemplo, dar nome aos bois e entender suas relações. O que é incrível, por exemplo, não é que haja crime organizado ou violência nas favelas, mas como não há mais gente envolvida nisso visto a situação em que se encontram, por que realmente a coisa é de uma crueldade social. A sociedade de classes se intensifica, se polariza, cada vez mais num processo agudização. Existe o discurso da crise e também o discurso da violência que são formas de autonomizar as relações como se fossem extrapolações da sociedade de contrato que vivemos oficialmente desde pelos menos o século XIX. O que é a violência nesse sentido? É aquilo que sai do contrato, que o extrapola. L: Bom, quando você se referiu ao capitalismo tardio usou como referência Lenin, porém também podemos encontrar no Livro IV do Capital algo parecido, sobre a crise e o ponto de ruína do capitalismo. Queria que você trouxesse à tona a dinâmica do capitalismo tardio em Marx. E, também, que pensemos sobre a indignação como algo que deriva do ponto de saturação de uma determinada coisa, ou seja, é uma manifestação de que algo chegou ao seu limite. Em relação a essas duas coisas e sobre o que você já falou até aqui, podemos pensar que o século XXI nos reserva algumas coisas que passam por aí, visto a situação da sociedade. O que podemos esperar dele e onde nos resta investir?

JG: Em geral, podemos pensar que uma das potencialidades da Filosofia e da História, é a crítica, como vocês bem disseram. Mas outra dessas potencialidades é o contrário disso, a aceitação do mundo e a legitimação do que está aí. Uma parte da historiografia, por exemplo, segue nesse sentido. Quando não legitima, pelo menos desvia a atenção do foco onde o conflito real e profundo acontece. P: O cotidiano da Universidade contribui para isso? JG: Claro! Por exemplo, esse próprio campus foi construído de forma que os prédios ficassem bem distantes entre si, de modo que impedisse a integração possível entre os estudantes de diferentes cursos. Quando os estudantes estavam no centro da cidade, eles se viam e conversavam, pois estudavam nos mesmos prédios. Essa é uma das coisas, por exemplo. P: Justamente num lugar onde se pretende a “construção de um conhecimento” crítico isso me soa como contraditório. JG: Sem dúvida. Por exemplo o nome Universidade, ou seja, um “todo do saber”. Porém esse saber está todo fragmentado, exatamente pelo tipo de ciência que se faz. Não integra, mas sim fragmenta, o que, por si só, já atrapalha o desenvolvimento de um conhecimento crítico. Por que o sujeito estudo o dedão do pé e nãos e dá conta de que o problema está em outro lugar. Se esse sujeito produzisse um conhecimento universitário, holístico, ele se daria conta de que o problema está em outro lugar. Mas como se perdeu essa intenção de unidade do saber, o conhecimento aparece como fragmentado inclusive quando tratamos do espaço. Os estudantes estão separados entre si, mas também dos trabalhadores, assim como dos professores. P: Deixa eu metahistórica....

lhe

fazer

uma

pergunta

L: Não, calma aí, deixa ele responder a pergunta anterior. P: Oxi, os estudantes quando perdem o lugar de fala não conseguem lidar. Se entendem enquanto donos da universidade e não conseguem lidar com


quem vem de fora. O que teria na própria história do poder, do projeto pedagógico que impediria isso? Que resultado foi esse? Pois, você tem um marxismo, um caldo crítico junto a uma alienação no próprio cerne. JG: Sim, tem vários problemas meu caro. Por exemplo a tecnicização do conhecimento, ou seja, a ideia de que quando um saber não se torna conhecimento prático, técnico, empírico, ele de nada vale, em outras palavras aquele velho ditado “saber é poder”. É a razão instrumental que vocês vêm comentando. Por exemplo, o jovem Marx já tinha sacado isso. O tempo da filosofia já era, agora é o momento da práxis; é a famosa 11ª tese das críticas contra Feuerbach[1]. Filosofia aqui não diz respeito a epistemologias diversas ou estéticas, mas sim filosofia sob uma perspectiva crítica. A passagem das armas da crítica para a crítica das armas. Esse é ponto crucial entre 1844 e 1848 em que ele vive e vê essa transformação. Mas não somente esse período. Mais tarde, quando ele está escrevendo o Capital, ele também é o primeiro secretário da Internacional. O que é curioso, pois o momento mais rico de sua produção intelectual também é o momento mais rico de produção prática enquanto revolucionário, numa rede de contato com o mundo inteiro. Entretanto, quando ele trata da passagem para ação, ele também trata de colocar que uma boa prática é orientada por uma boa teoria. Uma teoria para prática, não uma reclusão do intelectual em seu gabinete para pensar o mundo que o cerca. P: Como, por exemplo, a sala de aula. L: Pelo contrário. JG: Sim, a sala de aula é um espaço de atuação, um espaço prático. Na sala de aula não se elabora teoria, por mais que surjam ideias novas nos debates que fazemos. Geralmente o que se faz é o diálogo que produz um saber diferente, o interlocução. Este que vem quando o aluno me traz novas referências que eu nunca teria acesso se não fosse por este espaço. É maravilhoso, pois há uma atualização do mundo que me revê-la como ele está mudando e, ao mesmo tempo, a troca dessa experiência da leitura dos autores clássicos,

com estes mesmos estudantes. Assim eu não fico parado no tempo e eles não têm de ficar redescobrindo a roda. P: Bom, mas você sabe que a Universidade é um projeto político. L: E por isso as pessoas a estão disputando. JG: Eu sei. A barra está pesando. É notável que a direita vem ganhando espaço, não era assim. É realmente o momento de ocupar esse espaço para que ele seja crítico. L: Uma ocupação crítica que, por sinal, pode devir uma ocupação prática. Por que, por exemplo, um dos pontos que queremos chegar com a empreitada dessa entrevista e todas as outras é conseguir legitimar as ocupações e os projetos autonomistas. Carol (C): Gosto dessa leitura holista de não aceitação do que se está lendo, mas uma das coisas que vejo dentro dos cursos de humanas é uma iniciação ao mercado de trabalho que é oposta a essa leitura prática. JG: Tem um problema que é o seguinte, a Universidade está inserida no mundo e ela tem que estar inserida no mundo. Isso faz com que a Universidade sofra também as más influências do capitalismo de forma geral. Por exemplo, a formação das pessoas para o mercado de trabalho. O curso de ciências sociais, por exemplo, era um curso muito mais teórico, onde se lia os clássicos.; hoje, é um curso onde se introduziu muitas disciplinas instrumentais em detrimento daquelas. Não é só uma proposta da universidade, mas também os estudantes querem isso. Ainda mais em época de crise quando a possibilidade de desemprego vem acompanhada por um discurso completamente ideológico de: você não quer ficar na miséria, monte seu próprio negócio! L: A corrida do ouro da serra pelada! C: Investimento de curto prazo que acaba voltando como lucro para os bancos. JG: Nesse sentido, a Universidade serve como meio pelo qual as pessoas se qualificam para ocupar cargos em empresas junior's ou melhores cargos nas empresas que já trabalham. Essa é a


estrutura que a Universidade está imersa e que faz com que ela esteja instrumentalizada, com uma tendência individualista. C: Em relação a isso, o que você tem notado em relação a organização e movimentação dos estudantes? Reformulando, a universidade como meio de inserção no mercado de trabalho possibilita outras experiências que escapam a essa estrutura, a esse sentido, ou não? JG: Tem autos e baixos. Momentos em que o movimento estudantil está mais forte e, portanto, consegue alguns avanços, às vezes, até sem querer. E outras vezes que não, de certo marasmo. Não sei definir muito bem isso. D: Nós pensamos que existe uma relação íntima entre a razão instrumental e a crise, pois quando esta emerge, parece haver uma intensificação dessa razão instrumental. Entretanto, ao mesmo tempo que se tem essa intensificação do domínio da vida, também tem uma intensificação das formas de resistência. Isso se manifesta, por exemplo, nesse discurso de que as pessoas devem ser empresárias delas mesmas, gerir as ações cotidianas como se gere uma empresa, e, na outra ponta, uma multiplicação dos problemas que o movimento tem de enfrentar. Na Universidade nós temos que lidar com o desmonte do H.U. ao mesmo tempo que a redução da permanência e a questão da contratação, enfim. Então você tem uma fragmentação das pautas e da resistência ao mesmo tempo que um aumento do domínio do capital sobre a vida. Como lidar com essa fragmentado, ela tem um aspecto positivo ou não? L: Queria só adicionar à questão o foco do futuro historial do século XXI. JG: Certo, então retomemos o ponto a partir de Marx. Antes você falou de crise, certo? Meu doutorado é justamente sobre esse tema. A teoria de crise de Marx atravessa sua obra de crítica madura, da década de 1850 até sua morte. Em todo sua obra ele vai mostrando como a crise está presente no nível mais geral do capital, pois ela é a manifestação da contradição constitutiva do capitalismo. Lá para o final, no livro III, ele criou muita polêmica por afirmar que essa manifestação, a crise, sempre aponta para duas

possibilidades. Nenhuma delas é mais determinada que a outra, não se tem a ideia da crise crônica assim como não se tem a ideia de que a crise é uma mera possibilidade; as duas coexistem. Tendo isso em mente, é interessante pensar que o século XXI já começou em crise e ela está sendo resolvida através da velha fórmula de reduzir salários para ganhar tempo. É curioso, por exemplo, que as pessoas fiquem indignadas com as políticas do governo Trump sendo que o governo de Barack Obama, desde seu começo, assumiu uma posição parecida de corte para ganhar tempo. Por sinal, essa política econômica tinha começado com G.W. Bush e Obama comente prosseguiu. Ela se resume a ganhar tempo e exportar a crise para os outros países, visto que eles têm o dólar e podem manipular financeiramente o mercado. Que cenário temos aqui então? Existe sempre a possibilidade de o sistema econômico se rearticular conforme as inovações tecnológicas possibilitem, é isso que vem acontecendo. Nos anos 1930 o capitalismo estava num impasse e as soluções pareciam ser entre o nazifascimo o socialismo soviético. Após a Segunda-Guerra o capitalismo arranjou uma saída justamente por meio do desenvolvimento técnico. Porém, nos anos 1970, voltam a aparecer os problemas mais profundos que se manifestam na crise. O capital lida má e porcamente com esses problemas até que eles explodem no começo do século XXI. É uma questão que está no discurso de Lenin, por exemplo, pois se nós não fazemos nada para aproveitar a crise que está aí a nosso favor, pode ser muito bem que o capitalismo se reorganize. Em Walter Benjamin também, nas Teses Sobre a História, ele diz que nada fez mais mal para classe operária do que acreditar que ela nadava a favor da correnteza. O que ele quer dizer com isso? Que não dá para esperar que a história resolva as contradições por ela mesma, devemos pegar ela pelas mãos. Então, será que o capitalismo se recuperará? Ou será que ele vai se retorcer nessa coisa crônica que lhe é intrínseca e que vai excluindo e excluindo e explodindo em violência. O aumento da violência que ocorre no Brasil é


resultado desse fenômeno, por exemplo. Qual é então nossa perspectiva de futuro diante disso? Ou se recupera, ou os movimentos sociais dão um fim dele. L: Mas como fica, por exemplo, a razão instrumental nesse momento de crise? JG: Vocês já sabem disso. Devemos recuperar a razão que seja realmente crítica e não ficar alimentando essa razão instrumental. O Conformismo, o fazer técnico que é contrário ao fazer político. P: Queria saber como fica o campo do micropolítico nesse momento, pois enquanto a universidade privilégio o macro-político e suas mudanças, os estudantes tem seus corpos dominados na esfera do micro. Como fica o campo moral nesse debate, a questão dos corpos no fazer político micro que afeta o macro? JG: Bom, eu não tenho uma fórmula para isso. Mas creio que é necessário abrir esses espaços da micro-política, justamente, por exemplo, pela questão da fragmentação. As pautas micros são fundamentais e não estão em contradição com as pautas macro-políticas. P: Não creio, as pautas macro-políticas roubam as pautas micro-políticas. JG: O que você pensa como uma pauta macropolítica? P: Por exemplo, como funciona o centro acadêmico. Como se fosse um operário numa fábrica onde a burocracia entrava e domina impedindo a criatividade, roubando o tempo. Como abrir espaço para a micro-política se as questões já estão prontas? JG: Por isso eu disse. Essas pautas fragmentadas têm sua importância, é delas que surge a criatividade que pode até interferir na maneira como se faz macro-política. O que não se pode perder de vista é o sistema como um todo. G: Para ir encerrando a discussão, queremos saber qual papel a teoria vem assumindo e qual o seu papel. Também queremos saber qual o seu nãopapel?

JG: O não-papel, uma provocação interessante. Não sei se compreendi bem. Mas temos como exemplo o programa de pós-graduação em História Econômica da Faculdade. O primeiro programa de História Econômica do Brasil teve sua nota rebaixada agora por conta de alguns critérios adicionados recentemente relativos a produtividade. Ou seja, começaram a caçar aqueles que não produziam segundo determinado parâmetro. As instituições de ensino importaram essa prática da Folha de São Paulo que nos anos 1980 teve acesso a uma lista da reitoria sobre produção acadêmica e a publicou medindo o índice de produtividade que tinha como modelo o trabalho dos jornalistas que publicam cotidianamente. Não importava, portanto, a qualidade ou o conteúdo do que se publicava, mas sim a quantidade de tais publicações. O que isso gerou agora foi um desdobramento dos acadêmicos para corresponder aos quesitos dos órgãos de avaliação para reaver o posto do programa. Uma adaptação aos parâmetros de produtividade. Uma pressão real sob o exercício acadêmico. P: Triplica a produção! L: Ajuste o chicote! Mas de qualquer modo, isso não impede que façamos isso que estamos fazendo agora, no âmbito informal. JG: Sim, pois nós estamos sendo chamados a fazer alguma coisa diante da gravidade da situação. P: A ocupação, por exemplo, é uma das formas de revirar esse jogo, pois impede que a estrutura da instituição se reproduza no campo do cotidiano. Ela cria uma espécie de poder constituinte. Uma suspensão generalizada da ordem normal. JG: Sim, eu me lembro, por exemplo, da ocupação de 2005. Os estudantes ocuparam a reitoria e para evitar a classificação de vagabundos, alguns professores se prontificaram a dar aulas que aconteciam na sala do Conselho Universitário (CU). Do tipo, estamos estudando, discutindo, pesquisando, só que numa nova configuração. L: Qual seria então a prática de uma razão crítica? Para os historiadores, ou para a comunidade universitária de forma geral?


JG: Ora, basicamente, o exercício da teoria crítica. Agora, o que é uma teoria crítica? É submeter tudo ao crivo da razão, sem respeito a nenhuma autoridade. No fundo uma pauta do Iluminismo que é radical, mas nunca foi posta de fato em prática. Significa que a crítica tem direito e deve submeter tudo e todos. Ou seja, ela é a manifestação do elemento negativo. Por exemplo, podemos pensar o famoso posfácio da 2ª edição do Capital, quando Marx define sua dialética a contrapelo da dialética de Hegel. Ele diz, minha dialética é crítica e revolucionária por que, ao contrário de Hegel que pensa no elemento negativo como momento do positivo, considero o elemento positivo como um momento do negativo.

Não podemos, porém, fazer da própria crítica uma razão instrumental. O momento negativo deve sempre ser preponderante. L: Fugindo um pouco da questão. Dentro do escopo partidário, dizemos que existe esquerda, direita e centro. Se a gente voltar para o momento em que esses conceitos foram criados, primeiro que o centro não existia, e a direita não era necessariamente militar. A partir daí, acho que um dos pontos que poderíamos investir no século XXI em diante é tentar reavaliar o que é esse escopo partidário, nos perguntando: 1º existe uma direita liberal de fato, que não a direita militar, neonazi, facista, no Brasil? 2º Por que a gente tem o conceito de centro? E a esta se atrela uma terceira: por que não podemos considerar a esquerda partidária como os partidos liberais de fato? Porque aí nós realmente conseguimos dialogar com os liberais e tem realmente haver com o liberalismo. JG: Olha, você tem toda razão. O jogo foi todo embaralhado no século XX, especialmente depois da Segunda Guerra-Mundial. Na década de 30 o cenário era: ou você era comunista ou você era nazista/fascista. Mas então surge a tal da socialdemocracia, que no início - a social democracia era o partido marxista, formado em 1889. Em todas as partes os partidos sociais-democratas, que fundaram a segunda internacional, eram revolucionários - na Rússia, na Inglaterra, na Alemanha. Contudo, eles começaram também pela via eleitoral, elegendo alguns deputados etc., mesmo que não fosse considerada uma via (por

dentro) desejável de mudança profunda do capitalismo, era apenas para garantir que não seriam postos da ilegalidade. Com o tempo começaram a apostar cada vez mais nessa via, ainda estamos em parte nesse negócio, ao invés de partir para a ação direta. Isso começa antes mesmo da primeira guerra mundial. O social-democrata vira um partido liberal com uma pauta reformista. O que nós chamamos de centro, que não é “nem de esquerda, nem de direita” (na verdade é de direita), é o pessoal que quer reformar. O PSOL grande parte das alas é isso. Como o PT, que nos anos 80 tinha grupos revolucionários lá dentro, que nunca tiveram grande espaço e que ao perceber caíram fora. Lembro que bem no começo, que toda a esquerda que não era do partidão, nem PCB nem PCdoB, acabou entrando no PT, ficou um tempo e depois caiu fora. Então vamos falar assim: o pessoal que acha que o capitalismo que está aí é ótimo, e se você não conquistou seu lugar ao sol é porque você é incompetente. Tem o pessoal que tem um pouquinho de sensibilidade social, que acha triste a São Remo aqui e tal, e propõe algumas reformas dentro do sistema, busca ocupar o poder tal como está constituído visando minimizar a situação. E tem o pessoal que diz: não dá! Toda vez que foi tentando isso foi tão pouquinho e de maneira superficial, que em seguida, quando a direita radical volta ao poder, destrói tudo num instante. “Dez anos criando, subindo salário mínimo e nhenhenhém” e em um ano é jogado na lata do lixo. Porque foi feita uma mudança pela via do crédito, assistencial, no perfil de renda, sem haver mudança no perfil de propriedade. Ao contrário, a propriedade se concentrou ainda mais. Percebe-se então que estava tudo dormitando: “Dá onde aparece tanta gente votando no Bolsonaro? Da onde apareceu?”. Sempre existiu, mas estavam quietos, não tinha uma crise econômica, todo mundo podia pegar um pouquinho, alguns mais, outros menos. Mas tinha pra todo mundo. Mas essa direita sempre esteve aí, apoiou o regime militar, apoiaram FHC, que colocou um freio em algumas pessoas do PT que tinham propostas reformistas mais reais, penso no Olívio Dutra, que no início tinha uma proposta para a cidade, no Paul Singer, que faleceu essa semana, que tava com uma pauta corporativista. Mas tudo isso foi marginalizado, o ministério da cidade foi rapidamente sucateado e colocado na pauta de negociação. As cidades se transformaram cada vez mais nessa coisa mercantilizada, espetacularizada


e militarizada. Então, tem que fazer uma transformação radical, não basta passar um mão de tinta numa parede que está rachada e vai cair, está podre!

P: O erro do Lula foi se entregar, se ele não tivesse se entregado ele ia criar um fato político. No momento em que ela pode se radicalizar, ela recua. Quando o bicho pega, ela…

P: Acho que existe muito conhecimento na Universidade que está preso. Tem que fazer emergir uma espécie de inconsciente desses saberes numa superfície social. Porque senão esses conteúdos ficam trancados. No ativismo mesmo, você não tem como discutir esses conteúdos, filosofia etc. Então qual é, eu acho, o papel do intelectual, é fazer também emergir esse inconsciente. Tem que ter essa recusa do poder.

JG: Pois é, o Jango fugiu, o Lula se entregou, né… Foi quando o Brizola rompeu com lula: cara você não pode se entregar.

JG: E você vê que tem tanto intelectual de esquerda que no fundo tem uma fascinação pelo poder. Ou eles mesmo assumem, ou quando algum amigo poderoso assume fica “Ó o fulano”. L: Existe um equívoco grandíssimo de colocar as movimentações de 2013 como estopim para o crescimento da direita. E vão falar isso do movimento contra a copa. E o equívoco é grande, porque tudo isso acontece e a direita fascista se apropria disso desde 2002, quando a gente quis barrar a ALCA. Essas pautas estão desde 2002 e desde lá estamos dizendo que isso acontece, e que não dá mais pra ficar no reformismo. Em 2012 tem a cúpula dos povos, a RIO +20, no Rio de Janeiro, a Dilma com tudo lá na mão para vetar o código florestal, e aprova. Então como vai dizer que a culpa é de 2013, que é dos movimentos contra a copa. JG: A cumadre dela, a Kátia Abreu, do agronegócio, disse pra ela que não dava. O agronegócio começou na ditadura militar, se expandiu muito no governo FHC e se consolidou no governo Lula e Dilma. Se consolidou ao ponto de ser uma das coisas mais complicadas. L: De 2002 até meados de 2015, contando aqui os movimentos secundaristas, a pauta é anticapitalista e a esquerda partidária nunca aceitou isso. JG: A esquerda achava que estando no poder, ela poderia fazer algumas reformas: “Calma seus radicais, a gente vai chegar lá, mas devagarinho”. Devagarinho estamos aí, e ai quando eu vejo o Lula… a deixa pra lá.

L: O Lula quer assinar sua declaração de morte revolucionária, assina. Mas não fica impedindo a revolução dos outros. Ele assinou que ele morreu. JG: Mas ele assinou que morreu em 1980... Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo. [1]



Essa encenação revolucionária, todavia, não

Crônica de um fracasso

resulta em constante fracasso por uma fatalidade

anunciado

de ocasião, ou por erros cometidos aqui e ali; o fracasso está escrito, inexoravelmente, no ato de

Greve de estudantes é quando os estudantes prejudicam

reivindicar

bloqueando a circulação condena o movimento a

Organizada

ser mera exibição de autoritarismo, violência, e

religiosamente a cada dois anos, a greve com

agressão. O piquete é, em essência, a negação da

piquete segue um roteiro inabalável e previsível:

política, o ato de imposição truculenta que ignora

uma assembleia minoritária – necessariamente

qualquer esforço de convencimento e persuasão.

benefícios

os

estudantes

aos

estudantes.

aprova

frequentemente

como

minoritária

repertório

(não

para

aprovação do piquete: a pilha de cadeiras

existe

a

pauta

primeira uma

extremista,

Ora, por que convencer, se o autoritarismo é tão

opção

de

mais fácil e imediato? Uma greve orgânica e

escalada

de

verdadeira abraça as frustrações discentes para

mobilização, o método mais agressivo e violento é

exigir

a única alternativa de ação no restrito horizonte

reconhecida urgência; ela se constrói, portanto, de

ideológico dos militantes); o Prédio do Meio,

baixo para cima, naturalmente, nas indignações

pronto para receber as manifestações massivas do

diárias. A preguiça ideológica, por outro lado,

alunado descontente, ecoa silêncio durante toda a

coage a comunidade discente a uma adesão

paralisação;

intermináveis

artificial que não brota da vontade coletiva, mas

discussões entre alunos e professores, professores

da gritaria militante travestida de truculência. O

e funcionários, alunos e alunos, e a unanimidade

piquete é, assim, a Tropa de Choque dos

em torno das pautas se converte em belicosidade

militantes profissionais.

seguem-se

as

melhorias

acadêmicas

e

sociais

de

generalizada acerca dos métodos; a USP, com exceção dos cursos de humanidades, continua sua rotina imperturbável, dirimindo, assim, o potencial realizador da paralisação; as férias chegam, as paixões adormecem, as aulas são irreparavelmente perdidas, as conquistas são inexistentes – ou, quando muito, não ultrapassam sensivelmente as negociações já esboçadas antes do movimento grevista. A greve da FFLCH é um eterno bocejo de previsibilidade.

Mas o piquete não é só violento; ele é, antes de mais nada, idiota: dizer “piquete” e “mobilização” na mesma frase representa um exercício simplório de contradição, já que levantar barreiras físicas de circulação é, de longe, o método mais eficiente para esvaziar e empobrecer os espaços; ambientes de livre movimentação, ao contrário, estimulam a troca criativa de ideias, experiências, catalisadores

e

afetos, políticos

e

são,

portanto,

fundamentais.

A

desmobilização do piquete é um corolário


inequívoco do bloqueio de circulação, e ocorrerá

contraposição ideológica – principalmente quando

sempre

a altercação de posições está sinceramente aberta

que

a

truculência

contornar

o

convencimento com o atalho da imposição.

ao dissenso.

O militante profissional, no entanto, vai discordar

de

é, no entanto, instrumento de imposição e

convencimento, há debate, há política… só que na

autoritarismo, mero atalho espúrio para contornar

assembleia. Lá, os temas pertinentes e urgentes da

as inclinações do conjunto do alunado: não há

graduação são discutidos em minúcia, com

nada

maturidade e rigor, e o debate sobre a conjuntura

revolucionário, do que uma simples, rápida, e

de poder e correlação de forças, detalhadamente

política consulta à comunidade acadêmica. E

escrutinadas pela inteligência estudantil, serve

repare bem: ninguém sabe qual é a inclinação do

como parâmetro de decisão acerca dos vários

conjunto

métodos disponíveis para a luta – em nenhuma

contrários ao piquete, se favoráveis ou contrários à

hipótese, o piquete é a primeira, única e

greve; a mera possibilidade de ouvir os pares é

preguiçosa alternativa de combate. A divergência

imediatamente

ideológica, aliás, é acolhida no seio da discussão

organizada, temerosa de que a democracia ameace

sem qualquer esboço de ataque pessoal, rancor ou

o simulacro de greve. No argumento grevista, só a

argumento ad hominem; nenhum colega que

parcela bem informada e iluminada do curso pode

manifeste eventual discordância ou objeção será

deliberar sobre os rumos da ação política; como a

chamado de “fascista” ou “direitista” pelos

iluminação provém única e exclusivamente da

militantes, de sorte que a assembleia alcança uma

assembleia, apenas ela detém a prerrogativa

irrefutável atmosfera de liberdade à contradição e

decisória sobre temas absolutamente sensíveis e

respeito mútuo. Conquanto tudo isso seja a mais

urgentes que afetam a convivência recíproca.

pura verdade, a assembleia serve para forjar

Impressionante como todo grupo que deseja

maiorias decisórias de flagrante artificialidade –

restringir o direito coletivo à deliberação inventa

quando 15 ou 20% do curso comparece ao evento

uma

(e são absolutamente raras as ocasiões em que o

imposições

autoritárias:

quórum

determinado

tipo

registra

mim;

essa

responderá

marca),

a

que

No papel de fórum eleitoral, a assembleia

“presença

mais

dos

pirueta

perigoso

para

estudantes,

se

rechaçada

retórica

teatrinho

favoráveis

pela

para

étnico

o

militância

justificar

ou

pessoas

podem

suas de

escolher

massiva” dos estudantes é festejada como prova

adequadamente; só pessoas do sexo masculino

inequívoca de respaldo político, e as pautas

podem escolher adequadamente; só pessoas de

extremistas são aprovadas pela maioria absoluta

determinada

de 15% do curso. Em tempo: eu considero que as

adequadamente. No caso do curso de filosofia, só

assembleias são definitivamente importantes para

pessoas que comparecem à assembleia podem

a vivência acadêmica, e devem ser encorajadas e

escolher adequadamente; todos os outros são ou

estimuladas enquanto promotoras de debate e

mal informados demais, ou excessivamente

religião

podem

escolher


Aula, porém, é normalidade. A greve com

alienados para opinar sobre os rumos coletivos do piquete,

curso.

ao

contrário,

é

um

instrumento

de

desorganização, de pressão política, de desafio ao

Mas

a

oposição

dos

militantes

cotidiano e ao rotineiro. Sem impor uma medida

profissionais às consultas amplas e democráticas

extrema de indisciplina, as injustiças se perpetuam na

só não é maior do que a sua oposição às aulas. Na

regularidade de todos os dias. Nesse ponto específico,

lógica progressista dos grevistas, a continuidade

devo dizer que concordo, absolutamente, com os

do curso é o principal óbice que os impede de

militantes profissionais: não há conquista progressista

conquistar suas pautas políticas; descartáveis e

que se realize sem o enfrentamento contundente às

desimportantes, as aulas são rifadas em benefício

naturalizações diárias. Acontece que a greve da

da luta. Mas repare bem: “luta” não é um

FFLCH,

enfrentamento contra a guarda universitária para pressionar as instâncias da reitoria; “luta” também não é uma demonstração de força contra a GCM ou a Polícia Militar para atingir os órgãos oficiais

ela

própria,

é

uma

tradição

bienal

absolutamente previsível, incorporada, inclusive, nos calendários de começo de semestre como uma possibilidade lamentavelmente rotinizada e banalizada – já nas primeiras aulas, não é raro que os professores e monitores apresentem estratégias de entrega de

de administração estadual e municipal; a luta

trabalho caso haja uma eventual paralisação. A greve

radical dos grevista é um punhado de cadeiras

da FFLCH é uma normalidade bienal que, justamente

bloqueando os corredores, e sessões subversivas

por isso, esvaziou completamente seu apelo retórico;

de desenho em kraft. Os militantes ignoram,

um método extremo que é acionado reiteradamente

assim, o potencial transformador da atividade

perde sua capacidade de transmitir exasperação e,

intelectual, sua capacidade única de repercutir

consequentemente, provocar urgência nos adversários

indignações

políticos; transforma-se, pois, em mero fetiche de luta,

e

persuadir

Paradoxalmente,

eles

descontentamentos.

seriam

muito

mais

relevantes para a própria causa progressista se aproveitassem

ao

máximo

os

instrumentos

pura romantização piqueteira. A diferença entre o militante profissional e o militante progressista é que este atua em função das causas, e aquele em função dos métodos.

intelectuais que as aulas estimulam. A dedicação acadêmica, em suma, não contradiz os objetivos de transformação política e equidade social, antes impulsionam o seu escopo de ação: todos nós sabíamos como sacudir uma bandeira ou repetir slogans ideológicos antes de nos matricular no

Ser progressista, meus amigos, não é prejudicar os pares numa competição ingênua e vazia acerca de quem é mais radical, quem é mais militante. O movimento grevista de 2018 foi um erro evidente, porque o fracasso está inscrito em sua natureza autoritária,

violenta

e

extremista.

O

piquete

curso de filosofia; se matriculados estamos, vamos

religiosamente bienal e as conquistas progressistas e

incorporar às nossas preocupações militantes a

urgentes estão irreparavelmente divorciados.

densidade crítica que o curso proporciona – ou ceder a vaga àqueles que de fato gostariam de usufruir da vida universitária.

Felipe Eduardo Lázaro Braga


ParabĂŠns, Professor!


Do direito de ir-e-vir (dentro de mim) ou Anedota de uma greve licenciosa. Prezado Senhor Professor Doutor Planeta, ídolo de carne que ejacula novos destinos: Foi preciso, para que eu começasse nova carreira, que sobre mim você e mais dez homens dessem a si mesmos novas primícias. Assim quis Brama, Professor Planeta, que eu voltasse não mais em Sofá, mas em cadeira, emaranhada a outras cadeiras, que - infelizmente não sei - poderiam assim como eu, estar conscientes desse bacanal, dessa orgia, dessa celebração da ressurreição viril. Devo confessar-lhe, meu querido Professor Planeta que nunca antes havia sentido tamanha sanha de liberdade, tamanho furor de ir-e-vir, este não voltado à outros corpos, mas voltado a mim mesma, uma, entre outras, cadeira. Como manda o Deus que aqui me reencarnou, através da testosterona que vazaste de teus dedos, devo narrar-te, para seu deleite, tudo aquilo que vi e que sobretudo senti, quando me retiraste do grande fluxo de almas para sentir, não mais sobre mim do que em mim mesma, toda sua potência de varão ressuscitado: Casta e imóvel, como convém a todos os objetos, não pude senão aceitar tuas investidas de menino tarado. Não só as tuas como aquelas dos dez outros varões, que me cercaram, me agarraram, me violaram como um bando de cavalos sedentos. Mas tu, Professor Planeta, és, entre os varões, o mais varão de todos, o que mais fez vibrar minhas fibras envernizadas, que mais molhou com o suor de teus Doutores dedos minhas pernas imóveis. Tanta descarga, tanta violência, tanto orgulho da potência sexual completamente restaurada!, é de se molhar até mesmo as cadeiras. Digo isso, Professor Planeta, porque nunca antes fui tão confundida, fiquei tão pasma: mais uma confissão: à primeira vista, tudo aquilo me pareceu necromancia. Mas depois de tantos toques, de tantas barrigas se roçando em minha carcaça dura, depois que, entre teus suspiros, tuas respirações entrecortadas, me içaste, percebi que não havia artes necromantes para algo que não estava morto, antes só adormecido. Libertaste-te e libertaste-me ao mesmo tempo, como teus feromônios transbordantes, de tal modo que posso lhe dizer: “és livre, professor planeta, para ir e vir dentro de mim toda vez que quiseres, sem necessidade de manifestos, sem credenciais acadêmicas apenas eu e você numa lancinante fricção de corpos e cadeiras”. É de paixão que falo, de amorestranho-amor, dada nossas diferenças de idades; pois nunca antes eu havia provado das delícias acadêmico-octogenárias! Tanto menino escondido atrás dessas peles flácidas, garotos mesmo, se re-re-re-redescobrindo na luxuriante corrida da liberdade, liberdade essa que é só uma, que é a do vai-e-vem, do ir-e-vir, do gozo incontrolado dos movimentos repetitivos. Pois façam fila sobre mim, meus deliciosos professores, transpirem, me arrastem pelos corredores, tais como arrastavam suas damas aqueles virilíssimos homens do paleolítico, que mesmo dura como sói à madeira envernizada, metafisicamente me amoleço toda, como aqueles belos jovens lânguidos nos opiários. E se hoje sinto um vazio imenso, sei que não é de ser mero objeto disposto, mas que é de sentir falta do possante desejo do homem que, sem saber se conseguiria intumescer-se a si mesmo, conseguiu! Cheia de Langor e de Saudades Suas, Uma reles cadeira


Entrem em contato conosco! Aceitamos textos, quadrinhos, desenhos, etc. Abriremos edital em novembro. E-mail: jornaldafilo@gmail.com Facebook: - Jornal da Filô – Discurso Sem Método Blog: odiscursosemmetodo.wordpress.com



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